O Vale de Solombra Eustáquio Gomes
MATERIAL DIGITAL DO PROFESSOR Por Ricardo Benevides
NOVELA
1. Propostas de Atividades I
5 1.1 Introdução
5 1.2 Aspectos da obra — Pré-Leitura
6 Manuseio e leitura da orelha e da quarta capa
6 As epígrafes
7 O título
8 Sobre o autor — Eustáquio Gomes 9 1.3 Leitura
10 A estrutura do texto: novela de capítulos curtos 11 O enredo e os personagens
11 O enredo entre a ficção e a realidade 13 O enredo e o sonho
14 1.4 Pós-leitura: investigação das intertextualidades e outras decifrações do enredo
Atividades
do texto: o tempo na obra e a circularidade na narrativa ........ 20 2.3 Pós-leitura: Geografias imaginárias e paisagens ficcionais
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Vale de Solombra Carta aos Professores ........................................................................................ 3
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................................................................... 15 2. Propostas de
II ........................................................................ 19 2.1 Pré-leitura ................................................................................................... 19 2.2 Leitura ......................................................................................................... 20 Estrutura
...................... 24 3. Aprofundamento ........................................................................................ 28 3.1 O Realismo Maravilhoso ........................................................................... 28 3.2 Proposta de produção de texto 29 4. Sugestões de referências complementares ................................................ 31 5. Bibliografia comentada ............................................................................. 35 Sumário
Prezada Professora, Prezado Professor,
Vamos conversar um pouco sobre este Manual que oferecemos a vocês na intenção de contribuir com o seu trabalho em sala de aula com os estudantes. Em primei ro lugar, não deve ser visto como texto de orientação ou guia para estabelecer atividades de resposta definida, ao abordar a narrativa no ambiente escolar ou a partir dele. Trata-se de uma proposição para ampliar os olhares sobre a obra, destacando aspec tos que porventura não chamaram tanto a atenção de vocês (e dos alunos) na primeira leitura. É claro, o Manual está articulado com os princípios da Base Nacional Comum Curricular, mirando a construção de conhecimentos em várias áreas, mas especialmente em Língua Portuguesa e Literatura. Ora de maneira mais explícita, ora mais indireta, o material deve mobilizar as competências gerais de conhecimento, pensamento crítico e criativo, repertório cultural e comunicação — de acordo com as competências gerais 1, 2, 3 e 4 da BNCC. Também está conectado ao texto de apoio oferecido aos estudantes.
Dentro desta proposta, encontraremos discussões que partem de um valor fundamental para a Educação, o que vê na arte mais que um caminho para aprimorar a sensibilidade do espírito e engrandecer a nossa humanidade. A arte sempre teve um papel importan tíssimo para que as pessoas pudessem lidar com a realidade. Como diz Antonio Candido, mais especificamente sobre a Literatura, ela é “uma necessidade universal experimentada em todas as sociedades. Das sociedades mais primitivas às mais avançadas, o homem tem necessidade de efabular”. O professor cita Goethe para lembrar que o “homem entra na literatura e quando sai está mais rico e compreendendo melhor o mundo”.
Portanto, alinhados a estas ideias, precisamos falar sobre as obras de arte, sobre os livros de literatura com o interesse de extrair o melhor deles, numa operação de troca de impressões, pesquisa, leitura e releitura. Isto não significa que será feito de maneira igual por todos os leitores. Por mais que apontemos questões a partir dos livros, essa construção de sentido é sempre particular, porque é mediada pelo repertório anterior de leitura, pelas vivências e tangenciada pelos afetos de cada um.
Vejam por exemplo o destaque da quarta capa deste O Vale de Solombra. Lá está um complemento ao título ou provocação aos leitores: “Vale de encantos e mistérios”. Eis aí um ponto para pensar no que acabamos de mencionar sobre as particularidades de cada leitura. Sim, porque o que encanta um não age de maneira tão intensa sobre outro. Há mistérios
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que inquietam os mais céticos, podendo não parecer nada tentadores aos mais crédulos. Cada leitor vive essa condição de autonomia para fazer do livro o que bem entender.
Porém, também partimos da vontade de fazer o aluno pensar sobre tudo o que pode envolver a sua vida, formulando novas noções, ampliando sua capacidade de argumentar, diversificar suas escolhas e aprender sobre si mesmo. A transformação que uma Educação proporciona, nesses momentos, se assemelha à grande metáfora proposta neste livro. Não sabemos o que é o destino final, mas é a caminhada que importa. É nela que vamos fazen do as escolhas do trajeto e percebendo o que nos reserva a história — do texto e a nossa.
A obra que vamos investigar é rica em intertextualidades, de texto econômico, cheio de polissemias, e convida a refletir sobre alguns dos maiores temas da humanidade. A relação entre vida e morte, o conhecimento sobre o mundo material em contraponto às explicações metafísicas, o papel do sonho na existência do homem, a paixão pelos livros, a sabedoria ancestral de culturas orientais, tudo isso compõe um quadro desafiador para o leitor desavisado.
É claro, ele pode extrair compreensão e prazer desta história sem ir fundo nos detalhes, apenas deixando-se entreter pela prosa ágil e sedutora de Eustáquio Gomes. Aqui e lá vai esbarrar numa palavra incomum à experiência coloquial, mas isto não tende a dificultar em nada a sua entrega à narrativa — chegando mesmo a enriquecê-la, como veremos numa proposta à frente.
Podemos avançar, e que esse caminho seja produtivo para vocês e seus alunos.
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1. Proposta de Atividades I
1.1 Introdução
Passemos a algumas proposições para a mediação da leitura dos seus alunos. Definitivamente, a ideia não é determinar soluções únicas para a interpretação ou para a produção de sentidos sobre a obra. A ideia que norteia esse trabalho é a de contribuir para que a experiência da leitura seja a mais rica e variada o possível, sem estabelecer metas objetivas e sem considerar que existem “respostas desejáveis” a serem alcançadas. Cada leitura é particular em suas descobertas, hipóteses e tão válida quanto qualquer outra. Está claro que vocês, conhecendo os estudantes, podem provocar neles a reflexão sobre o que porventura escapou numa primeira visita ao texto ou o desejo de, num segundo olhar, aprofundar a compreensão da obra, relacionando-a com outras e mesmo com suas questões pessoais mais particulares. Vocês também devem ver as propostas de atividades como sugestões, adaptáveis a cada realidade, realizáveis de acordo com suas possibilidades de tempo e planejamento, sem que seja preciso aceitar todas.
Devemos considerar O Vale de Solombra como uma obra complexa, diversa, instigante, repleta de subtextos, intertextos, pistas que ora se conectam, ora apontam para conheci mentos gerais ou específicos de outra natureza. Sua estrutura parece simples, na medida em que os capítulos são todos curtos, mas não simplória, porque o trato da linguagem, as escolhas de estilo e mesmo a construção narrativa remetem a uma gama bem diversa de imagens associadas a significados tão múltiplos que se torna desafiador percorrer todos. Não é essa nossa pretensão.
Mesmo porque, por maior que seja a capacidade de apontar essas conexões, sempre falta alguma coisa, se tomarmos como parâmetro as intenções do autor, algo que não faremos. Há uma ideia equivocada na busca de quem quer desvendar o que “o autor quis dizer”. Ele já disse no texto, no livro.
Queremos ver a narrativa como algo indissociável de seu criador, mas algo autônoma em relação ao que o levou a formulá-la, no momento seguinte à publicação do livro. Como se diz popularmente no meio artístico literário, publicada a obra, ela é do leitor. É ele que deve se apropriar dela, construir entendimentos sobre o enredo, procurar com atenção tudo o que puder revelar-se útil para a recomposição do “todo”, já que romances e
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(Sobretudo para professores de Língua Portuguesa e Literatura.)
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novelas podem ser isto às vezes, um conjunto de fragmentos à procura de sua integração, como diz Donaldo Schüler.
Mas vamos por partes, como diria o fã de quebra-cabeças. Uma coisa de cada vez. Para começar, é fundamental um olhar sobre os aspectos físicos gerais do livro. Vejamos.
1.2 Aspectos da obra — Pré-Leitura
Manuseio e leitura da orelha e da quarta capa
O manuseio do livro é operação aparentemente trivial para o estudante, mas ele deve ser levado a ver, sentir o volume e observar com atenção tudo o que pode ser significativo para a fruição maior da obra. Então, a sugestão é que vocês provoquem uma discussão sobre isso, dando tempo para que os alunos leiam a orelha escrita por Hugo Almeida e também o texto da quarta capa e discutam sobre os elementos que aparecem como pictogramas na capa.
• Perguntem: Percebem alguma relação entre esses elementos visuais da capa e algum outro significado proposto nos textos de orelha e quarta capa? Vocês (alunos) conse guem ver algum sentido ligado a essas imagens?
• Perguntem: E que cor aparece no verso da capa e da quarta capa (demonstre o que são essas duas partes do livro para eles)?
Antes mesmo de ler, façam a sugestão para que eles folheiem o livro, atentando para o projeto gráfico. É importante reconhecerem os elementos de escolha da programação visual do livro. A distinção de tamanho no corpo dos títulos de capítulos e no corpo do texto.
• Perguntem: Há alguma página diferente que vocês tenham observado ao folhear o livro? Qual/quais exatamente?
(Vejam se eles reconhecem as páginas que segmentam as três partes do livro — todas pretas com pictogramas e números brancos.)
Mencionem novamente o texto da orelha do livro, procurando identificar os temas que mais chamaram a atenção dos alunos. Tentem reconhecer os mais destacados e os menos destacados, questionando as razões para tal:
• Perguntem (individualmente para alguns alunos): Por que exatamente esse tema pareceu mais relevante para vocês?
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(O objetivo é, como sempre, amplificar o conhecimento sobre o repertório de interesses dos estudantes, mas também fazê-los pensar sobre seus próprios gostos.)
As Epígrafes
Em seguida, convide-os a ler as epígrafes do livro. Habitualmente, elas reproduzem trechos de outros textos que “conversam” com as grandes questões abordadas numa obra. Quase sempre, é uma escolha carregada de intenções. Ao citar aqueles trechos no início de seus livros, autores costumam dar pistas do que virá à frente, mas recorrendo às vozes de outros escritores. Pode haver também, parece evidente, um desejo de associar o sentido da passagem (ou mesmo os grandes sentidos da obra de origem) com os do livro que ora publicam.
