Quem Teme a Morte de Nnedi Okorafor

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Nnedi Okorafor

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tradução

Mariana Mesquita

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Título original: Who fears death Copyright © 2012 by Nnedi Okorafor 1a edição – Abril de 2014 Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009 Editor e Publisher Luiz Fernando Emediato Diretora Editorial Fernanda Emediato Produtora Editorial e Gráfica Priscila Hernandez Assistente Editorial Carla Anaya Del Matto Auxiliar de Produção Editorial Isabella Vieira Modelo de Capa Jade Almeida Foto por Edgard Chaves Capa Alan Maia Diagramação Megaarte Design Preparação de Texto Marcia Benjamim Revisão Rinaldo Milesi Josias A. Andrade

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Okorafor, Nnedi Quem teme a morte / Nnedi Okorafor ; tradução Mariana Mesquita. -- 1. ed. -- São Paulo : Geração Editorial, 2014. Título original: Who fears death? ISBN 978-85-8130-159-4 1. Ficção - Literatura juvenil I. Título. 13-01732 CDD-028.5 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura juvenil 028.5 GERAÇÃO EDITORIAL Rua Gomes Freire, 225 – Lapa CEP: 05075-010 – São Paulo – SP Telefax : (+55 11) 3256-4444 E-mail: geracaoeditorial@geracaoeditorial.com.br www.geracaoeditorial.com.br Impresso no Brasil Printed in Brazil

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Parte 1

TORNANDO-SE

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Capít ulo 1

O ROSTO DO MEU PAI

M

inha vida desmoronou quando eu tinha dezesseis anos. Papai morreu. Ele tinha um coração tão forte, mas ainda assim morreu. Terá sido por causa do calor e da fumaça oriundos de sua oficina de ferreiro? É verdade que nada poderia afastá-lo de seu trabalho, sua arte. Ele amava fazer o metal se curvar para obedecê-lo. Mas seu trabalho parecia apenas fortalecê-lo; ele era tão feliz em sua oficina. Então o que o matou? Até hoje não tenho certeza. Espero que não tenha tido nada a ver comigo ou com o que fiz no passado. Imediatamente após sua morte, minha mãe saiu correndo do quarto deles, soluçando e se jogando contra a parede. Então eu soube que eu seria diferente. Naquele momento eu soube que jamais seria capaz de controlar o fogo dentro de mim novamente. Me tornei uma criatura diferente naquele dia, não tão humana. Tudo o que aconteceu depois, agora entendo, teve início naquele momento. A cerimônia aconteceu nas cercanias da cidade, próximo às dunas. Era meio-dia e estava terrivelmente quente. O corpo dele jazia num pedaço de pano branco grosso cercado por uma guirlanda feita de folhas de palmeira. Me ajoelhei na areia, próxima ao seu corpo, dizendo meu último adeus. Jamais me esquecerei de seu rosto. Não se parecia mais com papai. A pele de papai era escura, seus lábios carnudos. Esse rosto tinha as maçãs encovadas, os lábios murchos e a pele como papel marrom-acinzentado. Seu espírito estava em outro lugar. Minha nuca se eriçou. Meu véu branco era uma proteção inócua contra os olhares ignorantes e amedrontados das pessoas. A essa altura, todos sempre estavam me observando. Cerrei as mandíbulas. Ao meu redor havia 7

