Sem Vestígios

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TAÍS MORAiS SEM VESTÍGIOS Copyright © 2008 by Taís Morais 1ª edição – outubro de 2008 Editor e Publisher Luiz Fernando Emediato Diretora Editorial Fernanda Emediato Capa ……… Projeto Gráfico e Diagramação Alan Maia Revisão Marcia Benjamim de Oliveira Índice Onomástico Marcia Benjamim de Oliveira DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Morais, Taís Sem vestígios : revelações de um agente secreto da ditadura militar brasileira / Taís Morais. -São Paulo : Geração Editorial, 2008. ISBN 978-85-61501-09-9 1. Agentes secretos 2. Brasil – História 3. Comunismo 4. Ditadura – Brasil – História 5. Guerrilhas – Araguaia, Rio, Vale 6. Manuscritos 7. Militarismo – Brasil 8. Reportagem investigativa I. Título. 08-09689

CDD: 070.44932098108 Índices para catálogo sistemático 1. Brasil : Ditadura militar : Reportagem investigativa 070.44932098108 GERAÇÃO EDITORIAL ADMINISTRAÇÃO E VENDAS Rua Pedra Bonita, 870 CEP: 30430-390 – Belo Horizonte – MG Telefax: (31) 3379-0620 Email: leitura@editoraleitura.com.br EDITORIAL Rua Major Quedinho, 111 – 20º andar CEP: 01050-030 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3256-4444 – Fax: (11) 3257-6373 Email: producao.editorial@terra.com.br www.geracaoeditorial.com.br 2008 Impresso no Brasil Printed in Brazil

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    Esclarecimento do editor ...............................................................9 Agradecimentos ................................................................................13 Um manuscritos solto .....................................................................15

IntRodução Refeição especial para um homem com pressa ................................. 19 Um homem e suas memórias, em total solidão................................. 23

Parte 1 DA INFÂNCIA À FORMAÇÃO NO APARTHEID Vara de marmelo cortando a pele ...................................................... 27 Cacos de espelho na memória ............................................................30 “Minha mãe não pode saber” ............................................................. 32 Ida e volta ao inconsciente .................................................................. 35 O quartel, um país à parte .................................................................. 37 A lógica da farda ..................................................................................40 Os donos da vida e da morte ..............................................................42 Criatividade para seguir as regras ......................................................45 O providencial tampão .......................................................................47 O batismo de fogo ...............................................................................49 Segurança da autoridade máxima ...................................................... 53 O apartheid ainda mais evidente ........................................................ 55

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Aprendendo com o inimigo ...............................................................59 Atirou no que viu e acertou no que não viu ......................................62 Discreta perseguição a Manuel ...........................................................64 Uma solene especialidade ...................................................................67 Atenção, qualidade básica de um agente ............................................69 Lábia e dinheiro para aliciar informantes .......................................... 74

Parte 2 As PRIMEIRAs MIssõEs, NEM sEMPRE ORTODOxAs A morte como “acidente” de trabalho ................................................79 Linha-dura com acessos de brandura ................................................ 83 Nos braços da jovem boiadeira ..........................................................86 Arranjos internos, sem vestígios à superfície .....................................88 Agente se dá mal, denunciando corrupção ........................................93 Jibóias incomodam muita gente.........................................................96 Sumiram com o homem, de madrugada ...........................................99

Parte 3 CAÇADA FINAl NO ARAguAIA A sucuri aperta o cerco ..................................................................... 105 Perigo entre o nada e lugar nenhum ................................................. 112 Teatro burlesco, em plena missão ......................................................118 A tortura, para começo de conversa ..................................................121 Cabra corajoso, não abriu o bico...................................................... 124 O mal cortado pela raiz, sem exceções ............................................. 128 Do sono induzido à morte.................................................................134 “Agora sou um assassino” ..................................................................138 Cremação, para evitar o culto aos mártires ..................................... 142 Um deslize acaba com o Destacamento A ....................................... 146 O macabro adubo na Serra das Andorinhas ..................................... 151 A chacina da Rua Pio XI ....................................................................156

