Representação

Page 1

REPRESENTAÇÃO MPC nº 10/2022

Origem MINISTÉRIO PÚBLICO DE CONTAS

Destinatário: TRIBUNAL DE CONTAS

Órgão: EXECUTIVO MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE

Assunto: PROJETO DE CONCESSÃO DO PARQUE FARROUPILHA

O Ministério Público de Contas, por seu Agente firmatário, nos termos do disposto no artigo 37 do Regimento Interno, respeitosamente se dirige a essa Douta Presidência para dizer e propor o que segue.

I – Este Parquet recebeu, na data de 16/11/2022, denúncia a respeito de supostas irregularidades na Proposta de Concessão do Parque Farroupilha, promovida pelo Executivo Municipal de Porto Alegre.

A peça supracitada e as ponderações deduzidas nas duas Audiências Públicas realizadas na Câmara de Vereadores para tratar sobre o tema, em 18/11/2022 e 23/11/2022, as quais foram objeto de acompanhamento por este Órgão Ministerial, trouxeram uma série de apontamentos críticos em relação ao projeto de concessão pretendido, a seguir sintetizados:

a) impropriedade consistente na consecução da proposta de Concessão do Parque Farroupilha juntamente com a do Calçadão do Lami, em um único Projeto, uma vez que são espaços públicos que não guardam, entre si, qualquer correlação de índole cultural ou geográfica que justifique a aglutinação perpetrada.

MINISTÉRIO PÚBLICO DE CONTAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL Excelentíssimo Senhor Conselheiro Presidente do Tribunal de Contas Exercício de 2022

1

b) ausência de estudos técnicos prévios que demonstrassem a viabilidade dos empreendimento, especialmente, a falta de estudos prévios de impactos ambiental, de vizinhança e na mobilidade urbana. Quanto ao estudo de viabilidade econômica apresentado pelo Executivo Municipal, o mesmo, conforme noticiado, teria sido apresentado sem assinatura de economista e, mesmo assim, seria insuficiente, visto não conter matriz de riscos, dentre outros elementos considerados indispensáveis.

c) a potencialidade de dano coletivo na implementação do Projeto de Concessão nos moldes em que apresentado, uma vez que, sendo o Parque Farroupilha, atualmente, corredor ecológico e repositório natural de água da chuva, há riscos de inundação nos entornos do espaço e, consequentemente, nos complexos hospitalares próximos em razão das obras previstas. Neste ponto, suscitou se a ausência de estudo hidrológico e de previsão de realização de obras de drenagem por parte da concessionária, sustentando se a necessidade de preservação do lençol freático do Parque, o qual pode funcionar como aquífero emergencial para o Município.

d) a construção de prédio garagem subterrâneo, sem estudo de viabilidade urbanística e ambiental, bem como a falta de previsão de medidas compensatórias ou mitigatórias por parte da concessionária, considerando o fato de que a referida obra importará redução de vegetação natural1 e) o patrimônio imaterial do Parque Farroupilha, tradicionalmente conhecido como local de expressão política e

Foi ainda noticiado que consta, do portal da Prefeitura, previsão de que a implementação do projeto em apreço importará a retirada de 400 árvores do Parque, o que foi tido como erro material a ser oportunamente corrigido pela Prefeitura.

MINISTÉRIO PÚBLICO DE CONTAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

cultural, que sofre o risco de ter tal caracterização perdida, na medida em que há previsão de que caberá à concessionária autorizar a realização de manifestações no âmbito do Parque, podendo, inclusive, determinar o fechamento de determinados espaços.

II – Em atendimento parcial a Ofício expedido por este Ministério Público de Contas, a Secretaria Municipal de Parcerias sustenta, em síntese, a regularidade do projeto, alegando que o Parque não perderá sua natureza de bem público e que a Administração reconhece o tombamento sobre ele existente. Colaciona excertos do Caderno de Encargos, junta tabela representativa da matriz de riscos e justifica o prazo da concessão (30 anos) como o tempo necessário para a remuneração dos investimentos da concessionária.

III – Este Ministério Público de Contas, em análise preliminar, entende que o conjunto dos apontamentos apresentados, aliado às considerações doravante expostas, reclama a concessão de medida cautelar que suspenda o prosseguimento do projeto de concessão intentado, visto encerrarem criticidade e materialidade suficientes à atuação desta Corte de Contas.