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mulheres ajoelhadas, chorando, lamentando. Papai era muito querido, apesar do fato de ter se casado com minha mãe, uma mulher com uma filha como eu — uma filha Ewu. Isso, havia muito tempo, foi desculpado como um daqueles erros que até mesmo os grandes homens podem cometer. Por sobre os lamúrios, ouvi o choramingo suave de minha mãe. Ela havia sofrido a maior das perdas. Era a vez dela ter seu último momento com ele. Posteriormente iriam levá-lo para ser cremado. Olhei para o rosto dele mais uma vez. “Jamais o verei novamente”, pensei. Eu não estava pronta. Pisquei os olhos e toquei meu peito. Foi então que aconteceu... quando toquei meu peito. Inicialmente senti como um formigamento. Rapidamente se transformou em algo mais. Quanto mais eu tentava me levantar, mais intenso aquilo se tornava e mais ainda meu pesar crescia. “Não podem levá-lo”, pensei, furiosa. ”Ainda há tanto metal em sua oficina. Ele não terminou seu trabalho!” A sensação do meu peito se espalhou pelo restante do corpo. Curvei os ombros para tentar contê-la. Então comecei a sugar aquela sensação das pessoas que estavam ao meu redor. Estremeci e rangi os dentes. Estava ficando cheia de raiva. “Ah, não aqui!”, pensei. “Não no velório de papai.” A vida não me deixava em paz tempo suficiente nem mesmo para lamentar a morte de meu pai. Atrás de mim, os lamentos cessaram. Tudo o que eu ouvia era o sopro suave da brisa. Foi completamente assustador. Havia algo sob mim, no chão, ou talvez em algum outro lugar. De repente, fui inundada pelos sentimentos que todos ao meu redor nutriam pelo meu pai. Instintivamente, pousei minha mão em seu braço. As pessoas começaram a gritar. Não me virei. Estava concentrada demais no que tinha que fazer. Ninguém tentou me afastar dele. Ninguém me tocou. Certa vez, o tio da minha amiga Luyu foi atingido por um relâmpago numa rara tempestade Ungwa durante a estação de estiagem. Ele sobreviveu, mas não conseguia parar de falar sobre a sensação de ter sido chacoalhado violentamente de dentro para fora. Era como estava me sentindo naquele momento. Respirei de forma ofegante, aterrorizada. Não conseguia tirar minha mão do braço dele. Estava fundida a ele. Minha pele cor de areia fluiu pela palma da minha mão para a sua pele marrom-acinzentada. Um montículo de pele misturada. Comecei a gritar. 8 00_quem_tem_medo_morte_FINAL.indd 8

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Então o grito ficou preso na minha garganta e tossi. Fitei-o. O peito de papai estava se movendo lentamente, para cima e para baixo, para cima e para baixo... ele estava respirando! Senti ao mesmo tempo repulsa e uma esperança enorme. Respirei fundo e gritei: — Viva, papai! Viva! Duas mãos pousaram em meus pulsos. Eu sabia exatamente de quem eram. Um de seus dedos estava quebrado e enfaixado. Se ele não tirasse as mãos de mim, iria machucá-lo ainda mais do que já tinha feito havia cinco dias. — Onyesonwu — disse Aro em meu ouvido, tirando rapidamente as mãos de meus pulsos. Ah, como eu o odiava! Mas escutei. — Ele se foi — disse. — Deixe-o ir, para que todos possamos ficar livres disso. De alguma forma... eu o fiz. Deixei papai ir. Tudo ficou em silêncio mais uma vez. Como se, por um momento, o mundo estivesse submerso em água. Então o poder que estava se acumulando dentro de mim explodiu. Meu véu foi soprado de minha cabeça e minhas tranças, agora livres, penderam para trás. Tudo e todos foram lançados para trás — Aro, minha mãe, familiares, amigos, conhecidos, desconhecidos, a mesa de comida, cinquenta inhames, treze grandes makuas,1 cinco vacas, dez bodes, trinta galinhas e muita areia. A cidade ficou sem luz durante trinta segundos; as casas tiveram que ser limpas por causa da areia e os computadores tiveram que ser consertados devido aos danos causados pela poeira. Novamente o silêncio, como se tudo estivesse debaixo d'água. Olhei para minha mão. Quando tentei retirá-la do braço frio, imóvel e morto de papai, ouvi o som de um rasgo, como uma cola fraca se soltando. Minha mão deixou uma silhueta de muco seco no braço dele. Esfreguei meus dedos uns nos outros. Mais daquele muco seco esfarelou e caiu deles. Olhei para papai mais uma vez. Então caí de lado e desmaiei. Isso foi há quatro anos. Agora olhe para mim. As pessoas daqui sabem que fui eu quem causou tudo. Querem ver meu sangue, me fazer sofrer e então me matar. Aconteça o que acontecer depois disso... deixe-me parar. 1

Fruto do baobá. (N.T.)

