Revista Brasil - 106

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Edição nº 106

REVISTA BRASIL


Sumário: Expediente................................................................................................2 Editorial.....................................................................................................4 Com quantas vias se constrói um Brasil?......................................5 O Primeiro Mundial do Brasil...........................................................8 Não acabou, tem que acabar.............................................................11 O Brasil no espelho: A violência como pacto fundador da nação..................................................................13 Ditadura Militar pelas vozes da MPB...........................................21 As histórias inseparáveis do Brasil e do Partido Comunista Brasileiro...................................................25 Futuro da Arte no Brasil...................................................................30 Branquitude, um lugar de transparência total............................37 Agradecimentos.....................................................................................42

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Expediente Redação:

Beatriz Nassar

Victorya Pimentel

João Pedro Fernandes

Gabriel Linares

Amanda Louro

Miguel Guethi

Glendha Visani

Pedro Augusto Rolim

Maria Eduarda Freire

Artes:

Giselle Linhares

Sofia Azzam

Raquel Sanches

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Lais Alvarez

Mariana Hashimoto


Expediente Institucional:

Luca Stephan

Gabriel de Paiva

Melissa Satie

Julia Ongarato

Bárbara Giarrante

Gabriela Lerner Ana Beatriz Oliveira

Beatriz Bernardi

Ana Clara Gordo

Revisão:

Bruna Ballestero

Artur Santilli

André Rhinow

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Guilherme Caruso

João Vítor Vedrano


Editorial Se você não está cursando o quarto ano em diante da graduação, muito provavelmente nunca tocou numa revista da Gazeta Vargas. A nossa última revista impressa foi distribuída em agosto de 2019, quando a maior parte dos membros atuais ainda nem havia entrado na FGV. Por causa disso, a revista nº 106 ganhou internamente o carinhoso apelido de "revista física", e é enorme a felicidade em poder entregá-la em mãos hoje. Depois de tanto tempo afastados do convívio presencial e incontáveis reuniões via Zoom, o nosso retorno não poderia ser nada menos que puro frio na barriga e uma enorme vontade de entregar ao alunato da FGV o nosso melhor. Estamos muito orgulhosos de todo o trabalho desenvolvido até aqui, e acreditamos no jornalismo estudantil como uma ferramenta essencial para dar voz aos alunos e impulsionar as transformações necessárias. A revista nº 106 surgiu de uma inquietação compartilhada e da disposição genuína à reflexão. Trazemos o que mais profundamente nos tocou nos últimos anos: a alegria e a angústia de sermos brasileiros. Nesta edição, você encontrará discussões políticas, sociais e culturais que nos tornam um objeto de estudo inesgotável, sob as lentes através das quais nossos redatores leem o mundo em volta. Se ao menos um de nossos textos te causar incômodo, teremos atingido o nosso objetivo. Se pudermos ser uma palavra de esperança para o futuro, o nosso trabalho terá sido um sucesso. Agradecemos a todos os envolvidos na criação e no financiamento da revista Brasil. Em especial, à Beatriz Nassar, João Pedro Fernandes, Victorya Pimentel, Giselle Linhares e Bruna Ballestero, sem os quais essa edição não teria sido possível. Boa leitura! Gabriela Lerner - Presidente Glendha Visani - Editora-chefe

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Com quantas vias se constrói um Brasil? por Gabriel Linares Dizem que vias apenas em cima de estrada existem. Cinco séculos atrás, vias que vinham do Euro caminharam mortalmente sobre fortes e profundas águas. Planavam sobre caravelas e se entendiam messianicamente como a primeira e única via. Dias, dias, Dias, dias e dias: o azul dos olhos foi ofuscado pela imensidão dos mares e dos céus — a razão se perdeu, não se via; Descartes, que nem havia nascido, chorou. Sem medo de chegarem a qualquer-algum-lugar, toparam inesperadamente com vias outras. Vias estranhas, cores da terra. Mas isso não foi proclamação de impedimento: descobriram deles o método antropofágico e aproveitaram o aprendizado para transformar os professores estranhos em verdadeiras entranhas. Construíram-construíam-constroem vias uma por cima da outra, formando-se redes que escravizavam qualquer via que vinha. E, assim, foice dando por tempos, emudecendo futuros…

O presente recente chega — então? Enquanto os Gravatas do central-plano-mais-alto vivem acordando, a gente morre dormindo. Eles, os sociais-contrasociais , vestem pacientemente uma borboleta parcelada por nós. Neles, os em-tornos parecem não ruir em desgraça. Tudo vai se configurando como se o próprio mérito, e não a nossa própria cegueira generosa, tivesse lhes agraciado com esse panorama. Um raro uísque no copo, charutos que nunca se repetem, filas nulificadas nos aeroportos, gabinetes ostensivamente dedicados a diminuir sua jornada de trabalho, talvez alguma preocupação: o cotidiano político dessas adocicadas terras. Esse momentâneo monocromático parece fixado por demasiado tempo. Essa fotografia parece revelar uma via de mão única.

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Enquanto isso, em vias paralelas, no vigésimo século, antes, depois e durante a Semana de 22, braços foram crescendo por todo o país. Cresceram em número, mas isso não foi tão significante. Cresceram, mesmo, em diversidade. Raízes agarrando com toda força todas as fronteiras que tortuosamente corroíam os de fora. Um arsenal colorido vindo de todos os campos do mapa foi dando origem a um povo misturado. Todas as línguas falando e se conversando ao mesmo tempo até que os ouvidos só enxerguem barulho. O português sendo agredido: gírias, importações de palavras, gaguejadas, almoço de sintaxe e sílabas desnecessárias. Ninguém sabe o que tudo isso está formando. O Brasil é preto — a coloral mistura de tudo. —; o Brasil deveria se chamar Mundo. Vai crescendo e se expandindo, traçando estradas no meio de morros, florestas e desertos. A utopia de um mundo sem fronteiras e inteiramente único vai sendo construída aqui de modo que todos se desesperam. O mundo duvida: “O plano nacional dali parece ser inimaginável”. E não foi a partir de embates educados que isso se deu e foice dando. Sangue pintando, pessoas traumatizadas em pranto, vidas de sentido esquecido se esquecendo: muita injustiça transbordando demanda. Raiva e ódio foram sinônimos e antônimos — pavor e respiro. Uma terra de ouros, um lugar de colheita sem acolher sem fim, um cheiro de café em qualquer punhado de terra, sobrados e prédios empurrando qualquer espécie que bata caminho, cheio de sóis para delimitar o inferno latejante. A pele queima, a alma arde, o coração dispara. Toda esperança desaparece em mãos pobres. O samba canta o coração, o funk espelha a realidade já sem rima e cordas. Mãos brancas estrangulam — antes, faziam-no aos olhares jesuíticos de Deus; hoje, mascaram-se em ideologias e palavras que parecem não se realizar na realidade. Alguns cães dormem, outros bestializam-se vorazmente por revolução. Mais vias então.

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Independentemente de quem — quem quer que quisesse —, cortes foram se fazendo a partir de quaisquer lados do país. Foram se topando desigualmente uns com os outros. O matagal nunca foi uma questão; ele ia sendo deglutido, servindo de alimento, pecuarismo e combustível. Lutas e mais lutas: todas representavam sons de línguas mandantes ou ignoradas. Futuro bom beira o impossível; nenhum lugar dessa esfera parece ter desejado harmonia num ambiente tão diverso. O Contemporâneo, no geral, clama por diversidade, mas ainda são jovens na experimentação desse remédio — caldo áspero e quente, rasgador de faringes. Ninguém nunca alcançou a sobrevivência após esse ritual. Mas esse Brasil, essa constelação de regionalismos, parece ser duro na caída, parece que gosta de se levantar. Valerá a pena? Talvez tudo valerá, apesar de não ter valido e não valer, além de hesitações em “valeria”. Certo seria indagar: nossa alma pequena? Nós precisamos inventar o Brasil que ninguém via. Vias? Vias que ninguém via. Vias finas, vias longas, vias largas: quantas vias? Vias tortas, vias íngremes, vias proibidas: calar as vias? Quem vivia eram as vias, vivas. Vias com 1%, vias com 50%: nenhuma via vivia 100%. Vias divas, vias emotivas, vias reflexivas. Umas vias positivas, outras negativas. À deriva, todas saudosas vias. Vias de cima, vias do lado, vias ativas. Vias expansivas, nada equitativas — eram vias. Alternadativamente, vias viviam de vida. Nenhuma via era definitiva.

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O Primeiro Mundial do Brasil por Amanda Louro Neste ano de 2022, acontecerá a vigésima segunda edição da Copa do Mundo. Dessa forma, não se poderia deixar de falar sobre a maior seleção desse campeonato: o Brasil. Com 5 títulos, o país tem a seleção com mais vitórias da história da competição. Suas duas primeiras conquistas foram consecutivas, nos anos de 1958 e 1962. Logo depois, em 1970, ganhou o terceiro título, sendo o primeiro país a alcançar esse marco. A quarta e a quinta vitórias ocorreram nos anos de 1994 e 2002, respectivamente. O campeonato, que costuma ocorrer no mês de julho, será sediado no Catar e tem previsão de início no dia 21 de novembro. A mudança no calendário foi determinada por conta do calor intenso que marca o mês de julho nessa região, que poderia ser prejudicial ao desempenho e até mesmo à saúde dos jogadores, com temperaturas superando os 40 graus Celsius. A Copa do Mundo, organizada pela FIFA, possui diversas normas de formatação. Em primeiro lugar, para constituir as seleções que jogarão o campeonato, acontecem as Eliminatórias da Copa do Mundo, um précampeonato que determina quem vai para a Copa. Isso foi uma evolução, uma vez que, no início, somente eram convocados os poucos países filiados à FIFA. Atualmente, há dois países que possuem garantia de classificação: o que sedia a edição e o ganhador da edição anterior, e existe um número predefinido de vagas para cada continente. Dentre os campeonatos já ocorridos, a América do Sul nunca ultrapassou o limite máximo de 4,5 vagas, o que mostra a potência do Brasil, por ter conseguido lugar em todos até hoje. Após os jogos, ocorre uma repescagem, em que há mais uma chance de classificação — processo pelo qual, dos países que já venceram a Copa, apenas o Brasil e a Inglaterra nunca tiveram que passar. Uma vez definidos os participantes, ocorre um sorteio para a formação das fases de grupos, usualmente compostos por 4 seleções. Os dois vencedores de cada grupo passam para as oitavas de final, em que há 8 jogos. Depois, as quartas de final, as semifinais e a final. Também há um confronto entre os perdedores das semifinais pelo terceiro lugar. Assim sendo, uma seleção joga cerca de 25 jogos — levando em conta as eliminatórias (18) e a Copa em si (7) — para conseguir alcançar o título do campeonato.

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A COPA DE 1958 Em 1958, o Brasil passava pelo terceiro ano do mandato de Juscelino Kubitschek. Seu governo se baseou no lema “50 anos em 5”, que propôs várias mudanças nos âmbitos econômico e industrial. O período foi marcado por eventos históricos como a construção de Brasília e a abertura da economia para o capital estrangeiro. Apesar da aquisição de uma grande dívida externa e da aceleração da inflação, foi um período de euforia para o povo brasileiro, que tinha pela frente um ano marcado pela aceleração econômica nacional e uma Copa do Mundo. A Copa de 58 foi a sexta edição do campeonato, sediada na Suécia, e contou com 16 seleções. A brasileira era constituída por grandes nomes como Pelé, Vavá, Zagallo e Garrincha, e teve como técnico Vicente Feola. Ao lado do Brasil, havia apenas a Argentina, o México e o Paraguai como representantes da América Latina, em meio a 12 países europeus. Naquele ano, por serem apenas 16 times, não houve oitavas de final. Assim, passamos da fase de grupos para as quartas com a então União Soviética. Em um jogo contra o País de Gales, nos classificamos para as semis e, contra a França, chegamos à final. Em 29 de junho, competimos a final com o país-sede, Suécia, que fez sua melhor performance em Copas do Mundo nesta edição. Uma grande ansiedade estava instaurada no país! A última final que a seleção disputara havia sido em solo nacional, em 1950, no estádio do Maracanã. Jogamos contra o Uruguai e, tristemente, perdemos de 2x1 em casa. Dessa forma, o jogo que estava por vir gerava fortes tensões.

