HENRY CORBIN
Extratos de
POST-SCRIPTUM BIOGRテ:ICO A UMA ENTREVISTA SOBRE FILOSOFIA
Publicações Garbha
Estes são alguns extratos traduzidos de um texto autobiográfico presente no livro L’Imâm Caché. Neste texto, escrito no ano de sua morte, o autor fala de sua formação como filósofo, de seu “itinerário espiritual”, de seu trabalho de tradução e produção de textos no Oriente Médio, dos encontros de Eranos, de seu encontro com C.G.Jung, da “cavalaria espiritual” e da Universidade de São João de Jerusalém, entre outras coisas. As interrupções e intervenções entre uma passagem e outra estão indicadas em cinza. Estes extratos foram traduzidos do francês pelo Grupo de Tradução Garbha.
Post-scriptum Biográfico a uma Entrevista sobre Filosofia Relendo o texto da minha entrevista com Philippe Némo, tenho a impressão de que a maior parte das questões essenciais que ocuparam minha vida de buscador foram abordadas, pelo menos por alto. [...] [...] Que um jovem estudante de Filosofia encontre a filosofia alemã nada tem de imprevisto. Que ele tome o caminho da filosofia islâmica, em árabe e em persa, já é bastante inesperado. Que ele conjugue as duas vias é, por sua vez, um caso bem raro. Como esses encontros aconteceram? Ninguém se surpreenderia se um estudante de Filosofia, tendo conscientemente feito um tour pelos autores do programa do curso, ficasse ávido por explorar os novos continentes que não figuravam nos programas. Entre esses continentes pouco explorados, havia a Filosofia medieval, cujos estudos haviam sido completamente renovados pelas pesquisas e pelas publicações de Étienne Gilson. [...] Foi no ano de 1923-1924, se não me falha a memória, que Étienne Gilson começou suas incomparáveis aulas no Departamento de Ciências Religiosas da Escola Prática de Altos Estudos. Em todo caso, a partir desse ano fui seu ouvinte. [...] Minha admiração foi tal que resolvi tomá-lo como modelo e, bem mais tarde, decidi fazer, pela filosofia e teologia islâmicas, o curso que queria frequentar à época, mas que ninguém lecionava. [...] Dentre os textos abordados por Étienne Gilson ao longo desses anos fecundos, havia os textos traduzidos do árabe para o latim pela Escola de Toledo, no século XII e, encabeçando esses textos, o célebre livro de Avicena: Liber Sextus Naturalium, ao qual o comentário de Gilson dava uma amplitude singular. Esse foi meu primeiro contato com a filosofia islâmica. Descobri uma cumplicidade entre a cosmologia e a angelologia sobre a qual eu me perguntava se não era o caso de me aprofundar sob outros aspectos. Creio que esse interesse angelológico não me deixou mais ao longo de toda minha vida.
[...] Para ir mais longe era preciso ler os textos por mim mesmo. Para ler por mim mesmo era preciso começar a estudar o árabe. [...] Foi por isso que, na virada de 1926-1927, virando as costas para a agrégation1, tomei o caminho da Escola Nacional de Línguas Orientais. [...] Foi essa entrada que preparou meu ingresso para a Biblioteca Nacional, para onde fui chamado como orientalista, em novembro de 1928. E essa passagem pela Biblioteca Nacional que iria deslanchar, paradoxalmente, minha fuga definitiva em direção ao Oriente. Enquanto isso, exatamente ao longo desses mesmos anos, havia outro ensinamento capaz de desviar um jovem e ardente filósofo da vida comum dos programas aceitos: as aulas de Émile Bréhier. [...] Émile Bréhier estava então mergulhado nas Enéadas de Plotino, cuja edição e tradução ele preparava. Em 1922-1923, ele havia dado em Sorbonne um curso magistral sobre Plotino e os Upanishads. [...] Novamente, façamos a pergunta: como um jovem filósofo ávido por aventuras metafísicas iria resistir ao apelo de se aprofundar nas influências ou traços da filosofia indiana na obra do fundador do Neoplatonismo? Só por isso era necessário "fazer" sânscrito. Mas nós já havíamos decidido "fazer" árabe. [...] Incumbia ao filósofo optar, às escondidas, naturalmente, pela heróica solução: começar ao mesmo tempo o estudo do árabe e do sânscrito. Esse foi um bom período de ascetismo mental, possa assegurar. Ele não pôde prolongar-se além de dois anos. Eu guardei o benefício de que, se hoje vou ler um livro de filosofia indiana ou budista, os termos técnicos sânscritos interpolados não me são totalmente estranhos. Mas ao fim de dois anos, eu encontrei na via do Oriente a “placa” que me indicava a direção decisiva de um caminho sem retorno. Dali em diante, minha vida passaria pelos textos árabes e persas. É preciso dizer que o filósofo, tendo-se tornado estudante de árabe perdido entre os linguistas, pensou que iria morrer de inanição, nada tendo como alimento, senão gramáticas e dicionários. [...] Havia, contudo, um refúgio, onde já era oferecida a mais fina substância da espiritualidade 1
Admissão por concurso ao título de professor titular de nível superior. (N.T.)