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Esta noite você quer saber como me tornei o que sou. Quer saber como cheguei aqui... é uma longa história. Mas eu a contarei a você... contarei a você. É um tolo se acredita nas coisas que os outros dizem a meu respeito. Contarei a minha história para desfazer todas aquelas mentiras. Por sorte, mesmo a minha longa história irá caber nesse seu laptop. Tenho dois dias. Espero que seja tempo suficiente. Logo tudo irá me alcançar. Minha mãe me batizou de Onyesonwu. Significa “Quem teme a morte”. Ela escolheu um bom nome. Nasci há vinte anos, durante tempos difíceis. Ironicamente, cresci longe de toda a matança...

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Capít ulo 2

PAPAI

S

ó de olhar para mim, todos sabem que fui gerada por um estupro. Mas quando papai me viu pela primeira vez, enxergou além disso. Ele é a única pessoa, além da minha mãe, que posso dizer que me amou à primeira vista. Em parte foi por isso que achei tão difícil deixá-lo ir quando ele morreu. Fui eu quem escolheu papai para mamãe. Tinha seis anos. Eu e minha mãe havíamos acabado de chegar a Jwahir. Antes disso éramos nômades, vivendo no deserto. Um dia, enquanto caminhávamos pelo deserto, mamãe parou, como se estivesse ouvindo uma voz. Às vezes ela era assim, estranha, parecendo conversar com outra pessoa além de mim. Então disse: — Está na hora de você começar a ir para a escola. Eu era jovem demais para entender seus reais motivos. Eu era bastante feliz no deserto, mas depois que chegamos à cidade de Jwahir, o mercado rapidamente se tornou meu parque de diversões. Naqueles primeiros dias, para conseguir ganhar dinheiro rapidamente, minha mãe vendeu a maior parte do figo-da-índia que possuía. Em Jwahir, figo-da-índia era mais valioso do que dinheiro. Era uma iguaria deliciosa. Minha mãe havia aprendido sozinha como cultivá-lo. Talvez sempre tenha tido a intenção de algum dia voltar à civilização. Ao longo das semanas, ela plantou os pedaços de cacto que possuía e armou uma barraca. Ajudei o máximo que pude. Carreguei e arrumei as coisas, chamei os clientes. Em troca, ela me permitia uma hora por dia de tempo livre para perambular pelo mercado. No deserto, eu costumava caminhar mais de um quilômetro e meio, nos dias mais limpos, sem minha mãe. Jamais me perdi. Sendo assim, o mercado era pequeno para mim. 11

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Entretanto, havia muito a ser visto e a possibilidade de um problema se escondia em cada esquina. Eu era uma criança feliz. As pessoas chupavam os dentes, murmuravam e viravam os olhos quando eu passava. Mas eu não me importava. Havia galinhas e filhotes de raposa para perseguir, outras crianças para encarar, discussões para acompanhar. A areia no chão às vezes ficava úmida de leite de camela; outras vezes ficava oleosa e perfumada por causa das garrafas cheias demais que derramavam óleos perfumados, cinzas de incenso e frequentemente esterco de camelo, raposa ou vaca. A areia aqui era bastante remexida, enquanto no deserto era imaculada. Estávamos em Jwahir havia apenas alguns meses quando encontrei papai. Aquele dia fatídico foi quente e ensolarado. Quando deixei minha mãe, levei comigo um copo d'água. Meu primeiro impulso foi ir para a construção mais estranha de Jwahir: a casa de Osugbo. Alguma coisa sempre me atraiu para aquela enorme construção quadrada. Decorado com estranhas formas e símbolos, era o prédio mais alto e o único totalmente feito de pedra. — Algum dia entrarei aqui — falei, olhando o prédio. — Mas não hoje. Me aventurei a caminhar para mais além do mercado, numa área que eu ainda não havia explorado. Uma loja de eletrônicos vendia feios computadores recauchutados. Eles eram pequenos objetos pretos e cinzas com placas-mãe expostas e estojos rachados. Me perguntei se sentiria que eram tão feios ao tocá-los quanto eram aos olhos. Jamais havia tocado num computador. Estendi a mão para tocar num deles. — Ta! — disse o dono da loja por detrás do balcão. — Não mexa! Beberiquei minha água e continuei andando. Minhas pernas acabaram me levando a uma caverna cheia de fogo e barulho. O prédio de adobes brancos tinha uma abertura na frente. Dentro era escuro, às vezes com um lampejo momentâneo. De dentro dele soprava um calor mais intenso que a brisa, como o hálito da boca aberta de um monstro. Na frente do prédio, lia-se uma placa: FERRARIA OGUNDIMU — FORMIGAS BRANCAS JAMAIS DEVORAM BRONZE, VERMES NÃO COMEM FERRO

