sexta feira n.4 [ c o r p o ]
DNA
Leonilson
[editorial] O corpo da diferenรงa
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Alguns anos após a "descoberta" da América, espanhóis enviam às Grandes Antilhas comissões para investigar se os índios possuíam ou não alma. Os índios, por sua vez, manifestavam uma outra curiosidade, gastavam seu tempo a afogar prisioneiros brancos para verificar se seus cadáveres eram sujeitos a putrefação . Estamos diante de duas diferentes escolhas : se os primeiros tomam a alma como critério crucial da distinção entre humanos e não-humanos, os segundos parecem conferir ao corpo essa mesma propriedade diacrítica. Essa anedota, recuperada por Lévi-Strauss em Raça e História, dialoga de maneira estimulante com o conjunto heterogêneo de artigos, ensaios e entrevistas reunidos neste quarto volume da Sexta Feira, cujo tema em evidência é justamente o corpo . Não o corpo reduzido à sua fisicalidade orgânica e plástica, mas sobretudo aquele que se revela como constructo cultural, sempre atado a visões de mundo específicas. O mal-entendido entre espanhóis e antilhanos, portanto, aponta para o fato de que a diferença pode estar no corpo, apesar da idéia enraizada no pensamento cartesiano, caro ao Ocidente, de que o corpo representa o que há de mais objetivo na humanidade-sua natureza-e o espírito aquilo que confere subjetividade aos homens-sua cultura . As singularidades culturais não seriam dadas exclusivamente pelo elemento espiritual, mas também pelas posturas, pelas predisposições e pelos humores entranhados no corpo . Os corpos, que se emprestam à inscrição das culturas, são muitos. Procuramos trazer pelo intermédio de diferentes autores e pontos de vista essa multiplicidade de corpos. O corpo
repre~entado
nas artes plásticas e no ci-
nema . O corpo requebrado no movimento das canções e da~ coreografias. O corpo metamorfoseado dosxamãs amazônicos. O corpo dilacerado pela experiência da violência urbana . O corpo indivisível pregado pelo catolicismo popular. Enfim, corpos que não cessam de se particularizar, mostrando que sua materialidade não pode desprender-se de um substrato sócio-cultural. Corpos que não servem apenas para cultuar, mas sobretudo para pensar. Para dar corpo a esta edição, recorremos, a uma considerável metamorfose. A apresentação gráfica da revista foi alterada visando aprofundar um tema que tanto nos inquieta : a relação entre texto e imagem. Desta vez, optamos pela criação de um discurso visual paralelo, que se dispõe como complemento necessário ao discurso verbal , mostrando-se catalisador de associações inesperadas. Insistimos na velha máxima de que ler é também ver e, nesse sentido, oferecer a leitura é também esculpir, criar formas, imprimir idéias de maneira gráfica-fazer a palavra tomar corpo para integrar expressão e conteúdo, matéria e espírito.
o corpo editorial
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[Ăndice]
16 Corpo e cinema pela boca aberta de Peter Greenaway [campo e contracampo] Evelyn Schuler e Thomas H. Lehmann 30
Lição de Anatomia Paulo Menezes
46 A dialética do corpo no imaginário popular José de Souza Martins 56
Do corpo para ser visto ao corpo invisível: do teatro da crueldade ao império do terror Marcos Alvito
68 Totem e tabuleiro — O corpo da baiana nos requebros da canção Valéria Macedo 88 O estranhável debate do prof. Cassiano Marvalho com os atores da Companhia do Latão 94 As metamorfoses do corpo Renato Sztutman 112 Entrevista com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro Renato Sztutman, Silvana Nascimento e Stélio Marras 130 Alimentando o corpo — O que dizem os Caxinauá sobre a função nutriz do sexo [o cru e o cozido] Eliane Camargo 138 Fragmentos de corpo: o espelho partido — A trajetória de Sabino Kaiabi no Parque Indígena do Xingu Mariana K. Leal Ferreira 154
Ekspirro Vadim Nikitin
158 Clones — do grego broto Sylvia Caiuby Novaes 168 Palavras do corpo na companhia de Rodrigo Pederneiras Florência Ferrari, Paula Miraglia, Rose Satiko Hikiji e Valéria Macedo 178 Deve o conhecimento ser livre? Os direitos de propriedade intelectual e suas vicissitudes [debate] Philippe Descola 184 Corpo, cosmologia e subjetividade [posfácio] Stélio Marras
16 [campo e contracampo] Corpo e cinema pela boca aberta de Peter Greenaway Evelyn Schuler e Thomas H. Lehmann
COMER E BEBER, SEXUALIDADE E SECREÇÃO, VIVER E MORRER, LER E. escrever, imagem e observação: Peter Greenaway comenta em seus filmes, traço por traço, os rituais com os quais a sociedade oculta o corpo. E ele o mostra de uma maneira raramente vista no cinema alhures: nu em sua abundância formal barroca, como teatro de milagres, como origem e objeto da caligrafia, como paisagem, como possessão, como campo de batalha da luta das classes e dos sexos. Uma mulher com um r~vólver na mão. Seu marido. Na famosa cena final de O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante, ela o obriga a saborear o corpo do amante que ele mandara assassinar engolindo as páginas de seu livro predileto, uma história da Revolução Francesa. Para o ladrão. a cultura é um 'bem que pode ser comprado e consumido-e é precisamente quando n,ão consegue incorporá-Ia, que a usa para destruir os outros. Há de se tomar as metáforas literalmente nos filmes de Greenaway. Sua maneira de Imaginar -pensar com imagens':"-mostra o perigo. do mundo ordenado pelas palavras. Trata-se de um mundo imagético que quer revolucionar o cinema, invértel')do o domínio da história dos textos escritos sobre a história das imagens. Excessivamente, o cineasta cita a tradição visual e procede 'coma câmera como se estivesse com um pincel na mão-foi, pois, à pintura que ele dedicou sua primeira formação. As referêhcias a imagens da memória cultural nos filmes de Greenaway são muito freqüentes. Com um sorriso manhoso, apetece-lhe citar Pauline Kael, crítica de cinema norte-americana, que o denominou um "onívoro que come com a boca aberta" -ou que fala com a boca cheia . Ao gesto falar, Greenaway opõeo gesto canibal, que leva ao extremo o ·consumo em seus dois sentidos: digestão e destruição. Sua crítica cultural não se dá pela restrição, mas pela aviclez e pelo excesso. A boca cheia e os olhos bem abertos revelam a instigação do cineasta em fazer um cinema que ainda não vimos : um espetáculo imaginado que, num sentido modernista, promova uma visualização de imaginações. Em suma, um cinema que tem mais afinidade com Méliés, Eisenstein ou Walt Disney do que com Lumiére e a tradição do realismo. Greenaway começou a formar seu olhar como editor no British Film Institute, onde aprendeu as técnicas por meio das quais as imagens parecem verdadeiras, estratégia que usa em filmes de ficção. Por via do excesso organizam-se serialmente vários de seus filmes. Quando a estatística deixa de ser um meio e se converte num princípio de afirmações, o documentário revela-se como ficção. São doze desenhos que estruturam
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R()'T"rTr'liT T T
o contrato do desenhista.