islâmica. Esse refúgio chamava-se Louis Massignon, que, a partir de 1928, deveria acumular suas aulas no Collège de France com a direção dos estudos do Islamismo no Departamento de Ciências Religiosas de nossa Escola de Altos Estudos. [...] [...] Não escapávamos à sua influência. Sua alma de fogo, sua penetração intrépida nos arcanos da via mística no Islã, nos quais ninguém ainda havia penetrado daquele modo, a nobreza de suas indignações perante a lassidão deste mundo — tudo isso deixava inevitavelmente a marca da sua impressão no espírito de seus jovens ouvintes. [...]Conheci, em determinados dias, um Massignon ultraxiita, e lhe devo muito em relação a esse ponto. Seus estudos sobre Salman Pâk, sobre Mobâhala, sobre Fátima reservam ainda minas de intuições a serem exploradas, conjugadas com os resultados das pesquisas realizadas posteriormente. [...] Um dia, creio que no ano de 1927-1928, eu lhe contei as razões que me haviam atraído como filósofo ao estudo do árabe, as questões que me fazia sobre as relações entre a filosofia e a mística, sobre o que eu conhecia, por um resumo bem pobre em alemão, de um certo Sohravardi... Então Massignon teve uma inspiração do Céu. Ele havia trazido de uma viagem ao Irã uma edição litografada da principal obra de Sohravardi, Hikmat al-Ishrâq, A Teosofia Oriental. Com os comentários, ela se constituía um grande volume de mais de 500 páginas. "Tome", disse ele, "acho que há neste livro alguma coisa para você". Essa alguma coisa foi a companhia do jovem shayk al-Ishrâq, que não mais me deixou ao longo da vida. Sempre fui um platônico (no sentido amplo da palavra, evidentemente). Creio que nascemos platônicos, como podemos nascer ateus, materialistas, etc. — mistério insondável das escolhas preexistenciais. O jovem platônico que era então não podia senão se incendiar ao contato com aquele que foi o "Imã dos Platônicos da Pérsia". [...] Por causa do meu encontro com Sohravardi, meu destino espiritual na travessia deste mundo estava selado. Esse platonismo se exprimia com os termos da angelologia zoroastriana da antiga Pérsia, iluminando a via que eu buscava. Não ficaria mais dividido entre o sânscrito e o árabe. A Pérsia
encontrava-se no centro, mundo mediano e mediador, porque a Pérsia, o velho Irã, não é somente uma nação nem um império, é um universo espiritual, um foco da história das religiões. Esse mundo estava prestes a me acolher e me acolheu. A partir daí, o filósofo passava para as fileiras dos Orientalistas. [...] [...] Normalmente, depois do diploma de licenciatura em Estudos Superiores de Filosofia, era preciso seguir os cursos de agrégation. Era a via da sabedoria, sem imprevisto, tão normal que um venerável professor da Sorbonne que encontrei ocasionalmente na casa de amigos e a quem informei do rumo de minhas decisões perguntou-me paternalmente: "Mas você tem fortuna pessoal e tempo a perder?” Eu não tinha, graças a Deus, nem um nem outro. Mas como seguir os cursos e as perspectivas de agrégation, quando tinha na cabeça este grande projeto: fazer por essa filosofia iraniana, cujos grandes nomes apareciam através dos comentadores de Sohravardi, o que Étienne Gilson havia feito para "ressuscitar" a filosofia medieval do Ocidente? Uma aposta, talvez, contra os acasos do Destino. Mas essa aposta eu acho que o Céu me concedeu o favor de fazer e de ganhar. [...] Agora este post-scriptum deve evocar outro encontro, o encontro com a velha Alemanha. [...] [...] Foi Jean Baruzi quem me mostrou o caminho da Alemanha dos filósofos e dos "grandes indivíduos" da espiritualidade mística. Minha primeira etapa foi Marburg. Foi assim que o Irã e a Alemanha foram os pontos de referência geográficos de uma Busca que se perseguiria de fato nas regiões espirituais que não são pontos nos mapas. [...] O filósofo fez sua Busca respondendo com toda a liberdade à inspiração do Espírito. Meus amigos iranianos sabem bem que não posso isolar minha amizade por Sohravardi e os seus de minha amizade por um Jacob Boheme e sua escola. Acho que é a união do que eles simbolizam que fez de mim o que sou hoje.