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Parte 4 O lENTO E gRADATIvO OCAsO DO REgIME Noite avançada, “Juritis” de armas em punho ..................................163 De volta à civilização, com os mistérios de sempre ......................... 166 UM CADÁVER ENTERRADO EMBAIXO DA BANANEIRA ...... 169 Carnificina na serra de Petrópolis .....................................................172 Mucuna pruriens para os estudantes ................................................ 178 Improviso com chapéu alheio ...........................................................185 Seqüestro à altura das chanchadas da Atlântida .............................. 190 Contribuições providenciais dos empresários ................................. 197 Uma bomba explode no colo da repressão ......................................200 O casamento desmorona, também ..................................................202 Do diário de um atormentado I... .................................................... 205

Parte 5 O PREsENTE sEM FuTuRO A terrível sina da aposentadoria .......................................................209 As descobertas, no ostracismo .......................................................... 212 Do diário de um atormentado II...................................................... 214 Do diário de um atormentado III... ................................................. 216 Nota da autora................................................................................... 219

ANExOs Confidências de um coronel ............................................................. 225 A Estrutura do CIE nos anos de repressão....................................... 230 As principais agências de inteligência do mundo............................ 232 Índice Onomástico ........................................................................ 235

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Parte 1

DA INFÂNCIA À FORMAÇÃO NO APARTHEID

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arioca é, ao mesmo tempo, um brasileiro típico e uma exceção. Exemplo claro de migrante que saiu da vida rural para a urbana. No momento em que acontecia essa transição, o país aos poucos alterava o perfil de sua população. A constante migração foi transformando as cidades em aglomerados de intenso contraste entre a riqueza mais ostensiva e a pobreza absoluta. O trabalho, em determinados segmentos, podia fazer diferença no destino de miséria. Não necessariamente alçava um cidadão ao topo da pirâmide, mas ao menos não o condenava a viver para sempre em uma favela ou cortiço, exposto às piores mazelas de um ambiente hostil pela degradação social. Foi esse o caminho traçado por Carioca. Ele nasceu em uma casinha simples no Rio de Janeiro. Pouco recorda da sua infância, mas mantém viva a memória mais agradável: o cheiro forte de melaço de cana misturado com farinha, refeição básica, servida pela mãe, enquanto ele ainda não podia manejar direito a colher e a vasilha. Seu pai foi embora quando ele completou dois anos de idade. Desapareceu do imaginário do menino, que, em seguida, foi acolhido pelos parentes maternos, enquanto a mãe recuperava-se da perda. Seu terceiro ano de vida foi marcado pela volta ao lar, quando seus tios trouxeram ao mundo sua primeira filha. Mas o motivo do regresso não foi o bebê e sim o pedido da mãe — queria o filho de volta. Naquele curto espaço de tempo, ela unira-se com Séba, um trabalhador rural, empregado na fazenda de dois irmãos. O filho de um 2