Em Afogando em números apa rece uma nume-
ração de 1 a 100, que vai do início ao fim do filme - como se o contar pelos dedos de um jogo de criança tivesse deixado rastros. E em A última tempestade são os livros do feiticeiro que determinam a ordem dos acontec im entos. Um filme de Greenaway convida a se deixar seduzir por uma embriaguez visual e intelectual. Pede para ser tratado como uma conspiração: incitando a decifrar o que é mostrado por meio de vestígios e insinuações, mas cuja investigação é acompanhada pelo perigo de que, fina lmente, tudo se revele uma alu cinação extraord inariamente nítida. O edito r é o rei, nas pa lavras de Greenaway. Foi de um de seus castelos, uma ilha de edição em Amsterdã, que o rei - que sabe da transparência de suas roupas e quer mostrar-se desnudo-nos concedeu gentilmente a seguinte entrevista por te lefone, na sexta-feira de 19 de fevereiro de 1999. Como você define a relação entre cinema e corpo de forma geral? Para mim, a pos ição de uma materia lidade muito intensa do co rpo humano sempre esteve presente nos termos da arte ocidental. Nesse sentido, enfatizo o fato de que a pintura foi e continua sendo muito importante na constituição do meu olhar. Nessa trad ição da rep resentação imagética, o corpo - espec ialmente o corpo nu-ocupou um pape l central certamente desde o Renascimento e, provavelmente, mesmo antes. Diria que nos últimos dois
mil anos as duas imagens mais significativas da arte ocidental cristã são o Cristo Crucificado e o Menino Jesus, ambos vistos e representados praticamente nus. É muito importante considerar as profecias do Ve lho Testamento que anunciam a vinda de Deus à Terra como homem, para provar sua corporalidade . Na maioria das pinturas do Menino Jesus (sobretudo depois do século XIV) seus órgãos genitais são mostrados pa ra indicar tanto sua hum anidade quanto sua masculinidade. E são famosas as imagens sadomasoquistas do Cristo Crucificado, repetidas ad nauseam por tantos pintores, certamente desde 680 até Salvador Da lí. Essas duas imagens, fo rtemente orientadas pela imagem do corpo masculino, esti veram freqüentemente diante dos olhos oc identa is nos últimos dois mil anos. Assim também ocorreu com a pintura do corpo nu da tradição das Belas Artes, que persistiu nestes anos todos apesar das crises mais diversas, passando de períodos de puritan ismo aos de serenidade. Cabe lembrar que, nos meados do século XVI, co m o Conselh o de Trento, era a própria Igreja cató lica que definia se o corpo podia ser representado na iconografia ocidental. Passando para outra representação imagética oc idental, eu diria que o cine-
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ma-de modo geral, o cinema tipicamente hollywoodiano-sempre promoveu, sobretudo, noções do corpo vestido. Nesse tipo de cinema, são poucas as representações da nudez e do corpo nu . Acho importante diferenciar essas duas concepções: o corpo nu (nude) com uma conotação positiva e um aspecto sereno e exibicionista, e a nudez (nakedness) carregando o peso da culpa e da vergon ha . Geralmente vemos a noção do corpo nu representada como prelúdio ao sexo, nas cenas em que as pessoas tiram a roupa - bas icamente mulheres entre 16 e 30 anos. Novamente estamos diante de uma concepção muito patriarcal do corpo feminino, pois trata-se de um corpo feminino jovem . Sabemos, porém, por nossas vidas privadas, que as condições gerais da civi li zação humana são outras . As noções de nudez e de corpo nu abrangem muito mais que simplesmente o prelúdio ao sexo. Eu quero ver se conseguimos, no cinema, as liberdades, os interesses e a curiosidade iconográfica que fizeram e fazem parte da pintura ocidental. Ouais noções de corpo estão presentes em seus filmes? A materialidade do corpo humano sempre foi de suma importância nos meus filmes. E houve diversas abordagens: como uma rica simbologia no filme O cozinheiro ... , segundo as noções de Adão e Eva, o tormento do Inferno, a Ressurreição; ou como um manual de diferentes tipos fisiológicos em A última tempestade, no qual Prospero deve repovoar uma ilha no cenário de uma iconografia do corpo nu vo ltada ao Renascimento e ao maneirismo. Mas essa materia lidade também pode ser vista em Zoo -um z e dois zeros, relacionada à parte interna quanto à parte externa do corpo - suponho que isto também esteja presente em O cozinheiro ... , no qual as noções de comida e digestão e o canal da alimentação estão assoc iados às concepções de sexualidade . Se pensarmos em termos darwinianos, as noções de digestão e o cana l da alimentação foram substituídos em estágios evo lutivos lentos, por noções de sexua lid ade. Não é por acaso que os moralistas associam exc reção e reprodução a partes de uma anatomia explicitamente física, o que obviamente possibilita críticas às noções de corporalidade . Nesse contexto, você poderia comentar o tema do canibalismo em seus filmes? Bom , o principal filme que aborda esse tema é O cozinheiro ... , no qual o canibalismo aparece primeiro metaforicamente e depois literalmente . Eis como muitas vezes construo meus filmes: por exemplo, em O livro de cabeceira, a corporalidade e a escrita no corpo aparecem no início como uma metáfora que depois se transforma, perigosamente, em uma realidade literal. Para mim, a noção geral do canibalismo como metáfora está fortemente associada ao fato de que, quando tivermos comido tudo que existe no mundo - ou seja, quando ti vermos explorado tudo e
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colocado tudo na boca como uma criança - , terminaremos comendonos uns aos outros. Nesse sentido, o filme foi uma crítica à Grã-Bretanha de Ms. Thatcher, cuja política se baseava na avidez e no egoísmo e era eminentemente negativa em relação a idéias de comunidade. Essa política obteve, rapidamente, vários seguidores na sociedade inglesa, egoístas ao ponto de praticar aquele tipo de canibalismo das formas extremas de exploração. Mas também existem outras conotações: por exemplo, na cena da Última Ceia Jesus diz: "Tome ! Este é o meu corpo que será entregue por vós. Toma i-o em comemoração minha". Tanto o capitalismo quanto o catolicismo giram em torno do canibalismo como metáfora e da noção de comer um eu físico. Jogo com todas essas atitudes, com todas essas idéias e com todas essas imagens nos meus fi lmes, especialmente em O cozinheiro ... Seus filmes aborda m a sexual idade e a morte de maneira bem específica , Prazer e dor estão sempre relacionados, o prazer passa sempre pela mutilação. Você poderia elucidar essas abordagens? Acho que todos nós somos-qualquer que seja nossa percepção, como sul-americanos, japoneses, austra lianos, africanos ou europeus - muito fascinados pela nossa corporalidade. O eu físico é a base dos nossos sentidos e da nossa apreciação do mundo . As noções do intelecto, as noções da alma e as formas de sensibi lidade variam bastante de cultura para cu ltura e são, em certo sentido, muito, muito efêmeras. O corpo permanece conosco. O intelecto e o espírito mudam constantemente e com tanta freqüência que, de fato, temos praticamente um novo conceito intelectual a cada dia . Na filosofia francesa dos últimos sessenta anos, por exemplo, as opiniões intelectuais sobre moda mudam a cada fim de tarde. Assim, o centro de nossas questões é o nosso próprio eu físico. Acho que devemos insistir nisso, apesar de essa imagem sempre ter feito parte da tradição ocidental e de fazer parte do fim do século XX. Nos últimos tempos, o culto ao corpo é extremamente forte num sentido comercial e capitalista, nas noções de corpo como fonte de dinheiro ou do que entendemos ser saúde, medicina e longevidade. Por exemp lo, a idade do homem perfeito e da mulher perfeita é a de Cristo ou a de Alexandre, ou seja, 33 anos. Tratase de uma idade que permite acreditar ainda num futuro otimista ... A noção do corpo físico é, abso lutamente, de suma importância para nós. Acredito, sinceramente, que minha tarefa principal, que é o cinema, deve sempre procurar refletir sobre essa idéia - não de maneira asseada ou de forma sentimental e romântica, mas com os nossos olhos muito abertos. Há atualmente uma grande atividade-fora do cinema, nos âmbitos da literatura, da pintura e da escultura contemporâneas - profundamente interessada no
22 123 O livro de cabeceira
corpo em seus múltiplos aspectos. Gostaria que o meu cinema fosse parte dessa atividade. Gostaríamos que você comentasse as representações do corpo em seus filmes. Acho que o cinema - e o que digo não é válido necessariamente para
o cinema europeu, mas certamente para o cinema dominante, hollywoodiano, que percorre o mundo todo, de Pequim a Tóquio. Sidney, São Francisco sempre promoveu a representação do corpo feminino jovem. São ignoradas. em sua grande maioria, as pessoas com excesso ou com falta de peso, as demasiadamente velhas ou novas, as aparentemente "feias" ou que não correspondem aos estereótipos que a civilização ocidental desenvolveu no final deste século
xx.