[...] Foi em Marburg que mergulhei pela primeira vez, com perplexidade, na leitura de Swedenborg, cuja obra imensa iria então me acompanhar ao longo de toda a minha vida. [...] Devo evocar duas estadas em Hamburgo, onde lecionava Ernst Cassirer, o filósofo das formas simbólicas, que ampliou minha via em direção ao que eu buscava e pressentia, ainda obscuramente, o que deveria tornar-se mais tarde toda a minha filosofia do mundus imaginalis, cujo nome devo a nossos Platônicos da Pérsia. Cassirer conhecia bem os Platônicos de Cambridge e revelava-me, assim, outros membros da minha família espiritual. [...] [...] Em 1931-1932, fundamos (Denis de Rougemont, Roland de Pury, Albert-Marie Schmidt, Roger Jezequel e eu mesmo) uma pequena revista intitulada Hic et Nunc. [...] [...] Nós nos demos como ascendência espiritual Kierkegaard e Dostoiévski. Estava bem, mas não era suficiente para impulsionar a filosofia de acordo com a tendência de meus amigos. Previamente, Sohravardi me havia feito sinal, advertindo-me de que, como esse “impulso" se operava a expensas de uma filosofia que não merecia mais esse nome, haveria lugar para reencontrar o acesso à Sofia de uma outra filosofia. [...] [...] Existe algo que ficou ignorado ao longo dos séculos de todas as nossas doutrinas e confissões de fé: a solidariedade íntima, secreta entre o "esotérico" das "religiões do Livro", de modo que, se o Cristianismo devastado sucumbiu aos perigos da história, em compensação, uma longa peregrinação através de uma dessas "religiões do Livro", especificamente a gnosis xiita em suas duas formas (imamita duodecimal e ismailita), o conduz a redescobrir um Cristianismo cujo lugar é permanente no ciclo da religião profética, mas que difere de tal modo das formas oficiais do Cristianismo da história que mal podemos distingui-lo do profano. [...] [...] Na primavera de 1939, fui encarregado de uma missão que me conduzia a recolher em fotocópias todos os manuscritos de Sohravardi espalhados pelas bibliotecas de Istambul com vistas a uma edição crítica de
suas obras em árabe e em persa. [...] A missão era, em princípio, de três meses; durou seis anos, até setembro de 1945. Ao longo desses anos, durante os quais fui o responsável pelo pequeno Instituto Francês de Arqueologia, que estava quase em inatividade, aprendi as virtudes inestimáveis do Silêncio, daquilo que os iniciados chamam a "disciplina do arcano" (em persa, ketmân). Uma das virtudes desse Silêncio foi a de me colocar a sós em companhia de meu shayk invisível, Shihâboddin Yahyâ Sohravardî, morto em martírio em 1191, à idade de 36 anos, idade que eu mesmo tinha então. Ao longo de dias e noites, eu traduzia do árabe, tomando por guia senão os comentadores e os continuadores de Sohravardi, escapando, por consequência, à influência exterior da atualidade ou da escola filosófica ou teológica de nossos dias. Ao final desses anos de retiro, tornei-me um Ishrâqî, e a impressão do primeiro volume das obras de Sohravardi estava quase terminada. Certo é que mal tive ocasião de conversar a meu redor, a não ser com meus amigos turcos de origem bektashi, por exemplo. A pessoa de Yahya Kemal permanece inesquecível. Mas Istambul era Bizâncio, Constantinopla. Da mesma forma que o Templo de Salomão era o centro de Jerusalém, o templo de Santa Sofia era o centro da segunda Roma. Ao longo dos anos anteriores, o estudioso americano Whitmore consagrou todos os seus esforços à restauração dos mosaicos. Visitar Santa Sofia em companhia de Whitmore era, ao mesmo tempo, um privilégio, uma aventura e uma peregrinação. Ele estava em casa, o guardião do templo, e lhe fazia as honras da casa, detendo-se demoradamente em sua companhia diante do brilho da luz interior dos mosaicos, maravilhosamente liberada. Era preciso estar em sua companhia para que ele lhe chamasse a atenção para um desenho tardio, fixado ao alto da parede oeste interior que "cifra" o segredo do templo de Sofia. O desenho apresenta uma pequena cúpula, a qual nós acessamos por sete degraus. Evocação do Templo da Sabedoria com sete pilares (Prov. 9/1). "Diga a Sofia: tu és minha irmã! E chame a Inteligência de tua amiga" (Prov. 7/4). Um ishrâqî é espontaneamente um sofiólogo. O templo de Santa Sofia foi para mim o
templo do Graal, pelo menos uma exemplificação de seu arquétipo pressentido por muitos buscadores da gnosis. Havia em uma ampla peça, que, no passado, teria sido a sacristia, uma preciosa coleção de manuscritos árabes e persas. Lá eu ia trabalhar frequentemente e, atravessando o templo, cantarolava baixinho os temas do Graal e da Ceia mística de Parsifal, de Wagner. Essa presença de uma cavalaria sofiânica invisível, conhecida igualmente dos Platônicos da Pérsia, não me deixou mais. Encontraremos o indício do que ela me inspirou em minhas pesquisas e projetos mais recentes. [...] No mês de agosto de 1944, recebi daquele que ainda era o "governo da Argélia" a incumbência de ir à Pérsia. [...] Qual era o objetivo da minha missão e como me dediquei a colocar em ação "os longos projetos e as vastas intenções" tive a ocasião de dizer no pequeno texto intitulado Da Biblioteca Nacional à Biblioteca Iraniana. [...] Chegou o momento de colocar em ação o projeto que havia determinado em meu espírito durante os cursos de Étienne Gilson. A tarefa imediata: recolher o material, criar um ambiente de trabalho, começar a publicar. [...] Comecei a publicação da Biblioteca Iraniana e pude continuá-la, em 25 anos, com o auxílio de alguns colaboradores, até o 22º volume. [...] A coleção era, essencialmente, uma coleção de textos inéditos, em persa ou em árabe, cada volume sendo acompanhado de uma tradução integral ou, pelo menos, de uma ampla introdução, permitindo ao filósofo não-orientalista tirar a melhor parte possível do volume. [...] Acho que essa coleção, cujos volumes hoje estão quase todos esgotados, conseguiu formar uma trilha. Na época, eu mal podia me entreter com Sohravardî, com Mollâ Sadrâ e tantos outros, senão com veneráveis shayks. Hoje há toda uma plêiade de jovens buscadores que tomaram em seu coração a causa da filosofia tradicional. Não dissimulemos as dificuldades. Para se criar ou recriar uma tradição filosófica, para provê-la de todo armamento conceitual e lexicográfico necessário, são necessárias várias gerações. [...]
