Eu vi mamãe nascer - PNLD2020

Page 1

Falar tabu.

da morte para crianças sempre foi um desafio e até um

Nesta

MANUAL DO PROFESSOR

história ao mesmo tempo realista e suave, triste e

poética, contada pela voz de uma criança que acaba de perder a mãe, o autor aborda o seu difícil tema com uma sensibilidade carinhosa de pai e a técnica inteligente do escritor humanista, preocupado com o social e o humano.

O livro é não só bonito,

como apropriado e compreensível mesmo para crianças pequenas.

Tatiana Belinky

Luiz Fernando Emediato ilustrações de

Thais Linhares

iSBN (13) 978-85-8484-026-7

Capa_Nascer_pnld_.indd 3-4

25/07/18 16:25


Luiz Fernando Emediato

Livro_Eu_Vi_MamĂŁe_Nascer_pnld.indd 1

27/07/18 15:07


Eu Vi Mamãe Nascer Copyright © 1977, 1987, 2001 by Luiz Fernando Emediato Copyright © 2001 das ilustrações by Thais Linhares 1ª edição – Maio de 1977 – Editora Comunicação, Belo Horizonte 6ª edição – Fevereiro de 1987 – EMW Editores, São Paulo 9ª edição – Janeiro de 2009 – Geração Editorial, São Paulo 10ª edição – Janeiro de 2018 – Jardim dos Livros, São Paulo Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Editor e Publisher Luiz Fernando Emediato Diretora Editorial Fernanda Emediato Capa, ilustrações, diagramação e projeto gráfico Thais Linhares Revisão Cecília Beatriz Alves Teixeira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Emediato, Luiz Fernando, 1951 Eu vi mamãe nascer / Luiz Fernando Emediato ; Ilustrações de Thais Linhares -- 10ª edição -- São Paulo : Jardim dos Livros, 2018 Vários autores. Bibliografia. ISBN-978-85-8484-026-7 1. Literatura infantojuvenil I. Linhares, Thais. II. Título. 14-04059

CDD: 028.5 Índices para catálogo sistemático 1. Literatura infantil 028.5 2. Literatura infantojuvenil 028.5

EMEDIATO EDITORES LTDA Rua João Pereira, 81 - Lapa CEP: 05074-070 - São Paulo - SP Telefone: (+55 11) 3256-4444 Impresso no Brasil Printed in Brazil

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 2

27/07/18 15:07


Contextualização da Obra Uma opinião da famosa crítica literária e escritora Tatiana Belinky, em 1977, resume bem o espírito deste livro: “Falar da morte para crianças sempre foi um desafio e até um tabu. Nesta história ao mesmo tempo realista e suave, triste e poética, contada pela voz de uma criança que acaba de perder a mãe, o autor aborda o seu difícil tema com uma sensibilidade carinhosa de pai e a técnica inteligente do escritor humanista, preocupado com o social e o humano. O livro não é só bonito, como apropriado e compreensível mesmo para crianças pequenas”. Uma criança de oito anos começa sua narrativa com uma frase extremamente forte e dolorida: “Mamãe morreu ontem”. Foi escrito no final dos anos 70. A literatura infantil brasileira ainda engatinhava. Com exceção de Monteiro Lobato, no passado, e Ruth Rocha, naqueles tempos e na atualidade, entre outros poucos – os livros tratavam mais de temas leves, de fantasia. É nesse contexto que o autor, aos 26 anos de idade, decide entrar no delicado tema da morte. Emediato tornou-se depois escritor conhecido e jornalista de prestígio, seu livro O outro lado do paraíso foi adaptado para o cinema pelo diretor André Ristum. Elogiado por especialistas como Tatiana Belinky e Fanny Abramovich, e por escritores como Carlos Drummond de Andrade, o livro conta como uma mãe com doença incurável e um pai compreensivo prepararam o filho para o desenlace, a morte da mãe. Cheio de poesia e sentimentos, de uma dor aguda amenizada aqui e ali por cenas de grande alegria e lirismo, o livro que aborda o tema de autoconhecimento, sentimentos e emoções, centra-se em apenas três personagens, a mãe que vai morrer, o pai que sofre e a criança que pouco a pouco toma consciência – delicadamente – do que está por vir. A mensagem principal – a beleza da vida, apesar da morte – é passada sem apelos piegas e até mesmo religiosos, ainda que transpareça uma difusa espiritualidade, sem base em qualquer religião, mas nos mistérios da existência. Embora bastante triste, como não poderia deixar de ser, o livro conseguiu, segundo os críticos, manter a dose certa de dor e tranquilidade, tanto que ao longo dos últimos 40 anos foi adotado em várias escolas.