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deles, batizado com o nome do personagem bíblico Noé, foi um dos grandes companheiros de infância de Carioca. Brincavam construindo carrinhos com carretéis vazios de linha de costura. O nome do amigo era um convite à imaginação, porque as crianças ouviam histórias do livro sagrado, e o homem que construiu a grande arca, salvando animais do dilúvio universal, Noé, assumia proporções heróicas para a molecada. A família de Carioca logo se mudou da velha e triste casa de pau-a–pique, onde ele nasceu, para as acomodações de empregados na fazenda de um dos patrões, Nicolau, ou Lalau, como era conhecido. Foi um progresso, mas aquele lugar ficou marcado por um acontecimento doloroso. Um dia seu padrasto chegou em casa cego de raiva e, sem nenhuma explicação, agarrou o garoto e lhe deu uma surra que parecia interminável. A vara de marmelo cortava a pele fina da criança, quase chegando aos ossos. Uma tortura que o menino enfrentou urrando de dor. O choro aos poucos foi se transformando em tremenda indignação, e Séba jamais foi perdoado. O fato — inexplicável e gratuito — marcaria a relação de ambos dali em diante. A vida no interior não dava margem a muita conversa. Levar uma surra sem saber o motivo não era lá uma raridade naquelas plagas, da mesma forma que a independência das crianças que se viravam como podiam, soltas pelos campos desde cedo. Ninguém ficava vigiando seus passos, como acontece com as famílias da cidade. Nem queria saber dos acontecidos quando a filharada estava longe de suas vistas. Assim, o que vivia, Carioca guardava para si, com medo das conseqüências. Mesmo que fosse um acidente, por isso nunca contou em casa a tarde em que esteve próximo da morte. Vagando pelos campos, viu um grupo de mulas e se aproximou para conferir de perto a estrutura dos animais. Sua memória guardou uma de cor cinza, com linha preta, que ia do pescoço ao rabo. Ele ficou bem perto dela e, de repente, um potente coice o atingiu, por sorte apenas de raspão. Sentiu o casco poderoso triscar sua virilha. Se pegasse em cheio, podia ter lhe matado. Ele, assustado, tratou de correr para casa com o coração saindo pela boca. Ninguém soube de nada. Ele tinha pavor de levar uma surra pela ousadia. Aos poucos aprendia a guardar seus segredos. No futuro, esse exercício seria de grande valia... Carioca teve uma infância sem grandes privações. A comida farta sempre esteve à mesa. E não só arroz e feijão, também carne para a mistura. Havia criação no quintal, mas Séba — junto com alguns conhecidos — gostava de 2

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roubar galinhas e porcos em fazendas vizinhas. Quando soube disso, por acaso, o menino entendeu a razão de tal abundância. Tinha mesmo de existir um motivo extra, porque o dinheiro do trabalho mal dava para as despesas básicas: calçados, roupas, ferramentas. Além de aliviar a vizinhança de uma ou outra criação, Séba era excelente caçador de tatu, macaco, porco-do-mato. Usava uma arma de ripa flexível em forma de arco, tendida por dois cordões, com uma esteirinha no centro. Um bodoque peculiar. Certo dia, sem prestar atenção no alvo, abateu uma macaca que carregava o filhotinho nas costas. Ao ver o animalzinho desamparado, sentiu pena e remorso. Levou o bichinho para casa, e ele se tornou de estimação. Nunca mais atirou em macacos. No fundo, não era mau. Apenas um sertanejo endurecido pela rotina, e que vez ou outra se enchia de ternura pela própria natureza. Carioca também era bom caçador. Aprendeu a armar arapucas e capturar pássaros sem a culpa que atormentava seu tio Álvaro, vítima de uma doença crônica no estômago. Um dia, Álvaro, muito católico e martirizado pelo desconforto, fez promessa: se sarasse, nunca mais abateria juriti, o tipo de pombinha que mais apreciava em suas refeições. E não é que a tal da promessa funcionou? Foi aí que Álvaro parou de caçar juritis, ao contrário do sobrinho, que vivia caçando essas e muitas outras aves características daquele mundão: sabiás, bem-te-vis, sanhaços. Matava, limpava e pendurava em cima do fogão à lenha, gostava de comê-las bem fritinhas. Tão bom... O sabor nunca lhe saiu da memória, nem o dos quitutes incomparáveis de sua mãe, que tirava um dia da semana para fazer quitandas. Biscoitos de polvilho e bolos. Ah, o aroma do bolo de fubá quentinho, servido com café coado na hora ainda habita sua memória! Muitas vezes, os parentes vinham para um dedo de prosa na hora do lanche. Os primos se reuniam em algazarra. Tardes cheias de delícias e alegria, para quebrar a solidão e o silêncio do interior.