Foi em Teerã, na primavera de 1954, que eu recebi a notícia de que o Departamento de Ciências Religiosas me chamava para suceder a Louis Massignon na direção de estudos islâmicos. [...] Mas no intervalo, exatamente na primavera de 1949, recebi outro chamado, cujas consequências se fizeram sentir desde então no programa e no ritmo de minhas pesquisas. Faço assim alusão ao convite que me enviou Olga Fröbe-Kapteyn para participar do Círculo Eranos, que ela havia fundado, em 1932, em Ascona. [...] Essa participação devia traduzir-se por duas conferências de 1 hora cada, no mês de agosto de 1949. Eu não tinha dúvidas de que essa participação iria se repetir durante mais de um quarto de século. [...] [...] Rudolf Otto, quem auxiliou Olga Fröbe-Kapteyn a definir seu conceito, nunca apareceu lá. Em compensação, Carl Gustav Jung foi, durante anos, algo como o gênio tutelar, lançando seus livros nas conferências que atraíam numeroso auditório de Zurique. Os encontros com C.-G. Jung eram algo inesquecível. Nós tivemos longas conversas em Ascona, em Küssnacht, em Bollingen, na sua fortaleza, aonde me conduziu Carl-Alfred Meyer. [...] Eu era um metafísico, não um psicólogo. Jung era um psicólogo, não um metafísico, embora frequentemente se aproximasse da metafísica. Nossas formações e nossas visões respectivas eram totalmente diferentes, contudo, nós nos compreendíamos a tal ponto durante as conversas que, quando apareceu a sua Resposta a Jó, que foi ferozmente atacada de todos os lados confessionais, quis dar-lhe uma interpretação leal em um longo artigo que me valeu sua amizade. Esse artigo fazia dele, de algum modo, o intérprete de Sofia e da sofiologia. Estaria ousando eu ao dizer que o ensinamento e a conversa de Jung poderiam levar a todo metafísico, a todo teólogo um dom incalculável: a condição de se separar no momento devido? [...] Jung se defendia com força e humor de ser junguiano. Eu mesmo fiz amizade com Jung, nunca fui um junguiano. [...] O que, à primeira vista, impressionava um filósofo no psicólogo Jung era o rigor com que ele falava da alma e da realidade da alma, sua
insurreição contra a dissolução da alma, à qual conduzia alegremente a psicanálise de Freud, os laboratórios de psicologia e tantas outras invenções das quais nosso mundo agnóstico é tão fértil. [...] A via na qual nos colocava Jung era a da descoberta da Imago interior. Reconhecer em um rosto os traços e brilho dessa Imago não é mais se mover em uma vã busca exterior pelo inacessível, mas compreender que essa Imago está, acima de tudo, presente em mim mesmo e que essa presença interior é que me faz reconhecê-la no exterior. Mais tarde, eu seria arrebatado, e ainda o sou, pela metafísica da Imaginação Ativa (a "Imaginação Agente") e do que meus filósofos iranianos me levavam a denominar, para bem diferençá-la do puro imaginário, “mundo imaginal”, mundo das Formas imaginais (mundus imaginalis, equivalente literal do árabe 'âlam al-mithal). Mas era necessário constatar isto: tudo o que o psicólogo enuncia sobre a Imago toma, para o metafísico, um sentido metafísico. Tudo o que este enuncia é interpretado pelo psicólogo em termos de psicologia; daí todos os mal-entendidos possíveis. Foi por isso que eu disse anteriormente que, depois de estarem informados um do outro, era preciso aceitar a separação inevitável no momento devido. E isso vale para todas as admiráveis pesquisas que realizou C.-G. Jung. Seus trabalhos sobre alquimia estavam fundados em uma documentação imensa, e todo buscador relacionado com alquimia deve lêlos e deles tirar proveito. De suas pesquisas, Jung emitiu a ideia de um "mundo de corpos sutis". A intenção era profundamente justa. Esse mundo de corpos sutis foi definido e situado com rigor pelos teósofos tradicionais do Islã: o mundo mediano onde os espíritos se corporalizam e onde os corpos se espiritualizam. Precisamente, é o mundus imaginalis, o mundo da alma, o Malakût, primeiro mundo do Anjo. Infelizmente, qualquer que fosse sua vontade restauradora da alma e do mundo da alma, ainda falta ao psicólogo ocidental essa base ou esse enquadramento metafísico que assegura ontologicamente a função desse mundo mediador e que preserva o imaginal dos desregramentos e das divagações do imaginário, da alucinação e
