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PrefáCio
Valdismo — uma tradição que merece ser melhor conhecida
Oconvite para prefaciar esta obra me fez lembrar as situações em que os valdenses cruzaram o meu caminho. Por volta de 2012, deparei-me com a afirmação de Émile Léonard de que as igrejas valdenses são “as mais antigas igrejas evangélicas da Europa, logo, do mundo”.1 Cerca de cinco anos depois, encontrei um antigo hinário valdense entre os alfarrábios da Primera Iglesia Presbiteriana de Santiago de Chile. Nessa mesma época, no âmbito do simpósio “As outras faces da Reforma Protestante”, o pessoal do Núcleo de Estudos do Protestantismo (NEP), da Universidade Presbiteriana Mackenzie, me encomendou uma palestra sobre os discípulos de Pedro Valdo. Mais recentemente, mantive contato com Darío Barolin e Javier Pioli, valdenses uruguaios, o que culminou no capítulo de Pioli que integra o volume que organizei com Rosana Ricárdez sobre o movimento reformado na América Latina.2 Não acredito que tais circunstâncias ocorreram por acaso. Na realidade, regozijo-me de que a providência divina tenha me levado a refletir sobre esses protestantes de origem medieval e, agora, pela aparição do livro do doutor Magno Paganelli.
Os valdenses são relativamente conhecidos no meio protestante. Qualquer livro de história da igreja cristã que se preze dedica-lhes algumas linhas no contexto da chamada “pré-Reforma”, sendo comum encontrá-los junto a John Wycliffe e Jan Huss. O problema é que dificilmente voltam a ser mencionados depois da Reforma. Inclusive, pode-se ficar com a impressão de que deixaram de existir. Dá-se, então, o fenômeno que também acomete o protestantismo posterior aos séculos 16 e 17: raramente conhecemos a sua história. Esse fato sugere que basta sabermos as origens de uma tradição para nos sentirmos suficientemente informados a seu respeito. Assim, os valdenses são relegados ao passado remoto, o que nos impossibilita de conhecer seu passado recente e vinculá-lo ao nosso tempo. Não sem razão, alguém já sugeriu que o protestantismo é uma história mal contada.3
1 Veja “Le protestantisme italien”, em Revue de l’Evangélisation (1952), p. 50. Disponível em português: O protestantismo italiano. In: Combates pela história religiosa: reforma e protestantismo na visão de Émile Léonard. São Paulo: Editora Mackenzie, 2019, p. 35-57.
2 PIOLI, J. Javier. “Iglesia valdense en el Río de la Plata: de la nostálgica diáspora al sendero propio”, em Rostros del calvinismo en América Latina: presbiterianos, reformados, congregacionales y valdenses (Santiago de Chile: Primera Ediciones y Mediador Ediciones, 2021), p. 113-130.
O presente livro reúne cinco capítulos. No primeiro, destaca-se o contexto em que emergem Pedro Valdo e seus seguidores, período em que surgem algumas influentes ordens religiosas — dominicanos e franciscanos, por exemplo — e os movimentos de pré-Reforma. A importância dessa seção reside no fato de situar os valdenses como uma das manifestações reformistas do cristianismo medieval.
A época das Cruzadas e a saga dos cruzados são abordadas no capítulo seguinte, tornando evidente como o espírito das guerras religiosas marcou a atitude da hierarquia romana em relação aos “pobres de Lyon”. Segundo alguns autores, as perseguições levaram alguns valdenses a refugiar-se nas montanhas do que hoje é a fronteira França-Itália, juntando-se às populações pré-reformistas dos vales alpinos.
Os capítulos três e quatro tratam do fundador do movimento e de como este se organizou à margem da igreja institucionalizada. Por último, vemos como as perseguições se confundiram com a própria história do valdismo e forjaram muito de sua identidade.
Não me resta dúvida de que esta obra terá o seu lugar na estante de todos os que se interessam pelas minorias religiosas. Pelo menos quatro motivos me fazem pensar assim:
1. Carecemos de textos sobre grupos que, por razões diversas, não se instalaram no Brasil. Esse é o caso dos valdenses, que se encontram estabelecidos nos dois lados do Río de la Plata (Uruguai e Argentina) desde a segunda metade do século 19.4 Nessa mesma categoria, podemos citar, entre outros, a Igreja Reformada da Holanda do Suriname, a Igreja dos Irmãos Morávios em certos lugares da América Central e a Alianza Cristiana y Misionera no Chile.