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té os cinco anos de idade, Carioca nunca usara sapato ou botina. Nem sabia direito o que era aquilo, acostumado a correr pelos campos com os pés descalços, já calejados pelo trato direto com a terra. Um dia sua mãe apareceu com um presente: um calçado parecido com as botas dos donos da fazenda. Ao provar, ele se sentiu desengonçado, mas experimentou. Não tardou a sentir o conforto. Que maravilha estar a salvo de ferir os pés na vegetação ou nas pedras do caminho! Daqueles tempos, ficaram gravados poucos momentos. Em especial, os mais dramáticos. Mesmo assim, picados como cacos de espelho. De uma seqüência, fragmentos e sensações, como a de um mergulho no riacho frio e turvo nas proximidades da fazenda. Ele fora a um passeio com seus tios e primos. Para juntar-se à brincadeira dentro d’água, mergulhou... sem saber nadar... Seu frágil corpo foi afundando enquanto ele tentava desesperadamente se agarrar a algo que não existia. Com olhos esbugalhados, nada enxergava, somente sentia a água entrando pela boca, nariz e ouvidos. Perdeu a consciência e só acordou com a relva macia debaixo dele. Sem saber ao certo quem o havia tirado da água, sentia um alívio misturado ao desconforto do peito dolorido, e a dificuldade de respirar, mas feliz por ter seu corpo escorado em terra firme, e o céu bem azul lá em cima. Os parentes assustados tratavam de reanimá-lo. Por pouco não partiu desta para melhor... Mal recuperou o fôlego, pegaram o caminho de volta para casa. Uma boa caminhada que, em condições normais, era uma delícia, mas com a roupa 30

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encharcada e a sensação de enjôo e zonzeira, virou um martírio. Bastou entrar na cozinha, se deparar com os cheiros familiares e com a quentura confortável do fogão à lenha, para esquecer sua desventura daquele dia. Entre os cacos espalhados na memória, a triste lembrança dos longos períodos de ausência da escola. Ele gostava demais daquele ambiente de carteiras envernizadas e do quadro negro cheio de palavras. A professora, disposta a fazer os alunos decifrarem os mistérios das palavras e dos números, apresentava-lhe um mundo novo, interessante e vasto. Tão diferente da rotina interiorana. De quando em quando, para desespero do menino, era afastado desse convívio gratificante com mestres e colegas. Sua mãe deixava a cidade e voltava para a antiga vila natal e depois partia para outro núcleo urbano, em idas e vindas que ele demorou a compreender: tinham a ver com o desgaste do casamento. As relações com Séba estavam cada vez mais tensas. Não tardariam a separar-se, mas, até esse triste final de caso, eram discussões diárias, observadas por uma criança impotente para prestar qualquer ajuda à mãe.

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uando finalmente a mãe de Carioca ficou sozinha, fixou residência em outra cidade. Ele estava entrando na adolescência e tornou-se um sincero e dedicado praticante da religião católica. Certo de que, ajudando nas missas, como coroinha, se aproximaria de Deus, não tardou a ser admitido em um seminário. Tornou-se um aluno em vias de seguir a carreira religiosa. A instituição ficava em outra cidade. Inteligente e observador, mais tarde perceberia — graças a um nefasto acontecimento — que a garotada passava por uma lavagem cerebral. Apenas os ensinamentos ali apresentados eram corretos. Do cerimonial complexo à obediência cega à vontade de Deus. Todos eram obrigados a seguir rigorosamente os Dez Mandamentos, acrescidos das normas e regulamentos estipulados pela Igreja. Com a promessa de que vivendo uma vida “perfeita”, à luz dos cânones, iriam para o céu direto, sem escalas. Enquanto ainda se empenhava em cumprir toda a liturgia, admirava os santos que haviam se dedicado a uma vida simples, casta e desapegada, como Francisco de Assis, Domingos Sávio e Luís Gonzaga. Aos onze anos, procurava praticar uma boa ação a cada dia. Ajudava os outros com aguçado espírito de solidariedade. Não tinha dúvidas sobre aquele caminho pontuado pela oração e renúncia aos desejos do corpo escolhido por ele. Para um jovem tão ingênuo, ele viveria uma tremenda decepção aos treze anos. Certo dia machucou-se jogando bola. Por causa da dor, começou a mancar. Dispensado do trabalho de preparação da missa, saiu em busca de ajuda. 32

