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2.3 Pós-leitura: Geografias imaginárias e paisagens ficcionais
Vocês perceberam se houve alguma “repetição” entre fatos narrados na parte 2 e/ou alguma relação desses fatos com a vida anterior de Quintana?
(A narrativa adquire um caráter circular e há muitos pontos de conexão que parecem confirmar as ideias de Benjamin no trecho acima. A recriação da livraria na atmosfera onírica, a relação com a mulher de olhos melancólicos, a construção de um novo jardim de borboletas. Estimule os alunos a buscar outros exemplos.)
E se essas viagens de Quintana forem um delírio de quase morte ou mesmo uma vida após a morte? Quem aqui acredita na vida após a morte?
Essa questão dará margem a depoimentos ligados às crenças religiosas dos estudantes. É fundamental respeitar a diversidade de visões quanto à doutrina e a fé de cada um. Polêmico como possa parecer, o assunto faz parte da vida de muitos. Deve prevalecer o desejo de contemplar formas distintas de “explicar” o que pode ser difícil segundo as ciências empíricas. Também se pretende desenvolver a competência de compreender os processos identitários desses leitores, na prática dialogal e na consideração sobre seus contextos sociais, políticos e religiosos — como sugere a BNCC (Linguagens e suas Tecnologias). Mas há outro gancho a ser explorado.
O livro aborda temas e discussões caras ao taoísmo, mencionando o I Ching, O Livro das Mutações, cuja origem data de mais de mil anos antes de Cristo. É das obras mais importantes da filosofia oriental, com aplicações em diferentes áreas da atuação humana — da psicanálise à música.
Proponham uma pesquisa sobre esta e outras doutrinas da cultura oriental, para que seja possível um debate posterior. Nota: também não deve nos escapar a caracterização do racismo na fala de Quintana, tanto no trato pejorativo da palavra “negro”ao se referir ao mês de novembro quanto na recorrência com que a utiliza para mencionar o personagem Tião — releia com os alunos a página 96. A discussão será mais rentável se todos perceberem como a linguagem é mobilizada em discurso de forma muitas vezes imperceptível para quem não é vítima de preconceito.
2.3 Pós-leitura — Geografias imaginárias e paisagens ficcionais
Outro aspecto a ser explorado nessa segunda leitura requer uma atenção especial à descrição das paisagens e tudo o que está relacionado a elas, em especial as árvores e os pássaros. Alguns desses elementos são fáceis de lembrar porque aparecem muitas vezes na trama. Partindo dos mais citados, pergunte:
Quem aqui sabe o que é um acauã? Quem já ouviu o canto do acauã?
SUMÁRIO
(Há vídeos no Youtube que reproduzem o canto desse pássaro, que se assemelha a um falcão e come serpentes.)
O livro cita uma quantidade de espécies vegetais — salgueiros, buritis, estrelítzias, coroas de pau-ferro — e outra quantidade de animais (aves, especialmente) — cacatua, papagaio, arara, jandaia do apuim, maritaca, maracanã e outras. Façam uma pesquisa sobre essas plantas/árvores/frutas e outra sobre esses bichos. A ideia é descrever cada um e procurar identificar as regiões em que podem ser encontrados.
Essa atividade deve ser ponto de partida para uma discussão mais longa com os estudantes. Afinal, os cenários naturais ou artificiais do mundo só se convertem em paisagem quando alguém os descreve, portanto quando alguém os transforma em discurso. O fato de eles existirem, simplesmente, não garante que vão adquirir os sentidos mais peculiares, fornecendo dados para a memória e para os nossos afetos.
O narrador descreve o movimento de uma ave no alto de um ripado e menciona a dúvida de Quintana sobre que pássaro seria. “Antes sabia distinguir [...]. Hoje só com muita dificuldade”, p. 13. As lembranças de quando se perdeu na mata, ainda menino, da tempestade que se abateu sobre ele, enfim, todas as memórias dos lugares guardam relação com a nossa capacidade de dar nome, reconhecer ou inventar formas de caracterizar os ambientes. Ao fazer isso, eles adquirem outra importância pessoal e para as histórias que contamos.
Na literatura não é diferente. É preciso reconhecer o uso desse recurso tanto quanto compreender que papel exerce em cada momento.
Questionem a turma:
Afinal, vocês podem descrever o lugar em que vivem hoje a partir dessas características do ambiente?
E que lembranças têm do aspecto físico dos lugares em que viviam na infância (isso, claro, se não for o mesmo de hoje)?
Já pararam para pensar sobre se a memória de vocês se alterou com o passar dos anos e tornou maior “aquela ladeira onde caíram de bicicleta”? Ou se fez com que a árvore do quintal se tornasse mais bonita e frondosa do que realmente era?
Não é só a memória, mas o fato de vocês contarem. Quantas vezes contaram, descrevendo, as paisagens em que viveram ou visitaram?
SUMÁRIO
Porém, O Vale de Solombra também reúne uma quantidade de relatos sobre geografias improváveis, do imaginário do protagonista que, àquela altura na primeira leitura, não se sabia se morreu, se sonha ou se de fato vive numa dimensão que a princípio parece insólita, mas logo se revelará algo sobrenatural.
Vamos deixar alguns desses elementos para abordar no próximo tópico, aprofundando a questão ao recuperar umas poucas noções sobre o gênero literário conhecido como Realismo Maravilhoso. Por ora, vamos nos concentrar nas experiências de Luís Quintana.
Ele descreve a primeira trilha até a vila sem nome onde vai se hospedar na pensão de Domitila: “Plantações. Várzeas. Lezírias.”. O leitor, sem saber exatamente onde é o lugar, descobre que Funes está a caminho de Curvelo — nome de uma cidade de Minas Gerais. Mas ali encontra um bairro chinês, casas com lanternas vermelhas iluminando as suas portas, mulheres usando quimonos de seda malva, onde se pode encontrar telhadilhos de pontas repuxadas e festas ao som de gramofones.
Questionem:
Esse cenário descrito se assemelha com algo que vocês conhecem no Brasil, nos tempos de hoje?
Será que existe um bairro chinês em alguma cidade de Minas Gerais?
(Pode haver o estranhamento no momento da leitura ou a naturalização de tudo o que está sendo descrito como próprio do mundo da fantasia. Mas não devemos perder a oportunidade de questionar esse aspecto.)
Em outra viagem no Packard, Quintana imagina estar próximo a Monlevade (que pode remeter ao nome da cidade mineira de João Monlevade). Estranha o “intenso tráfego de bicicletas, carroças e riquixás”, p. 98. “Monlevade havia muito ficara para trás. A esta cidade espaçosa e turbulenta os chineses chamavam Tsingtao.”
Portanto, o leitor está na presença de algo realmente insólito. Um carro que numa mesma estrada passa por uma cidade mineira e chega a uma chinesa.
No que pode ser a terceira viagem da parte 2, Quintana está num país muçulmano, repleto de mesquitas e detalhes de arquitetura árabe. A esta altura, já não há qualquer dúvida quanto ao caráter fantasioso dessas geografias. Mas cabe destacar que, apesar de haver, aqui e lá, um nome para os lugares, há mais incertezas do que explicações objetivas
SUMÁRIO
sobre como aquilo é possível. E, no entanto, os leitores podem formular suas próprias ideias sobre os ambientes a partir desses elementos ricos de significação para situar a narrativa nesse mapa ficcional.
Peçam aos alunos que pesquisem em mapas digitais onde ficam esses lugares mencionados.