Quero pôr todo mundo no meu cinema.
Sou um homem de idade mediana, meu corpo não é mais tão jovem, bonito e estruturalmente perfeito como talvez tenha sido, se é que alguma vez o foi. De certa maneira, eu quero ser representado. Todos nós fazemos parte de um mesmo fenômeno da corporalidade e não quero particularizar e, menos ainda, corresponder aos estereótipos que a moda e a cultura con-
é um uso onipresente do corpo em todos os seus aspectos, contendo tanto o de dentro quanto o de fora, o doente e o sadio, o mutilado, o deformado, o cego ... É toda uma enciclopédia fisiológica da humanidade. Vejo isso reatemporâneas exigem. O que eu quero
lizado em algumas pinturas do século XIV, como naquelas representações do céu e do inferno. Para criar essa enciclopédia no cinema, inspiro-me nas pinturas anteriores ao Renascimento, no qual foram criadas as noções do Supe r-homem e da Supermulher. Inspiro-me particularmente na obra de Van Eyck, na qual encontro uma grande tendência para os conceitos não-idealizados do corpo humano. Eu gostaria de gerar estes conceitos no cinema. Colocamos essas idéias em jogo no último filme, O livro de cabeceira, no qual chegamos ao ponto de dizer que todos os textos do mundo foram criados pela materia lidade de um corpo humano. Agora. porém, rompemos com esse laço mágico, pois estamos todos escrevendo em computadores. A conexão da imaginação e da inteligência com a cabeça e o ombro e o braço e a mão e a caneta e o papel está rompida. De certo modo, o fi lme fala desse rompimento entre a noção do corpo e do texto. E, se o corpo cria o text o-iron icamente. claro, e como metáfora - , então, em O livro de cabeceira, o texto deveria permanecer no corpo . O livro de cabeceira representa elementos de uma cultura oriental. Qual foi a sua motivação para se aproximar dessa cultura? Como foi esse encontro?
Busco um meio para juntar texto e imagem de maneira mais satisfatória. No Oc idente, perdemos a tradição oral: nossas idéias foram geradas-ao menos desde a invenção da imprensa - por textos escritos em oposição a tradições
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orais. Ainda existe no Oriente, certamente no Japão, a trad ição da ca ligrafia e da escrita em hieróg lifos, nos quais não há esse tipo de divisão, pois um hieróg lifo japonês é, ao mesmo tempo, imagem e texto: pode ser lido e pode ser visto. É muito sofisticado e a noção de imagem é muito próxima à de texto. Em O livro de cabeceira, eu queria examinar a relação entre o que pode ser lido e o que pode ser visto e experimentar, concomitantemente, O poten-
ciai de juntar texto e imagem no cinema . Não tenho certeza se pude levar essas idéias muito longe, acho que é preciso ser 0luito mais experimentaI. Nos próximos fi lmes, quero ver se há um modo pelo qual esse intercâmbio pode ser mais sofisticado para formar a base de um novo cinema. O seu trabalho pode ser considerado uma pesquisa sobre o cinema e sua relação com outras mídias? Após 104 anos de existência, acho que o cinema
perseguiu todo' tipo do que considero irrelevâncias, e não chegou a desenvolver-se de maneira verdadeiramente cinematográfica. O cinema ainda imita muito o teatro e, mais ainda, a literatura. De tal forma que eu diria, num momento pessimista, que ainda não vimos cinema ... Vimos até agora teatro filmado e, principalmente, textos ilustrados. Eu me formei como pintor e acredito que o cinema seja, sobretudo, uma arte visual, e não uma arte literária ou textual. Por isso, lamento ver com freqüência que o cinema não se inspire na produção de imagens, mas pretenda simplesmente ilustrar um texto. O que não é suficientemente bom para a literatura e menos ainda para o cinema. Sou muito cético em relação à narrativa, pois não considero o cinema uma mídia narrativa. Se você quer escrever uma história, seja um escritor ou um romancista, não um cineasta. Acho também que as restrições do que eu chamo de tirania do quadro, que prende tudo num espaço bidimensional , geraram uma situação lamentável que felizmente, graças às novas mídias, está sendo explodida agora . Gostaria de encontrar uma maneira de introduzir no cinema todas as co isas que têm uma tradição histórica muito mais longa de produção de imagens ocidental, pois não conheço profundamente a arte oriental. Certamente em relação à tradição imagética ocidental, deveríamos examinar todas as centenas de mi lhares ou dezenas de milhares de imagens dos últimos três mil anos . E deveríamos utilizá-Ias no cinema com a mesma intensidade que dedicamos a textos escritos. Como o seu cinema contribui para as práticas da representação no começo do século XXI? Potencialmente, o cinema é uma mídia extraordinária. Porém,
esse potencial não está sendo suficientemente aproveitado. O cinema vem sendo usado bas icamente pa ra ilustrar textos, para criar noções de naturalismo e de rea lismo. Certamente gostaria de ver essas coisas todas, porém transmutadas num novo tipo de cinema.
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Acho que existem quatro tipos de tiranias que devemos superar. Já mencionei duas: a do quadro e a do texto. Penso que há também a tirania do ator. Mas a mais importante é a tirania da câmera. A câmera sempre nos diz
como o mundo real é atraente, real e fascinante, que nunca podemos pôr na tela. Em certo sentido, devemos começar novamente do início. Posso oferecer duas citações: Picasso disse que pintou o que pensou e não o que viu; e Eisenstein, quando encontrou Walt Disney na Califórnia, disse que Walt Disney era o único que verdadeiramente fazia filmes. Podemos deduzir de ambas citações que devemos começar a fazer cinema a partir de uma tela negra vazia. Ou seja, não se deve partir, essencialmente, do mundo real, mas das nossas imaginações ou do mundo real concebido pelas nossas imaginações. Acredito , sinceramente, que, com todas as novas tecnologias, o editor é o rei e que o câmera não é mais tão importante porque o editor pode remanipular o mundo completamente. Estamos diante do início de todo um metacinema novo que pode criar uma nova mídia e um novo produto. Esta criação deve ocorrer de forma totalmente autônoma, sem estar assoc iada a noções preconcebidas da cultura ocidental do século XIX. Gostaríamos que você comentasse a idéia de que a pintura eletrônica é a única capaz de processar emoção, memória e imaginação simultaneamente.