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A pessoa certa a procurar era o admirado monsenhor Marcos, responsável pelas verbas públicas que alimentavam o Colégio Monfort e o Seminário Menor dos Irmãos de São Gabriel. Ele pediu que o garoto lhe mostrasse onde doía e que seria preciso fazer um curativo. Estranhamente, não na enfermaria, mas no quarto do padre. Tão logo ficaram sozinhos, com a porta fechada, a volúpia incendiou os olhos daquele homem. Começou a tocar o pênis do menino, que, apavorado e tomado pelo asco, repeliu a investida e saiu às pressas da cela, que antes era tida como um santuário. A partir daquele momento, nada mais foi como antes. Comungar tornou-se uma experiência demoníaca. Ele olhava os colegas e, sabendo que muitos aceitavam o assédio com medo de falar a respeito, pediu para ir embora. Nunca mais voltou e nem deu explicações sobre sua saída. De volta à terra natal, e ao convívio com a mãe, passou a trabalhar como servente de pedreiro. Tinha de ajudar nas despesas da casa e cuidar do seu próprio sustento. Era uma tarefa penosa. Ficava com os pés e as mãos corroídos pela cal. Quando não agüentava mais a dor das chagas abertas, se afastava até sarar, vivendo de suas economias. À procura de uma tarefa menos sofrida, acabou mudando para uma cidade no interior de São Paulo, trabalharia como lavrador. O salário era bem melhor e o primeiro foi todo gasto em roupas, sapatos, meias, loção de barbear e até perfume. Resultado: nenhum tostão até o próximo pagamento. Certo dia resolveu fazer as malas e voltar. Não sabia que sua mãe se mudara para uma vila próxima àquela em que haviam morado. Depois de um tempo sozinha, encontrara um novo amor. Seu companheiro a ajudava muito, inclusive na obtenção de trabalho. Mas a relação não foi muito duradoura, e depois de separar-se dele, sem jamais contar o porquê, ela voltou para a antiga casa e nunca mais quis ter outro namorado. Perdera o interesse pelo amor? À margem das vivências de sua mãe, aos 16 anos Carioca já sabia bastante sobre a vida, mas não estava totalmente preparado para todas as surpresas vindouras. Como o episódio que tratou de manter em segredo. Por compaixão, e a pedido de sua mãe, foi visitar uma amiga da família que andava se queixando muito de solidão e de uma doença. Ao entrar na casa, encontrou um ambiente lúgubre e pesado. Os poucos cômodos eram pintados de um azul descontínuo, manchado. A tinta estava descascada, aqui e ali. Enquanto atravessava aquele lugar sombrio, quase arrependido da gentileza, ia sentindo um peso estranho, quase asfixiante, pena da solidão e decadência do local. 33

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Até mesmo para ele que vivia em condições tão pobres, aquilo pareceu triste demais. Era muito jovem para entender certas coisas, estava diante do desconhecido e do imponderável. Devagar, e tentando abafar o ruído dos próprios passos, aproximou-se da cama onde a mulher — ainda mais pálida pelo contraste da pele com os cabelos escuros espalhados no travesseiro — parecia dormir, com a respiração alterada. Ele ouvia nitidamente o arfar do peito. Sentou-se com todo o cuidado ao lado dela, pronto para confortá-la de alguma maneira. Sem uma única palavra, mas com um gesto rápido e decidido, ela puxou o garoto para si. Surpreso, ele se deixou abraçar, acariciar, apertar e despir. Nada fez para detê-la. Entregou-se submisso e inebriado. Entre a excitação e a culpa, sua primeira experiência sexual. O cheiro asfixiante daquele quarto nunca mais se apagou da sua memória. Nem os fragmentos captados de relance, como o revelador espelho de cristal da penteadeira, repleta de vidros de perfume e batons. Não se recorda como se preparou para ir embora, certamente a roupa fora vestida às pressas. Mas a sensação sim, essa ficou. Saiu dali flutuando, e com uma única frase na cabeça: “Minha mãe não pode saber”. Realmente, nunca soube. Carioca jamais tocou no assunto. Ambos, sempre estavam em busca de trabalho, com pouco lazer, e sem o hábito de conversar amenidades. Para ganhar um dinheirinho a mais, aceitava qualquer emprego. Trabalhou no bar da rodoviária, em uma pensão e até em uma oficina de recapeamento de pneus. Em 1962, Carioca aceitou o convite para trabalhar como frentista num posto de gasolina. Logo foi promovido, de tão esperto que se mostrava. Embora desse plantão nas bombas, uma noite por semana, passou a comprar combustíveis também. Naquelas longas madrugadas, conheceu duas prostitutas que faziam ponto nas proximidades. Elas, enquanto aguardavam o aparecimento de algum interessado em seus serviços, gastavam as horas conversando com o jovem. Falavam sobre anseios, mágoas, tristezas, alegrias e dificuldades. Quando amanhecia, elas se despediam. Vez por outra, uma delas seguia com ele para seu quarto de pensão. Era sempre a jovem Marli, uma índia Carajá de cabelos negros e lisos, corpo firme e moreno. Ele gostava de estar ao lado daquela mulher. Não era bem um namoro, e sim um alívio para a solidão de ambos. Durou alguns meses, mas ela foi embora da mesma forma como havia aparecido. Sem aviso nem despedida. Jamais a veria novamente. Apenas em suas lembranças. 3