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Em menos de dez minutos de jogo, já havia empate de 1x1, com gols de Liedholm (4’) e Vavá (9’) — que, ainda no primeiro tempo, marcou mais um. No segundo tempo, o Brasil, já com um ponto de vantagem, não parou de lutar. Pelé, aos 55 minutos, fez o terceiro gol da seleção e Zagallo, aos 68’, assegurou o 4x1. Nos 10 minutos finais, a euforia já tomava conta dos brasileiros. Mais um gol sueco, marcado por Simonsson, foi feito aos 80’. Já no fim de uma partida tão movimentada, no último minuto do jogo, Pelé marca mais um, fechando o placar de 5x2 para o Brasil. O país em festa. Nessa Copa, Pelé, com apenas 17 anos, foi o artilheiro do Brasil, marcando 6 gols. No entanto, o artilheiro do campeonato foi Just Fontaine, com impressionantes 13 gols. Foram 126 gols num total de 35 partidas. E o que realmente importava para nós… era nosso primeiro título de Copa do Mundo.

A COPA DE 2022 Em 2022, temos a oportunidade de ganhar o hexa. Já foram determinadas as seleções que participarão da competição, assim como a tabela da fase de grupos, separada de A a H. O Brasil compõe o grupo G, ao lado de Sérvia, Suíça e Camarões, e a sua estreia será no quarto dia de Copa, 24 de novembro. A seleção brasileira conta com o técnico Tite, que já trabalhou com os times Corinthians, Palmeiras e Al-Wahda. A escalação ainda não está confirmada, mas dentre os jogadores que estiveram presentes nas eliminatórias, temos: Gabriel Barbosa, Daniel Alves, Thiago Silva, Coutinho, Weverton, entre outros. Segundo o site Oddschecker, que consolida as expectativas de 23 sites de apostas, o Brasil é o favorito para levar o título para casa até o atual momento. Será que 2022 é ano de hexa?

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Não acabou, tem que acabar... por Miguel Guethi 1. SURGIMENTO E ATUALIDADE DA POLÍCIA MILITAR UMA HERANÇA DA COLÔNIA E DA DITADURA A primeira polícia militar foi fundada em 1809 no Rio de Janeiro, chamada de Guarda Real de Polícia, e tinha o intuito de proteger a família real portuguesa que chegava ao Brasil. Poucos anos depois, com a renúncia ao trono e o retorno de D. Pedro I a Portugal, a colônia enfrentou grande instabilidade política durante o período regencial, regado a revoltas populares. Naquele momento, a polícia funcionava para controlar a classe de marginalizados e escravizados, reprimindo manifestações culturais e cultos de religiões não católicas. O policiamento se tornou ainda mais central no cenário sociopolítico e econômico do país ao se expandir para as demais províncias coloniais. Detendo o monopólio da força, a Guarda era truculenta e servia para a manutenção da ordem, garantindo os interesses da classe escravocrata. Desde sua origem, a polícia esteve diretamente ligada à criminalização de movimentos populares, à violência contra o povo preto e pobre e à defesa da elite. Dou um salto no tempo até a ditadura militar, momento em que a polícia militar tomou proporções e adquiriu características semelhantes às que conhecemos hoje. Anteriormente utilizada apenas para combater manifestações do povo pobre e das minorias, a partir da década de 1960 ela passou a ter a função de patrulhar as ruas, o que antes era feito por forças civis. Desse modo, o policiamento passou a ser militar e, portanto, diretamente ligado às Forças Armadas, com sua estrutura alicerçada na hierarquia e na obediência. Enxergando a população como inimiga, com seu modus operandi fundado na violência e na manutenção da ordem, a instituição PM sequer teve reformas que pudessem mudar seu modelo de atuação após o fim da ditadura.

Quanto aos números da violência policial, pode-se citar o registro de 242 chacinas, que totalizaram mais de 1100 mortos entre 2016 e 2018[1], e 6416 mortes, ainda com a possibilidade de subnotificação, em 2020[2]. Para efeitos de comparação, no ano de 2021, a Guerra da Síria registrou cerca de 3800 mortes[3]. A PM no Brasil mata mais do que uma guerra civil ao longo de um ano, e é fato que essas mortes têm classe e cor. A herança que nos cabe do período ditatorial é uma polícia letal que combate a população e defende a elite, tendo como alvos a população pobre e preta. A PM vigia, agride, prende e mata sob um condicionante, o racismo: 80% das pessoas mortas por policiais em 2020 eram negras[4]. Isso escancara uma política letal de repressão contra esse grupo marginalizado. Seja para abordar, incriminar ou atirar, a PM age, como regra, de forma violenta e ataca constantemente os direitos humanos dessa parcela da população. Mesmo recebendo baixo salário e com um grande contingente de pessoas negras na corporação, a PM não se identifica com a classe pobre de trabalhadores. A polícia atua, nesse sentido, como reprodutora do racismo estrutural e algoz do povo do qual se distancia, ao se entender muito mais como guardiã das elites do que do próprio povo, que enxerga como inimigo. Para isso, os policiais têm um treinamento militar humilhante e desumanizado que pouco apoia o indivíduo psicologicamente e que não permite questionamentos aos seus superiores, colocando-o sob constante pressão. As palavras de ordem têm, em sua gênese, a violência e as condições salariais precárias. A instituição é reacionária, e nela ainda imperam as doutrinas da ditadura. O produto disso? Mais policiais mortos por suicídio do que em combate, indivíduos em crise emocional e que atuam em estado de frenesi.

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2. DESMILITARIZAÇÃO A militarização — desde a hierarquia e os treinamentos até modus operandi — replica a mentalidade de que o uso da força é legítimo e sua função é exatamente a de reprimir a população e tratá-la como inimiga. Para superar essa realidade que perdura há séculos, mudanças estruturais são necessárias. Nesse sentido, o fim da PM brasileira é recomendado pela Comitê de Direitos Humanos da ONU, o que se justifica pelo seu nível de violência, baixa eficiência e constante violação dos direitos humanos[5]. Assim, a desmilitarização se apresenta como parte fundamental no caminho para mudar a realidade genocida dessa corporação, que encontra raízes coloniais, ditatoriais e racistas. Fato é que os policiais também anseiam pela desmilitarização, conforme aponta pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pelo Centro de Pesquisas Jurídicas Aplicadas da Fundação Getulio Vargas e pela Secretaria Nacional de Segurança Pública[6]. Mais de 77% desses funcionários são a favor do rompimento desse vínculo com os militares. Marielle Franco, ex-vereadora do Rio de Janeiro assassinada pelas milícias, se tornou símbolo do movimento pela desmilitarização. A vereadora era reconhecida pela militância em prol da melhoria da qualidade de vida dos policiais e entendia que, apesar de suas condutas, eles são vítimas da estrutura autoritária e opressora. Dentre as pautas defendidas pela parlamentar estava a reforma da corporação e sua desvinculação dos militares como aspecto fundamental para diminuir a violência policial.

Primeiramente, sua defesa da desmilitarização tratava da desconstrução da ideia de um inimigo, na imagem da população que a PM combate, assim como das ideias de hierarquia extrema e obediência cega. Esses fatores transformam os policiais em máquinas de matar pobres[7], além de não permitirem que esses funcionários questionem ordens absurdas, organizem-se em sindicatos e possam ter voz. Vale pontuar que não se trata do rompimento com a hierarquia ou com a disciplina, mas da implementação de um ambiente democrático que favorece os policiais e colabora para uma melhora em suas vidas. O que também seria combatido com a desmilitarização é a desumanização de quem trabalha na polícia, atentando-se às questões psicológicas desses indivíduos. Para isso, é necessário o acompanhamento psicológico de qualidade a quem trabalha na área da segurança pública a fim de enfrentar o grande número de casos de depressão e suicídio que assolam as corporações. Com essa mesma mentalidade, é fundamental a melhoria dos salários públicos, uma vez que a precarização desses policiais e as condições em que vivem atrapalham diretamente suas questões emocionais e seu desempenho no trabalho. Os policiais precisam passar a se entender como parte da classe trabalhadora e não como seus algozes. É inaceitável uma polícia que protege a elite em detrimento dos direitos humanos do povo, que vigia, pune e mata quem vive em condição marginalizada e que age ainda sob o arquétipo da ditadura militar. A desmilitarização é o caminho para combater a violência intrínseca à PM, e é urgente.

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O BRASIL NO ESPELHO: A VIOLÊNCIA COMO PACTO FUNDADOR DA NAÇÃO por João Pedro Fernandes

1. RETRATO MARCADO DE SANGUE Certa vez, em entrevista ao jornalista Geneton Moraes Neto, o ex-presidente Fernando Collor declarou: “Que fique registrado por aqueles que escrevem a História. Porque eu faço a História, vocês escrevem a História”. É uma frase bem reveladora e que, em toda sua vanglória, típica do ex-presidente, carrega uma série de significados implícitos: a oposição entre escrever a história e fazer a história, o papel do jornalismo e da historiografia ao contar os fatos históricos e, acima de tudo, o questionamento sobre o que seria essa História à qual Collor se refere com letras maiúsculas e como ela impacta as vidas de nós, que não somos nem jornalistas, nem expresidentes. O nosso primeiro contato com a história é na escola. Livros didáticos, apostilas, professores, todos eles contam os acontecimentos importantes do nosso passado. No caso do Brasil, começa-se a estudar o período pré-colonial, a chegada dos portugueses, e lá se vão mais de 500 anos até que se chegue nos dias de hoje. Alguns irão adorar estudar história e outros irão detestar, mas esse processo, muitas vezes, é acompanhado por um sentimento de alienação, em que é comum não conseguirmos nos sentir parte da história discutida, encarando todos esses processos como algo que está preso ao passado, em um livro. Sabemos quais são os acontecimentos importantes da história brasileira, mas, como sociedade, temos problemas para entender de que forma esse passado ecoa em nossa atualidade. É inevitável que os diagnósticos dos problemas que vivenciamos hoje fracassem, posto que falhamos como nação em analisar criticamente o nosso passado.

Todos nós somos frutos de processos históricos, mesmo que não diretamente. Por extensão, somos sujeitos históricos: todas as características de nossa existência – como local de nascimento, cor de pele e religião – contam um pedacinho de uma história compartilhada pelos brasileiros. Todavia, é notável como algumas figuras brasileiras funcionam quase como uma personificação de elementos de nosso passado, presente e futuro. O próprio Fernando Collor é um exemplo disso, dada sua trajetória política de ascensão e queda, recheada de corrupção, traições e fracassos. Porém, poucas pessoas representam melhor o nosso país que o atual presidente da República: Jair Bolsonaro. Essa é uma ideia interessante, especialmente, quando posta em oposição à outra visão, que afirma que a figura de Bolsonaro seria uma anomalia na história brasileira. Levantada frequentemente nos dias que sucederam a eleição de Bolsonaro, essa noção continua presente no imaginário político brasileiro. Em entrevista recente ao podcast Podpah, o ex-presidente Lula afirmou que "o Bolsonaro é uma anomalia política no Brasil. O povo brasileiro, pelas lutas que já fez, não merecia essa figura grotesca". Lula e os defensores dessa tese, justiça seja feita, têm um ponto: é injusto com um país que seu representante máximo não só seja terrivelmente incompetente, sórdido e perverso, como também possua desdém declarado ao seu povo. Mas é, justamente, por ser sórdido e perverso que Bolsonaro é uma representação perfeita da nossa trajetória histórica, marcada por um fator essencial para entender o Brasil: a violência.