No caso de O Vale de Solombra, a primeira epígrafe reproduz os versos que abrem o Canto I do Inferno, primeira parte da Divina Comédia, o grande poema épico que Dante Alighieri publicou entre 1317 e 1321. Nele, o próprio Dante é personagem e narrador, e outros personagens reais e mitológicos vão aparecendo à medida que o poema avança. Após a leitura do livro de Eustáquio Gomes fica mais clara a alusão do trecho à viagem de Luís Quintana. Mas, assumindo que estamos no momento de pré-leitura dos alunos, o mais importante aqui é provocar a curiosidade deles quanto ao livro, estimulando sua imaginação para o que virá. Então, dialoguem com eles sobre essa epígrafe, para ver se espontaneamente eles intuem algo sobre os termos grifados:
Da nossa vida, em meio da jornada, Achei-me numa selva tenebrosa, Tendo perdido a verdadeira estrada
Não é preciso, evidentemente, ter lido a Divina Comédia — algo que recomendamos independentemente deste trabalho — para especular sobre os significados conectados aos termos que grifamos. Mas pode ser interessante lembrar aos alunos que a jornada de Dante pelo Inferno, pelo Purgatório até chegar ao Paraíso pode ser uma alegoria de tantas trajetórias humanas. A metáfora da caminhada é sempre riquíssima. E é por isso que a conversa tende a ser rentável nesse rumo. Após ouvir as falas dos alunos sobre a epígrafe, questionem:
• As palavras jornada, estrada, caminho estão ligadas ao que mais?
(Deixem que eles pensem sobre isso e falem espontaneamente. Por fim, completem com os exemplos do uso dessas palavras para descrever as campanhas dos times de futebol — a “jornada até o título” —, a trajetória pessoal de estudantes de todos os
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níveis, muito lembrada nos momentos de conclusão de ciclo ou formaturas — “a caminhada escolar ou acadêmica” — e outras imagens que acharem significativas para materializar as metáforas do caminho.). Ao empreender essa discussão, o estu dante deve ser levado a refletir sobre a possibilidade de ser protagonista da própria vida, como sugerem as competências específicas de Linguagens e suas Tecnologias, propostas na BNCC (Base Nacional Comum Curricular).
Adiante, ainda na observação das epígrafes, temos dois trechos que mencionam o estado de Minas Gerais, um de Carlos Drummond de Andrade e outro de Guimarães Rosa. O trecho de Rosa aparece logo no início de seu romance mais famoso, o Grande Sertão: Veredas. O de Drummond é um verso do poema José
• Leiam o poema com a turma e vejam o que eles inferem sobre a possível relação com o livro.
• Peçam que eles pesquisem sobre quem foi Guimarães Rosa, procurando dados biográficos do escritor. Como ele aparece na história (não mencionem aos alunos, deixem que eles descubram), isso pode criar outro estímulo para avançar quando chegarem à parte em que Rosa é mencionado.
O título
A princípio, o título do livro pode causar estranheza ao leitor em função da palavra Solombra, que não se encontra em praticamente nenhum dicionário. Seria preciso conhe cer a obra de Cecília Meireles para saber que se trata do nome do último livro de poemas que ela publicou em vida.
Solombra vem do português arcaico, deve ser uma derivação da palavra do latim vulgar sulumbra que, por sua vez, tem origem em outro termo do latim: umbra, que significa “sombra”. E aí a nossa discussão fica interessante.
Isto porque a palavra carrega uma ambivalência entre o claro e o escuro, ela é “sol” e “sombra” ao mesmo tempo. Cecília abre o seu livro com uma epígrafe escrita por ela mesma que torna tudo mais denso e enigmático: “Levantei os olhos para ver quem falara. Mas ape nas ouvi as vozes combaterem. E vi que era no Céu e na Terra. E disseram-me: Solombra!”.
Mas o título ainda conta com outro elemento importante para pensar a obra, o termo “vale”. Se observarmos a dualidade sol e sombra, quando voltamos ao título, ele parece remeter à expressão bíblica “vale das sombras”, repleta de significados possivelmente liga dos ao “lugar das almas perdidas”, o “inferno” (lembram da epígrafe de Dante?) e outros.
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Após dividir essas informações com os alunos, cabe questionar sobre a epígrafe de Cecília:
• De quem seriam essas vozes?
• Pelo que combatem?
• E essa oposição entre o Céu e a Terra, o que lhes parece?
Nesse momento é melhor ouvir os alunos e perceber suas expectativas e não mencionar nada mais, sob o risco de interferir na experiência que vão ter em sua primeira leitura da obra. É fundamental respeitar o caminho de cada um na construção do entendimento do texto, de modo que essas provocações etimológicas ou intertextuais só devem ser usadas mesmo para despertar curiosidades, criar motivações para a sua entrega ao livro.
Sobre o autor — Eustáquio Gomes
Os dados da vida de um autor, quando não compartilhados em seus livros, podem ser investigados em outras fontes e permitir uma gama de suposições sobre a relação possível com sua literatura. Mas não devem passar disto, suposições. Ao mesmo tempo, são objeto de curiosidade e estudo acerca de seu processo de criação e reflexão sobre a cronologia da obra, procurando desvendar relações improváveis ou mesmo aquelas propositalmente escondidas nos subtextos dos escritos. Ainda assim, mesmo quando escritores assumem o caráter biográfico de um escrito, cabe ao leitor manter um pé atrás, lembrando que nem sempre a mente do criador é capaz de traduzir em obra o que a memória lhe permitiu guardar e, também, nunca é demais duvidar da própria capacidade humana de recordar. Inventamos e reinventamos memórias o tempo todo. Daí que o conhecimento sobre a biografia de um escritor pode apontar caminhos ora interessantes para rever o entendi mento do que é lido, ora infrutíferos de maneira geral. Mas vale a investida.
Dito isso, compartilhem com os estudantes mais alguns dados sobre o autor.
Além das informações biográficas disponíveis na orelha do livro, Hugo Almeida (que assina aquele texto) ainda registra que Eustáquio Gomes nasceu em 1952, em Campo Alegre, nos arredores de Campos Altos, em Minas Gerais. Estudou no Seminário por seis anos, desenvolvendo lá sua paixão pela Literatura — algumas passagens desse momento da vida são encontradas na crônica “Uma velha foto”, do livro Paisagem com Neblina e buldôzeres ao fundo (Geração Editorial, 2007). Formou-se em Jornalismo na Universidade Católica de Campinas, cidade em que viveu a maior parte de seus 61 anos, tendo publicado mais de 800 crônicas no jornal local Correio Popular. Trabalhou por 28 anos na Assessoria de Comunicação da Universidade de Campinas (Unicamp) — onde fez Mestrado em Letras —, criada por ele em 1982. Também atuou em muitos periódicos do interior, como
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repórter e editor. Como colaborador, publicou artigos sobre Literatura em O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde e Jornal do Brasil
Além da novela O Vale de Solombra e da coletânea de crônicas Paisagem com Neblina, lançou os romances A Febre Amorosa (EMW Editores, 1984), O Mapa da Austrália (Geração Editorial, 1998) e Jonas Blau (Editora Brasiliense, 1986) — publicado originalmente, como folhetim, no Caderno 2, suplemento de Variedades do jornal O Estado de São Paulo. Também frequentou outros gêneros, como o conto, a poesia e o ensaio.
Eustáquio Gomes morreu de enfarte no miocárdio em 31 de janeiro de 2014. Morreu dormindo.
1.3 — Leitura
Estabeleçam um prazo para a leitura do livro, procurando não uma data fixa, mas um intervalo que possa respeitar o ritmo de cada um. Admitimos que esse parâmetro é bem difícil de conhecer com propriedade, porque os estudantes podem ter experiências de leitura muito diversas. Sabendo disso, é muito necessário acompanhar a evolução das turmas provocando, de tempos em tempos, algum questionamento sobre o curso da leitura, as possíveis dúvidas, as dificuldades e os trechos que mais agradaram em cada estágio.
Após esse momento, convidem a turma para um primeiro debate em torno das impres sões sobre o livro. A ideia é fazer um levantamento dos pontos de vista mais marcantes para cada um. Ao fazê-lo, enfatizem que a intenção é apreciar esteticamente a obra como produção artística e cultural, como indica uma das competências específicas de Linguagens e suas Tecnologias na BNCC. Numa primeira escuta, perguntem (e procurem não inter ferir nas respostas, por mais que isso lhes pareça razoável; lembrem-se que todo livro é, de alguma forma, aberto às conclusões de quem se propõe a ler):
• Sobre o que é a história?
• Do que gostaram mais no enredo?
• Do que gostaram menos?
• Com quais personagens se identificaram e por quê?
• A que conclusões chegaram sobre o grande tema que norteia o livro?
• O que foi difícil de compreender?
• Que dúvidas restaram ao final da leitura?
Essa primeira discussão deve ser acompanhada de muitas anotações para permitir um planejamento posterior de retomada de alguns dos assuntos citados e reflexão dos pro fessores quanto ao que agiu sobre a percepção dos estudantes, produzindo inquietações.
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A estrutura do texto: novela de capítulos curtos
À primeira vista, o livro com capítulos curtos pode deixar muitas dúvidas quanto aos sentidos maiores do enredo que se constrói. Parece que estamos diante de contos breves entrelaçados de maneira um tanto frágil, mas percebam que isto é proposital. À medida que a narrativa avança, essa hipótese perde força e vamos descobrir o que é próprio da novela: a ênfase na ação, a sucessão das peripécias, o arranjo de pequenos clímax que vão mantendo o leitor (em outra visão, com muitas distinções, o espectador da novela televisiva vive isso) em suspensão, numa cronologia muitas vezes linear — embora isto não aconteça neste livro, com o uso recorrente do avanço e do recuo na localização do tempo da narrativa.