Ressalte se que o Parque Farroupilha, bem público de uso comum, é bem tombado pelo próprio Município de Porto Alegre. Destarte, a despeito de o Parque não constar do Livro de Tombo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (IPHAE), o mesmo integra o Livro de Tombo do Município, registrado sob o número 45, páginas 52 e 94. A data do tombamento é 03/01/1997 e o número dos correspondentes processos administrativos são os seguintes: 1.0277409.99.8 e 1.036678.96.12

2 Disponível em https://www2.portoalegre.rs.gov.br/smc/default.php?reg=8&p_secao=87

A Lei Municipal Complementar n° 275/92, a seu turno, dispõe sobre a proteção ao patrimônio histórico, cultural e natural de Porto Alegre, prevendo expressamente os efeitos do tombamento no âmbito municipal. Destacam se os seguintes dispositivos:

Art. 18 Os bens tombados, provisória ou definitivamente, deverão ser conservados e, em nenhuma hipótese, poderão ser demolidos, destruídos ou mutilados, devendo aos naturais ser assegurada a normal evolução dos ecossistemas (grifou se)

§ 1º As obras de conservação ou restauração só poderão ser iniciadas mediante prévia comunicação e autorização da SMC ou da SMAM, que deverão ouvir o Conselho Municipal competente.

§ 2º Nas áreas tombadas, como sendo do Patrimônio Natural do Município, só se permitirão benfeitorias que não desfigurem sua destinação, ouvido o Conselho Municipal competente. (grifou se)

(...)

Art. 22 Sem prévia autorização, não poderá ser executada qualquer intervenção física na área de influência do bem tombado que lhe possa prejudicar a ambiência, impedir ou reduzir a visibilidade ou, ainda, que, a juízo do Conselho competente, não se harmonize com o seu aspecto estético ou paisagístico. (grifou se)

Art. 23 Para efeito de imposição das sanções previstas nos artigos 165 e 166 do Código Penal e sua extensão a todo aquele que destruir, inutilizar ou alterar os bens tombados, provisória ou definitivamente, o órgão próprio da SMC ou SMAM comunicará o fato ao Ministério Público, sem prejuízo de outras penalidades aplicáveis nos casos de reparação, pintura ou restauração, sem autorização prévia do Poder Público. (grifou se)

Tratando se, deveras, de instituto destinado precipuamente à salvaguarda de determinados bens que ostentem elevado valor histórico, cultural e paisagístico, mormente à manutenção de suas características físicas e culturais, este Órgão Ministerial vislumbra que a concessão ora em análise ostenta potencial afronta a tais finalidades resguardadas pelo tombamento.

Destarte, o projeto, grifado pela previsão de obras intentadas à construção de prédio garagem, restaurantes, bares, dentre outros espaços de lazer no interior do Parque, não evidencia propósito conservatório, mas

MINISTÉRIO PÚBLICO DE CONTAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

notadamente interventivo, aparentemente vocacionado à implementação de um aparato estrutural privado que ateste futura lucratividade em sua exploração.

Nesta senda, reitere-se que o tombamento institui, sobre o bem, um regime especial de uso e disposição, de forma que a exploração de bem tombado, seja pelo Poder Público, diretamente, seja indiretamente por particular, deve operar se em estrita observância às restrições impostas pelo ato conservatório.

Quanto a este ponto, o Executivo Municipal, a despeito de reconhecer o tombamento sobre o Parque Farroupilha, limitou se ao estabelecimento de cláusulas, constantes do Caderno de Encargos, consistentes num genérico “dever de observância das regras de tombamento”, sem a efetiva demonstração de que as intervenções nele previstas conservarão sua feição físico cultural.

Quanto ao tema, aliás, o Superior Tribunal de Justiça, em mais de uma ocasião, e corroborando, inclusive, o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, já ressaltou que o tombamento constitui se em instrumento vocacionado à tutela de direitos fundamentais, no caso, o patrimônio histórico e cultural. Leia se:

Nem se discute que a matéria não trata de direito fundamental. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal reconhece o patrimônio histórico e cultural brasileiro como direito fundamental de terceira geração: [...] 1. A proteção jurídica do patrimônio cultural brasileiro, enquanto direito fundamental de terceira geração, é matéria expressamente prevista no texto constitucional (art. 216 da CRFB/1988). 2. A ordem constitucional vigente recepcionou o Decreto Lei nº 25/1937, que, ao organizar a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, estabeleceu disciplina própria e específica ao instituto do tombamento, como meio de proteção de diversas dimensões do patrimônio cultural brasileiro. [...] (ACO n. 1.966 AgR, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 17/11/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe 268 DIVULG 24/11/2017 PUBLIC 27/11/2017).

Ademais, sublinhe se que a concessão também encerra potencial impacto ao patrimônio imaterial do Parque Farroupilha. Com efeito, ao ensejo de

aprimorá lo estruturalmente, não se deve descuidar da inegável identidade cultural que aquele ostenta, sob pena de desvirtuá la, em contrariedade direta ao texto da Constituição Federal3

As intervenções previstas no bojo do projeto, inclusas cláusulas que possibilitam à concessionária condicionar, em linhas gerais, a forma de utilização do espaço, são fatores que militam a favor da tese de possível descaracterização cultural do Parque, fato este que não pode ser olvidado por este Agente Ministerial.