da loucura. Em razão disso eu diferenciava radicalmente o imaginal e o imaginário. [...] A perda do imaginal no Ocidente: esse é o resultado atual de Descartes e de P. Marsenne, opondo-se a tudo o que representam J. Boheme, Swedenborg, Oetinger. É todo um "combate pela Alma do mundo" que precisamos realizar. A psicologia junguiana pode muito oportunamente preparar o terreno para o combate, mas o desenlace vitorioso do combate depende de armas diferentes das armas da psicologia. [...] Tendo recebido, em Teerã, na primavera de 1954, a notícia de que um voto do Conselho do Departamento de Ciências Religiosas da Escola de Altos Estudos que me chamava para suceder a Louis Massignon, fiquei dividido, naquele momento, entre uma alegria imensa — nem é preciso dizer — e uma dolorosa inquietude. Minhas pesquisas e publicações em Teerã faziam sua virada. Nosso pequeno Departamento de Iranologia começava a afirmar sua vitalidade. [...] Combinando o tempo de férias com uma autorização regular de ausência, foi-me possível dispor praticamente de todo o trimestre de outono para continuar meus trabalhos em Teerã. [...] A perpetuação da minha vida iraniana foi decisiva para a orientação e o conteúdo das minhas aulas na Altos Estudos, as quais não seriam o que foram se eu não tivesse podido manter contato com meus colegas e amigos iranianos, continuar a par de suas publicações, prosseguir com as da Biblioteca Iraniana e continuar a enriquecer meu material com manuscritos em fotocópias. A maioria de meus cursos na Altos Estudos foi feita a partir de manuscritos ainda inéditos. A progressão das minhas pesquisas ficou, assim, fácil de continuar. Lembro-me, certamente, uma vez ou outra, de surdos rumores de que se queixavam de que eu havia transformado essa direção dos estudos em uma cadeira de xiismo. Se essa crítica foi alguma vez formulada, partiu de um ponto de vista inteiramente falso. Nosso Departamento de Ciências Religiosas não é uma faculdade de Teologia, com um programa que transmite um ensinamento de dogmas, ela é um lugar de pesquisa único no
mundo, bem creio, no que se refere às "Ciências Religiosas". Cada um de nós orienta livremente suas pesquisas e seu ensinamento na direção que lhe parece mais urgente, seja porque essa direção foi até então particularmente negligenciada, seja porque um novo aporte de documentos modifique totalmente os pontos de vista estabelecidos. Creio que os estudos do xiismo duodecimal e ismailita, bem como da metafísica do sufismo, apresentam igual urgência desse duplo ponto de vista. [...] Nunca se ouviu dizer que houve uma filosofia própria e originariamente xiita. Ignoravam-se os novos tratados ismailitas publicados ou alguns manuscritos que se tornaram providencialmente acessíveis. Nunca se levou a sério, pois se ignorava o que estava em ação, o projeto sohravardiano de "ressuscitar a teosofia dos Sábios da antiga Pérsia", ao passo que esse projeto imprimiu sua marca com uma considerável parte do pensamento iraniano posterior, mas era este último que se ignorava sistematicamente. Conheciam, sim, os piedosos ascetas da Mesopotâmia dos primeiros séculos da Hégira, mas pouco se prestava atenção à diversidade do que se deve chamar "a metafísica do sufismo", aquela de um Ibn Arabî, de um Najmoddîn Kobrâ, de um Semnânnî, de um Haydar Âmolî, etc. Identificava-se mística islâmica e sufismo e se fazia do xiismo um adversário da mística, às vezes, severo em relação a um determinado sufismo. Mas se ignorava que mística islâmica e tasawwof não se sobrepunham exatamente, que há uma mística e uma teosofia xiitas ('erfân-e shî'î) fora do sufismo, fora mesmo das tarâ'iq (congregações) sufis expressamente xiitas... Isso porque a situação do fiel xiita o coloca, de saída, diferentemente do fiel sunita, na via mística (tarîqa). Obviamente, sejamos justos: os grandes 'orafâ (teósofos místicos) xiitas, mesmo um mollâ como um Mollâ Sadrâ Shîrâzî e muitos outros estavam em oposição às investidas de seus colegas, aquilo que se deve chamar paradoxalmente um "clero" xiita. Mas isso não faz senão associá-lo mais estreitamente com o tipo comum de seus confrades gnósticos de sempre e de todas as partes.
[...] Eu fiz para mim não um plano quinquenal, mas um plano de vinte anos. Ele foi um tanto quanto cumprido e, graças ao Céu, busco ainda, in emmeritis annis, sua realização. Como concebi e situei minha tarefa, tive ocasião de dizer em um volume coletivo publicado por meus colegas do Departamento de Ciências Religiosas. Era, ao mesmo tempo, "um programa e um testamento". O texto foi reproduzido com esse título no presente Cahier de l'Herne. [...] [...] O segredo do castelo da Alma. Não é em uma opção exterior de ordem sociológica que se manifesta exteriormente essa profunda realidade interior. É na obra pessoal que se produz e na exteriorização daquilo para o qual contribuem todos os modos de ser vividos. A comunidade, a omma dos esoteristas de sempre e de todas as partes é essa "Igreja Interior", que não impõe ato algum de adesão para dela se fazer parte. Mas esse elo interior é o verdadeiro elo, porque ele é imprescritível e invulnerável e porque é somente nesse caso que é verdade dizer que "a boca fala da abundância do coração". [...] Continuo a participar, entre Paris e Teerã, de uma atividade que me permitirá levar a cabo, espero, algumas grandes tarefas iniciadas. Devo colocar em primeiro lugar, em relação a essas grandes tarefas ainda inacabadas, o projeto sobre o qual fala, neste mesmo Cahier, um artigo de meu eminente colega e amigo Sayyed Jalâloddîn Ashtiyânî, professor