Penso que há potenciais enormes da nova mídia para abordar essa idéia . A noção de uma mídia misturada se aproxima de nossas vidas complicadas, mas isso não quer dizer, de maneira alguma, que seja excludente: em torno de 1430, a pintura narrativa de Van Eyck foi capaz de abordar muitos significados simultaneamente. Cada artista deve tomar muito cuidado e usar e experimentar a tecnologia de seu tempo. Em nossa era revolucionada pela
TV. a tecnologia está essencialmente associada à eletricidade. As novas tecnologias me atraem porque nos oferecem novos meios para analisarmos a condição humana . Mas isso se refere apenas a um lugar particular, histórico. Tenho certeza de que em cem anos a tecnologia atual estará ultrapassada. Penso que as invenções tecnológicas deste século são apenas meios que não são mais sofisticados que a caneta no meu bolso. A imaginação humana será a força diretriz-uma força real e preciosa-qualquer que seja a tecnologia . Quais são seus projetos atuais? Há vários projetos. Você me ligou aqui numa ilha de edição em Amsterdã, onde estamos editando uma versão complicada
da ópera Rosa que fiz no ano passado e que aborda a morte de um compositor uruguaio em 1953. Estou também fazendo uma série de pinturas para uma exposição minha agendada para o final deste ano em Bruxelas. Mas o projeto mais recente é bem grande, tanto em relação ao conteúdo quanto à forma e, de fato, quanto à distribuição. Esperamos fazer quatro filmes de
26 127 Albrecht Dürer
duas horas cada, uma série de CD-ROM's, entrar na Internet e também realizar séries para a TV O nome do projeto é A maleta de Tu/se Luper (Tu/se Luper's suitcase); Tulse Luper é um a/ter ego que inventei há muitos anos, quando comecei a fazer filmes. Mas o projeto terá ainda um outro título, que será simp lesmente Urânio (Uranium). Tudo se baseia no número atômico de urânio, que é 92: 92 eventos, 92 episódios, 92 personagens e também 92 maletas-com a maleta do título. Sinto que a maleta é uma metáfora extraordinária para o fim do século XX, no qual tantas pessoas estão no caminho. Na América do Norte dificilmente se encontra alguém que ainda more no lugar onde nasceu. Supõe-se que na China há 25 mil jovens que se mudam para as maiores cidades todos os dias do ano. E sabemos do tumulto no centro da Europa: quando o muro de Berlim caiu, as pessoas começaram a se mudar, colocando suas coisas numa maleta e viajando rumo a novos lugares. Estamos falando de um mundo em movimento. Suponho, porém, que ao analisarem o sécu lo XX daqui a duzentos ou trezentos anos, talvez os historiadores vejam o século XX como o século do urânio: responsável pelas ansiedades, pelo fim da Segunda Guerra Mundial com a bomba de Hiroshima, mas também pelos anos todos da Guerra Fria de 1945 a 1989, quando o muro de Berlim caiu. Não quero fazer um documentário histórico, de maneira alguma. Tomaremos um detalhe muito pequeno deste panorama: no meu caso, serão 92 personagens para exemplificar todo tipo de noções sobre o século XX. Trata-se de um projeto gigante que iniciaremos em breve. Ainda tenho outra ópera em Amsterdã, que se chama Escrevendo para Vermeer (Writing to 'Iermeer), o holandês que pintou principalmente mulheres escrevendo ou recebendo cartas. Para este novo milênio queremos fazer uma ópera que fala da serenidade e da calma contra o contexto da violência. Por isso nos baseamos em Vermeer, que conseguiu gerar uma grande aura de serenidade e de ordem em suas 26 pinturas, uma obra pequena que produziu em torno de 1670. Como você pode perceber, temos vários projetos e muitos deles têm algo em comum. Evelyn Schuler é integrante do corpo editorial da Sexta Feira e Thomas H. Lehmann é docente responsável pelo estúdio de vídeo da Universidade de Basel (Basel/ Suiça) e recémdoutor com uma tese sobre o olhar em Goethe e em Greenawav
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Fi'mografia de Peter Greenaway
curtas e médias Caro telefone (Dear phone) 1977, duração: 17 min., produção: Peter
Greenaway H is for house 1973, duração: 9 mino Intervalos (Intervals) 1969, duração: 7 min., produção: Peter Greenaway Janelas (Windows) 1975, duração: 4 min ., produção: Peter Greenaway
a aperto de mão de Hubert 8als (Hubert Bals handshake)
1989, duração: 5
min., produção: Allarts Enterprises Refazendo detalhes verticais (Vertical features remake) 1978, duração: 45
min., produção: Peter Greenaway, Arts Council of Great Britain , música: Michael Nyman Uma caminhada pelo "h" (A walk through "h"} 1978, duração : 41 min. , pro-
dução: BFI, música: Michael Nyman longas A barriga do arquíteto (The be//y of an archítect) 1987, duração: 105 m in.,
produção: Callender Company, film Four International , British Screen, Sacis, Hemda le A última tempestade (Prospero's books) 1991, duração: 123 min ., produção:
Ll arts, Cinea, Camera One, Penta film, co-produção em associação com Elsevier Vendex film, film Four International , Vpro, Canal Plus e NHK Afogando em n úmeros (Drowning by fJumbers) 1988, duração : 108 min.,
produção: Allarts Enterprises, fi lm Four International, Elsevier Vendex film
a bebê santo de M âcon (The baby of Mâcon) 1993, duração: 120 min ., produção: All arts Enterprises, Ugc-Ia Sept, Cine Electra, Channel Four, Fi lmstiftung Nordrhein Westfalen, Canal Plus
a contrato do desenhista (The draughtsman's contract) 1982, duração:
108
min ., produção: BFI e Channel Four Television, música: Michael Nyman
a cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante (The cook, the thief, his wífe and her lover) 1989, duração: 120 min., produção: Allarts Enterprises, Erato
Films Inc .
a livro
de cabeceira (The pi//ow book) 1995, duração: 123 min ., produção:
Asander & Wigman Productions, Woodline films and Alpha films em associação com Channel Fou r fi lms, Studio Canal Plus e Oelux Productions The falis 1980, duração: 185 min ., produção: BFI, música : Michael Nyman Zoo - um z e dois zeros (A zed and two noughts) 1986, du ração: 112 min.,
produção: BFI , Channel Four Television , Allarts Enterprises e Artificial Eye, música: Michael Nyman
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30 Lição de Anatomia Paulo Menezes
30131 O cozinheiro,
o ladrão, sua mulher e o amante
ESTOU MUITO PELADA!
estar no mundo, de nosso momento inicial como ser autônomo, no sentido
Esta frase, pronunciada no revei/lon de 1997 numa praia em Ilha Grande,
de desligado fisicamente de um outro que nos dê as condições de vida, por
e de autoria sempre vigorosamente negada pela autora, fez-me pensar de
mais que continuemos dependentes de alguém que nos dê agora um outro
maneira prolongada nas várias dimensões de significado que explicita, bem
tipo de provisões para que continuemos a subsistir. Pelado, por sua vez,
como nas inúmeras outras que nos furta, ao mesmo tempo, ao olhar e ao
remete-nos a uma outra direção interpretativa. De início, seja como tirar
pensamento.
pêlos ou como tirar a pele, em ambos os sentidos estamos sendo privados
Numa primeira aproximação, qual seria a diferença entre o estar nu e o
de algo que faz parte de nosso próprio corpo, de nossa própria natureza físi-
estar pelado, ou, mais propriamente falando, entre o nu e o pelado? A palavra
ca, algo que, no limite, acompanha-nos desde o nosso nascimento. Mesmo
nu, segundo o Aurélio, vem do latim nudus, que significa sem vestimenta,
assim, estamos defronte de duas atividades de profundidade diferente, pois
sem roupa, como também, despojado, destituído. Pelado, por sua vez, vem
se tirar os pêlos (ou cabelos) significa arrancar algo que parece extrapolar a
de pelar, cuja origem seria pêlo + ar, numa primeira acepção, tirar o pêlo,
nossa superfície e que, portanto, pode ser arrancado sem nos "descobrir", o
incluindo-se aqui também os cabelos, ou, numa segunda, pele + ar, tirar a
mesmo não poderia ocorrer no caso de um "tirar a pele", onde nossa própria
pele ou casca. Escalpelar, nesta direção, parece ser uma junção dos dois
superfície seria arrancada, começando a mostrar, finalmente, o que teríamos
sentidos pois significa tirar a pele da cabeça, o que acabaria incluindo os
"por dentro". Daí decorre que, se pelado pode significar arrancar pêlo ou
cabelos que por ventura ali ainda estivessem .