Estas ideias sobre o gênero aparecem na obra de Massaud Moisés, mas o fato é que O Vale de Solombra, embora ostente este termo (novela) em sua capa, pode não se encaixar nessa classificação segundo outros olhares. Hugo Almeida, que assina o texto da orelha, designa a obra como romance. Entendemos ser importante o debate e cabe a discussão com os alunos em sala a partir do que expusemos até aqui. Mesmo assim, há tantas outras questões a abordar e nos parece mais rentável investir prioritariamente sobre elas, em espe cial sobre as diversas referências intertextuais elaboradas como uma intrincada trama que convida o leitor ao deciframento. Como dito anteriormente, isto não deve ser visto como impedimento à construção particular do entendimento de cada leitor. Apenas devemos ver este livro — na verdade, toda obra de arte — como uma elaboração “em camadas”, disponível à vontade e às particularidades de quem se dedica a percorrê-las — outra das competências previstas na BNCC.
Portanto, retomando os propósitos iniciais deste Manual, podemos avançar para contri buir com a sua leitura, professor, professora, procurando ampliar as perspectivas do trabalho junto aos seus alunos — de modo articulado com o texto de apoio para os estudantes.
O enredo e os personagens
O primeiro e grande tema que surge na narrativa do livro é a oposição entre uma visão empírica e outra metafísica, posicionadas na caracterização dos dois personagens principais, Luís Quintana e Benjamin Ventura.
Nota: ao usar a palavra metafísica, estamos nos referindo ao que, no senso comum, poderia descrever o pensamento sobre os fenômenos que vão além (o radical meta sugere isso) do mundo físico, portanto daquilo que não pode ser explicado pelas leis da física. Há uma série de ideias, doutrinas e crenças que podem ser assim consideradas e algumas delas são citadas no livro.
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Peça aos alunos para descrevê-los, segundo sua própria experiência de leitura. Anotem os adjetivos usados e conversem com eles sobre a caracterização de per sonagens em outras obras da literatura que leram juntos ou que estão próximas de seu imaginário.
Questionem: “Vocês disseram isso (recuperem alguns termos usados por eles) do Quintana e do Benjamin exatamente por quê? Alguém lembra se eles foram descritos assim pelo narrador? Ou foi algo que eles próprios disseram na trama? Ou talvez nem tenham dito, podem ter feito algo que deu a entender..., mas o quê?
Para lembrar e refletir com os alunos, o primeiro (Quintana, sobrenome de poeta; embora esta referência não pareça muito alusiva às características do escritor gaúcho) aparece como o sujeito que “só acredita no que vê” (p. 25), portanto, um entusiasta do aprendizado pela experiência, pragmático. O segundo (Benjamin) adota uma postura a princípio mais cautelosa (“Assim como existe o neutrino e ninguém o vê, disse, outras coisas que não são vistas também podem existir”, p. 31), mas sempre aberta ao que não pode ser explicado pelas leis da ciência através da observação.
No capítulo com o sugestivo título “o visível e o invisível”, depois de falar do neutrino, Benjamin Ventura segue no argumento: “Até onde se sabe, nenhum olho humano jamais contemplou o interior de um buraco negro. E o velho desafiou-o [Quintana] dizendo que no fundo todos acreditam”. A provocação irrita o livreiro que responde: “Eu me recuso a pensar com as vísceras. Prefiro usar o cérebro”.
A divergência cria espaço para um debate importante sobre o lugar da ciência, o que ela pode explicar, o que ela não conseguiu ainda e que outras expressões do pensamento devem ser consideradas para dar conta das perguntas que formulamos sobre a existência.
Organizem o debate dividindo a turma em dois grupos — Quintana e Ventura. O primeiro grupo deve pesquisar argumentos para defender a visão pragmática da observação científica. O segundo deve procurar as questões que a ciência não consegue explicar e ao menos citar algumas ideias (polêmicas que sejam) para dar conta delas.
Por fim, contextualizem as informações do texto de apoio ao estudante sobre o impor tante papel que a ficção tem para a imaginação científica, a partir dos exemplos de Aldous Huxley e Júlio Verne, citados naquele material. Deve ficar claro que nem sempre as nar rativas não objetivas são propriamente opostas à ciência.
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O enredo entre a ficção e a realidade
O livro traz dois capítulos que parecem não se conectar diretamente com a história dos personagens principais, ainda que contribuam para a elaboração característica de dois coadjuvantes — Jung e Wilhelm. Eles funcionam com breves digressões informativas, com dados objetivos da vida do psicólogo Carl Gustav Jung e do sinólogo Richard Wilhelm.
Promovam um momento de leitura em voz alta desses dois capítulos, solicitando que diferentes alunos participem, cada um lendo um trecho. Em seguida, questionem-nos sobre se percebem alguma diferença no texto em comparação com os demais. É desejável que eles reconheçam as marcas do gênero informativo e reflitam sobre se essa escolha do autor tem a ver com o fato de ele também ser um jornalista (como vimos em seus dados biográficos). Perguntem também:
• Vocês sabem que Jung e Wilhelm, que no livro são personagens, de fato existiram?
• Do que vocês leram, o que parece ter acontecido na realidade e o que parece ter sido inventado pelo escritor?
• Pesquisem usando a internet:
• Há registros de que Jung associou um sonho seu a “portas que se abrem para a noite cósmica original”?
• O livro O Segredo da Flor de Ouro de fato existe? Se sim, há registro de Richard Wilhelm tê-lo enviado como manuscrito a Jung?
• Jung morou em Zurique?
• Jung estudou alquimia?
• Existe uma rua de nome Liu Li Tschang (Liulichang) em Pequim? Há antiquários nela?
• Memórias, Sonhos e Reflexões é mesmo a autobiografia de Jung?
• Richard Wilhelm esteve na China no último ano do século XIX com o objetivo de “salvar almas”?
• Tsingtao é, de fato, uma cidade chinesa de cultura alemã que fica na costa do “Mar Amarelo”?
(A intenção é fazê-los refletir sobre os territórios da ficção e o quanto se valem de fatos da realidade.)
Em outro capítulo, algo semelhante ao que descrevemos como “digressão informativa” acontece, embora no contexto da caracterização de Benjamin Ventura. Em “O vice-cônsul” (p. 21), misturam-se realidade e ficção para fazer do personagem e sua mãe dois dos fugi tivos da Segunda Guerra beneficiados pela heroica atuação de Aracy Guimarães Rosa (o “Anjo de Hamburgo”) e seu marido, o escritor e à época diplomata, João Guimarães Rosa. A história pouco conhecida por tantos brasileiros ganhou um documentário, dirigido por
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Adriana Jacobsen e Soraia Vilela. Recomendamos que, se for possível, assistam ao filme com a turma e discutam o seu conteúdo à luz da ação humanitária.
• Lembrem a eles que se trata do autor de uma das epígrafes do livro. Ele será men cionado à frente, de todo modo, no tópico sobre a intertextualidade.
O enredo e sonho
Está claro para vocês que uma das estratégias narrativas do autor, em seu uso econô mico de palavras, nomes e na composição um tanto incerta sobre o que está acontecendo — à medida que a novela avança — é proposital e está ligada à atmosfera de sonho, algo especialmente verificável nos capítulos da parte 2.
• Mesmo antes, na parte 1, o sonho é mencionado de maneira recorrente. Releiam junto com a turma os trechos que selecionamos, pedindo que eles discutam as consequências ou os desdobramentos dos sonhos na realidade dos personagens:
1) Benjamin: “Embora viesse de uma noite de insônia, dormiu apenas o suficiente para ter um sonho intenso e curto. Sonhou com um sebo labiríntico onde a luz do dia entrava francamente e as lâmpadas no teto não luziam igualmente para todas as estantes” (pp. 15 e 16).
2) “No sonho, Jung fugia da guerra numa carroça puxada por cavalos. Estava no front italiano e um camponês ia com ele” (p. 27).
3) Benjamin: “Quando adormeceu, já manhãzinha, sonhou que estava num cinema e via um filme de caubói. A certa altura Quintana se intrometeu na ação do filme. Saltando da tela para o palco, dirigiu-se a Benjamin e fez um pedido: que cuidasse de Diva e do garoto até que pudesse voltar para casa” (p. 59).
4) Quintana preenche o formulário da pensão de Domitila, e depara com a pergunta ao final: “Acredita no que vê?” (p. 79). Quintana: “Sorriu ao pensar que Benjamin, em vez disso, escreveria algo do tipo: ‘Eu acredito nos sonhos’” (p. 80).
5) “Ao ler isto Quintana temeu que tudo à sua volta — o saguão de lambris verme lhos, o hotel, o cartaz na parede — pertencesse ainda ao domínio do sonho que teve sob a árvore copada, mas que logo despertaria para continuar sua viagem. Atinou, por fim, que nos últimos tempos (não sabia precisar desde quando) sua vida vinha ganhando uma tonalidade cada vez mais onírica, com as coisas ditas
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reais, mesmo as mais rudes, cada vez mais aparentadas ao sonho. A ponto de ele já não se importar se devia levá-las tão a sério ou não, uma vez que, dormindo ou acordado, elas continuariam a valer o que valem” (p. 98).
Para uma conversa com os alunos, algumas questões podem ser colocadas:
• Os sonhos são só invenções sem sentido da nossa cabeça ou podem ter relação com o que vivemos na realidade?
• Sonhos podem expressar desejos, medos, traumas? Vocês já sonharam coisas que aconteceram depois? Ou sonharam com coisas que têm relação com acontecimentos passados?
É importante não perder de vista que este debate deve contribuir para ampliar a compreensão crítica do estudante sobre a realidade, partindo do sonho como narrativa possível da produção de sentido – em acordo também com as competências propostas na BNCC para as Linguagens e suas Tecnologias.
No texto da orelha, que menciona o fato de a novela reverberar, “em sutil homenagem, autores como Borges, Cecília Meireles, Machado de Assis, Drummond, Guimarães Rosa, Juan Rulfo e Lewis Carroll”, já tínhamos uma ideia do caráter intertextual da obra, o que permite preparar o espírito crítico e até o “faro” investigativo para “decifrar” em que trechos estão essas referências na narrativa.