da Faculdade de Teologia e da Universidade de Mashhad. O professor Ashtiyânî é certamente o homem mais representativo, no Irã de nossos dias, da linhagem filosófica de Mollâ Sadrâ. A amplitude do material que ele recolheu é prodigiosa. Dedicado, dia e noite, somente à sua tarefa, é, de algum modo, um Mollâ Sadrâ redivivus, é um filósofo 'erfânî prolífico. Nosso projeto foi elaborado em 1964-1965. [...] Nosso projeto consistia em produzir uma vasta Antologia dos filósofos iranianos depois do século 17 até nossos dias. O Sr. Ashtiyânî se encarregará de recolher e de apresentar os textos. De minha parte, eu lhe darei a quintessência, em francês, de modo que os filósofos ocidentais não orientalistas possam enfim ser informados. Alguns desses
textos haviam sido editados em litografias antigas, mas a maior parte ainda estava em manuscritos inéditos. Prevemos cinco volumes de formato grande in-octavo. Achamos agora que ele terá sete. Os dois primeiros já foram lançados. A impressão da parte árabe e persa do volume III está terminada (umas 800 páginas); a do volume IV está em curso. Desde já me preocupo com reunir em volumes independentes as partes francesas que apresentaram assim, de modo contínuo, a filosofia iraniana islâmica. São as obras de cerca de quarenta filósofos que nós fazemos assim reaparecer hoje e entrar no circuito geral da filosofia. Tão vastas as dimensões do edifício que a planta ainda está incompleta, porque, em razão mesmo de sua amplitude, é preciso deixar de fora certas Escolas independentes. É por isso que nós persuadimos os nossos amigos shaykhis a produzirem, de seu lado, uma Antologia de seus grandes mashâyek. Desde o shaykh Ahmad Ahsâ'î (1826), seus sucessores, que podemos agrupar sob a denominação de "Escola de Kerman", foram prolíficos: mais de mil de títulos. Tudo isso permitirá, enfim, que seja apreciada a profundidade, a originalidade e a diversidade dos aspectos da filosofia e da teosofia mística cuja eclosão o Islã xiita permitiu no Irã, ou, se preferirmos, com a qual o Irã ilustrou o Islã xiita. [...] Nossa Antologia permite que se conheça o que produziu de melhor e de mais profundo o Islã espiritual. Há, por exemplo, um conceito xiita do Primeiro Emanado que faz com o Neoplatonismo um elo que, ao mesmo tempo, pressupõe e abre as perspectivas da "filosofia profética" própria ao Xiismo. Há a insistência com esse mundo mediano e mediador, com o mundus imaginalis ('âlam al-mithâl). [...] Sem a função mediadora desse mundo que assegura a articulação entre o inteligível puro e o mundo sensível, somos privados da clavis hermeneutica que nos abre o sentido real, verdadeiro e concreto, ou seja, o "lugar" real das visões dos profetas e dos místicos. [...] Esse mesmo mundus imaginalis é exatamente o "lugar" dos eventos reais que se passam no Malakût, no mundo do Anjo, que ocupa um
espaço importante em Sohravardi e em seu intérprete francês. Sem o mundus imaginalis é impossível fazer justiça à realidade dos acontecimentos que envolvem a “presença”2 do Décimo Segundo Imã, as ressurreições e a palingenesia por virem. Contudo, é graças a essa misteriosa figura, identificada por muitos pensadores xiitas como o Paráclito joanino, que se intercomunicam as "redes esotéricas" das gnosis, das religiões do Livro. [...] Resta-me mencionar aqui a fundação, realizada com alguns amigos e colegas universitários, de um "centro de pesquisa espiritual comparada", ao qual demos, já que éramos todos universitários, o nome de "Universidade de São João de Jerusalém". Seu espírito: o de uma cavalaria espiritual definida, em meados do século XIV, por Rulman Merswin, quando cedeu o comando da Ilha Verde aos cavaleiros joanitas (ou os do Grão-Priorado de Brandenburg da Ordem Soberana de São João de Jerusalém). Para Rulman Merswin, como para os "Amigos de Deus" da época, a cavalaria espiritual marcava um estado espiritual que "não é nem o do clero nem o do leigo", porque, pensava ele, "os tempos do claustro haviam passado". Do mesmo modo, hoje, depois da ruína acarretada pela traição dos clérigos, nos é necessário conceber um estado de homem espiritual que nem é o do clero nem o do leigo. Quanto à finalidade de nossa fundação: alcançar, enfim, na cidade espiritual de Jerusalém, um denominador comum, que nunca existiu, para o estudo e para a prosperidade espiritual da gnosis comum às três grandes religiões abrâmicas. Em resumo, a ideia de um ecumenismo abrâmico a partir de um fundo comum de seu tesouro esotérico, e não a partir da acomodação diplomática de relações oficiais. Para explicar o porquê dessa empreitada, sobre a qual não posso dizer aqui tudo o que teria a dizer, eu teria de evocar todas as pesquisas, os pensamentos e as tradições que finalmente convergiram em nosso conceito de Universidade de São João de Jerusalém (jurídica e conceitualmente independente de toda Ordem de mesmo nome). Eu evocaria logo o caso de 2
Parousia (N.T.)
