Ninho de silêncio issuu

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NINHO DE SILENCIO EUCLIDES SANDOVAL 1ª Edição

Atibaia Edição do Autor 2014


Ficha Técnica Título Ninho de Silêncio Autor Euclides Sandoval Edição digital Camila Andrade 1ª Edição Atibaia, fevereirode 2014 Capa Pintura do autor O monge

ISBN 978-85-917024-0-4


Ă€ Maria, pela nossa fĂŠ que ainda fala


Do silêncio inspirador de um mosteiro, às condições de diálogo na dramática do trabalho. Passar por um homem-totem, meu pai; ratos e consciência-nave, pomba com controle remoto em comunidade terapêutica, musas na banheira, política e mercado, metas e objetivos... Para que serve isto ou aquilo? Contos, uma quase novela, respingos ensaísticos face a valores. Melhor, compreender os próprios. Entre o romântico e ser dono de verdades, preferir o romântico. Autoajuda pode ajudar para que não se perca a cabeça.


Índice ESTRELAS E LÁGRIMAS QUINZE MINUTOS DEUS DOENTE A MUSA DA BANHEIRA RATOS E CONSCIÊNCIA-NAVE FICAR BOBO NÃO É BOM COROA EM FORMA DE MURO JOGO DE COSTAS POMBA COM CONTROLE REMOTO A CAMINHONEIRA OUTROS TEMPOS PEDRA DE TOQUE PLANTAS TRISTES NINHO DE SILÊNCIO MAZZACRELLI O ASSESSOR MEDO DE VIRAR CRISTAL SOBREVIVENDO SUSTO RODA QUE NÃO ANDA, ANDANDO QUE NÃO RODA PENSAMENTIZANDO O HOMEM VERDE DE CAPA E ESPORAS


Estrelas e lágrimas Ao regressar de São Paulo, depois do contato bissexto com Marta, já no ônibus, olhos ardendo, inclinou o assento. Ainda respingava, tempo enfurruscado, trânsito lento próximo à ponte de Vila Guilherme. O temporal fizera o Tietê transbordar e bueiros mal limpos contribuíam para infernizar bairros em nível mais baixo ao do rio. Algumas pessoas, naquelas casas de meia água, enxadas, rodos e vassouras, para enfrentar lama e poças. Cansado, o ônibus no compasso da via marginal, dez quilômetros horários, uns colados nos outros. A noite chegando, olhos semicerrados apressavam desligamento compensador. Um dia em São Paulo, para quem vive em Oréade, sufocante. Paulista acostumado, nem percebe o mal das inversões climáticas. Lembra Cristóforo a época em que morava na Capital, e duas vezes por semana ia jogar tênis em Oréade. Ao entrar na quadra sentia o ardido no nariz, ar de tão puro. Voltava em tempo para começar a trabalhar às dez no Centro de Reciclagem - Dinâmica de Grupo. Luzes acesas, enquanto o ônibus percorria a zona urbana. Pálpebras sem fechar de todo, abaixa mais ainda a poltrona. Começa a produzir, para si mesmo, um daqueles filminhos de linhas do McLaren. Linhas em movimento, dançando, ao som do motor e das rodas no asfalto. Linhas verticais intermitentes, aqui ou lá pela escassez de casas e postes. Linhas oblíquas também. Ao pararem em locais de embarque e desembarque, aproveitava para brincar com os novos desenhos. Pulavam, dançavam, cresciam e diminuíam, através dos pontos de luzes concentradas. Nas paradas, outros elementos, mais próximos e exuberantes, as luzes do interior do ônibus. Curtia a lentidão dos movimentos. Gotas de lágrimas mais grossas, luzes, tipo estrelas dos espetáculos de tevê. Bailado de linhas, coreografia nova a cada instante. Sentia o poder simultâneo do encenador e do personagem. Em seguida a essa forma de lidar com o tempo, pois não tinha sono, recordou cenas passadas, fragmentos, permitindo desdobramento em mais cenas e detalhes. Ir, aos poucos, voltando ao presente. Em outra ocasião, o reprimido, espinhas de peixe encravadas na garganta. A mãe havia morrido, dias atrás. Na Castelo Branco, aquela rodovia que parece um mar, de tão larga, pouco movimento, reta que não acaba mais. Desde as primeiras lembranças da infância, ele, dois anos de idade, debruçado no ombro dela, em lágrimas, ao ser retirado do berço depois de