pele, o ato de arrancar ou tirar varia do depilar na primeira acepção ao esfolar
Nesse contexto, uma primeira diferença entre os dois termos parece sur-
na segunda . Com isso, podemos ver que do nu ao pelado estamos realizando
gir do fato de que ficar nu significa a retirada de algo que não era parte de
um trajeto que vai do exterior para o interior do próprio corpo, de um apên-
nossa natureza, sendo, portanto, exterior ao nosso corpo , e que, mais pre-
dice de vestuário à nossa própria "cobertura" natural.
cisamente, nos devolveria à nossa condição primeira e primeva-no limite,
Mas, o que me parece realmente fascinante, em todo esse trajeto, é a
uma recuperação de nossa forma de origem, de nossa primeira maneira de
terceira palavra ali proferida, que acaba por nos forçar de maneira decidida
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a olhar aquela frase de um modo que vá além dos limites do puramente
cada homem ou an imal", ou, de maneira mais contundente e muito mais
fisiológico. "Estou muito pelada" parece proferir uma grande redundância, a
clara, "a parte material, animal, ou a carne, do ser humano, por oposição à
partir do momento que se refere a um estado do qual aparentemente não se
alma, ao espírito", como nos diz o Aurélio. Aqui temos, de maneira exemplar,
poderi a passa r. Difere, po rtanto, de uma frase que poderia ser lida no mesmo
a assertiva de classificação das co isas tão ao gosto do positivismo e de sua
registro-"estou ligeiramente grávida" - que se remete, esta sim, a uma
separação radica l dos domínios que constituem o mundo . Essa perspectiva
rea lidade bipolar à qual existe ou não existe um pertencimento . Ou se está
envolve ainda um abandono de tudo o que seria peculiar às aparições indivi-
grávida, ou não se está, fisiologicamente falando'. No nosso caso, o muito
duais desses corpos, para que deles restasse apenas o que têm de mais geral
pelada-o estar pelada em excesso ou o estar abundantemente pelada -
e genérico, relegando ao campo do impertinente o fato de que não existem
parece nos mostrar camadas sucessivas de possibilidades de exposição do
dois corpos nem mesmo bio log icamente iguais, marcados que são interna-
corpo para além de seus limites propriamente biológicos, pois é evidente que
mente por mudanças temporais e, entre si, por diferenças também espaciais.
não se trata de uma autópsia, além do fato curioso de que os corpos sem
Mas a frase que nos estimula parece negar esses lugares estanques a
vida, os cadáveres, não se apresentam a nós pelados , e sim pura e simples-
que foram relegadas as coisas e as palavras que as nomeiam , deixando para
mente nus, quando não vestidos. Portanto, o pelado, que pa rece se r uma
nós o problema de perceber as dimensões que ignora e aniqui la. Como pen-
ca racterística dos corpos humanos vivos, não mais nos deixa escapar de
sar o corpo, sem pensar simultaneamente em prazer, erotismo, sexualidade,
enfrentar uma questão que aqui estava latente o tempo todo e que se refere
e mesmo procria ção- ato reduzido a uma mera operacionalidade prática e,
à dimensão cultural que envolve a existência e a percepção dos corpos no
por que não dizer, técnica, pela ciência médica . Será que não era para isso
mundo. Por outras palavras, a existência de um corpo pressupõe um "estar
que nos alertava Marcuse, quando disse que "muito antes de as forças espe-
no mundó" por meio de um corpo determinado e único no espaço e no tem-
ciais e não-assim-tão-especiais estarem fisicamente treinadas para matar,
po . Ou seja, a pergunta que se faz é se o corpo poderia ser pensado como entidade puramente biológica, "como a substância física, ou a estrutura, de
1 É evidente que deixamos aqui de lado fenôm enos como a "gravidez psicológica", por não estarem nos limites de nossa discussão.
33
queimar e interrogar, os seus espíritos e corpos já estão treinados para ver,
leito coberto por lençóis brancos, ligeiramente de lado, a oferecer a mais
ouvir e cheirar no outro não um ser humano mas um animal-animal contu-
ampla visão das formas arredondadas que constituem os seus corpos claros.
do sujeito a castigo total" (1977: 102)? Como pensar os corpos sem vigiá-los
O curioso dessas pinturas é o fato de que essas mulheres têm os seus
ou puni-los, como nos mostrou Foucault (1980; 1981), sem pensá-los em suas
olhares dirigidos àqueles que agora as contemplam, constituindo assim uma
relações com o poder, sem problematizá-los nos desdobramentos de sua
relação de cumplicidade entre elas, nós e o pintor 3 A Vênus de Velázquez,
sexualidade e dos va lores que definem em cada época o que nela é bom ou
por estar pintada de costas, a nos mostrar as nádegas, utiliza-se de um artifí-
mau . Lembremo-nos de Nietzsche : "o que uma época considera mau é,
cio genial para conseguir o mesmo efeito, com a introdução de um anjo que
constantemente, uma sobrevivência anacrônica de algo que foi julgado bom
está ali com a única função de segurar um espelho para que Vênus olhe para
antigamente, o atavismo de um ideal mais antigo" (1989:92). Como não pensar em todos esses problemas, após ver O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante, filme de Peter Greenaway? Existe uma certa recorrência de ponto de partida nas imagens que re-
nós e nos atraia de maneira irresistível. Afinal, não é Vênus, a deusa dos prazeres, que ao arrastar Tannhauser para seus braços impede de maneira definitiva que ele realize seu amor por Elisabeth, na ópera de Wagner? Tal vez, a mais contundente de todas, pelas inversões que propõe, seja a "Vênus"
tratam os corpos na pintura, desde o Renascimento. Diferentemente da
de Manet. Olympia, elaborada exatamente na mesma posição da de Tiziano .
estatuária grega, que nos relegou os mais va riados exemplares de corpos
Apresenta, entretanto, uma mudança curiosa. Se no pé da cama de Tiziano
masculinos 2 , a arte dos pincéis parece ter deslocado seu interesse pre-
víamos um cachorro, símbolo de fidelidade, em Olympia vemos um gato, na
dominantemente para o sexo oposto. A mulher, elevada ao lugar primordial
verdade quase um esboço de gato, com os pêlos eriçados. O gato, como
de eterno modelo, transforma-se em referência dos olhares não só do pin-
sabemos, é o oposto do cachorro, aparecendo aqui como um elemento de
tor que as registra, mas, e principalmente, dos olhares posteriores que atiça, que atrai para si mesma. Como não lembrar dos ícones desse processo, as famosas Vênus de Tiziano e de Velázquez. Ambas estão deitadas sobre um
34 135 Sexxxy
2 É uma louvável exceção que confirma a regra a mais que famosa Vênus de Milo. no Museu do Louvre. 3 Ver sobre esse tema o interessante ensaio de John Berger (1980:49- 68).