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 3

27/07/18 15:07


Livro_Eu_Vi_MamĂŁe_Nascer_pnld.indd 4

27/07/18 15:07


Todas as coisas têm seu tempo, e todas elas passam debaixo do céu, segundo o termo que a cada uma foi prescrito. Eclesiastes, 3:1 Há o tempo de nascer e o de morrer. Entre os dois são o Homem e seu tempo: o largo espaço-tempo, claro campo que vai desde o viver ao não viver. Há o tempo de cantar e o de sofrer e o de cantar sofrendo, e o de, cantando, sofrer; e há o tempo desse canto, que o tempo dado ao homem é mercê. Há o tempo de fazer e o de destruir, o tempo de sorrir e o de chorar, de se manchar e de se desmanchar; há o tempo de abraçar e o de partir e o de nascer no tempo de abraçar, e o de morrer, no tempo de partir. Renata Pallottini E eu reconheci que não havia coisa melhor do que alegrar-se o homem, e fazer bem enquanto lhe dura a vida. Eclesiastes, 3:22

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 5

27/07/18 15:07


Livro_Eu_Vi_MamĂŁe_Nascer_pnld.indd 6

27/07/18 15:07


Mamãe morreu ontem. Eu vinha da escola e encontrei toda aquela gente em casa, chorando. Entrei e meu pai estava vermelho, acho que soluçava. Eu não sabia o que estava acontecendo, nunca tinha visto tanta gente junta. Eu cheguei com minha pasta, aquelas coisas que a gente leva para a escola, merendeira, guardanapo, uma maçã que esqueci de comer, será que eu estava adivinhando? Mamãe morreu ontem, ninguém me diz por quê. Mas meu pai me contou como seria, e agora eu procuro entender. Eu gostava de mamãe. Era uma mulher magrinha, meiga, dessas que de noite vão com a gente até o quarto e ficam esperando a gente dormir. Ela gostava de contar para mim umas histórias tão estranhas! Eu fingia que acreditava naquilo tudo, só para agradar. 7

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 7

27/07/18 15:07


8

Livro_Eu_Vi_MamĂŁe_Nascer_pnld.indd 8

27/07/18 15:07


Ela falava por exemplo das fadas que transformaram sapos em príncipes, em dragões gigantes que esses príncipes matavam com espadas para defender princesas, todas essas coisas incríveis que a gente sabe que não existem. Eu fingia que aquilo tudo era verdade, só para agradar mamãe. Porque eu acreditava muito mais no Batman, no Capitão Marvel e no Zorro do que naquelas histórias tão antigas que ela gostava de contar. E eu sei que o Zorro nunca existiu. Também eram histórias muito velhas: ela dizia que a mãe dela, a vovó, tinha contado para ela todas essas histórias, e que também a vovó tinha ouvido essas histórias da mãe dela, minha bisavó.

9

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 9

27/07/18 15:07


Mas agora mamãe morreu, e eu nunca mais vou ouvir essas histórias tão velhas. E eu gostaria muito de escutar outra vez essas histórias. É verdade que eu sentia muito sono quando mamãe me contava tudo isso, mas é muito mais importante ter uma mãe viva para nos contar essas histórias do que não ter mãe nem histórias para ouvir. Quando a mãe de mamãe morreu eu tinha cinco anos. Agora eu tenho dez. Naquele tempo papai ainda não tinha me falado sobre a morte, e por isso eu tive muito medo quando fiquei sabendo que aquela mulher estendida na mesa, vovó morta, nunca mais ia se levantar dali para brincar conosco. Porque depois puseram ela num caixão e enfiaram num buraco feito na terra, de onde ela nunca mais saiu. Naquele tempo papai ainda não conversava comigo sobre essas coisas e por isso eu tive medo. Hoje eu não tenho mais, mas mesmo assim eu gostaria que mamãe estivesse viva. Porque ela morreu ontem e hoje eu já sinto saudades dela. 10