longos minutos de solidão e desespero, pois se esqueceram dele. Ao longe, na sala, sons de festa. Chorava alto. Não o ouviam, ou não se importavam. Recordou cenas de rua, a mãe chamando, esfriara o tempo. "Você vai ficar doente, sem agasalho"... e ele ficava mesmo. Ou quando assistia ao irmão numa crise de asma, logo depois, também, com o peito preso e chiando. O cheiro de sêmen quando a mãe sentada ao lado, na cama, lhe punha comida na boca. Estava doente. Recordou até o momento de grande emoção em que ela morrera em seus braços. No final das lembranças, cerca de duas horas passadas, chorava na estrada, para si mesmo. Falava alto o que sentia, amplificando os próprios sentimentos. Explorava a matéria engasgada. Leve como pluma, suspirou aliviado, olhos úmidos, faces encharcadas. Cena com personagens; um único ator. Todos se expressando na primeira pessoa. A 30 minutos de Oréade, perto de Mairiporã, lugar que havia perdido a montanha para os comerciantes de granito, lembra a relação com Juan. Calma recordação, não exercício com mensagens e sentimentos retidos. Lances de certa acidez. Sucessão de imagens e diálogos, uma colagem. "Se eu já pensei em me matar? Essa ideia chega a passar pela cabeça de todo homem. E você?" A pergunta de Juan encontra resposta pronta, fácil para quem possui convicção, assentada ao longo de uma infância cercada de espiritistas. Mocidade de experiências em sessões de mesas e copos falantes, e estremecimentos mediúnicos, tendo ele próprio experienciado, algumas vezes, sensações metapsíquicas. "Para mim‚ mais que simples posição teórica. Tenho certa vivência; tal possibilidade não me ocorre. Nem me importo se, no fim da vida, ficar exposto à visitação pública. Autorregulação existe sempre, até na dor extrema." "Sua resposta‚ uma resposta introjetada, religiosa", diz Juan. "E você não pode falar com segurança sobre o futuro que não viveu." Viajavam entre cidades próximas, de madrugada. Foram fazer o jornal semanal; estreia de Juan, promessa de uma página inteirinha dele, o que não aconteceu. Coisas de mesa de peistapista e editor. Clima de certa confusão, sem saber como resolver o problema dos espaços. O amigo, puto com Cristóforo. Despediram-se diante da casa de Juan (futuramente, Cristóforo sofreria um desastre ali perto). "Vai tomar no cu", boca colada de Juan no ouvido do jornalista, antes de deixá-lo. Muito se falou naquela viagem curta. Entre os momentos de rispidez, a ponto de culminar com a expressão “fecha capítulo”, vários assuntos, incluída a questão do


suicídio. Cinco anos depois, Juan García se mataria, enforcando-se com fio elétrico no cano do chuveiro. Passado um ano, desde a sua morte, o violento acidente em que Cristóforo quase perde o braço, a poucos metros da casa de Juan. A vida buscando a morte; há bastante tempo Juan bebia doses excessivas de álcool. A morte atrai a morte, dois acidentes, um fatal, em intervalos próximos. Nada se explica; homem morto‚ o fato. Cristóforo convenceu-se de que morrer é cair na atemporalidade. Perpetuam-se sentimentos, o que se experimenta em vida. Qual a razão de interromper a existência, se a busca de sentido parece ser da essência do viver? Não dá para simplesmente detonar o que nos marca. Ao contrário, sentimentos se tornam mais ainda opressivos. Não vivemos a experiência do não-sentir total. Como aferrar-se às últimas sensações? Artistas e espíritos falam do círculo vicioso do nãoser-da-morte-provocada, desejo arrependido de voltar à existência. Plenitude sensorial de quem se vê destruindo-se, sem nada poder fazer. Shakespeare alertara, em Hamlet: "Quais os sonhos que teremos, quando tivermos escapado a esta tormenta da vida?" Incluir e assumir os dissabores; poetas até fazem o elogio da dor. Um estado de sombra e inconsciência pode levar à autodestruição. Em geral se a pratica, de forma lenta, certeza subjacente. No iceberg da consciência, não cabem pontas de um destino autotratado.