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2. A TUA PISCINA TÁ CHEIA DE RATOS O Brasil é um país violento. Nosso nascimento historiográfico como nação é uma invasão: em 1500, os portugueses chegaram à Bahia e, a partir de 1534, iniciaram a colonização do nosso país, que durou até 1822. Durante esses quatro séculos, o Império Colonial Português explorou predatoriamente os nossos recursos, promoveu o genocídio dos povos indígenas, suprimiu as liberdades religiosas e instaurou o maior regime escravocrata das Américas a partir do tráfico transatlântico de pessoas negras de origem africana, que eram vendidas como mercadoria para trabalhar no ciclo canavieiro – ao longo de mais três séculos, cerca de 4,8 milhões de africanos foram trazidos forçadamente ao Brasil. A escravidão brasileira, que durou até 1888, fundamentava-se em inúmeros atos de brutalidade contra os negros escravizados por parte dos donos de escravos, como castigos físicos, abusos morais e psíquicos, estupros contra as mulheres e assassinatos. Em 1822, o Brasil se tornou independente e virou um Império, condição que durou até 1889. A escravidão permanecia como regime de trabalho vigente, e as violações contra a população negra continuavam. Com o desenvolvimento das identidades regionais de cada província, muitas revoltaram-se contra o governo central, promovendo rebeliões como a Cabanagem, a Sabinada e a Guerra dos Farrapos. Todos esses movimentos foram reprimidos violentamente pelas forças governamentais, que começaram a se organizar a partir de uma lógica em que a violência deveria ser a resposta imediata às insatisfações populares. O período imperial brasileiro também foi marcado pela Guerra do Paraguai, um conflito armado travado por uma aliança entre Brasil, Argentina e Uruguai contra o Paraguai, em uma guerra em que o nosso vizinho foi dizimado, tendo cerca de 90% de sua população masculina morta em conflito. A Guerra do Paraguai também representou uma mudança de status para o Exército Brasileiro que, devido à vitória, passou a ser uma força política e social de relevância.

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Não à toa, a transição do Império para a República, em 1889 – um golpe militar –, foi organizada pelas Forças Armadas, lideradas por Marechal Deodoro da Fonseca, que se tornou o primeiro presidente do Brasil. A presidência de Deodoro e a de seu sucessor, Floriano Peixoto, ficaram conhecidas como "República da Espada", o que atestava o poder dos militares naquele momento. Floriano, em especial, foi apelidado de "Marechal de Ferro", devido à repressão violenta aos movimentos que eclodiram durante o seu governo, como a Revolução Federalista e a Segunda Revolta da Armada. Os militares se afastaram do poder em 1894, dando espaço às oligarquias regionais que comandaram a Primeira República até 1930. Se antes tínhamos a mentalidade bélica militar – forjada não só nos campos de batalha do Cone Sul, mas também reprimindo revoltas populares em seu próprio território –, a ascensão das oligarquias regionais ao poder continuou esse legado de sangue, possibilitando que o Estado brasileiro institucionalizasse a violência como método organizador de sua estrutura. Mesmo com o fim da escravidão, o dispositivo racista do Estado permaneceu. A total ausência de amparo econômico aos negros recém-libertos da escravidão já indicava o mecanismo estatal perverso frente a essa questão, e a organização do movimento eugênico brasileiro só sacramentou isso. Inspirado nos ideais racistas e pseudo-científicos que se difundiam na Europa, o Brasil criou uma lógica própria de eugenia em que todos aqueles que não fossem brancos eram considerados inferiores. Era "desejável" embranquecer o Brasil. Essa lógica eugênica que pretendia a concepção de uma nação branca não se restringiu apenas às pessoas – ela se estendeu às cidades e à cultura – e encontra apoiadores até a atualidade.

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A violência racista do período mostra-se presente em eventos como a Revolta da Chibata, de 1910, em que marinheiros negros se revoltaram contra os castigos físicos recorrentemente aplicados contra eles. A Primeira República também é representativa de uma outra grande tragédia brasileira: a desigualdade social. Enquanto o ciclo do café estava a todo vapor e as oligarquias regionais – principalmente a paulista e a mineira – enriqueciam, o grosso da população brasileira, que crescia cada vez mais, vivia em miséria. Mesmo que não fosse a causa direta desses enfrentamentos, a desigualdade social é essencial para entender os conflitos do período, sejam eles guerras – como a de Canudos e a do Contestado – ou fenômenos sociais de violência que afloraram nos confins brasileiros, como o cangaço. Em 1930, outro golpe de Estado acabou com a Primeira República e deu início à Era Vargas. Getúlio Vargas ficou no poder até 1945, o que é fundamental para entender as contradições da história brasileira: se foi sob o seu comando que o Brasil realmente buscou consolidar um projeto de nação – concorde ou não com ele – também foi sob Vargas que o país enfrentou uma ditadura de 1937 até 1945. Sem revisionismo histórico: o Estado Novo foi uma ditadura e, durante esse período, Getúlio Vargas foi um ditador. O governo de Vargas estabeleceu a censura à imprensa, fechou partidos políticos e perseguiu opositores, como Olga Benário, uma judia e militante comunista que foi deportada à Alemanha nazista, onde foi assassinada em um dos campos de concentração instituídos por Adolf Hitler. O Estado Novo acabou, assim como a Segunda Guerra Mundial, e, aos trancos e barrancos, o Brasil tentava se organizar como uma nação democrática no chamado Período Populista. Mas a Guerra Fria pairava no ar, e em 1964, com suporte bélico e político dos Estados Unidos, as Forças Armadas depuseram o presidente João Goulart em um golpe cívico-militar que deu início a 21 anos de ditadura. Novamente, os militares estavam no poder e atuavam a partir de uma engrenagem autoritária para reprimir seus opositores, que foram mortos, torturados e exilados. O genocídio dos povos indígenas continuou, a violência no campo explodiu, assim como a desigualdade social. A ditadura militar terminou em 1985, com um rastro de sangue: de acordo com a Comissão Nacional da Verdade, foram 434 pessoas mortas e desaparecidas neste período. Somos uma nação concebida em uma vala de mortos – até hoje –, e a nossa história é um conto de fantasmas. Fantasmas esses nunca expurgados, que nos rondam em cada esquina, em cada viela, em cada avenida e que geram um mal-estar muito grande, que nos incomoda diariamente, que não sabemos de onde vem, mas está lá, escorrendo pelas cidades, seja em erupções, seja em discretas perfurações. A violência dos porões da ditadura, da Guerra do Paraguai e das casas de engenho é a mesma das polícias militares quando sobem os morros e das mortes de ambientalistas e indígenas no campo por proprietários de terras. O fim da ditadura militar marcou o início do período da redemocratização, mas esse passado sangrento ainda volta para nos amaldiçoar.

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3. HOJE É SEMPRE ONTEM

O excerto ao lado, retirado da música "Violence", da banda estadunidense Parquet Courts, refere-se à "Uma causa, um efeito, uma sociedade norte-americana, mas também descreve alegria, um perfeitamente como a violência se manifesta na brasileira. No primeiro semestre de 2021, 666 arrependimento/ mulheres foram assassinadas, o que equivale a 4 A violência é a vida diária/ mulheres mortas por dia. Na mesma série temporal, Uma promessa, um pacto foram registrados 26.709 casos de estupro no Brasil, que o mundo nunca um aumento de 8,3% comparado ao primeiro cumpriu/ semestre de 2020. De acordo com o Atlas da Violência de 2021, referente ao ano de 2019, A violência é a vida diária." pessoas negras representaram 77% das mortes por homicídio no Brasil, e dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais relatam que 140 pessoas trans foram assassinadas em 2021, das quais 81% eram negras e 96% eram mulheres trans ou travestis. Esses dados dão uma dimensão factual das principais vítimas de violência no Brasil: mulheres, negros e pessoas LGBT+. Casos específicos também nos ajudam a entender como a barbárie é o fundamento da nação: no último 24 de janeiro, um jovem congolês foi morto em um quiosque onde trabalhava na Barra da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro. Moïse Mugenyi Kabagambe tinha 25 anos e foi espancado por cinco pessoas durante mais de 15 minutos. O assassinato de Moïse, assim como outros casos, nos conta a tragédia de um país em que a brutalidade não é um instinto primitivo humano, mas um pacto com anuência da sociedade, Estado, imprensa e polícia para que atos generalizados de violência, notadamente contra grupos marginalizados, possam ocorrer, normalmente, em espaços públicos. No mesmo veículo de onde a notícia sobre Moïse Kabagambe foi retirada, todas as notícias entre as 5 mais lidas do dia tinham atos violentos como assunto central: duas delas eram sobre o assassinato do jovem, uma relatava um tiroteio, uma outra contabilizava tentativas de linchamentos de suspeitos de roubos e furtos e a última era sobre um militar preso por matar um idoso. A eterna transmissão de notícias sobre crimes pelas nossas TVs, rádios e jornais cria um círculo vicioso de ódio e barbárie, no qual somos incapazes de atacar a real causa desses problemas, e então vivemos em um constante estado de medo, paranoia e anseio por mais violência.

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Existe um motivo pelo qual programas policiais como o Cidade Alerta e o Brasil Urgente fazem tanto sucesso no Brasil: além do evidente motivo de que alguém está lucrando em noticiar incansavelmente atos criminosos de brutalidade sem nenhum compromisso ético e jornalístico, a violência é banalizada no Brasil. É parte do nosso passado, é parte do nosso presente e, se não fizermos nada, será parte também do nosso futuro. Estamos tão acostumados com a violência que escutar relatos de assaltos não é mais uma surpresa, e sim parte do nosso cotidiano. A familiarização do brasileiro com roubos e furtos no nosso dia a dia é tão grande que existe uma série de códigos não ditos de como se portar para evitar assaltos: não ande em tal rua, use um celular antigo, evite tal linha de ônibus. Assaltos, mortes, furtos, latrocínios, milícias, gangues, facções. Tudo isso é tão normal. Tão normal que programas policiais são parte inquestionável da grade vespertina nas emissoras brasileiras, mesmo com suas temáticas tão brutais. Assim, se constitui todo um subconsciente coletivo concebido de acordo com esse registro, que não só afeta nossas próprias percepções sobre o nosso país, como cria uma imagem que vira produto de exportação, a qual também entra no imaginário estrangeiro. Além do samba e da caipirinha, o Brasil é famoso na internet por ser um país violento: é um estereótipo prevalente entre os estrangeiros que o nosso país é uma terra sem lei, um lugar onde o turista que ali visita tem que ficar atento para não ser esfaqueado a cada esquina. Obviamente, essa pré-concepção é falsa, mas é alimentada pelos inúmeros vídeos de atos violentos que se passam no Brasil. No LiveLeak, um extinto site especializado em vídeos mórbidos, o Brasil era um dos países com mais vídeos. Mesmo em sites que operam mais próximos da legalidade, vídeos dessa espécie eram comuns. No Reddit, um fórum com inúmeras subcomunidades, era popular uma finada comunidade conhecida como r/WatchPeopleDie que, como o nome indica, foi organizada para o compartilhamento de vídeos de pessoas morrendo. Nesse subreddit (o nome pelo qual as comunidades dentro do Reddit são conhecidas), também eram recorrentes vídeos que se passavam no Brasil, identificados pelos usuários com uma tag com o nome do nosso país. Assim, acaba-se por entrar em um círculo vicioso: com base em alguns filmes e vídeos vistos na internet , os estrangeiros automaticamente supõem que o Brasil é o quinto dos infernos, só que na Terra. E nós compramos essa ideia, também com base nas representações da violência infinita que temos aqui – como o já citado Cidade Alerta –, o que eventualmente nos faz cair no limbo de um cinismo determinista. "O Brasil é um lixo, é um inferno, não temos como mudar isso, etc", dizemos, sem que avaliemos seriamente quais são as causas da nossa violência, ao mesmo tempo que podemos compreender que a violência não é a única faceta do nosso país e que existem muitos outros elementos positivos da nossa sociedade que não estão incluídos nessa fabulação reducionista sobre o nosso país. Sendo a violência por definição um método, ela é mais sintoma de uma escala maior de problemas do que uma finalidade em si mesma. À vista disso, nosso histórico violento é totalmente entrelaçado com a desigualdade social presente na sociedade brasileira. Em outras palavras, a nossa violência é também de ordem material: existe uma brutalidade inerente à desigualdade social, na simples constatação de que milhões de brasileiros não têm acesso a saneamento básico, por exemplo. Atos diários de violência nunca são arbitrários, e quase sempre são informados por estruturas sociais que, no nosso caso, figuram entre as mais desiguais do mundo.

