Rivane Neuenschwander enfrenta a paralisia do medo na sociedade contemporânea

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Em dias assombrosos como os atuais, Rivane Neuenschwander coloca o dedo na ferida ao lidar, de forma arguta e persistente, com alguns dos fantasmas que assolam a nossa época. São três os eixos centrais que conduzem sua exposição Trópicos Malditos, Gozosos e Devotos, que ficou em cartaz até 24 de outubro na galeria nova-iorquina Tanya Bonakdar: o medo, a violência sexual e a guerra. Em quatro séries de trabalhos aparentemente independentes, a artista resgata temas que fazem parte de seu repertório pessoal há algum tempo, promovendo uma conexão ora sutil, ora explícita entre os aspectos íntimos, construtivos e poéticos dos trabalhos com a crise social e política da atualidade. “O medo é uma construção também social. Ele é importante para mim porque


a gente vê essa conexão da coisa cíclica, histórica, voltando”, afirma ela ao comentar a presença frequente de elementos ligados à sensação de impotência, angústia e temor em sua produção. O medo é um afeto associado à infância. E é na investigação dos temores infantis que tem início a pesquisa que Rivane vem desenvolvendo há pelo menos quatro anos. Em uma série de workshops, realizados em instituições como o Parque Lage (Rio) e a White Chapel (Londres), a artista pediu que as crianças revelassem seus medos e ao mesmo tempo exorcizassem essas vulnerabilidades idealizando capas de proteção, como forma de abrigar ou afugentar seus receios. Realizou um processo semelhante, de depuração de imagens assustadoras, com seus filhos pequenos por meio de jogos de nomeação e descrição de fantasmas que supostamente rondavam a casa e as mentes, até que o sentimento vago de assombração se transformou em um terreno seguro e livre de ameaça. Esse processo de troca e investigação acabou fornecendo-lhe um amplo repertório de imagens e referências que vêm assumindo diferentes corpos e formas, ecoando aqui e ali em sua poética. “Às vezes ficam latências de um trabalho para o outro, algo que te incomoda e que você só vai resolver anos depois. Talvez através de outra obra”, explica.

Dois dos trabalhos em exposição em Nova York dialogam diretamente com esse processo de coleção e reelaboração: a série À Espreita, um conjunto de desenhos feitos a partir de material coletado com as crianças e retrabalhados como se fossem teatros de sombras, e Fear of, uma assemblage na qual se nomeiam e entrelaçam medos potentes e paralisantes da sociedade contemporânea. “A gente que viveu, foi criança durante a


ditadura militar, e hoje tem filhos, vê o ciclo, o retorno do recalcado, percebe uma unidade e também que o fascismo não está do lado de fora. Ele está do lado de dentro”, afirma ela, reivindicando sempre essa ênfase no medo como fenômeno social, de necessidade de conectar qualquer mergulho pessoal com aspectos mais totalizantes. Os casos particulares também são iluminadores de como esse afeto fundamental é manipulado dentro do campo social, de como ele é usado calculadamente para a manutenção das forças autoritárias dentro da sociedade.

Partindo de referências como Vladimir Safatle e de uma apropriação permanente de referências do campo da psicanálise – “tem alguns conceitos psicanalíticos que eu pego emprestado sem maiores compromissos conceituais, acadêmicos; um vocábulo rico que me permite fazer essas derivas, essas brincadeiras” –, Rivane alerta para a necessidade de nomear, corporificar e enfrentar os medos, em suas dimensões íntimas ou coletivas. “A gente acorda todo dia, inclusive lutando contra esse medo. Então, temos que lutar contra essa melancolia, mas é difícil porque a destruição é muito grande. A gente fica muito tocado, porque a coisa é suicidária. A destruição é em todos os sentidos. Ela é física, ela é simbólica, acontece para todo lado. As atrocidades imorais que eles cometem em nome de uma falsa moralidade é algo estarrecedor”, acrescenta. E ela também tem suas raízes na história. A série Trópicos Malditos, Gozosos e Devotos, referência à obra com título similar de Hilda Hilst e que nomeia toda a exposição de Rivane, propõe um interessante amálgama de referências, sexuais, simbólicas e históricas, que remetem tanto à nossa situação periférica como à relação predatória e violenta da nossa colonização. Inspiradas nas Shungas, gravuras eróticas japonesas do


período Edo (1603-1867) e também tributárias da simplificação gráfica da literatura de cordel, essas pinturas e tapeçarias são representações de intensos embates que remetem, segundo à artista, ao estupro como ato inaugural da sociedade brasileira.

Esses trabalhos, sobretudo as tapeçarias, reforçam também a importância das referências e do trabalho coletivo na trajetória de Rivane. Decidida a transpor essas imagens – situadas em uma tênue fronteira entre erotismo e agressão, desejo e violência – para outra linguagem que não apenas a pintura, a artista optou por incorporar o trabalho de outros artesãos na feitura da obra. Convidou três artistas que dominam a técnica desenvolvida por um tapeceiro uruguaio, Ernesto Aroztegui, para que participassem do projeto: Elke Hülse, Magalí Sánchez Vera e Jorge Soto. Num processo lento e cuidadoso eles transferiram por meio do tear as imagens cuidadosamente planejadas por Rivane, com um desafio pela frente: propor uma leitura pessoal para os campos em vermelho, que corporificam o sangue e testemunham de forma mais explícita a violência contida nas imagens. O caráter catártico das cenas representadas entra de certa maneira em choque com o rigor técnico da trama da tapeçaria e agrega um novo elemento ao trabalho, remetendo de forma bastante direta à tradição de narrativas ligadas ao ato de tecer como forma de iludir o tempo e postergar a consumação de um ato de violência e posse sexual, protagonizadas por figuras míticas como Penélope e Sherazade.


Se há algo em comum em todos os trabalhos reunidos em Trópicos é a importância hegemônica do papel da representação como forma de figurar uma vulnerabilidade, fazendo, assim, com que ela se torne menos ameaçadora, mesmo tendo consciência de que o medo, na vida e na teoria freudiana, é extremamente mutante. Os soldados do filme Les Carabiniers (Tempo de Guerra), de Jean-Luc Godard, que servem de fio condutor para a instalação A Ordem e o Método, por exemplo, lançam mão das imagens coletadas por meio de cartões postais para enfrentar seu medo da guerra e da morte. Parece tornarse evidente que, figurar ou nomear aquilo que nos amedronta, nos permitiria torná-lo menos paralisante. Em exposição recente, no espaço paulistano auroras, Rivane segue o mesmo empenho, tenta dar corpo à fantasia e, através desse processo complexo, repleto de desvios e enganos, mostrar o efeito potente e muitas vezes tranquilizador de enfrentar nossos temores. No caso específico deste trabalho, que infelizmente foi pouco visto em função da pandemia (a exposição de Nova York também exige que o espectador interessado faça um agendamento prévio para poder visitar a mostra), as obras nasceram de um workshop realizado paralelamente à exposição Histórias da Infância, no Masp (2016). A artista pediu então que as crianças participantes situassem fisicamente, num determinado espaço arquitetônico, seus fantasmas. E a partir desses desenhos criou uma série de mapas, recobertos de tinta branca, a ser raspada numa espécie de caça ao tesouro (ou ao medo), figurando assim um conjunto amplo de caminhos possíveis.


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