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 10

27/07/18 15:07


Eu me lembro quando cheguei ontem da escola. Papai veio chorando me receber na porta e me abraçou. Eu senti que ele estremecia todo, acho que soluçava. E então eu percebi que alguma coisa tinha acontecido com mamãe. Todas aquelas pessoas me olhavam com umas caras tão tristes... Papai então olhou para mim com os olhos vermelhos e me disse: – Aconteceu, filho. Se fosse outro pai e outro filho eu não teria entendido, mas era o meu pai e eu sabia o que significava tudo aquilo. Porque papai já tinha me falado sobre a morte um dia. Agora eu sabia que era chegada a hora de conhecer a morte de perto. – Mamãe morreu – eu disse olhando para ele. – Sim – respondeu papai olhando para o chão. 11

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 11

27/07/18 15:07


Meu pai é um homem bom. Eu sabia que ele ia ficar triste com a morte de mamãe, mesmo sabendo que a vida continuava do mesmo jeito sem ela, porque tudo o que nasce um dia tem de morrer. – Você se lembra de tudo o que eu lhe disse? – perguntou papai com os olhos vermelhos. – Sim, eu lembro – respondi querendo chorar. – Então está bem – disse meu pai limpando a garganta. Meu pai me tomou a pasta da escola, a merendeira que mamãe tinha arrumado naquela mesma manhã e entregou para minha tia. Minha tia ficou olhando para mim com uns olhos esquisitos. – Você quer sair um pouco? – perguntou papai me dando a mão.

12

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 12

27/07/18 15:07


– Não, eu quero ver ela – eu disse, sem saber se era aquilo que eu queria. – Você tem certeza? – perguntou papai querendo soluçar de novo. – Sim, eu quero. Mamãe estava na cama, com os olhos fechados e as mãos cruzadas no peito. Acho que dormia, de tão bonita que estava. Mamãe era uma mulher muito branca, de cabelos pretos. Mas não tinha boa saúde, dizia vovó antes de morrer também. Eu fiquei ali olhando mamãe naquela cama onde, eu me lembrava bem, ela dormia com papai. Acho que eram felizes. Mamãe e papai viviam rindo, às vezes eles se abraçavam e rolavam na cama como dois meninos. Agora eu não sei mais como vai ser. O que será de papai sozinho? Mamãe gostava de consertar o nó da gravata de papai quando ele saía. E quando ele estava no portão ela ria e mandava um beijo para ele. Eu lembro. 13

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 13

27/07/18 15:07


Agora não vai ser mais assim. Papai vai sair para o serviço e eu vou ficar sozinho aqui do portão olhando ele caminhar até a esquina e depois sumir. Ele não vai mais olhar para trás, como fazia, e não vou levantar os meus olhos para ver mamãe mandando um beijo para ele, porque mamãe não existe mais. Ontem minha tia se aproximou de nós dois, ali na beira da cama onde mamãe dormia, e perguntou a papai se queria que eu fosse levado para longe. Papai respondeu: – Pergunte a ele. Titia fez uma cara estranha e perguntou outra vez a papai se era para me levar. Papai ficou um instante em silêncio e olhou para mim. E eu respondi: – Quero ficar aqui olhando pra ela.