Ana Maria Machado menciona esse “prazer da decifração” associado à condição dos bons livros, que convidam o leitor para tal empreitada, mas lhe oferecem mais do que enigmas, permitindo a fruição em suas diferentes camadas, da escolha da linguagem à elaboração envolvente das cenas, utilizando-se mesmo de outros recursos.
Mas quando a intertextualidade está lá ela almeja uma construção de sentido conectada a outras obras e seus autores ou, como diria o teórico Donaldo Schüler, “os textos dialogam”.
O primeiro dos trechos destacados no tópico anterior faz menção ao “sebo labiríntico” sonhado por Benjamin e alude a três dos temas mais caros ao escritor argentino Jorge Luis Borges — bibliotecas (ali representadas pela loja de livros usados), sonhos e labirintos. Não bastasse essa referência, Eustáquio Gomes ainda batiza um de seus personagens mais importantes com o sobrenome de um personagem borgiano, Funes. Neste Solombra, ele é
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1.4 Pós-leitura: investigação das intertextualidades e outras decifrações do enredo
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o motorista do Packard Twin Six que aparece como um fantasma, sempre que Quintana está se deslocando nos capítulos da parte 2, no que pode ser resultado de um delírio de quase morte — ou mesmo post mortem, não dá para saber com certeza — como vamos descobrir na parte 3. Bem verdade que os dois têm características distintas. O Funes de Borges é o “memorioso”, um personagem que adquire a capacidade pródiga de uma memória praticamente sem limites, capaz de lembrar e descrever os detalhes de tudo a partir de sua experiência.
Mas seria custoso não perceber que esse nome tem o radical de palavras como funesto, funerário, funeral, criando uma associação inequívoca com a morte, ainda mais no contexto de um carro preto clássico, fabricado nas primeiras décadas do século XX — peça aos alunos para pesquisarem imagens do Packard –, cujo motorista oferece carona, em estradas improváveis, em direção a lugares que muitas vezes nem sequer são nomeados, numa atmosfera repleta de incertezas, como também enfatiza a leitura do trecho 5 do tópico anterior.
Os alunos terão lido e formulado suas hipóteses sobre esta parte 2. Portanto, o debate com eles pode deixar essas informações para o final. Passemos a mais uma sessão de discussões sobre as referências da obra, com algumas questões sugeridas.
• Sobre os capítulos da parte 2, com todas aquelas experiências de viagem do persona gem Luís Quintana, o que vocês acham que de fato aconteceu? Lembrem que a parte 1 termina com o desaparecimento do livreiro após um acidente de carro em que o corpo não foi encontrado e cartas estão sendo enviadas para Diva e Luisito (esposa e filho).
• E o personagem Funes? Viram como é o carro que ele dirige? O que lhes parece sobre as circunstâncias em que ele surge nas estradas?
Peçam que leiam o conto “Funes, o memorioso”, de Jorge Luis Borges. Perguntem sobre se eles encontram alguma conexão entre o conto e o livro de Eustáquio Gomes. Falem a eles sobre as outras relações intertextuais com a obra do autor argentino.
Adiante na investigação das intertextualidades possíveis de serem observadas em O Vale de Solombra, encontramos o capítulo “nonada”, cujo título remete à palavra que abre o romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa (já citado como personagem) e é das últimas mencionadas em seu fecho. Ela quer dizer “coisa alguma” ou “o nada”. Mas Eustáquio Gomes trata o fato de modo peculiar: “A Benjamin nunca pareceu casual que o vice-cônsul, que era um escritor dado a inventar palavras e a recombiná-las (...), con cluísse sua obra-prima com o coleio de uma lemniscata” (p. 23).
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Vejam: lemniscata é o nome que se dá ao símbolo do infinito — ∞ — e o texto explora a coincidência de ter sido concebido pelo matemático August Moebius, cujo sobrenome é o mesmo de Aracy, esposa de Rosa. Mas cabe a pergunta aos alunos:
Por que o autor chama a palavra nonada de “coleio de uma lemniscata”?
(Não devemos limitar as respostas, mas é provável que tenha relação com a forma da palavra, já que “coleio” significa “movimento sinuoso”.)
A menção a grandes autores da literatura mundial, no jantar na casa de Quintana (p. 32), pode revelar um tanto do repertório de leitura do próprio autor, permitindo algumas especulações sobre seus gostos. Os personagens discutem o que teriam escrito os gênios das Letras se pudessem continuar a produzir depois de mortos, tendo a experiência do pós-vida. Quintana cita William Shakespeare, Miguel de Cervantes, Honoré de Balzac, Marcelo Proust, Thomas Mann, James Joyce e Jorge Luis Borges. Em seguida, especula sobre um “segundo volume das Memórias Póstumas” de Brás Cubas, de Machado de Assis, menciona os “buritis do mundo astral” que mexeriam com a imaginação de Guimarães Rosa e também as obras de François-René de Chateaubriand e Julio Cortázar. Sugerimos que o trecho seja relido como ponto de partida para uma pesquisa.
• Consultem a turma: “Se fossem vocês, participando desse jantar, que autores citariam na hora de dizer da sua curiosidade sobre o que eles teriam escrito depois de mortos?” Ou simplesmente: “Que escritores já mortos vocês leram e gostariam continuar lendo se for possível a comunicação com ‘o outro mundo’ como afirma a doutrina espírita?”
• Dividam a turma em grupos pequenos, em quantidade semelhante à dos dos autores citados. Peçam que pesquisem sua história, suas obras mais destacadas e alguns temas centrais de seus enredos. A proposta é apenas permitir, como na realização de um seminário, que todos ampliem seu conhecimento e sua curiosidade sobre esses artistas, trocando informações em apresentações breves.
As menções aos autores e suas obras tornam a intertextualidade desta novela bem evidente nos trechos citados. Mas, a exemplo do que ocorre com Funes, há outras refe rências mais sutis, como as que envolvem o personagem “Ebó” (p. 105). Ele é descrito como parecendo uma “criança disforme” que vem montada às costas de Richard Wilhelm — missionário, teólogo e sinólogo, feito personagem —, quando este chega para fazer uma conferência na cidade Tsingtao.
A esta altura a atmosfera onírica já dissipou algumas dúvidas quanto à possibilidade de os acontecimentos se darem no plano do real, na ordem da narrativa. Quintana chega
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de carro numa cidade chinesa, pensando ser o município de João Monlevade, em Minas Gerais. Ou seja, assume-se que é um território sobrenatural. Mas falemos do Ebó.
Logo Quintana percebe o equívoco e entende tratar-se de um “um chinês adulto”, de “meio metro”, cuja boca tinha “um rasgo horrendo”. O nome que o livreiro atribui ao pequeno vem do som que ele faz ao chorar, mas a palavra evidentemente alude ao termo iorubá que designa a “oferenda” e na cultura popular pode equivaler a um “feitiço” repa rador, feito para que alguém reencontre o equilíbrio. Por tudo, a escolha já renderia uma grande discussão com os alunos.
Mas fica melhor. Batizado o homenzinho, ele responde: “Melhor que Djin, melhor que Morlock, talvez melhor que Odradek. E muito melhor que Golem”, p. 107. Essas referências merecem atenção por parte dos leitores.
Pesquisem esses termos. Vejam qual é a sua origem e vamos conversar sobre eles. Afinal, o próprio autor deu a pista quando os chamou, em seguida, de “seres imaginários”
Para complementar a discussão:
Djin — na mitologia árabe, equivale ao ser místico do gênio.
Morlock — no livro A Máquina do Tempo, H. G. Wells dá esse nome aos seres humanoides descritos como habitantes dos subterrâneos do mundo no futuro.
Odradek — ser/personagem de Franz Kafka cujo aspecto é o de um carretel de linha, mas tratado de maneira infantil.
Golem — ser artificial associado à tradição mística do judaísmo.
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O
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2. Proposta de Atividades II
2.1 Pré-Leitura
Mesmo antes de começar a ler O Vale de Solombra, alguns questionamentos podem surgir. É compreensível se, na experiência de pré-leitura, manuseando o livro e lendo os textos de orelha e quarta capa, já depararmos com muitas provocações — os temas que pretende abordar são bastante universais; as conexões de sentido com outras obras são múltiplas e já anunciadas nessa apresentação; e, não menos importante, a chamada na orelha, “sombra, encanto e mistério”, apela à nossa curiosidade.
Mas algo pode não passar despercebido ao leitor mais atento. Ao se referir à obra, Hugo Almeida — que assina a orelha — chama-a de “romance”. No entanto, abaixo do título, na capa, há a inscrição de outro gênero: novela. Ora, é um romance ou uma novela?
A questão é recorrente e sempre suscita debates acalorados. As distinções para a crítica literária são muito claras, mas nem sempre se tornam quando aplicamos os critérios a produtos da criação humana que não pretendem — e não devem pretender, isso é impor tante — se “encaixar” em classificações. Se uma obra de arte pode ser assim designada, ela não precisaria, ao menos em tese, de nenhum rótulo ou coisa que o valha. O estudo dos gêneros literários também não deve servir apenas num viés de classificação, mas sim na ampliação de compreensões sobre os textos literários. É com ele que faremos compara ções, reconheceremos inovações, mudanças na forma de criar em diferentes épocas, com implicações no estilo e muito mais.
Para a crítica especializada, a novela é uma narrativa mais curta e objetiva que o romance e mais longa que o conto, concentrada nos eventos de um ou poucos personagens. No romance, a complexidade da trama pode permitir a existência de narrativas paralelas de mais núcleos de personagens e um ritmo bem distinto da novela, da qual se espera um planejamento de acontecimentos para manter o interesse do leitor com pequenos clímax ao longo da narrativa, sendo assim mais ágil.
Por tudo isso, devemos concordar que o livro de Eustáquio Gomes é uma novela, e das boas, escapando dos preconceitos com o termo e com o gênero, sustentados por parte da crítica.
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(Sobretudo para professores de outras áreas, que não de Língua Portuguesa e Literatura.)
