Giulia marchese artigo direitos humanos e populacao em situacao de rua

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PREFEITURA DE BELO HORIZONTE

VOLUNTARIADO INTERNACIONAL Artigo: “Direitos Humanos e População em Situação de Rua no Brasil Sob um Olhar Externo: Desafio na Formulação de Políticas Públicas”

Voluntária: Giulia Marchese (Itália) Área de Trabalho: Secretaria Municipal Adjunta de Direitos de Cidadania

Belo Horizonte - Dezembro 2012


A diversidade que caracteriza os países da América Latina em relação aos países chamados do "velho mundo" é definitivamente clara e bem difundida no imaginário comum. Em nível mais superficial, é o impacto visual que fornece as primeiras diferenças, na realidade cotidiana, nas ruas. Como cidadã italiana, na minha chegada ao Brasil fiquei extremamente impressionada com as situação das ruas nas grandes cidades que visitei, no número de pessoas, de cidadãos, que estão em situação de rua e das condições de vida deles. Através do Programa de Voluntariado Internacional da Prefeitura de Belo Horizonte, tive a oportunidade de ter acesso direto e trabalhar em conjunto com uma Secretaria do Município, entrando em contato com as políticas públicas por ela acompanhadas. Quando me foi apresentada a Secretaria Municipal Adjunta de Direitos da Cidadania e fui informada sobre o envolvimento dela nas políticas para população em situação de rua, vitima das mais variadas violações de direitos, não tive dúvidas e aceitei o desafio. Nesse artigo quero discutir os temas que acompanharam o meu trabalho voluntário, meu envolvimento com estes e a pesquisa que resultou no relato das minhas experiências, meus estudos e meus pensamentos. A POLÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE O CASO DE BELO HORIZONTE A Constituição Brasileira de 1988 é o documento que insere finalmente o Brasil dentro da discussão global sobre os direitos humanos. O País demonstra, formalmente, sua adquirida maturidade e sua vontade de entrar no debate das nações desenvolvidas. A Constituição estabeleceu definitivamente direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, além de um conjunto preciso de garantias constitucionais. Esse fato significou enorme avanço conceitual e jurídico para a promoção dos direitos humanos: o documento reconstrói a condição de Cidadão do brasileiro, expressão política da Dignidade da Pessoa Humana. Conectado ao conceito de Cidadania é a clara intenção de universalização dos direitos presente no texto constitucional. Se estipula, entre os cidadãos e o poder público, um compromisso social que é o compromisso da completa inclusão social, ideia fundamental e base das democracias sociais modernas. Os Direitos Humanos tornaram-se um empenho do Governo Federal e passaram a ser conduzidos como política pública. A nível nacional, a Secretaria de Direitos Humanos é o órgão da Presidência da República que trata da articulação e implementação de políticas públicas voltadas para a promoção e proteção dos direitos humanos.


Para o nível municipal, vou considerar em específico a cidade de Belo Horizonte, onde morei e estudei. Na cidade, está presente um debate florido com uma discreta quantidade de associações da sociedade civil cuidando do tema e o abordando sob diferentes pontos de vista, com a elasticidade que seria o ponte forte de organizações não-governamentais. Entre os escritórios da Prefeitura Municipal, porém, o debate está a cargo da Secretaria Municipal adjunta de Direitos da Cidadania, articuladas em várias Coordenadorias. Entre essas, há a Coordenadoria de Direitos Humanos, onde fui voluntária. Tarefas principais da Coordenadoria são levar a discussão sobre os Direitos Humanos e fazer uma atividade de formação sobre o mesmo tema. Pra dar alguns exemplos, durante o meu período de trabalho, a Coordenadoria foi envolvida no projeto de “Central de Conciliação” do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e no Grupo de Trabalho para formação de agentes públicos em direitos humanos e cidadania. O último é um dos oito grupos de trabalho em que se articula o Comitê de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a população em situação de rua, em que eu participei e em relação ao qual vou falar mais detalhadamente ao longo da minha discussão. Na minha opinião, a política dos Direitos Humanos da Prefeitura está em uma fase de ajuste, em busca do seu lugar específico de atuação nas políticas municipais. E talvez o problema e as dificuldades deveriam ser abordados sob esse ponto de vista: esse tipo de política tem que ter um lugar específico? Tem que ser “focada” (contrário do conceito de universalização) em determinados projetos e áreas de implementação? A minha resposta é negativa. Os Direitos Humanos tem que ser abrangentes, de implementação absolutamente intersetorial. A atuação de um escritório deveria ser entre todas as políticas públicas discutidas por uma Prefeitura, não somente em relação a projetos próprios internos. A sensibilização da cidadania tem que ser uma prática constante - a discussão entre poder público e sociedade civil é a principal forma de trabalho, mas, na atividade cotidiana de um Município, isso necessita ser discutido na raiz, na hora da formulação e no foco dos trabalhos, e não a posteriori. A posição esperada para uma Coordenadoria dos Direitos Humanos é a de acompanhamento e apoio à todas as políticas públicas, nos vários níveis de governo. Em suma, mesmo sendo formalmente evidente o empenho do poder público ,seja a nível federal, seja a nível estadual e municipal, a realidade é que existe um número muito alto de pessoas que continuam a encontrar grandes dificuldades no acesso ao exercício de sua cidadania e de seus direitos fundamentais. Um grupo entre eles é o heterogêneo e variado conjunto da população em situação de rua. O FENÔMENO DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA


A População em Situação de Rua, segundo a definição dada pelo Governo Federal, é “um segmento populacional que se caracteriza pela extrema heterogeneidade, mas tendo também atributos em comum, como a baixa renda ou pobreza extrema, vínculos familiares e/ou comunitários interrompidos ou fragilizados, inexistência de moradia convencional regular”. Outra característica que pode ser adicionada é a clara concentração nas grandes cidades e nas metrópoles. A grande cidade permite mais liberdade e anonimato, mesmo ficando entre a rede dos serviços e tendo acesso aos mais variados programas oferecidos pelo poder público, organizações da sociedade civil e da igreja. Deste modo, há o preconceito, “como marca do grau de dignidade e valor moral atribuído pela sociedade a esse fenômeno”, destaca Maria Lucia Lopes da Silva, no livro “Trabalho e População em Situação de Rua”. A socióloga, em particular, explica a assim chamada “questão social” sob um ponto de vista marxista: a relação entre capital e trabalho, típica do moderno sistema de produção capitalista, leva à criação de um exército de reserva, um grupo populacional que fica fora do sistema, fora da sociedade, fora dos direitos, não podendo ser englobado. Seja de um ponto de vista da crítica marxista, seja do ponto de vista liberal (teoria do desemprego estrutural), um segmento de população é sempre contemplado como em situação de marginalização social. Tendo falado sobre os Direitos Humanos, indicados na Declaração da ONU de 1948, ficam relevantes quatro artigos em particular em relação às violações contra os moradores de rua: o artigo I evidencia que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos; o artigo XIII lembra que todas as pessoas têm direito à liberdade de locomoção e residência; o artigo XXI sublinha que todas as pessoas tem igual direito de acesso ao serviço PÚBLICO do seu país; o artigo XXIII ressalta que todas as pessoas têm direitos sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade. O Brasil (como muitos outros países) assinou esse cartão. O que não está funcionando? POLÍTICAS PÚBLICAS ENTRE GANHOS E DESAFIOS O principal decreto direcionado à população em situação de rua é o decreto número 7053 de 23 de Dezembro de 2009, que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê de Acompanhamento e Monitoramento. Também é instituído o Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Materiais Recicláveis (CNDDH). O ano seguinte, Belo Horizonte se adapta as diretivas federais: com o decreto número 14.146 de 07 de