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A história de violência no Brasil e sua banalização no presente caminham lado a lado e é exatamente devido a esse ethos unicamente brasileiro que é impossível negar quão representativo do nosso país é Jair Bolsonaro, personificação perfeita desse ethos . O nosso atual presidente ficou famoso quando ainda era um deputado de terceiro escalão, ao perceber que não só existia uma audiência que concordava com seus comentários criminosos contra negros, mulheres e pessoas LGBT+, como também havia uma série de programas televisivos – como o CQC e o Superpop – que, a troco de audiência, estavam dispostos a dar espaço aos comentários discriminatórios do então deputado. Ou seja, à medida que seus comentários cresciam em violência e perversidade, sua figura se tornava cada vez mais banal, pois ele ganhava mais espaço midiático, ainda sendo taxado apenas como "um deputado insano", sem que nunca fosse responsabilizado de alguma maneira por suas falas. Seus trejeitos também vendem perfeitamente a sua casualidade do mal: por mais que às vezes se mostre mais raivoso, na maioria do tempo, Bolsonaro se comporta como um "tiozão inconsequente", falando as maiores barbaridades de um jeito relaxado e descontraído, como se estivesse em um churrasco de família. Assim, gera identificação com uma parcela da população, ao mesmo tempo que é visto como inofensivo, para muitos outros.

Além do fator de identificação de suas visões banalmente violentas, sua ascensão política pode ser explicada por vários outros. Um deles é seu diálogo certeiro com um imaginário coletivo brasileiro de insegurança e misantropia. Em um país onde é comum que as taxas de homicídios cheguem à casa dos 60.000 por ano, cria-se uma desconfiança não apenas em relação às instituições responsáveis por esses números, mas também por nossos pares, os outros habitantes desta terra maldita. Ao mesmo tempo que se vive em paranóia sobre as ameaças da vida diária, a violência é generalizada tanto como legado histórico quanto como axioma do tempo presente. Dessa forma, além da indiferença, que se torna uma reação possível, a misantropia, o ódio pela vida humana e o desprezo ganham espaço. Assim, em 2018, seu sucesso eleitoral funcionou como produto natural das angústias, medos e fúrias de um povo marcado pela violência. Sua plataforma para a segurança pública, na qual berrava que "bandido bom é bandido morto" e defendia o amplo armamento da população, era uma aberração de um ponto de vista técnico, mas ecoava perfeitamente em um país onde a violência é uma doença nefasta, que corre no nosso sangue, tão onipresente em nosso cotidiano que a banalizamos.

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Seu discurso sociopata não reverbera apenas naqueles que vivem em medo e insegurança, mas também naqueles que promovem violência. Não será toda pessoa violenta partidária de sua plataforma e é, obviamente, equivocado chegar a essa conclusão em um país onde a violência é tão enraizada, mas é notável como sua retórica violenta ecoa desde esferas civis com características específicas – a exemplo de homens que, assim como ele, são forjados em uma misoginia ancestral e entendem que isso é o que lhes torna “homens de verdade” – até grupos criminosos mais organizados, feito milicianos, grileiros e células neonazistas. Mais do que ódio às populações marginalizadas ou desprezo pela vida humana, Bolsonaro sente um prazer único pela morte. Em um ensaio sobre a resposta do governo Bolsonaro à pandemia do COVID-19, João Moreira Salles é preciso: "Bolsonaro não se comove com a natureza, a arte lhe é estranha, a religião não passa de um adereço político, a ciência o ofende. Até o luxo parece deixá-lo indiferente. A violência, não. É quando fala nela que parece mais vivo e potente." Como indicado no mesmo texto, sua conduta perante a pandemia – desde sua recusa a declarar lockdown nacional até sua demora para comprar as vacinas – demonstra incompetência e descaso, mas, acima de tudo, indiferença e regozijo pela morte alheia. Bolsonaro é a herança perfeita de uma história de violência. Assumi-lo como "aberração", "anomalia" ou "monstro" e tomá-lo como ponto fora da curva no Executivo é ignorar que sua figura personifica mais de 500 anos de uma biografia marcada de sangue, quando, na verdade, ela dá continuidade a um legado brasileiro de milicos, coronéis e milicianos no poder. Simultaneamente, porém, toda a iconografia de sua pessoa configura um paradoxo: ao mesmo tempo que ele representa perfeitamente o Brasil, ele odeia tudo de admirável no nosso país, tudo que nos deixa orgulhosos de sermos brasileiros.

4. NÓS, E OS MORTOS Quando João Gilberto faleceu, em 6 de julho de 2019, Jair Bolsonaro não prestou condolências oficiais. Em maio do ano seguinte, quando Aldir Blanc morreu, Bolsonaro também não se solidarizou. E, em janeiro de 2022, quando Elza Soares faleceu, nenhuma palavra foi vocalizada pelo presidente. Uma das poucas ocasiões em que Bolsonaro se solidarizou pela morte de um artista foi quando o cantor Tales Volpi cometeu suicídio. Conhecido como MC Reaça, o funkeiro era apoiador de Bolsonaro e, antes de se suicidar, agrediu sua esposa. Não é novidade seu total desprezo pela cultura nacional, logo, também não é surpresa que a única morte de um artista que o comove é de um semelhante que o apoiava. Pode parecer um detalhe sutil, mas não deixa de ser irônico que o mesmo país do qual é o fruto perfeito, também é o país no qual é um completo estrangeiro, em que os mesmos 500 anos são exóticos para ele, o que se converte em profundo ressentimento. De fato, sua figura alude à tragédia tipicamente brasileira do casamento entre o arcaico e o moderno – o que se reflete nas inúmeras tentativas de se vender como "inovador", sob a égide de uma suposta racionalidade econômica, um governo de jagunços. E no meio da sobreposição entre um passado vultoso que perdura, e um futuro prometido que nunca alcançamos, temos os brasileiros. Um povo que luta contra sua terra maldita e encontra nas comemorações e nas artes uma maneira não somente de criticar a realidade de violência e de desigualdade que vive, mas também de autoafirmação, para provar que existe uma nação pulsando por vida fora dos donos de engenho, dos torturadores e dos milicianos. Além desse papel de oposição, a arte e a cultura brasileiras despertam indiferença e ódio em Bolsonaro por sua diversidade. Sua rudimentar concepção de mundo acredita que apenas iguais a ele (homens, brancos e heterossexuais) importam, com todos os outros grupos sociais devendo ser subordinados aos mandos e desmandos destes e, portanto, é apenas sua história que vale ser contada, à sua maneira.

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Nossa diversidade de religiões, ascendências e origens lhe causa asco e ódio. Um caleidoscópio de sabores, cheiros, sons, cores, climas e sotaques que lhe é totalmente estranho, pois a única coisa que o comove é a violência. Bolsonaro enxerga diversidade, democracia e pluralismo com ódio, visto que dentro de si só existe uma perversidade historicamente forjada. Por consequência, não é surpresa constatar que o grande projeto de seu governo é destruir todas as conquistas, vitórias e expressões da nossa vida comum que nos deixam orgulhosos de nosso país. Nada escapa de sua sanha destrutiva: conquistas políticas (a Constituição de 1988 e o SUS), patrimônios naturais (a Amazônia e o Pantanal), instituições de Estado (o Ibama, a Funai e a Fundação Cultural Palmares) e entidades culturais (a Cinemateca, o Iphan e a Biblioteca Nacional). Seu único impulso é destruir o que nós possuímos de bom nessa terra meio sagrada, meio maldita, e promover a manutenção das nossas piores particularidades. Sua existência é um paradoxo, é a tese e antítese (e, portanto, a síntese) dos mais de 500 anos de um povo. A iconografia que circunda sua pessoa é tão extrema e tão representativa das nossas contradições que se pode até afirmar que seu período na presidência funciona como um estágio final da história brasileira: ou esse momento representa um profundo ponto de inflexão coletivo sobre como nossa história reverbera em nosso presente e qual é o rumo que estamos tomando como nação, ou estamos fadados ao eterno fracasso civilizatório. Quaisquer que forem as frentes de ação a serem tomadas contra sua pessoa e seu governo, seja eleitoralmente ou em um sentido cultural e social mais amplo, essas devem se atentar em se compor como diametralmente opostas ao que ele representa. Não é suficiente contestar e condenar a figura de Bolsonaro, é fundamental se mostrar 100% contrária a ela e apresentar uma alternativa efetivamente construtiva quanto às questões brasileiras, uma nova estratégia que lide com nossos problemas de maneira responsável e rigorosa. Também é essencial levar em consideração que, se quisermos superar nossas ruínas como sociedade, torna-se de extrema importância endereçar coletivamente nosso passado e presente sangrento, punindo criminalmente os culpados pela nossa destruição ambiental, econômica, social e política, e construindo uma memória coletiva sobre esse legado sangrento, com homenagens, museus e educação histórica. Por fim, é urgente transformar as condições materiais, políticas e sociais do presente que constituem as tragédias brasileiras, como a desigualdade e a violência, para nos livrar do nosso passado maldito.

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Não é uma tarefa fácil reconstruir um país cujo maior legado histórico é um mal que contamina nossas vidas e que encontra no atual presidente a sua máxima personificação. Estamos cansados, com medo, revoltados, assustados, irritados. Por mais habituados que estejamos com as barbaridades do nosso cotidiano, é difícil se acostumar com a violência. Não é aceitável um jovem negro ser espancado por 15 minutos, não é tolerável uma operação policial invadir um bairro e matar 28 moradores, não é admissível que o presidente do Brasil homenageie um torturador em rede nacional. Se quisermos deixar de ser o país do intolerável, o país do ódio, para que então possamos nos identificar com tudo de ilustre e admirável que somos capazes, devemos olhar para a nossa história e, finalmente, conhecê-la e entendê-la, para que ela não se repita.