A propósito, sublinhe se que é largamente admitida, em doutrina e jurisprudência, o tombamento de bens imateriais integrantes do patrimônio público. A União, a título exemplificativo, por meio do Decreto n° 3.551/00, instituiu o Registro como forma de proteção aos Bens Culturais de Natureza Imaterial no âmbito federal. Destaca se, para fins de subsidiar a presente argumentação, o seguinte dispositivo do Decreto Federal:

Art. 1º Fica instituído o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro.

§ 1º Esse registro se fará em um dos seguintes livros: (...)

3

Constituição Federal, Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: III proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos; IV impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural; Art. 30. Compete aos Municípios: IX promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual. Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I as formas de expressão; II os modos de criar, fazer e viver; III as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. § 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. § 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem. § 3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. § 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. (grifou se)

MINISTÉRIO PÚBLICO DE CONTAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

IV Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas (grifou se)

Destaque-se, ainda, que consta na Lei Ordinária Municipal n° 12.884/2021, a saber, a Lei de Diretrizes Orçamentárias do Município de Porto Alegre para o exercício de 2022, previsão expressa de ação em prol da defesa do patrimônio imaterial. Leia se:

5. Nome da Ação: 3735 MEMÓRIA DA CIDADE

Descrição: Proteção legal, pesquisa e documentação do patrimônio cultural, envolvendo bens arquitetônicos, urbanísticos, arqueológicos, museológicos e arquivísticos, práticas de conservação e preservação física dos bens culturais e desenvolvimento de ações voltadas à valorização do patrimônio histórico material e imaterial da cidade. (grifou se)

Finalidade: Reconhecer, proteger, inventariar e recuperar bens culturais. Disseminar a educação patrimonial na cidade Fortalecer a identidade e a diversidade dos bairros tradicionais e de áreas de interesse cultural, por meio da difusão de informação, ação educativa, requalificação urbanística de sítios históricos e integração da comunidade com a memória de Porto Alegre. (grifou se)

Do exposto, o aparente desvirtuamento do projeto com o propósito conservatório resguardado pelo ato de tombamento, a possível descaracterização da identidade cultural do espaço em virtude da modelagem estrutural prevista, bem como a falta de estudos acerca dos impactos ambiental, de vizinhança e de mobilidade urbana, são circunstâncias fortemente indicativas de grave e iminente risco na efetivação da concessão nos moldes em que atualmente apresentada, podendo se, ainda, cogitar de danos irreversíveis ao meio ambiente e ao próprio patrimônio público.

A ausência de estudo técnico de impacto ambiental e hidrológico é, ainda, fator que compromete a segurança e a própria viabilidade do empreendimento, podendo ocasionar situação de paralisação contratual que, para além de prejudicar a coletividade, põe em risco o próprio erário, uma vez que o Município poderá ter de arcar com custos adicionais ao reestabelecimento do pactuado.

MINISTÉRIO PÚBLICO DE CONTAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

De fato, eventuais efeitos e impactos não adequadamente dimensionados podem ensejar a assunção de novos dispêndios a cargo do Município, os quais, não tendo sido originalmente previstos, podem determinar a necessidade de realocações orçamentárias emergenciais que, por conseguinte, embaracem o gerenciamento fiscal desta e, sobretudo, de futuras gestões governamentais

Conclusivamente, as questões suscitadas são indicativas de possível desatendimento ao interesse público, contemplando aspectos que recomendam o aprofundamento fiscalizatório e eventual adoção de providências pela Corte de Contas, a fim de, notadamente, assegurar a elucidação dos aspectos suscitados nesta Representação, além de outros que possam ser levantados em sede de fiscalização.

IV - Isto posto, o Ministério Público de Contas, considerando a gravidade e a relevância do tema, e tendo em conta que a coibição e a censura dos atos potencialmente lesivos aos ditames que regulam a atividade administrativa se encerram no conjunto das competências desse Tribunal (art. 71 da Constituição Federal), requer:

1º) Determinação à Direção de Controle e Fiscalização para que, com urgência, providencie o exame da matéria e, na hipótese de confirmar as irregularidades, submeta, de imediato, tais ocorrências à apreciação do Relator a ser designado, para que, presentes os requisitos autorizadores, conceda eventual tutela de urgência destinada a suspender o prosseguimento da concessão neste expediente debatida;

2º) Ciência do processo ao Chefe do Poder Executivo de Porto Alegre, ao Procurador Geral do Município e ao Poder Legislativo Municipal;

MINISTÉRIO PÚBLICO DE CONTAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

Assim, requer se o recebimento e processamento da presente, propugnando por seu acolhimento, bem como seja dada ciência ao Parquet das providências implementadas pela Casa em relação à matéria.

À sua elevada consideração.

MPC, data da assinatura digital.

GERALDO COSTA DA CAMINO Procurador-Geral Assinado digitalmente.

MINISTÉRIO PÚBLICO DE CONTAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
{"database name":"oraprod","template name":"pre mpc parecer generico"} {"id arquivo":"4380938","id objeto arquivo":"10006540933"} 165/16 5605/220

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.