14

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 14

27/07/18 15:07


Eu não me lembro de ter chorado. Acho que eu chorava por dentro, quando pensava que no outro dia mamãe não estaria mais ali e eu nunca mais a veria naquela casa ou noutro lugar qualquer do mundo. Minha tia se afastou embaraçada e eu olhei para papai. Ele chorava baixinho, mas eu não me assustei com isso. Papai um dia tinha me falado que um homem às vezes não sabe controlar a sua dor, e dependendo do tamanho dessa dor o melhor é mesmo chorar, senão ela cresce muito mais e arrebenta no peito. Eu acho que a minha dor ia arrebentar no peito, porque eu não sabia chorar. Ficava ali olhando minha mãe, tão nova... E ela ali deitada com os olhos fechados, o rosto que eu acostumei a ver rindo agora imóvel, sem rir, sem chorar, sem aquele jeito de repreender a gente sem levantar a voz, sem nada. Mamãe estava morta. E ficamos ali, eu e papai, a olhar para mamãe pela última vez. Porque eu sabia que papai não ia acompanhar o caixão até o cemitério, nem eu. Papai já tinha falado sobre essas coisas, e eu sabia de tudo.

15

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 15

27/07/18 15:07


Eu me lembro. Um dia papai chegou e me disse: – Preciso falar com você. E eu saí com ele pelo parque e ele queria me falar uma coisa e não falava nada. – O que é, papai? – eu perguntei então, porque eu conheço meu pai e sei quando ele quer mesmo ficar calado ou quer contar alguma coisa pra gente e não sabe como começar. – Você está vendo aquela plantinha ali? – ele então me perguntou. Era uma plantinha muito fraca, dessas que nascem na beira do capim. Meu pai foi para lá e sentou perto dela. Eu fiz o mesmo e fiquei esperando. – Essa plantinha nasceu faz pouco tempo – disse meu pai. Eu fiquei olhando a plantinha e até que achei ela simpática. Era pequenininha, dessas que com um puxãozinho a gente corta e arranca.

16

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 16

27/07/18 15:07


– Nasceu aqui, como nascem todas as coisas vivas. Você se lembra daquela história que sua mãe te contou, sobre as coisas vivas? Eu lembrava. Mamãe me falou como nascem os pintos, os bezerros, os meninos. Eu não podia imaginar como tinha saído da barriga de mamãe, mas acabei entendendo as coisas. E eu sabia que tudo o que é vivo – nós, os homens, os animais e as plantas – temos um tempo de nascer, de crescer e de acabar. – Você se lembra mesmo da história de sua mãe? – perguntou papai outra vez. – Lembro, papai. Papai então ficou triste. Eu não sabia por quê, mas agora eu sei. Toda vez que ele falava de mamãe ele ficava triste. Porque papai sabia que mamãe ia morrer e não sabia me contar. Mas ele me disse, e não era nenhuma novidade. Mamãe já tinha me falado que as coisas vivas sobre a terra têm todas o seu dia de terminar. E papai um dia ia terminar, ela ia terminar, eu ia terminar, porque nada dura neste mundo e isso tudo é assim mesmo, porque assim tem de ser.

17

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 17

27/07/18 15:07


Eu só não sabia que mamãe ia terminar primeiro do que a gente. Eu sempre imaginava que papai e mamãe não iam morrer, que eu ia morrer primeiro e depois eles. Agora eu vejo o absurdo disso tudo. Porque todos nós temos o nosso tempo nesse mundo, e o tempo de uns termina primeiro do que o tempo de outros. Papai me falou que o homem tem tudo o que a natureza tem: água, pedra, árvore, sangue, carne. Uma árvore é um ser vivo, como um homem é um ser vivo como a árvore. A diferença é que um homem anda e pensa, e uma árvore não. E assim é, porque sempre foi. Papai nunca me falou de outra coisa além disso: que existe a vida e existe a morte, mas não a morte como o fim da vida, e sim como fim de um caminho no qual andamos durante algum tempo e depois fim, acabou. Porque tudo então começa de novo de outra forma. Eu não sei se entendi direito, mas acho que papai quis me dizer que a morte não existe. Que quando a gente chega no final desse caminho da vida o que acaba é só o que a gente viveu, mas isso não é motivo para nenhum drama ou choro.