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• Sem interferir muito na experiência de leitura que virá à frente, leiam para os estudantes um trecho selecionado do livro. Nele, o personagem Benjamin resolve acompanhar Quintana, o protagonista, numa visita à casa de sua ex-mulher. Depois, enfatizem as características que discutimos:
“Mas foi justamente o que aconteceu no dia em que aceitou acompanhar Quintana à casa de Sulamita. Mais uma vez o livreiro ia tentar uma solução conciliatória para o problema da pensão. Ia dizer a Sulamita que só precisava de um tempo para reorganizar sua vida. Na companhia do velho, ela se intimidaria e o ouviria até o fim. Assim pensava.
Deu-se o contrário. Sulamita tinha uma visita (um homem de terno claro e bigodes bem aparados) e a chegada de Quintana a aborreceu. Tomou Benjamin por seu advogado e se enfureceu de verdade. O visitante logo compreendeu o que se passava e despediu-se, prometendo voltar outra hora. Então seus gritos de histérica foram ouvidos à distância de um campo de futebol e muita gente saiu à janela para vê-los serem enxotados para a rua como dois leprosos”, p. 40.
É possível perceber no trecho a agilidade e a economia de palavras, duas caracterís ticas bem caras ao gênero da novela, ambas do domínio de Eustáquio Gomes, jornalista de formação e que desenvolveu sua paixão pela Literatura ao longo do período em que estudou no Seminário.
2.2- Leitura
Estrutura do texto:
o tempo na obra e a circularidade na narrativa
Ao fim da primeira leitura, é possível que tenham restado dúvidas sobre o desfecho do enredo — hora de retomar os apontamentos feitos pelos alunos para esta pergunta, nas Propostas de Atividades I. Agora, podemos situar essas incertezas e fazê-los pensar sobre o assunto.
Para isso, é importante discutir a estrutura da narrativa e como se dá o tempo na obra. Isto porque parte importante da operação de dar sentido a uma história é conseguir recompô-la na mente, mas nem sempre ela aparece como uma sucessão cronológica de acontecimentos. Em novelas e romances, é comum os fatos irem se desenrolando sob a batuta do narrador — seja ele personagem ou o chamado narrador onisciente, aquele que funciona como um deus na trama, sabendo de tudo mas contando aos poucos; o que, por sinal, é o caso aqui deste Solombra.
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Aqui e lá, as vozes dos personagens interferem, mas o ritmo, a apresentação dos acon tecimentos, a duração de cada um são formas de uma narrativa ser ordenada e criar uma noção própria de tempo. O chamado “tempo da narrativa” não se assemelha em nada ao tempo do relógio. Fatos que levam décadas para acontecer são conhecidos no ritmo de uma leitura de minutos. Mas o mais importante é reconhecermos que o escritor pode rearrumar as partes e os capítulos de sua narrativa tentando subverter a ordem dos acontecimentos dentro da lógica de “início, meio e fim”. Assim, uma cena que ajuda a compor o desfecho da trama pode aparecer no início do livro. Ou personagens podem relatar episódios de seu passado, e a narrativa voltar no tempo — tempo interno da trama –, para recuperar circunstâncias relevantes para os desdobramentos futuros da história.
Esta é uma discussão importante de ter com os alunos, para que percebam a enge nhosidade do escritor ao criar aquela noção de tempo. Vejamos o que eles podem dizer a partir de algumas provocações:
Alguém sabe dizer exatamente quando acontece essa história? Há alguma marca temporal reconhecível? Menção a fatos históricos? — Dê tempo para que voltem a folhear o livro antes de responder.
(Caso não encontrem, vale sugerir a releitura dos cinco primeiros capítulos — apenas seis páginas. Depois de ler o livro inteiro, já é possível entender que os dois primeiros transcorrem no tempo onírico do pós-acidente de Luís Quintana, algo impossível de saber no início da primeira leitura. Então, temos aí um exemplo de “deslocamento” proposital, feito para aguçar o sentido do leitor.)
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Se fizéssemos um diagrama para clarear essa sucessão, seria assim:
SEGUNDO A ORDEM DOS CAPÍTULOS
Capítulo a acauã Quintana na estrada, perdido. “Lembrou o dia em que se perdeu na mata fechada. Menino ainda.”
Capítulo o relógio Quintana lembra-se de Benjamin. “Tinha que admitir que havia certa confusão em torno daquela viagem.”
Capítulo a cacatua Quintana encontra uma casa na estrada. O roceiro menciona os monges que viveram ali.
Capítulo Benjamin “Um ano antes, dois aviões de carreira arremeteram contra duas torres” – menção ao 11 de setembro de 2001. Benjamin sonha com um sebo e o livro da mandala.
SEGUNDO A ORDEM DOS ACONTECIMENTOS
Capítulo Benjamin “Um ano antes, dois aviões de carreira arremeteram contra duas torres” – menção ao 11 de setembro de 2001. Benjamin sonha com um sebo e o livro da mandala.
Capítulo o livro “Meses depois Benjamin se viu diante de um sebo igual ao do sonho.” Primeiro encontro com Quintana e Diva.
Capítulo a acauã Quintana na estrada, perdido. “Lembrou o dia em que se perdeu na mata fechada. Menino ainda.”
Tempo vivido e compartilhado por Quintana, Benjamin, Diva e Luisito. Indicação do ano.
Capítulo o livro “Meses depois Benjamin se viu diante de um sebo igual ao do sonho.” Primeiro encontro com Quintana e Diva.
Capítulo o relógio Quintana lembra-se de Benjamin. “Tinha que admitir que havia certa confusão em torno daquela viagem.”
Tempo onírico vivido por Quintana, na atmosfera cheia de elementos sobrenaturais. Há outras indicações de marcas temporais nos capítulos da parte 2.
Capítulo a cacatua Quintana encontra uma casa na estrada. O roceiro menciona os monges que viveram ali.
O diagrama anterior não precisa ser reproduzido ou mostrado aos alunos. Em vez disso, será melhor ler o resumo dessa sucessão de acontecimentos e conversar sobre outros aspectos conectados às marcas temporais da obra. Observe alguns trechos que destacamos para serem discutidos, na recuperação das dúvidas sobre o enredo e que tem a ver com o tempo na narrativa.
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1 2 3 4 5
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1. “Novembro negro. Esta foi a expressão usada por Quintana para qualificar aquele mês e a constelação de misérias que sobreveio”, p. 47 — falido, uma sucessão de obstáculos vai se interpondo ao personagem.
2. “Numa segunda-feira de manhã, quando abria a porta da livraria, foi detido. [...] Na manhã seguinte Benjamin foi esperá-lo à saída do presídio”, p. 48.
3. “Naquele mesmo dia, Quintana lhe disse que ia sumir por uns dias. [...] Durante uma semana não se soube dele”, p. 49. Ocorre o acidente e o corpo fica desaparecido.
4. “Duas semanas de busca, ao longo e ao largo do rio, resultaram em nada”, p. 51.
5. “Um mês depois, sob pressão dos credores, o juiz Alcindor ordenou o arresto dos bens de Quintana”, p. 61.
Ora, podemos ver que nesses trechos o autor narra uma sequência de fatos que são desdobramentos uns dos outros ocorrendo numa percepção de tempo bastante linear e próxima da que temos na realidade. Porém, isso há de mudar na parte 2, quando Quintana faz sua viagem no mundo do sonho — ou da pré-morte. Outro trecho precisa ser revisitado, quando Benjamin consola Diva.
• Peçam a um aluno para ler em voz alta: “Dizem que nos instantes finais uma pessoa pode rever toda a sua vida passada. Há quem diga que ela também é capaz de viver uma outra vida inteira em frações de segundo. [...] Em certos estados de espírito a vida cabe em uns poucos segundos. Você pode percorrê-la inteira antes que o ponteiro dos segundos dê meia volta no relógio. Ao mesmo tempo, você é capaz também de dizer o que se passa com você naquele instante mesmo. E nem sempre o que se passa com você está na ordem das coisas que compreendemos. Muitas vezes você pode estar em mais de uma dimensão do tempo. Pode, por exemplo, avançar e recuar no tempo. Dizem que em certas circunstâncias o tempo é uma matéria elástica, como um tecido muito leve que se contrai e se distende ao máximo, sem que se rompa” (pp. 65 e 66).
Mais que uma visão esotérica ou metafísica, o personagem de Benjamin Ventura fornece uma chave de entendimento não apenas para o ordenamento dos capítulos da novela como para os próprios acontecimentos que se darão na parte 2 e no desenlace da trama, ao final. No entanto, os alunos podem chegar a essa conclusão por eles mesmos ou elaborar outra hipótese. Cabem algumas questões, após a leitura:
Que relação vocês veem entre esse trecho lido e os acontecimentos da parte 2 da novela?
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Vocês perceberam se houve alguma “repetição” entre fatos narrados na parte 2 e/ou alguma relação desses fatos com a vida anterior de Quintana?
(A narrativa adquire um caráter circular e há muitos pontos de conexão que pare cem confirmar as ideias de Benjamin no trecho acima. A recriação da livraria na atmosfera onírica, a relação com a mulher de olhos melancólicos, a construção de um novo jardim de borboletas. Estimule os alunos a buscar outros exemplos.)
E se essas viagens de Quintana forem um delírio de quase morte ou mesmo uma vida após a morte? Quem aqui acredita na vida após a morte?
Essa questão dará margem a depoimentos ligados às crenças religiosas dos estudantes. É fun damental respeitar a diversidade de visões quanto à doutrina e a fé de cada um. Polêmico como possa parecer, o assunto faz parte da vida de muitos. Deve prevalecer o desejo de contemplar formas distintas de “explicar” o que pode ser difícil segundo as ciências empíricas. Também se pretende desenvolver a competência de compreender os processos identitários desses leitores, na prática dialogal e na consideração sobre seus contextos sociais, políticos e religiosos — como sugere a BNCC (Linguagens e suas Tecnologias). Mas há outro gancho a ser explorado.
O livro aborda temas e discussões caras ao taoísmo, mencionando o I Ching, O Livro das Mutações, cuja origem data de mais de mil anos antes de Cristo. É das obras mais importantes da filosofia oriental, com aplicações em diferentes áreas da atuação humana — da psicanálise à música.
Proponham uma pesquisa sobre esta e outras doutrinas da cultura oriental, para que seja possível um debate posterior.