Quinze minutos Terminou a reunião no Centro de Treinamento. Pegou o carro, e já estava na Paulista. Na década de 70, mesmo no fim do dia, ainda se chegava à Aclimação, daquele ponto perto da Brigadeiro, até a Nicolau de Souza Queirós, em 15 minutos. Trocou a roupa de tropical brilhante por uma calça de gabardine e uma botina a búfalo. Em menos de 15 minutos comeu, teve rápida discussão com Rosa, daquelas brigas quando ela lhe faz muitas perguntas, em minúsculo espaço de tempo, e ele, ligado em outra coisa, precisa de uma pausa, para que o alimento não desça embolado e duro. O TL na porta, só faltava o carro também fazer perguntas. Topa numa boa os rápidos impulsos de Cristóforo para dar a partida. Sofrem câmbio e os pedais da embreagem e da aceleração. Em 15 minutos, desce a Pamplona, depois de vencer a Paulista. Ia virar na Rua Batatais. Raios. Onde fica essa rua? Para-brisa embalado, chuvinha fina empastelando as luzes das luminárias e das vitrines. A próxima, ou a outra travessa? No caminho da casa até a escola de fotografia, pensava nos três empregos, assessoria em dois, área de recursos humanos, "a loucura da minha vida", alma dos cursos que ministrava. Ele, pessoalmente. No Banco, na Laborterápica, e na sua própria empresa. Ainda havia tempo para aprender fotografia, esculpir em terracota, e jogar tênis. Nos fins de semana, ia para o sítio com a família. Na quarta rua, dobra à esquerda. Fácil estacionar quase defronte à Enfoco. Entra na escola, vai direto à secretaria. À esquerda, a galeria, exposição de daguerreótipos, fotos preciosas em mesas de acrílico. Cenas de lesbianismo, ao gosto da época, na França. A secretária atendia um colega. Preenche o recibo, cabeça baixa, Cristóforo aproveita pois além de fotografia, o companheiro era um tecnólogo. Trocam ideias a respeito de suportes, formas de expor esculturas, o que aconteceria daí a uma semana, no Ibirapuera. A secretária ergue a cabeça, enquanto prepara o recibo, olhos indagativos. Algo errado no ar. Apreensão. Coincide esse olhar com o toque da campainha que ela mesma aciona, dedo sob a mesa. Nem olhou o relógio. Ao receber o pagamento da mensalidade, atrasara o início das aulas. Sorri, dizendo que se Cristóforo for rápido ainda dá tempo. Entregaria o recibo depois. Cristóforo prepara o cheque, hesitando ao preenchê-lo. O último aluno subiu a escada em caracol. Cessa o ranger de tábuas dos degraus. Indeciso, Cristóforo põe o