18

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 18

27/07/18 15:07


– Quer dizer que as coisas morrem mas continuam vivas? – perguntei a papai. – É como se fosse assim. Você vê essa plantinha? Ela nasceu aqui no parque, mas um dia vai secar e cair aqui nessa terra, você vê? Eu via. A plantinha já estava meio amarela, acho que estava morrendo. – Ela vai morrer, papai? – Sim, filho, vai, mas não vai acabar. – Não vai acabar, papai? Mas ela não seca e morre, some? – Não, não some. Seca e morre, mas fica aqui na terra, dando semente ou ajudando as outras plantas a nascer, porque cria adubo. – Adubo? – É. Melhora a terra com o que sobrou dela, vê estes raminhos secos aqui? Pois é, eles derretem e misturam com a terra, mas não somem.

19

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 19

27/07/18 15:07


– E depois? – Bom, depois este restinho da planta morta se espalha aí na terra e nasce de novo, noutra planta. Não acaba nunca. Eu olhei para papai e achei a sua história muito bonita. Entendi então que nada no mundo morria, que tudo o que era vivo só era vivo porque tinha em si tudo o que antes era de outras coisas vivas. E não seriam vivas se não fosse assim. Papai me levou pra casa e eu fiquei pensando. Quando um homem termina e morre ele não some, porque é como uma planta. E seu corpo debaixo da terra vai servir para alguma coisa. Não sei se era bem assim, mas com o tempo eu comecei a entender. Mas porque papai me dizia aquilo? Eu quase já ia me esquecendo de tudo isso quando um dia papai me chamou de novo. Me pôs no joelho e olhou para mim bem nos olhos. Eu soube então que ele ia me falar uma coisa muito importante. Porque papai é assim: tem um jeito de falar para cada coisa. E quando me olhava daquele jeito era porque a conversa ia ser muito séria e comprida. – Você se lembra da história da plantinha no parque? – papai me perguntou. – Sim, eu lembro.

20

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 20

27/07/18 15:07


– E você se lembra que com as pessoas acontece a mesma coisa? – Lembro. – Você sabe que vai acontecer a mesma coisa comigo, com a sua mãe? – Sei. Eu respondi “sei”, mas aí fiquei pensando: como seria a vida sem papai e sem mamãe? – Mas isso vai acontecer mesmo, pai? – eu perguntei, olhando para ele meio triste. – Vai. Papai estava falando sério. Olhou para mim e vi que estava triste. – É com você, pai? Ele não quis responder. Me disse que um homem tem uma missão a cumprir na terra e deve cumpri-la da melhor maneira possível. E que quando chegar a hora de começar outra missão, fora do mundo, no meio da terra, “servindo de adubo”, então o jeito era aceitar aquilo como inevitável. – É com você, pai? – eu perguntei de novo. E ele respondeu: – Não, não é.

21

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 21

27/07/18 15:07


Depois disso papai ficou muitos dias sem conversar comigo sobre a história da plantinha. Eu descobri, pensando, que um homem, quando morre, pode renascer numa planta ou talvez numa pedra, e não necessariamente noutro homem, e isso me despertou a atenção para as coisas do mundo. E então comecei a olhar as coisas da vida. De noite eu olhava para as estrelas e via o tanto que nós somos pequenos. Papai me disse um dia que o mundo era tão grande que nenhum homem era capaz de medir o seu tamanho. E eu ficava pensando como uma coisa pode ser assim tão grande, uma coisa que não tem fim.

22

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 22

27/07/18 15:07


Papai me disse também que podia existir gente como nós em outras galáxias. O que era uma galáxia? E papai me dizia que uma galáxia era outro lugar no espaço, com outros sistemas solares, com sóis, planetas, luas, quem sabe gente, homens, mulheres e crianças. E me dizia que o mundo é cheio de mistérios, mas é tudo uma coisa só, e que nós estamos dentro do mundo como o mundo está dentro de nós. Eu não entendia bem, mas hoje eu sei. Dentro de cada homem, dizia papai, existem sóis, galáxias, átomos se movimentando, vivos e mortos. O mundo está dentro de cada coisa viva e morta, dizia papai, e eu ouvia tudo maravilhado. Porque o mundo está nas coisas, nos homens, nas plantas. E tudo se movimenta e tudo é muito grande, mesmo aquilo que é tão pequeno. Porque o que é pequeno está dentro do grande, da mesma forma que o grande está dentro do pequeno.