devassidão . Só que, aqui, o olhar de Olympia não induz à passividade de se
em aparições, o que acaba por criar ali um clima pesado e, às vezes, sufo-
deixar contemplar. Pelo contrário, questiona o olhar possessivo do macho ao
cante . Parecemos nos mover dentro de um ambiente laboriosamente cons-
afirmar seu lugar como controladora de seu mundo e de todos os que ali
truído para nos pegar de chofre pela invasão que perpetra em todos os
adentram. Diferentemente das outras que se colocam para serem possuí-
nossos sentidos. A câmera, que não se cansa de passear entre suas mesas,
das pelo olhar, Olympia penetra com seu olhar decidido a moralidade da
mostra-nos, com vagar, uma interminável sucessão de minúcias. Podemos
contemplação dos corpos femininos nus.
deliciar nossos olhares com mesas onde se dispõe, de maneira cuidadosa,
O filme de Peter Greenaway coloca-se como uma areia movediça no meio destas proposições . Em O cozinheiro ... , tudo é montado e parece funcionar por contrastes,
uma parte da natureza morta - gansos, patos, faisões, maçãs, uvas -
cui-
dadosamente distribuída e arranjada, como poderíamos apreciar em uma pintura de Willem Kalf. Em um canto do salão, por excesso de zelo de se
associações e inversões. O lugar central de suas ações é o grande salão de
fazer compreender, apresenta-se uma tela de Frans Hals, O banquete dos
refeições de um restaurante inglês chamado, e não por acaso, Le hollandais.
oficiais da Companhia de São Jorge, de 1616, numa curiosa inversão que
Tudo lá, no restaurante e no filme, é cuidadosamente construído como refe-
acaba fazendo o quadro parecer uma decorrência absolutamente natural da
rência explícita à pintura holandesa. Esse salão principal tem como cor fun-
sala na qual se encontra. Os trajes dos personagens que por ali passeiam
damentai um vermelho intenso, que cobre seu chão, suas paredes, suas
reforçam essa sensação, mais por indução do que por imitação, pois segu-
cortinas de veludo e as toalhas de suas mesas. A isso se somam as roupas
ramente não são trajes de época os desenhados por Jean-Paul Gaultier.
de todos os que ali estão, invariavelmente combinações desse mesmo ver-
O filme todo se passa em espaços circunscritos, na sua maior parte o
melho e preto, com leves e fugazes brancos que despontam em alguns
próprio restaurante, com breves aparições de seu estacionamento, de um
lenços e rendas nas camisas e paletós. Este salão tem uma decoração rebus-
hospital e de um depósito de livros. Mas até mesmo este estacionamento
cada e redundante, com elementos que se repetem uns sobre os outros,
nos é apresentado como um espaço recluso, fechado, asfixiante, angustiante.
todos arredondados, todos emaranhados, todos excessivos, em detalhes e
Cada espaço apresenta uma cor principal que redobra as cenas que ali
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acontecem, construindo e ressaltando o seu sign ificado. O grande salão,
É o único suporte temporal que nos permite recompor a trama no tempo e,
como já vimos, é predominantemente vermelho, cor da paixão, do sexo, mas
nele, os tempos de cada um . Esses jantares transcorrem de maneira quase
também do sangue, além de preto, cor da morte. De lá decorrem seus es-
ininterrupta, transformando-se na espinha dorsal da história que nos será
paços correlatos , que vão ter a cor das emoções que ali se desencadeiam.
contada. A forma assum ida pela narrativa redobra aqui lo que vimos no cená-
O estacionamento é escuro e azulado, lugar frio de poucas ações, mas
rio, que aparentemente se faz sempre igual, mas que ao mesmo tempo
todas elas contundentes em seus desdobramentos. A cozinha é esverdeada,
nunca cessa de se transformar.
ampla e espaçosa, lugar genético essencial e, portanto, de cor neutra, colo-
A primeira cena do filme, escura e confusa, anuncia-nos de maneira ine-
cando-se como o centro de irradiação de tudo o que iremos observar no
quívoca, como depois veremos, as várias dimensões que nossa trama
decorrer do filme. E ali se gera a energia vital que mantém todos nós vivos
pretende esmiuçar. É uma cena um tanto quanto bizarra. Vemos nosso
(a comida). Outras cores tornar-se-ão significativas com o passar do filme,
"anfitrião", no meio do estacionamento, juntamente com seus capangas,
como veremos mais à frente.
arrasando aos gritos o dono de um outro restaurante que se negou a pagar
O enredo da história é aparentemente banal , mostrando o contraste
a "proteção" exigida por ele. O final dessa cena é exemplar, ao vermos se-
entre um rico, proprietário de um restaurante, mal-educado, inculto e des-
rem arrancadas suas roupas enquanto Spica começa a fazê-lo comer os
provido de qualquer gosto, Albert Spica (o ladrão). e seu chef, Richa rd (o
excrementos dos cachorros que ali estão , latindo o tempo todo. Momentos
cozinheiro), um refinado restaurateur francês , que elege Georgina (a esposa)
depois de ser deixado pelo bando, Richard coloca o homem em uma cadei-
como sua preferida , por ser ela a única pessoa diferenciada naquele meio:
ra e o lava na porta da cozinha, reforçando a idéia de ser aquele lugar um
mulher sensível e capaz de apreciar a sofisticação de seus magníficos dotes
espaço de purificação, não apenas dos alimentos que ali se transformam
culinários.
em deliciosas iguarias, mas também, e principalmente, daqueles que delas
O filme desdobra-se em uma sucessão de jantares que marcam o pas-
se servem e que conseguem apreciá-Ias. Essa acepção se reforça momentos
sar do tempo pelos cardápios que anunciam, para nós, o menu de cada dia.
à frente, quando ouvimos uma voz muito aguda e adolescente, que provém
37
de um garoto de cabelos de um loiro quase branco. Iluminado por trás, seus
Michael (o amante). que é sempre acompanhado em suas refeições por
cabelos transformam-se em uma auréola em torno de sua cabeça, como a
livros encadernados também em vermelho .
abençoar os versos que ele canta de maneira extremamente penetrante:
Em uma das primeiras cenas, vemos Spica tentando levar à frente uma
"tenha pena de mim, tenha pena de mim, apague meus pecados, me pur-
empreitada que percebemos , rapidamente, ser inglória: aprender a falar
gue com hissope, e eu serei puro, e eu serei puro, me lave e serei mais
francês, para melhor compreender o que se come no restaurante que acabou
branco do que a neve ...". Tudo isso nos induz a acreditar que estamos pres-
de comprar. Mas, ao ler o nome dos pratos do cardápio, como um papagaio
tes a ver uma grande purificação.
tentando dar um ar de "refinamento" às suas palavras, acaba por cair na
Spica é grande e relativamente gordo, mal colocado nas roupas finas que ele utiliza de maneira desajeitada nesses jantares e que poderiam disfarçar suas maneiras rudes e indelicadas se também se esforçasse em não abrir a
curiosa armadilha lingüística propiciada pela suave diferença sonora que separa poisson de poison e, portanto, peixe de veneno. Spica é um mar de grosserias e de brutalidades que se repetem sem
própria boca. Sempre grosseiro, sempre falando alto em qualquer lugar do
cessar durante a sucessão de cardápios e de jantares. Mas é interessante
restaurante, nosso proprietário é a antítese de Richard (o chef) , em todas as
perceber que suas frases, recheadas de eternos impropérios, repetem-se
suas dimensões. Ele se coloca como o dono de tudo e, como não poderia
sem nunca se repetir propriamente, como uma sucessão de pinceladas bar-
deixar de ser, de todos que ali participam desta ceia interminável, ou quase
rocas que se somam sem nunca recobrir o mesmo lugar. O que importa, no
interminável, como veremos no final. É impressionante perceber que nenhu-
limite, não são as frases que se seguem , mas seu efeito de conjunto, suas
ma de suas frases parece apropriada aos lugares nos quais são proferidas.