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Pisquei os olhos, conseguindo enxergar um homem alto e musculoso lá dentro. Sua pele escura e brilhante estava mais enegrecida por causa da fuligem. “Como um dos heróis do Grande Livro”, pensei. Ele usava luvas feitas de finos fios de metal entrelaçados e óculos de segurança pretos bem ajustados ao rosto. Suas narinas se inflavam enquanto martelava o ferro no fogo com um martelo enorme. Seus braços musculosos se flexionavam a cada golpe. Ele poderia ser filho de Ogum, o deus do metal. Havia tanta alegria em seus movimentos. “Mas ele parece ter tanta sede”, pensei. Imaginei sua garganta queimando e cheia de poeira. Ainda segurava meu copo d'água. Estava pela metade. Entrei na oficina. Era ainda mais quente lá dentro. Entretanto, eu havia crescido no deserto. Estava acostumada ao calor e frio extremos. Observei com cautela enquanto as fagulhas voavam do metal que ele martelava. Então, da maneira mais respeitosa possível, disse: — Oga, tenho aqui água para você. Minha voz o sobressaltou. A visão de uma garota magricela, que era o que as pessoas chamavam de Ewu, de pé em sua oficina, o sobressaltou ainda mais. Ele tirou os óculos. A área ao redor de seus olhos, onde a fuligem não alcançara, era semelhante à compleição marrom-escura de minha mãe. “A parte branca de seus olhos é tão branca para alguém que fica o dia inteiro olhando o fogo”, pensei. — Criança, você não deveria estar aqui — disse ele. Dei um passo para trás. A voz dele era harmoniosa. Forte. Esse homem poderia falar no deserto e animais a quilômetros de distância seriam capazes de ouvi-lo. — Não está tão quente — respondi. Ergui o copo d'água. — Aqui está. — Me aproximei, completamente consciente do que eu era. Estava usando o vestido verde que minha mãe havia costurado. O tecido era fino, mas cobria cada centímetro do meu corpo, dos pulsos aos tornozelos. Ela teria feito com que eu usasse um véu sobre o rosto, mas teve pena. Era estranho. Na maioria das vezes as pessoas me evitavam porque eu era Ewu. Mas às vezes as mulheres se reuniam ao meu redor. — Mas a pele dela — diziam umas para as outras, jamais diretamente para mim — é tão suave e delicada. Quase como leite de camela. — E seu cabelo é bastante cheio, como uma nuvem de grama seca. — Seus olhos são como os de um gato do deserto. 13 00_quem_tem_medo_morte_FINAL.indd 13