23

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 23

27/07/18 15:07


24

Livro_Eu_Vi_MamĂŁe_Nascer_pnld.indd 24

27/07/18 15:07


Mas aonde eu mais via o mundo era mesmo nas plantas. Por que as plantas eram as coisas vivas que estavam mais próximas de nós – de mim, de papai, de mamãe. Eu ficava olhando uma planta qualquer e imaginando que tipo de pessoa ela teria sido. Um homem, uma mulher, um menino que não chegou a crescer? Um homem bom, um homem mau? Era difícil, mas às vezes eu via uma planta que tinha jeito de ter sido um homem magro e branco, de bigode fino e cabelos lisos. Outras vezes eu via outra planta que parecia ter sido uma dessas mulheres gordas e pesadas que vivem falando alto e discutindo com as vizinhas. Era divertido imaginar essas coisas, mas às vezes eu ficava triste. Porque eu imaginava essas pessoas vivas, como gente mesmo, e não como planta, e gostaria que elas não tivessem nunca chegado ao fim do seu caminho. Porque ser gente é sempre bom, eu pensava. Mas depois eu mudei de ideia. Por que não ser também planta, grama no jardim, árvore gigante, flor, folha, capim? E aí eu pensava o inverso. Pensava que tipo de gente seria um dia determinada planta. Porque papai tinha me dito outro dia que temos em nós, em nosso corpo, tanta coisa maravilhosa que bem podíamos ter em nosso braço, em nossa perna, os restos de uma planta muito antiga, que um dia cumpria o seu destino na terra. 25

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 25

27/07/18 15:07


E aí era muito divertido. No nosso jardim tinha uma roseira que um dia bem podia ser uma dessas mulheres magras e silenciosas, que passam um dia inteiro sentadas numa cadeira, fazendo crochê e suspirando fundo. Na horta tinha um repolho enorme que um dia poderia ser como o português da farmácia, um homem gordo e simpático de bigodes brancos e dentes também muito brancos. Mas um dia eu cansei de brincar com essas coisas e voltei a ouvir as histórias que mamãe contava quando me levava para dormir. Um dia eu lhe perguntei: – Mamãe, o papai vai morrer? E ela me olhou bem fundo e quase chorando respondeu: – Não, meu bem, não é o papai. Nesse dia eu não compreendi. Mamãe saiu do quarto depressa e eu fiquei esperando que ela voltasse logo para me contar o final da história. Para falar a verdade eu já sabia o final, ela sempre repetia aquelas histórias bobas que tinha ouvido da vovó, mas sempre era bom ouvir tudo de novo, como se as coisas mais sabidas fossem misteriosas, desconhecidas. Mas mamãe não voltou esta noite, e eu acabei dormindo. Noutro dia cheguei em casa e papai estava perguntando a mamãe como tinha sido no médico. – A mesma coisa – ela respondeu. Papai estava triste e segurava as mãos de mamãe como se ela fosse fugir.

26

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 26

27/07/18 15:07


– Nenhuma esperança? – perguntou papai. – Nenhuma – respondeu mamãe olhando papai nos olhos. Não chorava. – Quanto tempo? – papai perguntou baixando a cabeça. – Não sei. Dois meses, um ano. Não se sabe. Eu não entendi direito naquela hora, mas depois entendi. Papai não ia morrer, mas mamãe sim. Eu pensei que desde esse dia as coisas iam ficar tristes em casa, mas nada disso aconteceu. Papai continuou saindo com mamãe para o cinema, às vezes passeavam no parque e me levavam com eles. Um dia eu quis ver a plantinha daquela história. – Vamos lá, pai? – eu pedi. Papai olhou para mamãe e ela sorriu de um jeito esquisito. Eu pensei que estava triste. – Sim, vamos lá, filho – mamãe disse se curvando e me beijando na testa. A plantinha não estava lá. Olhei para papai e ele não me disse nada. Mamãe curvou-se de novo e me abraçou com força, murmurando: “meu filho, meu filho”. – Ela sumiu, pai. Papai me olhou e não disse nada. Mamãe virou as costas e parecia que estava esperando alguma coisa.