articulações em torno de um conteúdo que vai se tornando cada vez mais
Estão sempre lá para nos lembrar continuamente da distância que separa
explícito, denso e profundo, com o passar dos jantares. Todas essas evolu-
este mundo do "ser proprietário" e aquele longínquo, e hoje aparentemente
ções são acompanhadas pela música de Michael Nyman, que, salvo em
sem sentido, mundo da cultura, aqui materializado pela sofisticação propicia-
dois momentos, repete-se durante todo o decorrer do filme. Repete-se, ape-
da pela culinária e por alguns dos clientes do restaurante, em especial por
nas em termos, pois nunca é realmente a mesma, apresentando variações
38 139 Iran do Espírito Santo
minimalistas a partir de um mesmo tema, como o fazem também o cenário e as atitudes de Spica em relação a
Georgina 4
saia para esquentar o assento" da cadeira. Quando ela retorna de uma de suas "idas ao banheiro", Spica pergunta a ela se "limpou o assento antes de
Logo nas primeiras cenas, temos uma amostra da "elegância" de Spica
colocar a bundinha, pois eles são como campos minados". Lembra a todos,
no trato de sua companheira. Ao pronunciar de forma equivocada que gos-
em uma fala memorável. que uma de suas "amigas" havia sentado em uma
taria de ter poison como jantar, Georgina corrige-o dizendo que o que ele
privada onde havia resíduos de ácido de bateria e que, em virtude dos furún-
deseja é poisson. A reação de Albert é imediata, batendo sem cessar o
culos que cresceram em suas nádegas, nunca mais havia podido fazer
cardápio que segura no rosto de Georgina, para visível constrangimento de
striptease de costas. Em um momento em que tenta demonstrar sua "cul-
Richard e deleite de seus asseclas. Ele sempre a trata como se ela nada
tura", nosso anfitrião nos diz que as vacas bebem duas vezes o seu peso de
mais fosse do que um daqueles pratos com os quais ele se refastela a cada
água por dia, e que é por isso que elas possuem "tetas grandes", como as de
refeição. Na verdade, é primordial para todo o desenrolar das ações do filme
Georgina. Ao falar isso, levanta-se e enfia a mão no seio de sua mulher, por
a tensão criada pelo fato de que Spica passa toda a primeira metade do
baixo do vestido, para por fim exclamar a todos não ter a menor idéia das
filme até que descobre o amante de Georgie (como ele a chama) ensinando
razões pelas quais ela está sem sutiã. Por fim, em outra cena crucial, quan-
aos seus pulhas como eles deveriam se comportar em um ambiente de re-
do "apresenta" Michael a Georgina, Spica a faz repetir, para mostrar o que
quinte e luxo, com o qual visivelmente não estão acostumados. Assim, nada
ela é, quanto gasta com ela por semana: quatrocentros libras com roupas,
mais contundentemente esdrúxulo do que ver Spica ensinando aos outros
quarenta com gasolina, além de freqüentar os melhores restaurantes e usar
as "boas maneiras" que ele mesmo não têm.
roupas estupendas, ao que Georgina em desafio diz que também vai a um
Tomemos, como ilustração, algumas das frases proferidas por Spica du-
bom cabeleireiro, a um bom dentista e a um bom ginecologista, que lhe disse
rante o filme, para refrescar a memória de nossos leitores. Logo na primeira
que não poderia mais ter filhos porque os três abortos que ela fez prejudi-
vez que entram na cozinha do restaurante, no momento em que Georgina se
caram de maneira irreversível o seu corpo. Diante da ira de Spica, Georgina
dirige para o salão, Spica grita, no meio de todos, que é para ela "levantar a
completa que, por ser infértil, é o que se pode chamar de uma "boa foda" .
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o momento de inflexão de nossa
história é o romance entre Georgina e
esgotos, embora ambos estejam relacionados, pois as partes nobres e as
Michael, que vai detonar todos os outros acontecimentos num filme no qual
partes abjetas do comer e do sexo são tão próximas ... ". Completa sua frase
as cores são definidoras de condições e de estados emocionais. Apenas dois
afirmando que "as partes internas de Georgina se comparam a comida". Na
personagens transitam pelos espaços sem terem alteradas as cores de suas
verdade, isso é uma pista para compreendermos porque tudo aqui parece
roupas . Richard, sempre vestido em um branco impecável, e Michael, sempre
se passar no lugar errado, quais tipos de "comida" Spica leva para a mesa e
em seu terno e gravata vermelhos e camisa branca. O fato de suas roupas
para a cama e o porquê de sua mesa no restaurante, em alguns momentos,
permanecerem sempre da mesma cor reforça seus lugares centrais, eixos
parecer-se mais com uma latrina do que com qualquer outra coisa. Deixa
pelos quais transitam todos os outros personagens, bem como seu papel
claro, também, que para ele comida e sexo são a mesma coisa, que ele trata
como desencadeadores de descontinuidades que vão desgovernar a estabi-
do mesmo jeito e que ele aprec ia com o seu mesmo paladar inexistente . Isto
lidade grotesca das relações entre Sp ica e aqueles que o cercam, até o trági-
nos leva a imaginar que ele faça sexo da mesma maneira como enche a
co desfecho. São eles que realçam em Spica o contraste com o gosto que ele
barriga 6 Afinal, saberemos de suas "preferências" sexuais apenas quando
não tem e a capacidade de amar e ser amado que ele nem desconfia não ter.
Georgina conta, a um Michael já morto, que Albert lhe batia constantemente,
Uma cena exemplar dessa primeira proposição é aquela na qual Spica mostra a todos o "maravilhoso" néon que mandou executar para a fachada do restaurante . Cafonismo exagerado que termina em escuridã0 5 . A sua forma de "amar" Georgina, por sua vez, faz-se emblemática num curioso monólogo logo no começo do filme. Albert. conversando com a sua trupe, diz a todos que é um artista "quando se trata de juntar negócios e prazer. Dinheiro é negócio, comer é prazer... e Georgina é meu prazer também , só que um prazer mais particular do que encher a boca e alimentar os
4 Aqui se juntam todos os elementos imagem , cor, e som (diá logo s e música) que marcam a temporalidade dos personagens do filme . Se Spica está preso na mesmice, ao voltar sempre igual para o mesmo lugar, como ele bem expressa na cena final ao tentar a reconciliação com Georgina, os outros, que como tudo parecem não sair do lugar, também voltam se mpre, mas voltam sempre diferentes, de uma maneira que Spica não compreende e nem mesmo percebe. 5 A cena que se segue, na qual todos seguram pratos com velas acesas, faz com que pensemos imediatamente em quadros de Georges de La Tour, a exceção que confirma a regra. 6 Albert parece levar ao extremo o fato de que, em quase todas as línguas, o verbo utilizado para a alimentação e para o sexo seja o mesmo : comer.