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ogo Carioca mudou-se para Niterói. Arranjara um emprego de recepcionista em um hotel. Além de cuidar da entrada e registro de hóspedes, administrava as refeições para assegurar que tudo corresse bem. Não raro, conversava com os hóspedes. Assim, conheceu um médico especializado no inconsciente. Sempre disposto a falar a respeito do tema que o apaixonava, discursou para aquele jovem atento e inteligente. Carioca sorvia os ensinamentos como se fosse água fresca da nascente. O doutor dizia, com uma certeza contagiante, que a capacidade intelectual do ser humano é ilimitada. E que é possível — para qualquer pessoa — alcançar as profundezas dos outros. Para provar, uma tarde chamou a esposa, que o acompanhava na viagem, e, diante de Carioca, disse: “Vem cá, vou te hipnotizar.” “Não, pelo amor de Deus, não faz isso agora”, ela sussurrou, praticamente suplicando, com olhos tristes e uma expressão de medo no rosto. “Vou fazer, sim”, ele afirmou, sem dar a ela nenhuma margem de contestação. No mesmo instante, com uma seqüência de frases ele a hipnotizou. Ela, obviamente estava condicionada a entrar em transe com aquela seqüência-chave de palavras. Ele fez a esposa dançar com uma vassoura como se ele a estivesse conduzindo. Ela se entregou aos movimentos com uma elegância ímpar, como se deixasse conduzir pelo parceiro ao ritmo de uma trilha imaginária. Assim permaneceu pelo tempo que ele quis, e só saiu 3

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daquele estado quando o marido ordenou que voltasse ao normal, com outra série de palavras. A cena ficou gravada na mente do jovem de forma completa, e não como um quebra-cabeças. A partir daquele momento ele decidiu conhecer tudo sobre o inconsciente; um exercício que o acompanharia por toda a vida. Lia tudo que lhe caísse nas mãos, e tratava de experimentar qualquer coisa que tivesse a ver com o controle da mente, fosse por instrumentos pouco ortodoxos, como a ioga, ou por duvidosas apresentações de mágicos dispostos a provar que podiam usar a hipnose coletiva com absoluto sucesso. Aos poucos foi aprendendo como funcionavam os processos de convencimento. Descobriu que se conseguisse invadir o inconsciente de uma pessoa, obteria dela o que quisesse, contudo, ao mesmo tempo, havia quem fosse mais facilmente hipnotizável e não impunha barreiras para deixar-se persuadir. Leu em algum estudo que cerca de dez por cento dos seres humanos, ao contrário da maioria, são imunes à sugestão. Usaria esse arcabouço de conhecimentos em sua vida profissional, mais tarde, para obter as mais terríveis confissões. Com sucesso.

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