27

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 27

27/07/18 15:07


Eu procurei com cuidado o lugar onde a plantinha estava. Eu tinha certeza que era ali. Abaixei e remexi no meio do capim. Tinha uma coisa alta ali no meio. – Pai! Mãe! Olha aqui, ela está nascendo de novo! Era verdade. Tinha duas folhinhas saindo de um caule muito pequeno escondido no meio do capim. Papai olhou e riu. Mamãe riu também e olhou para papai com o riso parado no rosto. Então os dois se abraçaram e começaram a se beijar. Quando voltamos para casa mamãe me abraçou de novo e contou-me uma história nova na beira da cama. Eu fiquei surpreso e perguntei logo: – Ué, mãe, onde a senhora achou essa história nova? Ela sorriu e passou a mão nos meus cabelos. – Estou descobrindo tudo de novo. Na hora eu não entendi, mas hoje eu sei. Mamãe estava nascendo de novo. Mas mamãe morreu ontem e até agora eu não sei se vou me acostumar com isso. Hoje eu não estou mais com todas aquelas coisas arrebentando dentro de mim, uma sensação esquisita como se também eu estivesse terminando e amanhã fosse renascer numa dessas plantinhas tristes que ficam escondidas no meio de outras folhagens, como se tivessem medo do mundo. Papai chorou muito essa noite, mas hoje já está melhor. Não vamos ver mamãe nunca mais, pelo menos da forma como ela era. Já a levaram, e não fomos juntos, papai não quis, nem eu. A última lembrança que vou ter dela, para o resto da minha vida, é de uma mulher magra e boa que descansava na cama, os olhos fechados, a boca tão bonita, aqueles cabelos compridos e as mãos magrinhas cruzadas no peito.

28

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 28

27/07/18 15:07


Agora eu estou aqui em casa olhando o jardim. De noite eu vou olhar as estrelas e pensar que talvez mamãe não vire planta, coisa da terra, mas uma estrela qualquer desse universo sem fim. Papai está na sala olhando as paredes, acho que quer ficar sozinho para pensar na nova vida que vamos começar sozinhos nesta casa sem mamãe. Eu sei que vai ser difícil, mas sei também que vamos acabar nos acostumando com a ausência dela e um dia vamos até ser felizes de novo. Porque é sempre assim que acontece. Mas agora eu quero ficar aqui olhando o jardim, quem sabe imaginando que tipo de flor mamãe seria quando nascesse outra vez. Ela tinha um jeito de rosa, mas era tão branca e fina... Não sei mesmo como vão ser as coisas sem ela, mas as coisas têm de ser assim e assim serão. “Porque o homem, me disse papai um dia, tem a sua missão a cumprir sobre a terra, e não pode se deter mesmo diante da morte.” Porque a morte não existe, disse também, e agora eu sei disso. Vai ser duro viver sem mamãe, mas pior seria viver com a lembrança dela para o resto da vida, como se também nós tivéssemos morrido com ela. É verdade que um pouco de nós morreu com ela, mas também é verdade que ela deixou um pouquinho dela na gente. E esse pouco de nós que ela levou vai renascer depressa, eu sei.

29

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 29

27/07/18 15:07


30

Livro_Eu_Vi_MamĂŁe_Nascer_pnld.indd 30

27/07/18 15:07


E é assim que eu sorrio neste jardim tão bonito – mamãe não cuidará mais dele – e afinal viro as costas e vou para dentro. Papai está na sala pensando nas coisas que depois me contará, e agora eu me sento perto dele, porque talvez ele precise de mim. Papai vê que eu cheguei e olha para mim. Está sério, mas eu sei que daqui a pouco ele vai sorrir e perguntar: – Como vai o meu menino? E eu vou responder: – Bem. E como vai o nosso papai? Porque a vida continua, e nós dois juntos saberemos como lembrar as boas coisas que vivemos e viveremos juntos com as lembranças de mamãe.

31

Livro_Eu_Vi_Mamãe_Nascer_pnld.indd 31

27/07/18 15:07


Livro_Eu_Vi_MamĂŁe_Nascer_pnld.indd 32

27/07/18 15:07


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.