Nota: também não deve nos escapar a caracterização do racismo na fala de Quintana, tanto no trato pejorativo da palavra “negro”ao se referir ao mês de novembro quanto na recorrência com que a utiliza para mencionar o personagem Tião — releia com os alunos a página 96. A discussão será mais rentável se todos perceberem como a linguagem é mobilizada em discurso de forma muitas vezes imperceptível para quem não é vítima de preconceito.
2.3 Pós-leitura — Geografias imaginárias e paisagens ficcionais
Outro aspecto a ser explorado nessa segunda leitura requer uma atenção especial à descrição das paisagens e tudo o que está relacionado a elas, em especial as árvores e os pássaros. Alguns desses elementos são fáceis de lembrar porque aparecem muitas vezes na trama. Partindo dos mais citados, pergunte:
Quem aqui sabe o que é um acauã? Quem já ouviu o canto do acauã?
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(Há vídeos no Youtube que reproduzem o canto desse pássaro, que se assemelha a um falcão e come serpentes.)
O livro cita uma quantidade de espécies vegetais — salgueiros, buritis, estrelítzias, coroas de pau-ferro — e outra quantidade de animais (aves, especialmente) — cacatua, papagaio, arara, jandaia do apuim, maritaca, maracanã e outras. Façam uma pesquisa sobre essas plantas/árvores/frutas e outra sobre esses bichos. A ideia é descrever cada um e procurar identificar as regiões em que podem ser encontrados.
Essa atividade deve ser ponto de partida para uma discussão mais longa com os estu dantes. Afinal, os cenários naturais ou artificiais do mundo só se convertem em paisagem quando alguém os descreve, portanto quando alguém os transforma em discurso. O fato de eles existirem, simplesmente, não garante que vão adquirir os sentidos mais peculiares, fornecendo dados para a memória e para os nossos afetos.
O narrador descreve o movimento de uma ave no alto de um ripado e menciona a dúvida de Quintana sobre que pássaro seria. “Antes sabia distinguir [...]. Hoje só com muita dificuldade”, p. 13. As lembranças de quando se perdeu na mata, ainda menino, da tempestade que se abateu sobre ele, enfim, todas as memórias dos lugares guardam rela ção com a nossa capacidade de dar nome, reconhecer ou inventar formas de caracterizar os ambientes. Ao fazer isso, eles adquirem outra importância pessoal e para as histórias que contamos.
Na literatura não é diferente. É preciso reconhecer o uso desse recurso tanto quanto compreender que papel exerce em cada momento.
Questionem a turma:
Afinal, vocês podem descrever o lugar em que vivem hoje a partir dessas características do ambiente?
E que lembranças têm do aspecto físico dos lugares em que viviam na infância (isso, claro, se não for o mesmo de hoje)?
Já pararam para pensar sobre se a memória de vocês se alterou com o passar dos anos e tornou maior “aquela ladeira onde caíram de bicicleta”? Ou se fez com que a árvore do quintal se tornasse mais bonita e frondosa do que realmente era?
Não é só a memória, mas o fato de vocês contarem. Quantas vezes contaram, descre vendo, as paisagens em que viveram ou visitaram?
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Porém, O Vale de Solombra também reúne uma quantidade de relatos sobre geografias improváveis, do imaginário do protagonista que, àquela altura na primeira leitura, não se sabia se morreu, se sonha ou se de fato vive numa dimensão que a princípio parece insólita, mas logo se revelará algo sobrenatural.
Vamos deixar alguns desses elementos para abordar no próximo tópico, aprofundando a questão ao recuperar umas poucas noções sobre o gênero literário conhecido como Realismo Maravilhoso. Por ora, vamos nos concentrar nas experiências de Luís Quintana.
Ele descreve a primeira trilha até a vila sem nome onde vai se hospedar na pensão de Domitila: “Plantações. Várzeas. Lezírias.”. O leitor, sem saber exatamente onde é o lugar, descobre que Funes está a caminho de Curvelo — nome de uma cidade de Minas Gerais. Mas ali encontra um bairro chinês, casas com lanternas vermelhas iluminando as suas portas, mulheres usando quimonos de seda malva, onde se pode encontrar telhadilhos de pontas repuxadas e festas ao som de gramofones
Questionem:
Esse cenário descrito se assemelha com algo que vocês conhecem no Brasil, nos tempos de hoje?
Será que existe um bairro chinês em alguma cidade de Minas Gerais?
(Pode haver o estranhamento no momento da leitura ou a naturalização de tudo o que está sendo descrito como próprio do mundo da fantasia. Mas não devemos perder a oportunidade de questionar esse aspecto.)
Em outra viagem no Packard, Quintana imagina estar próximo a Monlevade (que pode remeter ao nome da cidade mineira de João Monlevade). Estranha o “intenso tráfego de bicicletas, carroças e riquixás”, p. 98. “Monlevade havia muito ficara para trás. A esta cidade espaçosa e turbulenta os chineses chamavam Tsingtao.”
Portanto, o leitor está na presença de algo realmente insólito. Um carro que numa mesma estrada passa por uma cidade mineira e chega a uma chinesa.
No que pode ser a terceira viagem da parte 2, Quintana está num país muçulmano, repleto de mesquitas e detalhes de arquitetura árabe. A esta altura, já não há qualquer dúvida quanto ao caráter fantasioso dessas geografias. Mas cabe destacar que, apesar de haver, aqui e lá, um nome para os lugares, há mais incertezas do que explicações objetivas
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sobre como aquilo é possível. E, no entanto, os leitores podem formular suas próprias ideias sobre os ambientes a partir desses elementos ricos de significação para situar a narrativa nesse mapa ficcional.
Peçam aos alunos que pesquisem em mapas digitais onde ficam esses lugares mencionados.
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3. Aprofundamento
3.1 O Realismo Maravilhoso
Na leitura da obra, enfatizamos várias questões que rementem à presença de circuns tâncias um tanto insólitas (até para o protagonista), mas que vão dissipando as dúvidas do leitor quanto à possibilidade de não terem origem no plano sobrenatural. Pelo que discutimos até aqui, fica claro que as viagens de Quintana estão, como já dissemos, no campo do onírico.
Mas como se comporta o leitor diante dos efeitos desse elemento sobrenatural? Será sempre da mesma maneira?
As pesquisas sobre gêneros literários posicionam o elemento sobrenatural próximo ao Fantástico (quando as circunstâncias de uma narrativa são aparentemente sobrenaturais mas, no desfecho, permanece a dúvida sobre se pode haver uma explicação amparada por leis naturais), ao Maravilhoso (quando naturalizamos, como leitores, o elemento sobrenatural, aceitando que na ordem do discurso ele faz todo sentido; em livros para crianças, quando o texto sugere que “o elefante disse”, estamos no território do Maravilhoso, porque o bicho “não fala”, segundo as leis naturais, mas admitimos no plano da fantasia) e também ao Realismo Maravilhoso.
No Realismo Maravilhoso, há uma natureza mágica agindo. Mas, aos olhos do leitor, não é preciso colocar o real e o irreal em polos opostos, fixando-os a uma distância segura. Nesse gênero, o leitor não tende a se espantar — talvez estranhe um pouco, a princípio, as circunstâncias aparentemente insólitas –, mas de certa forma reconhece seu caráter extraordinário com naturalidade. Ele assume serem possíveis aqueles even tos na ordem da história, sem que para isso se confunda como um devoto ou crédulo daquela ação sobrenatural. Tudo parece partir do real, mas há o sobrenatural como algo que integra o contexto.
Há uma espécie de encantamento que age sobre a percepção dos personagens e também do próprio leitor. Nesse plano, os discursos mais próximos à natureza religiosa ou mítica tendem a aparecer com destaque, na composição dos enredos. Daí a entendermos como coerente na ordem da narrativa a presença do I Ching, dos elementos do taoísmo na trama.
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Voltando ao enredo, logo nos primeiros capítulos da onírica parte 2, depois de entrar no Packard de Funes, o carro segue em descida interminável entre “paredões de pedra” formando “gargantas tão estreitas, que nelas não cabia mais que um veículo [...] E a descida era íngreme”, (p.75). O que parece a descida ao inferno (de Dante. Lembram da epígrafe?) leva Quintana a encontrar Domitila. Ela diz: “Já sei, Funes mandou o senhor para cá. Ele sempre me manda os perdidos deste e de outro mundo”, (p.80).
O que se segue adiante é uma sucessão de ocorrências no mínimo improváveis, mas que vão sendo aceitas naturalmente por Quintana e também, muito possivelmente, pelo leitor. Para compreender melhor esse território fértil às circunstâncias místicas, devemos propor outras leituras e atividades que aprofundem o espírito crítico dos estudantes sobre o gênero do Realismo Maravilhoso.
3.2 — Proposta de produção de texto
No romance Terra Sonâmbula, do escritor moçambicano Mia Couto, uma das epígrafes antecipa a fala do protagonista, o velho Tuahir: “O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro”.
Mia Couto é das vozes mais marcantes da Literatura Africana de todos os tempos. Traduzido em muitos idiomas ele fez chegar a diferentes partes do mundo histórias com enredos surpre endentes, encantadoras por seu exercício inventivo (na verdade, reinventivo) da linguagem. Nelas, a riqueza da cultura de seu continente se reflete nas descrições dos personagens, na elaboração de tramas que investem com frequência nos episódios que chamaríamos de sobrenaturais, mas que são até certo ponto triviais no plano do animismo africano. Daí a recorrência com que sua obra é compreendida nos termos do Realismo Maravilhoso.
Sendo assim, queremos propor duas leituras de contos bem curtos daquele escritor, ambos do livro Na Berma de Nenhuma Estrada (Companhia das Letras, 2015). O pri meiro se chama “A Morte, o Tempo e o Velho”. O segundo é o conto que dá título à obra. Vejamos um trecho:
“— A senhorinha segue na cidade?
— Não, vou para a outra, a seguinte.
— É que depois não há mais cidade. Depois não há mais lugar nenhum.
— É exactamente aí que eu vou.
Riem-se. Dizem que sou louca. Por pouca sorte, não sou. Quando somos loucos a vida nunca nos faz mal. Eu sou é de outra vida, não venho de ninguém, nem vou para nenhum Deus.”