A Ditadura Militar pelas vozes da MPB por Victorya Pimentel A música popular brasileira, a famosa MPB, surgiu na década de 1960 no Rio de Janeiro através de uma espécie de revolução musical: com o declínio da Bossa Nova e a chegada de novas inspirações do jazz norte-americano, os artistas brasileiros passaram a produzir um novo estilo musical que se distanciava dos gêneros comumente produzidos no país, como o samba e a marchinha, passando a direcionar os caminhos da história musical brasileira rumo a um cenário repleto de originalidade. Com a instauração da ditadura militar no Brasil em 1964, a classe artística, cuja importância para a formação da opinião pública sempre foi de grande relevância, teve sua voz censurada por mecanismos governamentais repressivos. Por meio da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), órgão criado em 1934 pelo presidente Getúlio Vargas e fortalecido durante a ditadura militar, a Polícia Federal brasileira tornou-se responsável por fiscalizar os conteúdos bibliográficos, culturais e midiáticos reproduzidos no país durante o regime. Tais mecanismos deram forma e legalidade para todo o aparato repressivo do regime militar, juntamente ao AI-5, que dava ao representante do Legislativo o poder de suspender os direitos políticos de cidadãos considerados “subversivos”, além de constitucionalizar a prática da censura prévia dos conteúdos midiáticos. Assim, foi moldado todo o aparato repressivo do regime militar, que garantiu não somente a censura das obras musicais, mas a perseguição e o exílio de seus compositores. Entretanto, isso não impediu que os artistas formassem uma espécie de frente ampla contra o governo militar. A resistência cultural fez com que a MPB passasse a ser mais do que apenas um gênero musical: ela constituiu também um movimento político e social ao representar parte da população em suas críticas, muitas vezes escondidas de maneira engenhosa em meio ao lirismo das canções, que denunciavam as situações de injustiça política Chico B uarque protesta d u ndo r e social, o estado de vulnerabilidade da população e, ante a D itadura Militar especialmente, a censura governamental.

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O uso de figuras de linguagem, como metáforas, eufemismos e neologismos, foi um recurso utilizado pelos artistas para transmitir suas mensagens, mesmo com toda a represália governamental. A música Tropicália, de Caetano Veloso, exemplifica de maneira excepcional o uso desses recursos linguísticos. No segundo refrão da canção, a repetição do fonema “ta, ta, ta, ta” remete ao som de uma arma de fogo, acusando a violência do regime. No decorrer da canção, há um outro jogo de palavras com o fonema “ia”, que ao ser cantado várias vezes de maneira contínua, passa ao ouvinte a impressão de que o cantor está falando “ai”, fazendo referência aos gritos de dor das vítimas do regime. A música Cálice de Chico Buarque, ao se aproveitar da semelhança sonora entre o título da canção e o verbo “calar-se”, também exemplifica as críticas contidas na MPB contra a censura vigente no período da ditadura. Apesar de Você, também uma composição de Chico, representa talvez uma das críticas mais evidentes ao regime militar. Na estrofe inicial da canção “Hoje você é quem manda // falou, tá falado // não tem discussão, não”, o artista retrata o caráter autoritário do regime e, mais tarde, no verso “Você que inventou o pecado”, o compositor apresenta sua interpretação sobre como o AI-5 foi o mecanismo responsável por categorizar condutas como uma espécie de pecado para o regime por meio da criminalização. Entretanto, a canção segue com a seguinte mensagem: "Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”, demonstrando outro papel essencial da MPB nos tempos da ditadura militar: manter a chama da esperança acesa, representada por mensagens exaltando tempos de maior liberdade.

Considerada um hino da resistência popular, a música Pra Não Dizer que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré, compositor que, assim como Chico Buarque, precisou se exilar após sofrer perseguição pela composição, também representa uma função fundamental da Música Popular Brasileira nos tempos da ditadura militar: a convocação popular para manifestações políticas. A estrofe “Vem, vamos embora // Que esperar não é saber // Quem sabe faz a hora // Não espera acontecer” relata o tom de urgência e o chamado pela realização de movimentos populares.

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As músicas do período também serviram como um porta-voz para as denúncias dos casos de tortura protagonizados pelo governo. A canção “O Bêbado e a Equilibrista”, famosa na voz da cantora Elis Regina na versão de 1979, representa um período já de declínio do regime. No trecho “Choram Marias e Clarisses // No solo do Brasil”, a cantora faz referência a Maria de Lima, filha do operário Manoel Fiel Filho, e a Clarice Herzog, esposa do jornalista Vladimir Herzog. Os dois homens foram presos políticos durante o regime militar e passaram por inúmeras sessões de tortura no prédio da DOICODI, órgão subordinado ao Exército, responsável pela inteligência e repressão de civis que se opunham ao governo. Ambos os casos acabaram nos assassinatos dos presos políticos, e foram registradas oficialmente, mas de maneira falsa, como suicídio. A arte transcende o seu papel como mecanismo capaz de nos afastar da realidade, sendo também um elemento responsável por trazer à tona discussões e reivindicações sociais, e é esse caráter reivindicatório que fez com que ela se tornasse um elemento fundamental para a resistência, não somente durante a ditadura militar, mas durante toda a história. A arte, seja ela uma representação visual ou sonora, é uma ferramenta de inclusão e de formação social que permite que pautas marginalizadas ganhem espaço através da divulgação em rádios, na televisão e nas performances públicas. Nos dias de hoje, as canções e as narrativas desses artistas revolucionários que marcaram a história da MPB servem como registro de um período emblemático da história brasileira e são também responsáveis por manterem vivas as lembranças de tempos sombrios por meio da sensibilidade lírica das melodias e do peso da luta que elas representaram e continuam representando no âmbito sociocultural brasileiro.

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As histórias inseparáveis do Brasil e do Partido Comunista Brasileiro por Gustavo Alves e Pedro Augusto Rolim

o dia 25 de março de 1922, instigados pela recente vitória comunista na Revolução Russa, um pequeno grupo de operários com histórico de militância no movimento anarquista reuniu-se em Niterói, determinados a criar uma verdadeira organização de massas no Brasil que propusesse uma alternativa revolucionária ao sistema capitalista. Nascia o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em 2022, o PCB comemora seus cem anos de existência, durante os quais participou ativamente de grandes eventos da história brasileira, como a campanha pela criação da Petrobras, a resistência à ditadura militar e a luta pela formulação da Constituição de 1988. No âmbito intelectual, seus militantes influenciaram a cultura brasileira e o modo de pensar o Brasil, com figuras como Caio Prado Júnior, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Tarsila do Amaral, Oscar Niemeyer e tantos outros. A fundação do PCB refletiu tendências nacionais e internacionais de questionamento do sistema capitalista, representadas no Brasil pela indignação perante a crise política e a situação social precária dos trabalhadores e pelo entusiasmo diante do triunfo bolchevique na Revolução Russa. Após a Greve Geral de 1917 no Brasil, liderada por anarquistas e sindicatos em protestos contra a alta dos preços causada pela Primeira Guerra Mundial e em prol dos direitos do proletariado, a queda da monarquia czarista na Rússia incentivou muitos militantes desse movimento a se aproximarem dos ideais comunistas e a criarem grupos e organizações simpatizantes a eles. Deste lado do Atlântico, em março de 1922, o Grupo Comunista de Porto Alegre organizava um congresso que fundou o PCB, com o objetivo de organizar o proletariado e criar nele uma consciência revolucionária cujo fim haveria de ser a derrubada do capitalismo no país. Mesmo possuindo uma influência minoritária na opinião pública naquele momento, o PCB foi decretado ilegal apenas 3 meses depois da sua fundação pelo governo de Epitácio Pessoa, mas os seus militantes persistiram em atividades de agitação e propaganda. 2)

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O empenho dos membros do PCB na década de 1920 permitiu a difusão do comunismo entre o proletariado brasileiro, especialmente durante um breve retorno do partido à legalidade em 1927. A estratégia de disseminação do movimento contou com a publicação de jornais de cunho revolucionário, a criação de uma ala jovem, nomeada Juventude Comunista, além da participação nas eleições municipais mediante a legalidade readquirida em janeiro de 1927, o que garantiu a eleição de dois candidatos ao Conselho Municipal do Distrito Federal. Em agosto de 1927, o partido retornou à clandestinidade devido à "Lei Celerada”, que visava abater o movimento operário restringindo o seu direito de reunião. Durante a década de 1930, o PCB sofreu com o seu status de ilegalidade, a repressão das autoridades e uma tentativa falha de revolução, resultando em duros golpes ao partido. Porém, combateu diretamente a atuação dos integralistas, movimento fascista inspirado no nacional-socialismo, no campo político, como sindicatos, e nas ruas, por meio de manifestações e brigas. O partido também fez parte da frente nacional antifascista e anti-imperialista, a Aliança Nacional Libertadora (ANL), a qual contou com comunistas, socialistas e antigos militantes da causa tenentista que estavam insatisfeitos com a aproximação do governo Vargas com as velhas oligarquias. Porém, em julho de 1935, a Lei de Segurança Nacional foi usada contra a ANL e a tornou ilegal pouco tempo depois de sua fundação. Como forma de reação, o PCB promoveu entre os seus membros uma tentativa de revolução em novembro de 1935, mas ela falhou por sua falta de organização, ganhando o apelido pejorativo de “Intentona Comunista”. Após a tentativa de insurreição em 1935, o PCB tentou sobreviver na ilegalidade com a instauração do Estado Novo, que apresentava justificativas anticomunistas — o Plano Cohen —, e a intensa repressão do regime a partir de novembro de 1937. Nesse período, mesmo clandestinamente, seus militantes pregavam a participação do Brasil ao lado dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, e o partido orientou seus integrantes a se alistarem como parte da Força Expedicionária Brasileira (FEB) a fim de combater o fascismo e ajudar a União Soviética (URSS). Com a vitória dos Aliados e o enfraquecimento do governo de Getúlio Vargas, o PCB restaurou seu status de legalidade na abertura democrática pós-Estado Novo em 1945 e se consagrou como um partido nacional de massas em meados de 1947, elegendo quatorze deputados e um senador.

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Com o fim do Estado Novo e o retorno à legalidade, o PCB proclamava um programa de união nacional em torno do desenvolvimento industrial e econômico brasileiro. Segundo o então secretáriogeral, Luís Carlos Prestes, “o PCB lutava pela democracia ainda no âmbito capitalista”. O partido atingiu entre 180 mil e 200 mil filiados após angariar apoio popular pela luta e pelo triunfo contra o Estado Novo, aproveitando desse momento para eleger representantes para a Assembleia Constituinte de 1945. Nomes de peso, como o escritor Jorge Amado, foram eleitos pelo PCB e se destacaram na elaboração da Constituição de 1946 no que tange à educação, às questões sanitárias e à saúde pública. No entanto, o partido viria a sofrer um golpe desorientador ao ser novamente fechado em 1947, sob a acusação de ser uma entidade estrangeira, o que se fundou na influência que a União Soviética exercia sobre ele e em seu nome: era o Partido Comunista do Brasil, não o Partido Comunista Brasileiro. O retorno para a ilegalidade fez com que o partido passasse por uma fase de isolamento, em que seus membros focaram em apoiar propostas e candidaturas de caráter nacionaldesenvolvimentista como forma de fortalecer a economia brasileira e, dessa forma, privilegiar a luta anti-imperialista. Uma dessas propostas foi a campanha “O Petróleo é Nosso” durante o governo de Getúlio Vargas em 1951, em que os militantes do partido uniram-se a outros movimentos nacionalistas para a criação de uma empresa estatal de petróleo e a limitação do capital estrangeiro na sua exploração. A mobilização popular encabeçada pelos comunistas e por seus aliados nacionalistas pressionou a aprovação da lei que criava, em 1953, a Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras) e, com ela, o monopólio estatal de extração, refino e transporte do petróleo brasileiro. Temendo uma onda reacionária após o suicídio de Getúlio Vargas em 24 de agosto de 1954, o partido decidiu apoiar a candidatura de Juscelino Kubitschek, uma alternativa mais favorável devido às suas tendências nacionalistas se comparadas às de Plínio Salgado, um integralista, e de Juarez Távora, um militar.