cheque sobre a mesa. Sensação de vazio. Como se estivesse mergulhando num buraco negro. A secretária pega o cheque, disfarça, captando a estranheza do momento. Cristóforo pergunta "tudo certo?", ao que ela responde de maneira automática "tudo certo". Ele se afasta. Ao invés de a escada de madeira, dobra à esquerda. Um casal de jovens, na galeria, circula entre as fotos. Cristóforo sai para o pequeno jardim da entrada. Inspira forte, pois não se sente bem. De fato, o cheque estava com a data errada. Em 1974, necessário escrever dia, mês e ano, de maneira correta. A secretária teria notado a falha, o que passou despercebido no momento. Cristóforo não subiu para a sala de aula. Havia nele uma palidez progressiva. Vacilava ao preencher o cheque, pausas demoradas na conversa com os colegas. Agora, simplesmente, ia embora. A secretária segue-o. Da porta, percebe o baque do corpo. Cristóforo no chão. O casal da galeria ajuda a arrastá -lo até um dos bancos, ao lado das fotos. Mais tarde seria notado o bico de uma das botinas, todo esfolado. Ligam para o pronto-socorro. A companheira do rapaz rói as unhas, sentada em um dos bancos da galeria. Cristóforo, em pé‚ quer sair. Fisionomias silenciosas, cheias de apreensão, imploram para que se acalme. Movimentos convulsivos de Cristóforo, um estrondo, a mesa de acrílico despedaçada. O corpo dele no chão, erguido pelo rapaz. Depois, na sala de espera da escola, tudo mais calmo, o médico, chamado momentos antes, lhe pede nome e endereço. Cristóforo ri, meneando a cabeça. Não se lembra. O médico sugere que se recoste um pouco no banco. Aí, Cristóforo consegue lembrar. O colega certifica-se de que ele está em condições de dirigir. Acompanha-o até a casa. Rosa ouve toda a história. Licença nas empresas, série de exames médicos. Apontada uma disritmia cerebral. Suspeita de câncer foi afastada pelo neurologista, que respirou aliviado, após ver o resultado do exame do líquido da medula. Proibido de guiar. Sofrera convulsões, com falha momentânea de memória. Os médicos perguntam-lhe sobre outros desmaios, com perda de consciência, mas ele só se lembrava de um, lá pelos dez anos, na escola, quando lia na classe, em voz alta, à frente de todos. O desmaio nessa época fora atribuído a distúrbio alimentar. Aos 39 anos, três empregos, correria, excitação, provável estresse. Usou durante algum tempo comprimidos que lhe receitaram. Nunca guiou tanto como naquele ano, contrariando


o conselho médico. Dava cursos em outras cidades e Estados – Minas, Bahia, Alagoas, Pernambuco, Rio Grande do Norte. Foi a Salvador de carro, dirigindo pela Rio-Bahia, na ocasião estrada cheia de armadilhas, esburacada e com animais na pista. Antes, no Rio de Janeiro, realiza um treinamento bastante difícil. Vive situação limite. Recorre ao comprimido. Em outra ocasião, cidade do interior paulista, antes de iniciar o curso, para tomar o remédio, pede meia cerveja. O humor e a agilidade mental, com que encara a primeira sessão, anima tanto o pessoal, que lhe pedem permissão para que funcionários não inscritos também participem das reuniões. O remédio, com cerveja, transformou-se em psicotrópico. Trabalho intensivo de treinamento, muitas viagens, dura meses. Volta do nordeste, debaixo do braço os questionários de avaliação, o pessoal apreciara o curso. Recebe cumprimentos e, dias depois, um contínuo idoso, farda azul marinho, botões dourados, pasta de percalina preta nas axilas, lhe entrega um envelope. O contínuo emprestava ao momento certa solenidade, ajudado pela salva de prata. Alguém inquestionável, incapaz de qualquer explicação. Mensagem sem retorno, pelo menos por ora. Cristóforo lê um papel onde consta a demissão dele. Anteriormente fora afastado também do cargo que desempenhava na indústria farmacêutica. A saída do Banco coincidia com entendimentos para trabalhar em organização que atuava em comunidades de baixa renda, mantida por empresários. Permanece aí uns bons três anos. O gerente técnico torna-se sócio de Cristóforo em atividades de treinamento. Havia sido professor universitário de economia internacional, e agora se interessava por cursos na área atitudinal. Vivera "experiências muito significativas", segundo suas próprias palavras, como participante nos seminários conduzidos por Cristóforo. A empresa que formaram dura três anos. Durante esse tempo faz terapia com o Bigode, psicanalista e escritor. Quase se separa de Rosa. Muda para Oréade. Desfazem a empresa. O sócio vira macrobiótico e chofer de caminhão. Cristóforo começa a dar aulas de tênis.


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