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• Peçam a dois ou mais voluntários para lerem os contos em voz alta para a turma. Depois discutam o que exatamente nessas narrativas estabelece o caráter do mara vilhoso, algo próximo do sobrenatural. Então perguntem que relação eles veem entre essas histórias de Mia e o enredo de O Vale de Solombra
Com base nessas reflexões e leituras, proponham aos estudantes a escrita de uma nova viagem, a outro lugar diferente, onde Quintana não esteve.
• Gostaríamos que vocês produzissem um texto, como se fossem acrescentar um novo trajeto ao destino de Luís Quintana, na parte 2 do livro. Vocês devem considerar esse clima de sonho, escrever dentro do espírito de imaginação livre sobre a geografia do futuro destino, mas raciocinando sobre como as viagens anteriores foram narradas e o que elas têm em comum.
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4. Sugestões de referências complementares
Livros, filmes, séries, álbuns
a) O ofício de Quintana e Diva n’O Livro Azul nos remete a uma incrível quantidade de filmes nos quais pequenas livrarias são o cenário principal e de certa forma o mote para que uma cultura de paixão pelos livros e suas histórias se perpetue. É possível encontrar muitos deles em plataformas digitais de maneira a assistir com suas turmas, em atividade complementar à leitura desta novela. Um deles é A Livraria (The Bookshop), filme da catalã Isabel Coixet, com roteiro adaptado a partir do livro homônimo de Penélope Fitzgerald — também lançado no Brasil em tradução de Sonia Coutinho.
b) Outro filme que merece a audiência dos leitores de O Vale de Solombra é Meia-Noite em Paris (2011), de Woody Allen. O enredo apresenta um escritor em crise que está na capital francesa com a esposa e a família dela e encontra a possibilidade inusitada de “viajar no tempo” para encontrar, no intervalo de algumas noites, alguns dos artistas mais importantes do século XX — os escritores Ernest Hemingway, Scott e Zelda Fitzgerald, Gertrude Stein, T. S. Eliot, os pintores Pablo Picasso, Salvador Dalí, Henri Toulouse-Lautrec e Paul Gauguin, o músico Cole Porter, entre outros. A relação com o livro de Eustáquio Gomes se torna ainda mais curiosa porque o protagonista do filme faz essa viagem como numa atmosfera de sonho, após entrar num carro antigo que aparece para ele sempre à meia-noite (daí o título do filme), tal e qual Quintana vem a ter suas experiências no intervalo entre vida e morte, após entrar no Packard de Funes. Ao assistir ao filme juntamente com os alunos, há uma série de aspectos que devem ser enfatizados e que são comuns às duas obras: a função política e existencial do artista, os lugares da criação e do sonho, a formulação narrativa que contrapõe realidade e fantasia.
c) Na parte 2 do livro, no capítulo intitulado o gato, Quintana chega a uma cidade muçulmana, repleta de mesquitas e outros elementos da cultura árabe — minare tes, artefatos de entalho em pórticos, lembrando o formato de cimitarras (espada de lâmina curva, típica do mundo árabe) etc. A riqueza dos temas e das histórias daquela cultura também pode ser explorada por professores e alunos a partir das boas traduções de As Mil e Uma Noites, clássico da tradição oral cujas primeiras versões escritas encontradas no Oriente Médio datam do século IX. Mas tão bom
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quanto será a leitura dos livros de Malba Tahan, o grande escritor e professor brasileiro Júlio César de Melo e Souza que utilizou o pseudônimo para atrair o interesse nacional para as histórias do deserto, em que sultões, vizires e beduínos deparam com enigmas e desafios morais, vivem aventuras e peripécias cercadas pelos mistérios e costumes islâmicos. O Homem que Calculava já teve mais de 90 edições no Brasil, se tornando um clássico. Além dele, muitos outros são imperdí veis: Maktub, Contos e Lendas Orientais, O Céu de Allah, A Caixa do Futuro, Lendas do Povo de Deus e As Aventuras do Rei de Baribê.
d) Publicado em 1993, o livro de John Kerr que trata da relação entre Jung, Freud e Sabina Spielrein deu origem a um filme incrível — Um Método Perigoso (2012), de David Cronenberg —, que pode perfeitamente ser visto por estudantes curio sos de recuperar o debate e as polêmicas envolvendo dois dos maiores nomes da Psicologia e da Psicanálise no mundo. As cenas em que Freud acusa Jung de ser “pouco científico” ou até mesmo algo dado ao pensamento “esotérico” são muito lembradas, mas demandam uma discussão mais aprofundada que se relaciona com as visões de Benjamin e Quintana no livro. Afinal, tudo nesse mundo se explica pela observação ou há coisas que demandam outros métodos (perigosos)?
e) Os “diálogos” do livro com a cultura oriental, em especial a chinesa, são nume rosos. Mas o que de fato sabemos sobre a nação mais populosa do planeta hoje? Para além das ideias preconceituosas e mal informadas sobre aquele país, há um mundo a explorar. Portanto, a pesquisa a elementos culturais chineses, hábitos comportamentais e históricos deve ser embasada em boas fontes. Duas delas estão traduzidas em português e editadas aqui. Os livros Compre-me o Céu e As Boas Mulheres da China, da jornalista e radialista Xinran, radicada na Inglaterra, trazem relatos contundentes sobre as opressões e a força de resistência que marcam a vida de muitos chineses. Será preciso contextualizar os alunos e mostrar que, num país com quase um quinto da população mundial, é grande a diversidade de visões e experiências, não sendo possível reduzi-la à leitura de dois livros. Mesmo assim, será muito proveitoso.
f) O Vale de Solombra também estabelece uma ligação simbólica evidente com as narrativas da estrada. Ainda que de forma um tanto peculiar, porque os episódios estão ocorrendo numa zona incerta entre o sonho e a realidade, entre a vida e a morte, ainda que na primeira leitura não seja possível fixar isto, há um clima bem próprio à configuração de algo possivelmente sobrenatural, como já vimos. De todo jeito, mesmo que com distinções claras entre os personagens envolvidos, as metá foras da estrada seguem poderosas na provocação do espírito de leitores sensíveis aos sentidos conectados ao ato de lançar-se no mundo, enfrentando os perigos,
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fugindo ou buscando, perdendo-se ou encontrando-se. Eis o porquê de reviver mos os mitos de Homero em sua Odisseia, de acompanharmos contos populares como o da Chapeuzinho Vermelho, que avança pela estrada afora, ou o movimento errante do retirantes de Graciliano Ramos em Vidas Secas. A aventura humana está ali descrita e ressignificada no deslocamento. A exemplo das citadas, muitas outras histórias podem mexer com o imaginário do jovem sobre o assunto. Gostaríamos de destacar uma: Terra Sonâmbula, do moçambicano Mia Couto. Não apenas por se tratar de um enredo envolvendo um menino e um velho percorrendo estradas como se fossem dois fantasmas fugindo da guerra, mas porque o próprio tema subjacente ao título é essa atmosfera particular do sonho (ou talvez do pesadelo), dos caminhantes que se espantam com o que vão encontrando pelo caminho, onde nada parece ou deveria ser real.
g) As discussões em torno da existência, o confronto entre a racionalidade voltada para o pensamento pragmático da experiência (“Só acredito no que vejo”, como diz Quintana) e o olhar aberto às possibilidades de sentido presentes nas diferentes doutrinas do pensamento oriental sobre tudo o que é imaterial nos lançam obri gatoriamente em um campo de investigação próprio à filosofia. Nessa abordagem, uma referência complementar interessante para apresentar aos estudantes e propor conversas é a série de televisão catalã Merlí — escrita por Héctor Lozano e Eduard Cortés. Ambientada no ensino médio de uma escola em Barcelona, a produção tem como protagonista um professor de filosofia que usa de recursos nada convencio nais para despertar o interesse de seus alunos pelo pensamento dos filósofos. O resultado mexe com a história dos personagens e deixa questionamentos ótimos para instigar os alunos espectadores.
h) Outra temática apaixonante e inevitável do livro envolve as cartas enviadas por Quintana, que papel elas têm na trama, mas também seu forte caráter simbólico. Ainda que aparentemente em desuso, a carta está no imaginário da humanidade e, portanto, nas manifestações estéticas como objeto de afeto, revelações e reviravoltas nos enredos desde sempre. No livro, elas estão envolvidas em mistério. Mas há mil referências em que cumprem outras funções. Que tal propor aos seus alunos outra leitura envolvendo cartas? No livro Ana e Pedro — Cartas, Vivina de Assis Viana e Ronald Claver fazem seus personagens trocarem impressões escrevendo um para o outro e relatando seu cotidiano, suas buscas e sonhos. É claro, também é enrique cedora a leitura das correspondências não ficcionais, frequentes entre escritores. Nesse caso, cabe indicar Correspondências, livro que reúne 70 cartas escritas por Clarice Lispector e 59 de interlocutores os mais variados.
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i) A falsa oposição entre ciência e os chamados discursos não objetivos merece uma reflexão a partir dos variados exemplos em que a literatura, em especial a ficção científica, impulsionou a imaginação de pesquisadores em suas inovações. Grandes descobertas da ciência só foram possíveis porque antes essas histórias provocaram a formulação de ideias mais tarde desenvolvidas. A lista de sugestões poderia ser bem mais extensa, mas nos parece que o debate já será proveitoso, se professores e alunos conhecerem as obras de Julio Verne — em particular Vinte Mil Léguas Submarinas, A Volta ao Mundo em 80 Dias, Viagem ao Centro da Terra e Da Terra à Lua , de Aldous Huxley, em O Admirável Mundo Novo, e Ray Bradbury, em Fahrenheit 451.
j) Ainda que não escrito sob a forma de folhetim, O Vale de Solombra prima pela eco nomia de palavras e capítulos curtos, algo importante para o gênero. Sabendo disso e lembrando que o autor publicou um romance de folhetim no jornal O Estado de S. Paulo — Jonas Blau (depois editado pela Brasiliense) –, nos parece válido sugerir outros romances que foram originalmente criados para a publicação em jornais. Dos maiores clássicos da literatura brasileira foram assim escritos: Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, e Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. Imperdíveis.
k) O álbum Livro, de Caetano Veloso, além de celebrar a paixão de Quintana e Benjamin pelas edições, nos aproxima de outros temas caros ao pensamento e aos exercícios da linguagem. É para escutar lendo as letras. Lindo.