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— Ani produz uma beleza estranha mesmo da feiura. — Ela provavelmente será linda à época de passar pelo rito dos onze anos. — E de que adianta ela passar pelo rito? Ninguém se casará com ela. — E então risos. No mercado, alguns homens tentaram me agarrar, mas eu sempre fui mais rápida e sabia como arranhar. Havia aprendido com os gatos do deserto. Tudo isso confundia minha cabeça aos seis anos. Agora, enquanto estava de pé diante do ferreiro, temia que ele pudesse achar minha compleição feia igualmente agradável. Ergui o copo em sua direção. Ele o pegou e tomou um longo gole, sorvendo cada gota. Eu era alta para minha idade, mas ele também era alto para a dele. Precisava virar minha cabeça para trás para poder ver o sorriso em seu rosto. Ele soltou um longo suspiro de alívio e me devolveu o copo. — Ótima água — disse, voltando para sua bigorna. — Você é grande demais e forte demais para ser um espírito da água. Sorri e disse: — Meu nome é Onyesonwu Ubaid. Qual o seu nome, Oga? — Fadil Ogundimu — respondeu. Olhou para suas mãos enluvadas. — Eu apertaria sua mão, Onyesonwu, mas minhas luvas estão quentes. — Tudo bem, Oga — falei. — Você é um ferreiro. Ele assentiu. — Assim como meu pai, o pai dele e assim por diante. — Minha mãe e eu chegamos aqui há apenas alguns meses — falei, sem pensar. Me lembrei de que estava ficando atrasada. — Oh, preciso ir, Oga Ogundimu! — Obrigado pela água — disse ele. — Você tinha razão, eu estava com sede. Depois disso, passei a visitá-lo com frequência. Ele se tornou meu melhor e único amigo. Se minha mãe tivesse descoberto que eu andava na companhia de um homem estranho, teria me batido e tirado meu tempo livre por semanas. O aprendiz do ferreiro, um homem chamado Ji, me odiava e demonstrava isso me olhando com desprezo sempre que me via, como se eu fosse um animal selvagem doente. — Ignore Ji — disse o ferreiro. — Ele é bom com o metal, mas falta-lhe imaginação. Perdoe-o. Ele é antiquado. 14 00_quem_tem_medo_morte_FINAL.indd 14

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— Você acha que pareço malévola? — Você é adorável — disse ele, sorrindo. — A maneira como uma criança é concebida não é sua culpa ou fardo. Eu não sabia o que queria dizer concebida e também não perguntei. Ele havia dito que eu era adorável e eu não queria que ele retirasse o que dissera. Por sorte, Ji normalmente chegava tarde, durante o horário mais fresco do dia. Logo eu estava contando ao ferreiro sobre minha vida no deserto. Eu era jovem demais para entender que não deveria contar aos outros coisas tão pessoais. Não entendia que meu passado, minha própria existência, eram assuntos delicados. Em troca, ele me ensinou algumas coisas sobre os metais, por exemplo, quais tipos se curvavam ao calor com mais facilidade e quais resistiam. — Como era a sua esposa? — perguntei certo dia. Na verdade, eu estava apenas jogando conversa fora. Estava mais interessada no pequeno pedaço de pão que ele havia comprado para mim. — Njeri. Ela tinha a pele negra — falou. Ele colocou ambas as mãos ao redor de uma de suas coxas. — E tinha pernas muito fortes. Ela era jóquei de camelos. Engoli o pão que estava mastigando. — Sério? — exclamei. — As pessoas diziam que eram suas pernas que a mantinham no camelo, mas eu sei que ela tinha um dom. — Dom de quê? — perguntei, me inclinando para frente. — Ela conseguia atravessar paredes? Voar? Comer vidro? Se transformar num besouro? O ferreiro riu. — Você é mesmo uma figura — disse ele. — Já li o Grande Livro duas vezes! — gabei-me. — Impressionante. Bem, minha Njeri podia conversar com os camelos. Conversar com camelos é uma profissão para homens, por isso ela decidiu entrar para as corridas. E Njeri não apenas corria. Ela vencia as corridas. Nos conhecemos quando éramos adolescentes. Nos casamos quando tínhamos vinte anos. — Como era a voz dela? — perguntei. — Oh, a voz dela era irritante e linda — disse ele. 15 00_quem_tem_medo_morte_FINAL.indd 15