Depois do breve período de governo de Jânio Quadros e do boicote à posse de João Goulart, o PCB apoiou a proposta de reformas de base do governo Jango, o que, apesar das suas discordâncias políticas, representaria um importante avanço tático para lutas históricas, como a reforma agrária e a reforma urbana. O golpe militar de 1964 feriu o PCB de modo profundo, uma vez que o partido apostou suas fichas no presidente usurpado, Jango, cuja decisão de não fazer frente aos militares pegou de surpresa a militância despreparada para resistir ao peso do braço forte da sanguinária repressão ditatorial que se seguiu. O golpe causou uma cisão interna entre aqueles que defendiam a luta armada e aqueles que desejavam uma frente ampla como forma de combate à ditadura. O anticomunismo do período ditatorial assassinou um terço do Comitê Central (CC) do partido, além de prender e torturar muitos de seus militantes, o que prejudicou a liderança e as suas ações táticas, fazendo com que o PCB tivesse que recorrer a líderes menos capacitados e experientes. Diante da violência esmagadora e da insistência da direção do partido em apostar somente em uma estratégia pacífica de frente ampla contra o regime militar, personagens como Carlos Marighella romperam com o PCB por acreditarem, inspirados pela Revolução Chinesa de 1949 e pela Revolução Cubana de 1959, que a luta pela queda do governo militar também deveria ter um componente armado revolucionário. Grupos como a Ação Libertadora Nacional (ALN) e outras organizações roubaram quartéis e bancos, sequestraram embaixadores e travaram conflitos com as forças militares, o que exerceu uma pressão importante na saúde do regime, apesar de suas ideias não terem cativado a mente do povo ou inspirado levantes populares nas regiões rurais, aos moldes das outras revoluções.

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Conforme a campanha pela redemocratização avançava no início da década de 1980, o PCB voltou a se inflamar internamente, com a direção dividida entre uma ampla união para a conquista da democracia e uma contínua luta pela construção do socialismo no país. Mesmo retornando à legalidade em 1986, estado do qual goza atualmente, essas convulsões do partido fizeram-no sangrar. Figuras de destaque como Luís Carlos Prestes deixaram o partido, bem como diversos militantes que passaram a se identificar com partidos como o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Democrático Trabalhista (PDT). Unida à falta de protagonismo do PCB no movimento operário e sindical da época, a situação contribuiu para agravar a debilidade de um partido que saía da ditadura militar ferido e desconectado das massas. No final da década de 1980 e início dos anos 1990, a queda das experiências socialistas, como a dissolução da União Soviética e da Iugoslávia, provocou uma sombra sobre o movimento comunista internacional e o PCB foi um dos afetados. A queda da URSS parecia corresponder ao triunfo do sistema capitalista perante o socialismo, e o período foi marcado por liquidações e transformações de partidos comunistas que, a priori , eram revolucionários, em partidos de esquerda mais moderados e com objetivos dentro da institucionalidade, como a busca por vitórias em eleições. Esse movimento também afetou o PCB, que tinha em seu Comitê Central vários adeptos da tese de que a teoria marxistaleninista não atendia mais às demandas da população brasileira, pois a ideia de revolução para a construção do socialismo havia sido superada. Dessa forma, o próprio PCB sofreu uma tentativa de liquidação durante os primeiros anos da década de 1990. Portanto, o Comitê Central do partido buscava mudar o nome do PCB e abandonar os princípios ideológicos com que fora fundado na convocação do IX Congresso do Partido em 1991. Como forma de oposição a essa tese, os diretórios estaduais de São Paulo e do Rio de Janeiro elaboraram, cronologicamente, documentos criticando o Comitê Central e a sua linha política denominada equivocada e propuseram a manutenção da simbologia socialista e a reconstrução revolucionária do partido. Com a aproximação da data do IX Congresso, houve a formação de chapas, inéditas na história do partido, em que um lado do CC defendia o abandono da simbologia marxista e uma linha conciliadora entre o socialismo e o capitalismo, e o outro lado, a esquerda, formada pelos diretórios estaduais, defendia a continuidade das simbologias do PCB e reafirmava a importância do marxismo como seu princípio filosófico.

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Essas duas linhas de pensamento resultaram em uma cisão do partido na qual a chapa da esquerda, baseada no documento de “Fomos, Somos e Seremos Comunistas”, ganhou quase metade das cadeiras do Comitê Central e impediu que as teses liquidacionistas fossem aceitas no plenário do partido. Porém, após tentativas de fraude, incluindo a convocação extraordinária de um congresso sem a presença da totalidade da oposição pela parcela reformista do CC, a oposição propôs um boicote ao IX Congresso e uma votação com ampla adesão e participação dos militantes para a realização de um congresso paralelo. Com ambas as proposições sendo aceitas, esse congresso paralelo resultou na manutenção do partido e na vitória das teses da chapa da esquerda e marcou o início da reconstrução revolucionária do PCB. O processo de reconstrução para retomar os antigos ideais marxista-leninistas completa trinta anos em 2022 e tem como suas principais teses a construção do poder popular no Brasil e a retomada da influência do partido nos movimentos sociais. Em consonância com esse objetivo, o PCB rompeu com o governo Lula na declaração de seu XIII Congresso (2005), criticando sua proposta de conciliação de classes e seu foco nas eleições institucionais, definindo que “uma vez constatado que o capitalismo no Brasil já atingiu a etapa monopolista, fica claro que o processo revolucionário brasileiro é de caráter socialista”.

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Em seus XIV (2009) e XV (2014) Congressos, foi reiterada a construção do poder popular, ou seja, a construção de um bloco composto por diferentes setores da população trabalhadora organizados em diversas coletividades, como movimentos estudantis e sindicatos, para compor uma alternativa ao poder da burguesia e propor transformações radicais baseadas na ideologia socialista, como a coletivização dos meios de produção e a redistribuição de terras. Os cem anos do Partido Comunista Brasileiro e a sua causa revolucionária perpassam avanços, retrocessos e contradições, mas é inegável que sua trajetória se confunde com o desenrolar da história brasileira, sendo essencial para compreendermos sua totalidade. Como escreveu Ferreira Gullar em seu poema “PCB” na ocasião dos sessenta anos do partido:

"Faz sessenta anos qu e isso aconteceu. O PCB nã o se tornou o maior partid o do Ocidente, nem mesm o do Brasil. Mas quem cont ar a história de nosso povo e seus heróis tem que falar dele. Ou estará mentindo".


Futuro da Arte no Brasil por Maria Eduarda Freire

A arte brasileira vive uma constante de superação em diversos sentidos. No geral, a sua valorização depende de ventos políticos que determinam a viabilidade financeira de produzi-la e distribuí-la, mas isso não significa que ela foi ou é condicionada tematicamente à política, muito menos que seu conteúdo é limitado. Pelo contrário, a arte brasileira é rica, diversa e profunda. Temos múltiplos segmentos no limite das desigualdades do país. O samba, ritmo negro que nasceu marginalizado, logo foi apropriado pelas elites, originando a bossa nova, disseminada mundo afora nas vozes de Jobim e Sinatra. A Tropicália, com suas letras sofisticadas e música antropofágica, driblou os censores da ditadura militar, como fez Chico Buarque com Cálice. E o Cinema Novo denunciou mimeticamente os problemas políticos do país, como feito por Glauber Rocha em Terra em Transe. Dado o seu histórico revolucionário, o incentivo à cultura só foi abordado de modo institucional quando o Brasil voltou para os prumos democráticos. Em 1986, foi criada a Lei Sarney, que instituiu um regime de parceria público-privada em prol da cultura, algo previamente proposto, embora rejeitado, no período militar. Contudo, logo em 1990, a lei foi revogada pelo governo Collor e, em 1991, foi instituída a vigente Lei Federal de Incentivo à Cultura, a Lei Rouanet. Em poucas palavras, ambas as leis trabalhavam à luz do sistema de incentivos fiscais.

1. LEI ROUANET O que a Lei Rouanet mudou de mais relevante em relação à Sarney foi a expansão das formas de financiamento e implementação de um processo mais completo para o monitoramento de gastos. O projeto deve ser enviado, pré-aprovado e é preciso que seu orçamento seja analisado para evitar fraudes e delimitar sua real viabilidade. Finalmente, é necessária a aprovação pelo Ministério responsável pelo setor cultural e, quando em decurso, deverá ser acompanhado pela Secretária da Cultura da Presidência da República, ou por quem receber a delegação destas atribuições, enquanto a prestação de contas deve ser feita ao Tribunal de Contas da União (TCU). Outra grande mudança foi a exigência de circulação pública do produto cultural para que possa ser financiado, pois, outrora, era possível se valer do sistema para exibições privadas e shows particulares, não em prol de um interesse coletivo, agora, bem delimitado. Assim, através do financiamento, a lei viabiliza a competitividade do setor artístico brasileiro, ao passo que também busca promover a atividade regional, não essencialmente comercial, mas de valorização da história e da cultura - conforme as previsões do inciso I de seu art. 1º e incisos I e II de seu art. 4º.

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Apesar da veemente relevância da legislação federal no incentivo à cultura regional e na viabilização da entrada de artistas independentes no mercado da arte, a narrativa reacionária usa de falácias como "Ivete Sangalo e Chico Buarque enriquecem da Lei Rouanet". Esse tipo de fala vem da falta de conhecimento e informação sobre a real burocracia que envolve o financiamento de projetos artísticos. Na realidade, existe uma imensa cadeia de trabalhadores envolvidos na maior parte deles, desde funcionários de limpeza à publicidade e iluminação. Nesse sentido, há várias especificações e limites para toda a dinâmica do financiamento proporcionado pela Lei Federal de Incentivo à Cultura. O teto do que um artista pode ganhar sozinho através da lei é de R$45.000,00, e o máximo para um grupo de pessoas, como orquestras, é de R$90.000,00. O que supera esses valores serve para custear os materiais e a mão de obra de toda a equipe envolvida. Além disso, o proponente do projeto — no geral, a produção — é quem faz as negociações, e não o artista diretamente. Não obstante, apesar de muitas fake news em torno da Lei Rouanet, que buscam deslegitimar o setor artístico-cultural de modo vago e generalista, os seus resultados merecem atenção. Uma pesquisa da FGV divulgada em 2018 demonstra que, após 27 anos da Lei Federal de Incentivo à Cultura, ela gerou um retorno 59% maior do que o investido à sociedade. Isto é, para cada R$1,00 de renúncia fiscal através da lei foram gerados aproximadamente R$1,59 para a economia local.

"Entre 1993 e 2018, a lei gerou R$ 31,22 bilhões em renúncia fiscal, em valores reais corrigidos pelo IPCA. Esses R$ 31,22 bilhões não só retornaram à economia brasileira como geraram outros R$ 18,56 bilhões. No total, o impacto econômico da lei foi de R$ 49,78 bilhões."[1]

Soma-se a esse resultado o fato constatado pela pesquisa de que 90% dos recursos angariados pela lei por meio das renúncias fiscais são direcionados a projetos de pequeno porte, diferente do que se critica de que ela supostamente favorece e mantém artistas já consagrados. Esses projetos não ultrapassam o valor de R$100.000,00 cada, sendo que 66,3% deles foram orçados em valores menores que R$25.000,00. Alguns exemplos de instituições que utilizam a lei para implementar seus projetos são o MASP, a Pinacoteca de São Paulo, o Teatro Alfa, a OSESP, o Instituto Inhotim e os Espaços Culturais, como os do Itaú, que sustentam cinemas e teatros ao redor do país. No fim, quando bem implementada, podemos ver que o que ela faz para a sociedade é extremamente relevante.