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5. Bibliografia comentada
A novela de Eustáquio Gomes é repleta de referências a outras obras, fazendo menções ora mais sutis ora explícitas a conceitos de diversos campos do conhecimento. Como propusemos neste Manual, questões relativas ao embate entre pragmatismo e utopia, ceticismo e credulidade, a visão material do mundo e a visão metafísica descortinam novas e muitas vezes difíceis perguntas. Mesmo assim, é importante apontar direções se procuramos diversificar nossos instrumentos de interpretação da realidade e tudo o que a envolve, em especial as obras de arte.
Seja numa perspectiva de enriquecimento cultural ou a partir de uma demanda da compreensão profunda dos múltiplos sentidos escondidos nas camadas da narrativa, o caminho importa sempre mais do que o destino. Daí a variedade de obras de referência que podem se relacionar com aspectos abordados até aqui e observados na leitura ou na releitura de O Vale de Solombra. Elas investigam noções facilmente relacionadas ao enre do principal, mas também a outros motivos que vão aparecendo à medida que a trama é construída. Por vezes é no detalhe, ou na pista deixada pelo autor, que se esconde um universo de outros enigmas a serem decifrados por vocês e por seus alunos.
Mas não vejam essa lista como material de estudo centrado em determinados propósitos deste ou de qualquer livro. A ideia é contribuir para o alargamento de sua abordagem da obra literária, sabendo ser esse um percurso incerto, mas potencialmente rico se pro curamos boas fontes de reflexão. Entre outras razões porque não temos a pretensão de esgotar os temas no diálogo com estas ideias. Portanto, após ler os comentários aos títulos a seguir, já é possível exercitar a memória e procurar as conexões com a história de Luís Quintana, Benjamin, Luisito e os demais personagens da novela.
BACHELARD, Gaston. A Poética do Devaneio. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
Não tanto porque Bachelard recupera ideias de Jung — autor importante para alcançar outros sentidos no livro de Eustáquio Gomes — mas especialmente pela abordagem que faz da relação entre a imaginação e os psiquismos humanos, A Poética do Devaneio há de provocar uma série de reflexões sobre os lugares do sonho — acordado ou dormindo — e o ofício de quem escreve literatura.
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BERNARDO, Gustavo. O Livro da Metaficção. Ilustrações de Carolina Kaastrup. Rio de Janeiro: Tinta Negra Bazar Editorial, 2010.
Um romance que conte a história de outro romance. Um filme no qual o espectador veja o personagem encenando outro filme sobre como os filmes são feitos. Eis alguns exemplos do fenômeno que leva Gustavo Bernardo a se perguntar: “Por que a ficção precisa falar tanto da própria ficção?”. Embora as questões que levanta sejam filoso ficamente complexas, o maior mérito da obra está na clareza com que desvenda esses enigmas conceituais que continuamente nos são colocados pelas boas obras de arte.
CHIAMPI, Irlemar. O Realismo Maravilhoso. São Paulo: Perspectiva, 2008.
Este é provavelmente o livro mais completo e criterioso na abordagem do conceito que tangencia outros — como o Fantástico e o Maravilhoso — muitas vezes confundindo leitores e pesquisadores quanto à suas marcas de distinção. O volume é teórico, mas não deixa de abrir muitas perspectivas de sentido para quem já se encantou com as narrativas de Gabriel García Márquez e do cubano Alejo Carpentier.
COSTA, Max. MELO, Thiago. Uma Introdução à Metafísica. Curitiba: InterSaberes, 2015.
O tema metafísico tão explorado no romance pode ser ampliado em compreensão, se o professor for aos conceitos que norteiam aquela ciência — partindo de Aristóteles, em sua abordagem da Filosofia Primeira, passando pelo argumento ontológico e a Crítica de Kant até os argumentos que procuram explicar os fenômenos mais com plexos (ou talvez de fato inexplicáveis) propondo alternativas às leis do mundo físico.
ECO, Umberto. O Nome da Rosa. Tradução de Aurora Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
Dos maiores clássicos da literatura publicados no século XX, O Nome da Rosa mistura elementos de literatura policial e romance histórico. Na trama, que se passa num mosteiro beneditino no século XIV, ocorre uma série de assassinatos de monges e a investigação do frade franciscano William de Baskerville — personagem que alude a Sherlock Holmes — acompanhado de seu assistente Adso (Watson). O tema dos livros proibidos mobiliza parte importante da intriga.
ECO, Umberto. Sobre a Literatura: ensaios. Rio de Janeiro: Record, 2003.
Estão aqui reunidos alguns dos ensaios mais instigantes do escritor e teórico italiano, percorrendo temas como as funções da Literatura, estilo e símbolo. Em dois dos textos, a menção a Borges faz pensar sobre a sua utilização da cultura universal como componente do jogo textual entre escritor e leitor. Mas também despertará grande interesse o artigo sobre a Ironia Intertextual e os Níveis de Leitura.
JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Tradução de Maria Luiza Appy e Dora Mariana Ferreira da Silva. Petrópolis: Vozes, 2000.
O autor transformado em personagem neste livro merece ser lido sempre, em especial por uma de suas proposições mais inquietantes: há aspectos do comportamento humano que não podem ser explicados segundo a experiência individual ou a ação do inconsciente de uma pessoa, mas sim a partir de formas de psique que estão
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“presentes em todo tempo e todo lugar”, como arquétipos compartilhados. A repe tição desses motivos ou temas na História reforça a importância de Jung para muito além dos estudos da Psicologia. Suas ideias contribuem para a análise de diferentes fenômenos: da literatura à música e muito mais.
MACHADO, Ana Maria. Como e Por que Ler os Clássicos Universais desde Cedo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
A construção de um repertório de leitura que permita ao indivíduo aumentar os seus horizontes de significação são o mote para que Ana Maria Machado recupere uma série de histórias universais e atemporais, para refletir sobre o prazer que elas podem proporcionar. É obra fundamental para professores de todos os segmentos, proble matizando também as condições de existência do texto literário nas salas de aula.
MINDLIN, José. Uma Vida entre Livros: reencontros com o tempo. São Paulo: Edusp/ Companhia das Letras, 1997.
Nesta belíssima edição ilustrada, o bibliófilo conta sua história, recheada de casos interes santes, mas discute também a paixão pelos livros, revendo os elementos constituidores da cultura na qual se inserem os profissionais de encadernação — como a persona gem Diva —, editores, livreiros, gráficos e escritores. Do prazer sensível de tocar e folhear as páginas aos grandes sentidos da leitura, a obra vai muito além da biografia de um colecionador.
POUILLON, Jean. O Tempo no Romance. Tradução de Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Cultrix, 1974.
Diferente de muitas obras teóricas que se detêm especialmente sobre a intriga para esta belecer uma visão crítica sobre o gênero, o livro de Pouillon segue provocador na na análise a partir da elaboração temporal e tudo o que a envolve — noções como a da cronologia dos acontecimentos, termos como passado, presente, futuro e mesmo o ritmo da narrativa e mais.
SCHÜLER, Donaldo. Teoria do Romance. São Paulo: Ática, 2000.
A obra do professor Donaldo Schüler promove o debate sobre o gênero, abordando alguns dos seus conceitos mais fundamentais — intertextualidade, narrador, personagem, tempo, espaço e imaginação — e investindo sobre exemplos retirados de alguns dos maiores romances da literatura universal.
SPERBER, Suzi Frankl. Ficção e Razão: uma retomada das formas simples. São Paulo: Aderaldo & Rothschild/FAPESP, 2009.
A partir das narrativas orais, universais e dos contos de fadas, Suzi Sperber reúne nesse livro discussões teóricas que não miram apenas os grandes estudiosos da matéria literária. Justamente porque é na linguagem comum, no que é próprio à fala e à escrita dos homens em seu tempo e lugar que repousa o seu olhar revelador.
STIERLE, Karlheinz. A Ficção. Tradução de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Caetés, 2006.
Neste volume curto está a grande contribuição de Stierle para pensar modalidades já investigadas por muitos outros autores, desde Aristóteles até Heidegger, e colocar
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em questão as relações entre ficção, realidade e imaginário, chegando à discussão sobre os lugares da ficção e da teoria da literatura.
VALLADARES, Henriqueta do Couto Prado (org.). Paisagens Ficcionais: perspectivas entre o eu e o outro Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.
A coletânea de artigos tem como ponto de convergência as “viagens” empreendidas por autores que acabam por “ficcionalizar a si mesmos”. São reflexões nas quais o leitor vai compreendendo como é criada uma nova cartografia a partir das construções do imaginário social. Estas análises dialogam intensamente com O Vale de Solombra.
VARGAS, Suzana. Leitura: uma aprendizagem de prazer. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.
Os longos anos de experiência de Suzana Vargas à frente de cursos e projetos de promoção da leitura a levaram a conduzir essa reflexão bem fundamentada conceitualmente e de máximo interesse para educadores de todos os níveis. As discussões sobre o papel das Rodas de Leitura e a “arte de ler em grupo” são contribuições decisivas para a formulação de manuais como este que vocês têm nas mãos.
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O Vale de Solombra
O vale de Solombra Eustáquio Gomes
ISBN: 978-65-88439-01-2
Temas: Os mistérios da vida e da morte, muito além dos limites do conhecimento e da mente humana sobre ambos
Gênero: Novela
Ensino Médio
Paratexto de apoio ao aluno e material digital: Ricardo Benevides
LFE
EDITORA, CONSULTORIA
E NEGOCIOS LTDA
Rua João Pereira, 81 | Conj22 São Paulo | SP | 05074-070
1ª edição 2021
Ricardo Benevides é escritor, professor adjunto da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e Doutor em Literatura Comparada (Uerj, 2010).
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Vale de Solombra Eustáquio Gomes MATERIAL DIGITAL DO PROFESSOR Por Ricardo Benevides ISBN (13) 978-65-88439-01-2
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