Sohravardi, que não se contentou em deliberar sobre os vestígios possíveis do passado zoroastriano do Irã, mas se encarregou resolutamente desse passado, abrindo-lhe, de uma só vez, o porvir. E essa vontade de ressurreição está perfeitamente de acordo com as concepções de Sohravardi e de seus continuadores, ou seja, uma pesquisa filosófica que não chegar a uma realização espiritual pessoal é pura perda de tempo, e a busca de uma experiência mística sem uma séria formação filosófica tem todas as chances de se perder em aberrações, ilusões e desvios. No fundo, é, em suma, o aspecto que toma para a vida do filósofo a ideia do que designa o persa javân mardî, o árabe fotowwat, termos que precisamente se traduzem melhor como "cavalaria espiritual" (ver a parte francesa dos tratados dos companheiros-cavaleiros, Bibl. Iran. Vol. 20, 1973). Tudo o que conota esse termo é o ponto de poderosas convergências que se impõem a nós. Desenhar o itinerário dessas convergências seria mostrar, essencialmente, sob os horizontes esotéricos das religiões do Livro, a passagem da epopéia heróica para a epopéia mística, ou o que a espiritualidade islâmica chama “a passagem da jihâd menor”, o combate com as armas no mundo exterior, “para a jihâd maior”, o combate espiritual que se realiza no campo interior de cada homem, mas também em um campo sobrenatural nas dimensões cósmicas. Essa passagem nós vemos acontecer em Sohravardi e no seus, herdeiros dessa ética zoroastriana da qual se pode dizer, com todo o direito, (Eugenio d'Ors) que resultou na constituição de uma ordem de cavalaria. Ela ocorreu no Islã xiita dentro do mesmo conceito dos "Amigos de Deus" (árabe Awliyâ Allâh, persa Dûstan-e Khodâ) e pôde colocar em paralelo as idéias dos companheiros do Saoshyant zoroastriano com as dos companheiros do 12º Imã dos xiitas. Em resumo, ela possui tudo o que se exprime com os termos javânmardî e fotowwat, como estilo de vida proposto a cada um segundo seu estado, porque cada estado comporta uma "cavalaria" que lhe é apropriada. Essa passagem para a cavalaria mística nós vemos no século XIV no Ocidente —como mencionei anteriormente —, quando Rulman Merswin (m.
1382) confiou a fundação da Ilha Verde aos cavaleiros joaninos, abrindo-lhes a via de uma espiritualidade profundamente ligada à mística de Johann Tauler. Do mesmo modo, vemos reaparecer o termo "Amigos de Deus" (Gottesfreunde) e a ideia da cavalaria espiritual propagar-se na mística renana. Essa mesma passagem efetua-se na ordem militar dos cavaleiros templários que participaram das cruzadas para a ordem mística dos Templários cavaleiros do Graal, no ciclo de Parsifal, de Wolfram von Eschenbach, e do Titurel Jovem. Enfim, se os reconstrutores do Templo próximos do príncipe Zorobabel foram de fato os primeiros cavaleiros do Templo, é para um serviço de cavalaria mística que a cosmogonia kabalista de Isaac Luria invoca os "Filho da Luz", como eles eram invocados pela comunidade essênia de Qumran, para um combate espiritual cuja ideia está em afinidade evidente com a cosmogonia e a ética do Zoroastrianismo, independentemente mesmo de toda a filiação ou influência, demonstrável ou não. Grosso modo, é isso tudo o que quis reunir nosso conceito de Universidade de São João de Jerusalém (e que esbocei no fim do volume IV de nossa obra En Islam Iranien). Naturalmente, não pensemos que a ordem dessa "cavalaria espiritual" possa ser reconhecida ao lado das ordens honoríficas e históricas criadas ao longo dos séculos pelos poderes deste mundo. Mesmo a ideia de tal reconhecimento seria ridícula, porque a cavalaria espiritual é uma organização governada além deste mundo, enquanto a finalidade dos outros termina com os discursos pronunciados nos funerais. A Ordem dos Templários pode ter desaparecido oficialmente com a terrível tragédia maquinada por seus inimigos, mas a ideia da Ordem do Templo como eixo de uma tradição esotérica anterior mesmo à ordem histórica, com esse nome e perpetuando-se depois dela, nunca desapareceu, porque nenhum poder no mundo pode impedir uma alma de se dar a ascendência espiritual que escolher e de legitimar essa ascendência pela sua fidelidade ao que ela implica. [...]