Outubro de 2010, o Prefeito institui o Comitê de Monitoramento e Acompanhamento da Política Municipal para a População em Situação de Rua. Pouco tempo depois, é criado na cidade também o CNDDH. Em ambos os níveis, o maior avanço foi a concepção de intersetorialidade que caracteriza a composição dos comitês: os membros do poder públicos e os membros da sociedade civil tem igual número de representantes e, sobretudo entre as secretarias envolvidas, no comitê municipal, se destaca a presença da Secretaria Municipal de Governo, Secretaria Municipal de Políticas Sociais, Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social, Secretaria Municipal Adjunta de Direitos de Cidadania, Secretaria Municipal Ajunta de Abastecimento, Secretaria Municipal de Educação, Secretaria Municipal de Saúde, Secretarias de Administração Regional Municipal, Secretaria Municipal de Segurança Urbana e Patrimonial, Secretaria Municipal Adjunta de Regulação Urbana e da Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte. Entre as organizações da sociedade civil, em vez, se destaca o protagonismo e a fecunda atividade do Movimento Nacional da População em Situação de Rua. A “questão social” e a marginalização dos moradores de rua não ficam mais somente como problema da Assistência Social, mas como problema de Cidadania, de garantia de Direitos Universais Fundamentais que pertencem todas as esferas do poder público. O Comitê, ainda, fica como espaço de discussão aberta entre os participantes, como espaço interlocutório permanente, dividido na bem sucedida divisão em grupos de trabalho, com a teórica coordenação da Secretaria de Governo. Uso o termo teórica porque eu acho que uma questão que o Órgão tem que superar é a consolidação de uma coordenação por parte de um ator neutro, que não seja diretamente envolvido com nenhuma das políticas publicas municipais, mas que atue, justamente, de maneira neutra, que atribua o devido envolvimento que a centralidade da questão exige. Como, em caso contrario, assegurar uma adequada articulação e implementação das propostas e leis ao vários níveis de governo? Como organizar a “concorrência” entre diferentes organizações institucionais e não, no respeito a todas elas, articular ao mesmo tempo os diferentes (e relativamente numerosos) serviços públicos oferecidos? Creio que o problema principal não seja criar novas propostas, novas estruturas, pensar novas abordagens. Nesse momento fica necessário repensar aquilo que já existe, compreender, entender e descobrir todas as potencialidades intrínsecas nesse grande projeto, executando-o como foi pensado. Entre tudo isso, enfim, é necessário retomar a já citada questão social: é plausível agir na perspectiva e com a ambição de tirar todo o povo das ruas? Essa é a urgente solução que é preciso perseguir?


Não tenho dúvida que, no longo prazo, essa utópica realidade sem marginação social tem que ser um objetivo último. O mais importante é, definitivamente, acabar com o preconceito social e as consequentes violações de Direitos. Ao curto prazo, não há como tirar todas as pessoas das ruas, e com isso os forjar com um reconhecimento social, daquela DIGNIDADE que parece ser atribuível somente pela via de um trabalho fixo e lucrativo, de uma casa grande e de uma família linda. É necessário HUMANIZAR as ruas. A Dignidade da Pessoa Humana não é só o fundamento da República Brasileira, mas é um preceito ético-moral que vai além do valor da legalidade. O valor da Dignidade e do Respeito para o Outro fundam o ser humano: é nessa concepção que uso o verbo “humanizar”, superar preconceitos estabelecidos por modernas sociedades que de “civilizadas” tem bem pouco, e se tornar humanos, entre ios seres humanos. PERSPECTIVAS PARA O FUTURO A proteção social no Brasil, como discutida por Nilson do Rosário Costa, oscila entre focalização e universalização: a Constituição sustenta políticas sociais abrangentes e universais; as necessidades do mercado, do equilíbrio macroeconômico e então do ajuste fiscal limitam as políticas sociais à focalização sobre faixas populacionais e questões específicas. Não tenho dúvida que a estratégia da focalização extrema, com a introdução da Rede de Proteção Social com o cadastro, que deu importantes resultados na luta contra a pobreza, com a ativação de importantes programas de transferência de renda. O que eu queria sustentar é que o assistencialismo como ideia compensatória nunca gerou e nunca irá gerar alguma mobilidade ou mudanças na estrutura social. Se os objetivos são ambiciosos, se o destino pretendido é a mudança radical na direção da justiça social e da universal garantia de todos os direitos fundamentais, é necessária a criação da possibilidade para que o indivíduo desenvolva suas capacidades e possa colocá-las ao serviço do seu bem-estar e da sociedade como um todo. Assegurar os direitos não pode ser mais visto como um favor ou uma ação de solidariedade de poucos voluntários: essa tarefa é um papel do Estado e fica necessária a exigência dessas garantias ao poder público. Esse, ainda, tem que atuar conectado, em situação de interdependência com a sociedade civil - só assim os cidadãos podem ser conscientes da própria situação e começar praticar a reivindicação da cidadania ativa na direção da qual tudo mundo parece teoricamente convergir, mas praticamente se afastar.

*Fonte: “Em Situação de Rua” de Pepe Publio


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