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Fiz uma careta diante dessa explicação, confusa. — Ela falava muito alto — explicou ele, pegando um pedaço do meu pão. — Ria bastante quando estava feliz e gritava bastante quando estava irritada. Entende? Balancei a cabeça. — Fomos felizes por algum tempo — disse ele, depois parou. Esperei que continuasse. Sabia que essa era a parte ruim da história. Quando ele simplesmente ficou olhando o pedaço de pão, falei. — Então? O que aconteceu depois? Ela não foi boa para você? Ele riu e fiquei aliviada, embora tenha feito a pergunta num tom sério. — Não, não — disse ele. — No dia em que ela correu a corrida mais rápida de sua vida, algo terrível aconteceu. Você deveria ter visto, Onyesonwu. Era a final das Corridas do Festival da Chuva. Ela havia vencido essa corrida anteriormente, mas nesse dia estava prestes a quebrar o recorde dos 800 metros mais rápidos. Ele fez uma pausa. — Eu estava esperando por ela na linha de chegada. O chão ainda estava escorregadio por causa da forte chuva da noite anterior. Eles deveriam ter adiado a corrida para outro dia. O camelo dela se aproximou, correndo com sua andadura de joelhos juntos. Estava correndo mais rápido do que qualquer camelo correra antes. — Ele fechou os olhos. — Deu um passo em falso e... caiu. — Sua voz ficou embargada. — No final, as pernas fortes de Njeri foram seu ponto fraco. Elas se agarraram ao camelo e quando ele caiu, ela foi esmagada pelo peso do animal. Resfoleguei, cobrindo a boca com as mãos. — Se ela tivesse se soltado do camelo, teria vivido. Estávamos casados havia apenas três meses — suspirou. — O camelo que ela montava se recusou a sair do seu lado. Seguia o corpo para onde quer que ele fosse. Dias após ela ter sido cremada, morreu de tristeza. Camelos por todos os lugares ficaram cuspindo e gemendo por várias semanas. — Ele vestiu as luvas novamente e retornou à bigorna. A conversa morreu. Meses se passaram. Eu continuava a visitá-lo com frequência. Sabia que estava arriscando demais, que minha mãe poderia desconfiar. Mas acreditava ser um risco que valia a pena correr. Certa vez ele me perguntou como estava sendo meu dia. 16 00_quem_tem_medo_morte_FINAL.indd 16

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— Tudo bem — respondi. — Uma senhora estava falando sobre você ontem. Ela disse que você era o melhor ferreiro e que alguém chamado Osugbo lhe paga bem. Ele é o dono da Casa de Osugbo? Eu sempre quis entrar lá. — Osugbo não é um homem — disse ele enquanto examinava um pedaço de ferro forjado. — É o grupo de anciãos de Jwahir que mantém a ordem, nossos governantes. — Ah! — exclamei, sem saber nem me importar com o que significava a palavra governantes. — Como está a sua mãe? — perguntou. — Bem. — Quero conhecê-la. Prendi a respiração, fazendo uma careta. Se ela descobrisse sobre o ferreiro, eu levaria a pior surra da minha vida e então perderia meu único amigo. “Para que ele quer conhecê-la?”, pensei, subitamente me sentindo extremamente possessiva com relação à minha mãe. Mas como eu poderia evitar que ele a conhecesse? Mordi os lábios e disse, relutante: — Tudo bem. Para meu desalento, ele foi à nossa tenda naquela mesma noite. Estava muito elegante em suas calças brancas longas e esvoaçantes e uma bata também branca. Usava um véu igualmente branco sobre a cabeça. Trajar roupas brancas era se apresentar com humildade. Normalmente eram as mulheres que faziam isso. Era muito especial quando um homem o fazia. Ele sabia que deveria se aproximar de minha mãe com cuidado. Inicialmente, minha mãe teve medo e ficou irritada com ele. Quando ele contou a ela sobre a amizade que tinha comigo, ela me deu uma palmada tão forte, que corri e chorei por horas. Ainda assim, em um mês papai e minha mãe se casaram. No dia seguinte ao casamento, eu e minha mãe nos mudamos para a casa dele. Tudo deveria ter sido perfeito depois disso. Ficou tudo ótimo durante cinco anos. Então começaram a acontecer coisas estranhas.

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