É por isso que a única referência autêntica é a referência à qual teósofos cristãos como Eckhartshausen, no século XVIII, denominaram com o nome que eu mesmo enunciava acima como "Igreja Interior", que outra coisa não era senão outro nome dessa espiritualidade do Templo, comum aos teósofos místicos das três religiões abrâmicas. De fato, somente essa Igreja Interior é o lugar da cavalaria espiritual governada pelo Templo místico, a única que pode responder com profundidade às necessidades de nossos dias e que o esoterismo (o ketmân) deve preservar das variantes e das acomodações dos modos profanos. Somente lá, na Igreja Interior, pode ser contemplada a tarefa inédita e paradoxal que nos é imposta em nossos dias: de algum modo, reencontrar nosso Deus contra Deus. O que isso quer dizer? Os séculos de certezas ideológicas, dogmáticas e peremptórias confundiram a Causa Suprema dos universos, o Supremo Princípio incognoscível ao homem em sua condição presente, com o Deus pessoal e personalizado. Laicizados, esses conceitos se converteram em ideologias totalitárias. [...] A gnosis, que foi a de um Valentino, a de um Ibn Arabî, a de um Isaac Luria, é mantida sempre em guarda contra essa confusão entre a Causa Suprema e o Deus pessoal, porque ela nunca transgrediu o imperativo da teologia apofática nem perdeu o sentido do que são essencialmente as teofanias e sua necessidade. Reencontrar nosso Deus contra Deus é reencontrar esse Deus pelo qual tu respondes, é liberar nosso Deus das funções que não são as suas e cuja atribuição permitiu à ciência positiva, que não tem cura, de lhe declarar oficialmente a morte. [...] Nossa responsabilidade com relação à nossa própria vida e à nossa própria morte nos torna, ao mesmo tempo, responsáveis com relação à vida e à morte de nosso Deus. Que se viva ou que se morra supõe nossa própria vida ou nossa própria morte, a vida e a morte não sendo compreendidas aqui, evidentemente, em seu sentido biológico, mas no sentido gnóstico da Vida primeira, vinda do mundo da Luz. Como sugerir melhor o envolvimento constante do "cavaleiro espiritual" com a busca de seu Deus, companheiro dos companheiros que
estão na mesma Busca? [...] O Deus pessoal não é o Um da unidade aritmética. Ele é o Único de cada único 3 (1x1x1...). Ele é o Todo em cada um. [...] Tal parece ser o sentido profundo, o Mistério do "Deus dos Deuses" (Ilâh al-âliha), para retomar essa expressão de origem hermética de uso corrente entre teósofos como Sohravardi. Esse é o segredo do qual se aproximaram todas as gnosis, por excelência, por certo a de um Ibn Arabî e a do Ismailismo. Assim se impõe com evidência a urgência de uma tarefa mal esboçada, até mesmo nunca iniciada, pois ela supõe a existência de um "centro de pesquisa espiritual comparada". Tal é precisamente o subtítulo com o qual definimos a USJJ A tarefa urgente é o estudo comparado do ta'wîl, ou seja, da hermenêutica esotérica do Livro, professada e praticada no interior das "religiões do Livro". [...] Tarefa, decerto, que necessita da convergência de múltiplas competências. [...] Não se trata então de um simples exame teórico, mas das conseqüências vividas em comum. É por isso que a Universidade de São João de Jerusalém não é uma simples "sociedade de filosofia". [...] Acabo de indicar a ideia diretriz, mas cada um dos membros do grupo fraternal da USSJJ tem inteira liberdade espiritual. Existem nuances entre todos nós, que viemos de origens diversas por itinerários diversos. O elo profundo é uma vontade comum e uma responsabilidade comum com relação ao que designamos acima como "Igreja Interior". Cinco Cadernos, totalizando mil páginas, reuniram até agora os trabalhos de nossas sessões anuais: Sciences tradicionelles e sciences profanes (1974); Jérusalem, la cité spirituelle (1975); La foi prophétique e le sacré (1976); Les pèlerins de l'"Orient" et les vagabonds de l'"Occident" (1977); Les yeux de chair e les yeux de feu, ou la Science et la Gnose (1978). [...] A gnosis não é nem uma ideologia nem um saber teórico que contrasta com a fé. Conhecimento salvífico por si mesmo, seu conteúdo mesmo se dirige a uma fé. Ela é sabedoria e é fé, Pistis Sophia. Ela não se 3
O Uno presente em cada indivíduo. (N.T.)
limita ao Gnosticismo dos primeiros séculos — há uma gnosis judaica, uma gnosis cristã que persiste ao longo dos séculos, uma gnosis islâmica, uma gnosis budista. E, sobretudo, ela não merece, de modo algum, que façamos em relação a ela um emprego abusivo da palavra "niilismo". Ela é, acima de tudo, o antídoto disso, pois negar este mundo em vista de outro mundo, em relação ao qual este é a passagem, não é niilismo. Em compensação, uma filosofia que, ao mesmo tempo, nega este mundo e a perspectiva de outros mundos é, de forma clara e evidente, niilismo. [...] Creio que nosso esforço, tornado possível pela dedicação de alguns amigos ao mesmo fim, representa algo raro em nosso país. Resta àquele que foi seu originador agradecer ao Céu por ter prolongado o bastante seus dias para que o projeto amadurecesse e a acontecesse e pudesse ser registrado neste post-scriptum. Há algum tempo, fui o editor e o tradutor de Rûzbehân Baqlî, de Shîrâz, o incomparável trovador místico, em persa, da elevada voz do amor humano. É sobre essa elevada voz que posso afirmar que, sem a presença e a cooperação da companhia que me preserva da solidão e dos desânimos, nada da obra que descrevi aqui teria sido possível. E porque essa obra assim se tornou possível, ela tornou possível, por sua vez, aquilo que, após a travessia do deserto da juventude, cumpre os votos de um buscador e de um professor: cercar-se de jovens, de jovens filósofos (vários que me são especialmente caros estão presentes neste Cahier de l’Herne), os quais ele sabe que continuarão, a seu modo, a obra que obrigatoriamente deixará inacabada e que eles irão percorrer ainda mais do que ele no caminho que se propôs a abrir. Aquele que assim os cumpriu poderá então, quando vier a ordem de retorno, dizer com Simeão: “Agora, Senhor, deixas teu servo se ir em paz” (Luc 2:29), na esperança, “enquanto é dia”(Ev. de João 9:4), de permanecer a seu lado, no lugar onde o Destino vos colocou. Junho/1978 Paris
Henry Corbin
Escrit贸rio de Henry Corbin
Eranos
Henry Corbin e Carl Gustav Jung
Henry Corbin
Fotografias: www.amiscorbin.com