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2. DIREITOS AUTORAIS Outro marco acerca da arte no campo intelectual é a regulação dos direitos do autor frente à internet. A Lei de Direitos Autorais (LDA) brasileira foi criada em 1998, mas, com os rápidos avanços tecnológicos, não é difícil afirmar que, em diversos sentidos, ela é ultrapassada — especialmente em termos da moderação de conteúdos na internet. Basta lembrar que as criações dos longínquos Napster e Orkut datam de, respectivamente, 1998 e 2004, assim como os ainda atuais Google e YouTube foram criados em 1998 e 2005, nessa ordem. Nesse contexto, um desafio fundamental do autor no século XXI, a pirataria , é ainda tratado de modo muito precário pela LDA, apesar dos esforços para a extensão de alguns conceitos para a aplicação de sanções civis e penais nesse sentido. A monetização do trabalho artístico na era digital é outra mudança a ser encarada. Apesar de as plataformas de música, por exemplo, buscarem angariar as informações de autoria para repassar os devidos royalties em quotas específicas, elas não conseguem compensar os ganhos que todos esses tinham na época que vendiam CDs ou discos de vinil. O sistema de monetização delas é baseado em publicidades e no pagamento de mensalidade de assinantes premium , o que, no repasse baseado em streams aos titulares de direitos autorais, não chega aos pés das antigas receitas do setor. No entanto, o uso dessas plataformas não é a única fonte de renda dos músicos, que continuam dependendo de apresentações ao vivo, além de publicidades e vendas de itens. Decerto, os temas de recolhimento e repasse de direitos autorais e de reprodução no âmbito da internet ainda estão abertos a muitas discussões. A própria lei e os agentes regulatórios não têm respostas ou soluções exatas para lidar com o cenário atual de entes digitais e mudanças contínuas no mercado para cumprirem seus papéis de forma justa tanto em relação aos ouvintes quanto aos autores.

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3. DIAGNÓSTICO ATUAL DA ARTE BRASILEIRA No campo do audiovisual, a chegada dos streamings ajudou na internacionalização de trabalhos e, de algum modo, na democratização do acesso a um maior volume de obras. Entretanto, ela também contribuiu para enfraquecimento dos anteriores formatos de televisão, que perderam parte de sua expressão. Assim, com a queda de audiência, muitas emissoras de televisão têm se voltado à diversificação com a adesão ao modelo streaming (como o Globo Play e a Telecine), programas de assinaturas de canais on demand e investem cada vez mais em reality shows , como o Big Brother Brasil e a Fazenda, que se provaram muito lucrativos nos últimos anos. Os cinemas também estiveram menos movimentados, desta vez, não só por conta da digitalização, que permitiu o acesso a filmes no conforto e privacidade de casa para muitos, mas por conta do isolamento social imposto pela pandemia do coronavírus. Nessa mesma linha, rodeados de incertezas, teatros, museus, feiras de artesanato e exposições viram-se numa posição extremamente frágil e sofrem com os resquícios do período de inatividade presencial. Esse ramo da arte, intrinsecamente dependente da circulação de pessoas, foi especialmente assolado pelos limites impostos pela quarentena. Felizmente, a Lei Aldir Blanc, pressionada pela sociedade civil e editada pelo Congresso em 2020, promoveu ações emergenciais destinadas ao setor cultural para serem adotadas durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020. Ela proveu o auxílio emergencial de renda aos trabalhadores e trabalhadoras da cultura, subsídios mensais para manutenção de espaços artísticos e culturais, dentre outros. Assim, ao tempo que vimos a pandemia afetar gravemente vários setores, podemos dizer que, ao menos, o impacto sobre o cultural foi abrandado pelo que previu a referida lei, que, aliás, recebeu um orçamento inicial de R$3 bilhões, inédito ao setor da cultura[2]. No ápice da quarentena, artistas famosos como Luiza Sonza, Alok, Leonardo e Caetano Veloso puderam fazer as famosas lives e ainda gerar milhões através de publicidades, graças aos altíssimos níveis de audiência. Os menos expressivos e os trabalhadores de produção, como profissionais de iluminação, maquiagem e figurino, também tiveram que se reinventar, mas dependeram especialmente do apoio do Estado através da Aldir Blanc. A internet se tornou o novo palco, forçosamente ou não, e, ao menos em parte, continuará a ser. Com a flexibilização do isolamento, vimos o setor artístico presencial voltar, aos poucos, com shows, peças, orquestras, museus, cinemas e exposições. Não obstante, uma lição que deve ser levada à frente é que os artistas independentes são sempre os mais vulneráveis em momentos de crise, motivo pelo qual o fomento da arte através das leis de incentivo é imprescindível para a (r)existência da multiplicidade artística nacional.

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Ainda no que diz respeito à comercialização da produção cultural, livrarias fecharam por todo o país, não só pela falta de movimento presencial, mas porque o seu modelo de comércio foi desbancado por empresas como a Amazon, que vende livros e outros produtos de forma muito mais competitiva. Além disso, dados anteriores ao coronavírus, de 2015 a 2019, apontam para a redução de 4,6 milhões de leitores no país, segundo levantamento realizado pelo Instituto Pró-Livro em parceria com o Itaú Cultural. Por outro lado, apesar de ter sido afetada pelas instabilidades políticas recentes que afrontam os sistemas de incentivo apresentados, a produção literária da última década no Brasil continuou a crescer. Como todo seguimento atual, escritores escoam-se pelas redes sociais para impulsionar os seus trabalhos, seja divulgando-os virtualmente, seja buscando formas de financiamento coletivo através desses mecanismos. De forma geral, a internet, que já detinha grande importância e força para a disseminação de conteúdos como local de venda e comunicação, foi alavancada de vez pela pandemia. Os setores de moda, dança, teatro e até de artesanato utilizam-se dela, mostrando que a adaptação foi e continua sendo a chave da resistência nesse período desolador. Por fim, é importante mencionar a chegada dos Non Fungible Tokens , os NFTs, que adentram o mundo artístico de uma maneira um tanto peculiar. No Brasil, um país em crise, onde milhares passam fome e estão longe de ter acesso à internet, é difícil dimensionar o que significam os NFTs. Simplificadamente, eles são arquivos digitais que podem conter, dentre outras coisas, obras artísticas, que ficam codificadas e protegidas por blockchains (cadeias de chaves, em tradução livre; elas são sequências de travas digitais complexas que conferem segurança ao arquivo) e que possuem um registro preciso de transferência único. A propriedade desse bem digital, que hoje abrange músicas, telas,memes, montagens e afins, é identificável por seu código. No limite, a arte em NFTs parece um capricho capitalista de agora poder ter algo intangível como SEU, uma faceta da excentricidade de ser dono na era cibernética. Os valores pagos por eles podem chegar a quantias obscenas (na casa dos milhões de dólares), o que salta aos olhos de grande parte das pessoas, ainda mais por se tratarem de bens virtuais. De todo modo, esse é um tópico relevante, pois está muito em alta frente ao cenário digital. Os investimentos no metaverso já são bilionários e, surpreendentemente ou não, muitos artistas estão convertendo suas obras para o novo modelo, inclusive brasileiros, como Monica Rizzolli.

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4. PARA ONDE APONTA O FUTURO DA ARTE NO BRASIL? Afinal, o governo enxugará os meios de incentivo à cultura? Artistas menores terão mais ou menos espaço no mercado que está se desenvolvendo? A arte popular resistirá? Os museus, os teatros, os cinemas, como ficarão após a pandemia e o aprofundamento da revolução digital? Acompanharemos a onda de NFTs? São muitos os questionamentos e anseios que surgem a partir desse tema e acredito que raciocinar as respostas para essas perguntas não é nada simples. Contudo, posso dizer que, em termos institucionais, a política sempre afetará de uma forma ou de outra a viabilidade da produção da arte brasileira. Dito isso, vemos que, a começar pela extinção do Ministério da Cultura — reduzido à Secretaria Especial de Cultura, atrelada ao atual Ministério do Turismo —, o desmantelamento do setor cultural segue com gestos perversos. A própria ANCINE tem se envolvido em polêmicas de cunho político com as últimas censuras veladas às produções Marighella e Medida Provisória . Os secretários da Cultura — "os", pois o governo vigente conta com mudanças contínuas — não nos pouparam de escândalos, de Roberto Alvim reproduzindo um discurso de Joseph Goebbels (ministro da propaganda na Alemanha nazista) em sua fala no Prêmio Nacional das Artes a Regina Duarte simpatizando com a ditadura militar e menosprezando os óbitos pela COVID-19 em entrevista à CNN Brasil. O atual secretário, Mário Frias, não fica para trás, carregando notícias do cunho "A Secretaria Especial de Cultura, comandada por Mário Frias, contratou sem licitação uma empresa que não tem funcionários ou sede física no valor de R$3,6 milhões"[3]. Nesse compasso, o secretário de Incentivo e Fomento à Cultura, André Porciuncula, anunciou a redução do teto para cachês individuais de artistas de R$45.000,00 para R$3.000 na Lei Rouanet[4] no dia 8 de fevereiro de 2022. Ele afirmou, em seu perfil no Twitter, que o valor é excelente para artistas em início de carreira.

A impressão que resta é que, neste país, em que a inflação só sobe, os agentes políticos do governo vigente atuam para que o valor da arte despenque. O resultado de tudo isso, como já dito, afeta as iniciativas menores, artesãos, a cultura regional, festivais independentes, museus, cinemas e teatros. Isto é, o fomento governamental tem o papel primordial de democratização da produção artística e, em um país com o intento de aculturação pelo desgoverno, o fardo é de toda a sociedade, mas em graus desiguais. Assim, rememora-se a importância da produção artística nacional quando percebemos a história marcada nelas, que nos alerta quanto ao perigo que vivemos atualmente.

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A certeza é de que a internet e o mundo digital como um todo são o futuro. O que permanecer em outros formatos, provavelmente, terá de modo complementar ou subsidiário, o virtual, pois, no mínimo, as vendas e a divulgação através dele serão cada vez mais necessárias para a subsistência do artista. Talvez, os cinemas, teatros e museus, após penarem com a interrupção de suas atividades, ganhem um apelo sentimental pelo saudosismo do confinamento, mas, decerto, eles nunca mais serão como antes. Para fotógrafos, artistas plásticos e designers, a digitalização de trabalhos e a conversão em NFTs pode ser um espaço de ganhos monetários sem precedentes. Além disso, eles vêm sendo utilizados para praticamente todos os tipos de arte, seja música, filme, moda ou imagem. Ademais, nos próximos anos, sob um viés de segurança digital, os NTFs podem ser uma grande ferramenta de combate à pirataria, frente aos exemplos de distribuição de filmes nesse formato, como Homem Aranha 3 , feito pela rede de cinemas americana, AMC. Concluo com duas fortes opiniões: o acesso à produção e ao produto da arte no Brasil depende da política e, nesse sentido, está em grave risco; por fim, certamente, a revolução digital continuará a ditar os rumos de como grande parte da arte atual se desenvolve. De todo modo, a quarentena serviu para entender que a arte é vida — ela nos completa e nos acolhe. A expressão artística sempre foi e continua sendo uma forma de denúncia que ilustra as questões sociais e políticas de diferentes épocas. Com isso, espera-se seu reconhecimento e sua valorização de forma a mantê-la viva e progressivamente democrática.

