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BENÇÃO
from Portfólio 2023
“Agora, Nathanael corria ao longo do terraço e saltava alto no ar e gritava: ‘Roda de fogo, gire – roda de fogo, gire!’”. O Homem de Areia, 1817 (E.T.A Hoffmann)
Ele gira, é como um carrossel, mas não é. Ele gira, repete, dá um loop, mas não é a mesma coisa. Minha náusea não passa, é repugnante. Será que ele para de girar? Reprimi minha bílis, e continuei dando voltas e acompanhando aquela coisa. Entrei na viagem. A seguir, depois de um suspiro, uma pausa; uma olhada, uma dupla pausa; uma dupla olhada, estalando e arranhando. É como um sonho.
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Eu estava lendo O Homem de Areia. Natanael é visitado pelo bicho papão, digo, o Homem de Areia, a todo momento. A roda de fogo gira no mesmo lugar, os olhos vão de um lado para o outro.
Meu tênis parecia um forno; estava muito quente, mas realmente não dava para usar algo mais leve naquele fim de tarde. Senti, realmente, a seriedade e o calor dos acontecimentos em dois momentos distintos. O que importa, aconteceu naquele fim de tarde quente de outono. Estávamos passando em frente à fundação que carregava o nome de Getúlio Vargas, logo na Avenida Nove de Julho. Sempre achei graça. Naquele momento, soube que havia um busto de Clinton num dos halls de entrada do prédio. Ri, não entendi o porquê. Sem saber aonde que o percurso nos levaria, caminhávamos pelo curto elevado ao lado da Vai-Vai. “Vamo fuma o busão, porque o busão tá uma droga” ditava o caminho. Do visor da câmera, vejo então uma figura preta fosca, da cabeça aos pés. Sigo filmando, me aproximando dela para conseguir uma imagem mais clara – imaginei que fosse um bloc. Sinto uma pesada mão no ombro “Qual foi, qual foi, tá filmando? É P2? Cê é P2?”. Quando viram que se tratava de um “playboy” de 17 anos produzindo um trabalho para a escola, e logo, inofensivo, fui liberado. “O negócio agora tá sério, é calça de veludo ou bunda de fora, se liguem aí nos coxas disfarçados – rato é rato”, numa voz tampada e contida pela máscara de gás. Não pude ver os olhos dele, estava de máscara completa que cobria a face inteira. Armadura de acrílico do pescoço até a bota, cobrindo toda a roupa, preta, calça e camiseta manga longa – e luvas, pretas.
Eu estava sentado no pé da cadeira do meu avô. Do lado da poltrona, um cinzeiro e um pequeno copo que ele cuspia, no começo achei que ele passara mal, mas depois só minha língua retorcia de nojo com o barulho do acúmulo na boca dele. Ficávamos lá assistindo televisão às tardes de domingo após o almoço. Aproveitando seu cigarro, gostava de ver os programas de guerra, afinal ele era um entusiasta de aviões e orgulhava-se de seu irmão ter sido da aeronáutica. Quando ele me falava dos chineses, como um bom filho de japoneses ressentido, não faltaram preconceitos. Bárbaros, cruéis e primitivos; sem educação! Se eram bons em algo, era na tortura. Gota a gota, ele me dizia, colocando o dedo na minha testa. “Gota a gota”, a cada três ou cinco segundos, uma gota batia. Eles amarravam o prisioneiro deitado, gota d’água na testa, e batia de novo com o dedo na parte entre minhas sobrancelhas, que avermelhava. Por horas, dias e meses, gota a gota.
BENÇÃO É PARTE INTEGRANTE DA 30a “MOSTRA DE ARTE DA JUVENTUDE” DO SESC, NO SESC RIBEIRÃO PRETO, EM 2022. A EXPOSIÇÃO TEVE SUA
ABERTURA EM MAIO DE 2022 E FICARÁ EM CARTAZ ATÉ SETEMBRO DO MESMO ANO
Link para visualização
O vídeo “Benção” está sendo apresentado enquanto proposta de vídeo-instalação no SESC Ribeirão entre Maio e Setembro de 2022, em conjunto com mais 40 trabalhos de diferentes artistas e coletivos de todo o Brasil.
Material virtual e físico (catálogo) da 30a Mostra de Arte da Juventude (MAJ) do SESC, em Ribeirão Preto, em 2022.