2. Os valdenses, antes mesmo da aparição de João Calvino como reformador, se vincularam à Reforma Suíça e fazem parte da tradição reformada. É necessário recordar que possuem laços históricos com os reformados suíços e franceses, que praticam o sistema de governo representativo-federativo (próprio das igrejas reformadas e presbiterianas) e que estão entre os membros fundadores da Aliança de Igrejas Presbiterianas e Reformadas da América Latina (AIPRAL).5
3. A trajetória dos discípulos de Valdo pode nos ensinar muito sobre os caminhos e descaminhos do movimento protestante. A perseverança diante das perseguições, a sobrevivência como minoria étnica6 e religiosa em um contexto absolutamente hostil (Itália), o apreço pela história dos seus antepassados — bem preservada7 —, sua índole ecumênica e estética litúrgica podem servir-nos de inspiração; por outro lado, o alinhamento com as pautas do “politicamente correto” é um alerta para todos nós. O que leva a mais antiga vertente protestante a dobrar-se diante dos apelos da pós-modernidade? A resposta a essa pergunta pode ser útil aos demais grupos evangélicos.
4 A Igreja Valdense não se estabeleceu no Brasil como tal. No entanto, sabe-se que, em alguns lugares do Rio Grande do Sul, valdenses oriundos do Uruguai ou mesmo da Itália se vincularam à Igreja Metodista Episcopal. Veja: ALVES, Leonardo M. Valdenses no Brasil. Disponível em https://ensaiosenotas.com/2017/02/17/valdenses-no-brasil/ Acesso em: 22 de dezembro de 2021.
5 Organizada em 1966.
6 Durante séculos foram considerados apátridas.
4. Foi entre alguns italianos de origem valdense radicados nos Estados Unidos que Luigi Francescon converteu-se à fé evangélica, no fim do século 19. Anos depois, ele veio a ser um arauto do pentecostalismo e o disseminou na Argentina, no Brasil e na Itália. Em nosso país, sua influência resultou na Congregação Cristã do Brasil. Conhecer mais sobre os valdenses lança luz sobre o papel dos italianos no nascente pentecostalismo brasileiro, italianos que, segundo certo estudioso, são “a face esquecida pela história da imigração”.8 Ademais, conhecê-los melhor pode aguçar nossa curiosidade em relação aos seus tesouros. Já em 1932, Erasmo Braga lamentou o fato de que a maioria dos missionários em atividade no Brasil pouco sabia da literatura religiosa produzida pela elite intelectual protestante na França e na Itália, países de língua latina como o nosso.9
7 Os valdenses fundaram sua casa editora (Claudiana) em 1855 e desde então ela tem abastecido o grupo com literatura teológica e histórica. Vale também mencionar que a Società di Studi Valdesi (antiga Société d’Histoire Vaudoise), fundada em 1881, sempre exerceu um papel importante. No Uruguai, de 1935 a 1963, funcionou a Sociedad Sudamericana de Historia Valdense. A editora e essas sociedades históricas produzem (ou produziram) livros, revistas e boletins que mantêm o passado vivo para as novas gerações.
8 Veja PEREIRA, João Baptista Borges. Italianos no protestantismo brasileiro: a face esquecida da história da imigração. In: Revista USP, n. 63, set.-nov. 2004, p. 86-93.
9 BRAGA, Erasmo; GRUBB, Kenneth G. The Republic of Brazil: A Survey of the Religious Situation [A República do Brasil: Um levantamento da situação religiosa] (London: World Dominion Press, 1932), p. 114-115.
Felicito o autor por essa contribuição à bibliografia protestante e espero que os leitores sejam fortalecidos em sua fé pelo testemunho dos valdenses, os guardiões de uma tradição que merece ser mais conhecida.
Bezerra Carvalho
Símbolo Dos Valdenses
Símbolo dos Valdenses