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Branquitude, um lugar de transparência total por Beatriz Nassar e Glendha Visani A revista nº 106 da Gazeta Vargas coloca o Brasil em frente ao espelho. Esmiuçando os acontecimentos históricos e as construções políticas e sociais que nos trouxeram até aqui, pretendemos expor as raízes, troncos e frutos do nosso legado colonial, trazendo reflexões urgentes e atemporais sobre o arranjo nacional. Apesar do esforço, um elemento central dessa narrativa continua silenciado: qual o nosso próprio reflexo no espelho? Fazemos parte de uma entidade composta majoritariamente por pessoas brancas e frequentamos uma faculdade em que se contam nos dedos os estudantes negros admitidos a cada ano. A realidade de espaços predominantemente brancos é naturalizada entre as classes média e alta no Brasil, e o conformismo é a regra mesmo dentre os pretensamente esclarecidos no que diz respeito às tensões raciais. Mas fato é que nós, alunas e alunos da Fundação Getulio Vargas, somos a chamada “elite intelectual” do país, e, como toda elite intelectual que se preze, queremos ser vanguarda, críticos do nosso tempo — nós nos incomodamos! Mas isso basta? Como grupo estudantil, foram poucas as ações que questionaram este lugar da branquitude e se puseram a refletir sobre o seu papel na luta do movimento negro, resultando na ausência de ações de fato antirracistas. A psicóloga e ativista Cida Bento define esse desconforto passivo e conveniente como branquitude crítica. A expressão foi cunhada para definir a conformação nacional frente às tensões raciais, na qual a maior parte das pessoas desaprova publicamente o racismo, embora, no âmbito privado, não necessariamente não seja racista. No país da miscigenação, a retórica da diversidade pode funcionar como uma apologia para que grupos hegemônicos não sejam constrangidos a refletir sobre a reprodução de discriminações. Nesse sentido, a autora da obra O Pacto da Branquitude situa a consciência da branquitude e suas reverberações cotidianas como um ponto de inflexão para distinguir quando e como um discurso contra o racismo pode se transformar verdadeiramente em uma prática antirracista.

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1. REFLEXOS SEM COR Rememorando a longa trajetória nos estudos sobre o modo como o fator racial permeia as relações de trabalho no Brasil, Cida Bento relata dinâmicas realizadas nos processos de formação com o movimento sindical que tinham por objetivo discutir as desigualdades raciais brasileiras. Uma das perguntas feitas aos participantes era “O que significa ser uma pessoa negra ou branca no Brasil?”. Diante da questão, a psicóloga afirma que as pessoas negras reconheciam a diferença no tratamento que recebiam socialmente, enquanto as brancas respondiam que “Ser branca significa ser uma pessoa como outra qualquer! Significa ser humano”. As respostas são resultado de uma consciência coletiva apoiada na centralização histórica do hemisfério ocidental, que operou a naturalização da branquitude, tornando-a uma referência cultural. Nesse contexto, a racialização dos grupos não brancos se dá a partir da sua comparação com esse modelo, que se apresenta como uma régua para medir o encaixe do indivíduo na sociedade — da oposição, surge a ideia de um Outro, inadaqueado e passível de discriminação e exclusão. O branco é o ser humano universal e tudo que difere dele é racializável. Pessoas brancas são condicionadas a enxergar a raça como algo que não constitui sua identidade, mas que reflete a do Outro, distanciado da norma. Nesse sentido, o professor e jurista Adilson José Moreira afirma que, pela incapacidade de alcançar fenotipicamente os padrões que permitem a humanização do ser, o negro só pode ocupar um “não lugar”, enquanto o ser branco é um lugar de transparência total.

A desigualdade se traduz em números: entre 2019 e 2020, apenas 7% dos alunos da graduação em Direito da FGV se autodeclaravam negros (sendo 6% pardos e 1% pretos), enquanto 85% eram brancos. Nas outras escolas da Fundação, o cenário não é muito diferente, em Administração Pública, o curso mais diverso entre os analisados, 18% do corpo discente era negro (7% pardo e 11% preto) e 75% branco. Os dados socioeconômicos e raciais de cerca de 626 alunos foram coletados em uma pesquisa conduzida pelo então aluno de Administração Pública, Nícola Fini, com o objetivo de responder à pergunta: “Qual é a relação entre fatores externos ao ambiente e convívio escolar e o desempenho dos estudantes?”.

2. PACTO NARCÍSICO, O MITO DA MERITROCRACIA “É evidente que os brancos não promovem reuniões secretas às cinco da manhã para definir como vão manter seus privilégios e excluir os negros. Mas é como se assim fosse: as formas de exclusão e de manutenção de privilégios nos mais diferentes tipos de instituições são similares e sistematicamente negadas ou silenciadas”.

Cida Bento conceitua o pacto narcísico como o contrato subjetivo não verbalizado por meio do qual as pessoas brancas se identificam e se constituem herdeiros dos benefícios inerentes à branquitude. Historicamente, as disparidades no acesso a educação, trabalho, moradia e outros direitos básicos entre negros e brancos no Brasil têm origem no período escravocrata e no fato de que, enquanto os primeiros eram oprimidos e violentados, os últimos lucravam com a exploração daqueles corpos.

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Podemos observar que a comunidade negra, ao se organizar, resgata a sua herança cultural e passa a questionar o passado colonial e o racismo sistêmico. Enquanto isso, as pessoas brancas, que levam a vida ignorantes de que têm uma cor, ignoram também a sua ascendência assassina e se beneficiam da ausência de um discurso explícito sobre o papel dos brancos na história do país, silenciando sobre a herança escravocrata, concreta ou simbólica. Para Bento, “os pactos narcísicos exigem a cumplicidade silenciosa do conjunto dos membros do grupo racial dominante e que sejam apagados e esquecidos os atos anti-humanitários que seus antepassados praticaram”. Isto é, os brancos continuam tirando proveitos dos quase 400 anos de escravização do povo negro e, para não reconhecerem que o lugar social ocupado está vinculado às atrocidades cometidas por seus ancestrais, criam mitos como a meritocracia ou a vigência de uma democracia racial no país, em uma tentativa de isentar a sociedade contemporânea da responsabilidade pela discriminação racial e apaziguar a culpa branca. Parte do acordo tácito constituído no pacto narcísico está ancorado na transmissão dos privilégios de uma geração à outra e na manutenção do status quo . A elite se beneficia das enormes desigualdades em investimentos educacionais e se esforça para oferecer as mesmas oportunidades educacionais aos filhos, o que lhes garante melhores oportunidades de trabalho e de salário. Dessa forma, em contrapartida aos benefícios acumulados, os herdeiros brancos se comprometem a reconstruir a história positivamente e aumentar o legado, transmitindo os privilégios raciais às gerações seguintes e apelidando-os de “mérito”. Em 2016, a FGV foi processada por André Luiz, um professor negro que teve negada a utilização de políticas afirmativas de cotas raciais em um concurso público para a rede municipal de São Paulo. A fundação, responsável pelo edital, aplicação e correção da prova, alega que o candidato nunca enviou o documento. O ponto controvertido está na prova apresentada no processo: André comprovou o envio de um envelope no qual haveria a declaração requerida, mas a FGV afirma que o conteúdo era diverso do especificado no edital. Para Luiz Augusto Campos, professor de Sociologia do IESP-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), não é incomum que a burocracia se torne uma barreira para a efetividade das ações afirmativas: “Não podemos fazer as normas burocráticas auxiliares virarem mecanismos de exclusão”. O caso é mais um exemplo de como o racismo se reinventa por meio do desenvolvimento de mecanismos sofisticados de discriminação, tornando cada vez mais sutis as condutas segregacionistas que conformam o racismo estrutural. Nesse contexto, a branquitude subsiste sobre um pacto de cumplicidade firmado no seio do grupo hegemônico que opera a manutenção de privilégios. No limite, a condescendência diante do racismo institucionalizado cria um ambiente permissivo à violência explícita: “Achei esse escravo no fumódromo! Quem for o dono avisa!”. A mensagem foi enviada por Gustavo Metropolo, ex-aluno da FGV - EAESP, em um grupo no WhatsApp em 2017. O ato racista foi acompanhado da foto de João Gilberto, homem negro, também ex-aluno da Fundação. O caso veio à tona em março de 2018, quando a coordenadoria de Administração Pública tomou conhecimento do ocorrido e afastou o agressor por três meses. Em março de 2021, Gustavo Metropolo foi condenado na esfera criminal pelos crimes de racismo e injúria racial e, em fevereiro de 2022, foi condenado também na esfera cível ao pagamento de indenização no valor de R$44 mil reais.

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3. QUAL O NOSSO REFLEXO NO ESPELHO? Chegamos ao final da Revista Brasil com inúmeras reflexões sobre o que significa ser brasileiro, e a mais urgente é escancarar o racismo estrutural inscrito na consciência nacional. A lógica racista está enraizada no imaginário dos indivíduos e instituições, e superar a branquitude implica reconhecer, ao mesmo tempo, o outro e o que somos, aprender nossos lugares recíprocos e situar os nossos papéis. Cida Bento enuncia o caminho: na esfera individual, os brancos têm que aprender a conviver com o significado de sua branquitude, desaprender ideologias e histórias que segregam grupos raciais com base em falaciosas virtudes e valores morais. Para a psicóloga, a destruição do pacto narcísico passa ainda por ações coletivas estruturais envolvendo a responsabilidade social das instituições que precisam se posicionar diante de sua herança concreta e simbólica na história do país. A Gazeta Vargas, que pretende ser precursora de ideias democráticas dentro do ambiente universitário, tem a missão de disseminar o debate, e, nesse caminho, reconhecemos que pensar, falar e agir a partir da nossa transparência não nos cabe mais. Enquanto mulheres brancas, escrevemos a partir do nosso lugar de fala nas tensões raciais que prevalecem no país. É preciso questionar o papel da branquitude na manutenção da discriminação, bem como a nossa responsabilidade dentro da luta antiracista. É fundamental dar palco, luzes e microfone ao discurso e pautas do movimento negro, é preciso que a sua luta seja ouvida. A nossa geração é a responsável por fazer cessar o silenciamento, por enxergar no espelho as nossas cores e nomeá-las. Quando enfim abdicarmos da falácia da meritocracia e nos comprometermos em ressignificar a nossa branquitude, rompendo o silencioso pacto da exclusão, abriremos os olhos para um futuro antirracista.

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NÃO CAIA EM FAKE NEWS! As fontes, referências e bibliografia usadas na revista estão disponíveis em nosso site e podem ser acessadas por aqui:

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Agradecimentos: Ariana Ribeiro Costa André Elyseu Rhinow Bernardo Guimarães Carolina Harada Cristina Moraes Vazquez Fernando Burgos Pimentel Dos Santos Glaucia Elias de Souza Isabella Whitaker Cillo João Pedro Costa Fernandes Ligia Maura Costa Luiz Carlos e Aurora Pimentel Manoel Fernandes Macedo Junior Marcela Casaca Marcos Vinicius Azambuja Maggio Melissa Satie Plinio Bernardi Junior Raissa Raninne Ferreira Rosiris Aparecida Degan Bernardi Roberto Baptista da Silva

*A revista nº 106 foi possível somente com a ajuda de nossos colaboradores, que contribuíram para a sua impressão. Os textos da revista Brasil refletem a opinião de seus redatores, e não vinculam ideologicamente qualquer de nossos patrocinadores, que acreditam no jornalismo estudantil.*

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Quem é Brasil?

GAZETA VARGAS


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