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que fazia com que ela limpasse suas ... [fezesF com toalhas quentes, e que
primeiro onde se guardam os pães, depois onde estão os queijos e salames
se divertia utilizando dentro dela os utensílios que carregava em sua maleta:
e por fim onde estão as aves. Sempre banhados por uma luz quente, amare-
uma escova de dentes, uma colher de madeira, um trem de plástico e uma
lada, esses espaços se recolhem em júbilo, desdobrando-se no aconchego
garrafa de vinho, novamente associando sexo à comida e, portanto, mesa à
que parecem compartilhar com os amantes e que envolve seus corpos nus
cama, inclu indo sempre uma certa escatologia.
dourados. São lugares que também associam a comida ao amor, mas de
Nesse contexto, o banheiro aparece, e por contraste, como o outro lugar
uma maneira muito diferente da que vimos até então. Ali, são apenas pré-
essencial e, portanto, desencadeador de ações e de sentimentos, como é a
dejetos que se engolem para serem excretados depois, corpo e comida,
cozinha e seus anexos. É completamente diferente dos outros ambientes
sexo e fezes alimentando os esgotos da existência. Aqui, a comida e o sen-
do restaurante, sempre cheios de coisas e pessoas. Ao contrário do que se
timento são nutrientes do espírito e fontes de vida, como os livros e os quei-
poderia esperar, ele é absolutamente clean em sua economia de decoração
jos. Não é por acaso, em conseqüência, que as cenas de amor entre ambos
e detalhes, além de ser o único lugar onde tudo aparece em cores totalmen-
são intercaladas por outras que nos mostram facas que cortam, de maneira
te brancas : o chão, as paredes, as divisórias, a pia, os vasos sanitários e os
cuidadosa, os legumes que nutrirão os corpos dos clientes no jantar. São,
mictórios 8 . Curiosamente, o lugar onde se espera encontrar os dejetos e os
portanto, espaços primordiais que ressaltam o tempo da criação, da gênese,
fluídos indesejáveis com os quais sobrecarregamos nossos corpos aparece
do envolvimento e do metabolismo que dissolve dois corpos em um só.
como um espaço imaculado e purificador. Não é à toa que seja justamente no banheiro que se dê a primeira relação (incompleta) entre Georgina e Michael. É o lugar que detona em ambos o ca lor da paixão singela que a tudo desafia e que, por sua simplicidade ing ênua, por desconsiderar os risc os que comporta, acaba por levar à morte. As outras relações entre ambos acontecem nos meandros da cozinha,
42 143 Valeska Soares
7 Ela não consegue pronunciar. S Não podemos deixar de ressaltar que a própria ergonometria do sanitário masculino acaba induzindo esta percepçã o, pela arquitetura curiosa dos quatro mictórios dispostos em cruz, fazendo com que os que os utilizam sejam ob ri gados a se olhar ao mesmo tempo. Não é necessário dizer que isso causaria um constrangimento genial levando, no limite, à impossibilidade de concretização do ato fisiológico que em princípio deveria, se não estimular, pelo menos não atrapalhar ou impedir.
Essa coloração amarelada acompanha os amantes em todos seus percur-
comida preta sentir-se-iam como se comessem a morte, demonstrando seu
sos e percalços, até mesmo em sua fuga, quando envolve o freezer onde se
poder sobre ela, dominando-a e submetendo-a 9 . Compreendemos, então, a
escondem, o caminhão de comida agora completamente deteriorada no qual
frase que Richard pronunciou lá no começo, quando as luzes se apagaram,
fogem e, por fim, o depósito de livros no qual realizarão sua única ceia juntos,
de que graças a Mr. Spica "is black everywhere" . Compreendemos também
a única que não se assemelha à "Santa Ceia" de todos os jantares e que vai
porque a roupa de Spica continua preta quando ele invade aos gritos o ba-
marcar, pela sua radiante alegria, o início do fim .
nheiro procurando por sua esposa, que estava com Michael em uma de suas
Não é, portanto, de se estranhar que, se estamos associando o tempo
cabines. Se ele parecia uma agourento agente da morte, não poderíamos
todo corpo e comer a comida e sexo, bem como alimentação a gênese, aca-
imaginar que fosse, também, e por fim, o agente de sua própria aniquilação.
bemos por associar, também, corpo e comer a comida e morte.
A união final de todos esses elementos aparentemente diferentes reali-
Spica, ao encontrar o amante no depósito de livros, pede que o matem da
za-se quando é servida a Albert sua derradeira refeição . A cena é estonteante.
mesma forma que se come, pela boca, sufocando-o com páginas de um livro
Vemos uma procissão dos desvalidos, da qual participam todos aqueles que
que, não por acaso, é sobre a Revolução Francesa, com destaque para a fase
foram humilhados, machucados e pisoteados por Spica, acompanhar uma
do Terror. Terror que se estampa em seus olhos abertos e em seu peito quan-
grande travessa coberta por um lençol, que é disposta à sua frente. Seu olhar
do o cadáver é, momentos depois, encontrado por Georgina. Por fim, para
de curiosidade e de prazer é instantaneamente substituído pelo espanto e
realizar a derradeira associação entre corpo, comida, vida e morte, Georgina
pelo horror, quando o lençol é retirado e vemos sob ele o corpo de Michael,
pede a Richard que asse o corpo de Michael para uma última refei ção, asso-
assado, temperado e adornado com uma série de legumes e tubérculos . A
ciação definitiva entre o vermelho da paixão e do sangue ao preto da morte.
câmara move-se vagarosamente por todo o assado, dos pés à cabeça,
Idéia reforçada quando Richard explica que estabelece o preço de seus
mostrando em detalhes a refeição que se estampa aos olhos de Spica. Pela
pratos em relação à quantidade de preto que eles contêm. Tudo o que é preto é caro, como caviar e trufas, pois, simbolicamente, as pessoas ao comer
promessa realizada em seus gritos de ódio ao descobrir que sua mulher
44
primeira vez o vemos tremer, quando lhe é ordenado que cumpra a sua
tinha um amante de que iria matá-lo e depois comê-lo . A imagem fecha-se
em suas entranhas como se fosse um aspargo, vi lipendiado sem cessar
sobre seu rosto , espelhando em seus olhos o mais lívido pavor, que se apro-
como se fosse a cabeça de porco pendurada na traseira do caminhão.
funda ainda mais quando sua esposa lhe ordena que comece a comer, e
Estranha antropofagia moral, que engole sem mastigar, uma a uma, todas
começando pelo cock de Michael pois, além de ser uma delicatessen, aquilo
as dimensões que comprovam não poder ser o corpo reduzido a uma enti-
ele bem sabia onde havia estado. Vemos suas mãos tremerem o garfo que
dade puramente física. Mostra-nos, da mesma forma, como é possível
contém aquele pedaço do corpo de Michael, que Spica leva com vaci lo até
despi-lo sem retirar as roupas que o cobrem e como é possível sentir-se
a boca, engasgando e quase vomitando antes de conseguir colocar dentro
pe lado sem que se esteja nu. Deixa em nós, ao seu final, a amarga sensa-
del a o primeiro pedaço e tenta r mastigá-lo. Após o vermos engo lir a carne
ção de qu e estamos todos nós, ali também, semp re mu ito, muito pelados.
do sexo de Michael, a imag em vo lta-se para Georg in a que, com o braço
9 Richard diz também que cob ra pela va id ade, 30% a mais pelos dietéticos e 50% pelo s afrodisíacos, o que de novo remete o alto preço ao sexo e à morte.
esticado , aponta-lhe o revólver para então disparar. Com o corpo de Albert deitado por terra , à frente do corpo de seu amante disposto sobre a mesa, Georgina pronuncia a última palavra do filme: Canibal. Corpo, comer, comida e sexo são, finalmente, uma única e mesma coisa.
Referências bibliográficas BERGER, John. Modos de ver. São Paulo, Martins Fontes, 1980. FOUCAULT. Michael. História da sexualidade. Rio de Janeiro, Graal, 1980. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1981. MARCUSE, H. Ensaio para a libertação. Lisboa, Livra ria Bertrand - Amadora, 1977. NIETZSCHE, Friedrich . "Maximes et interludes 149" in: Par-delà bien et mal. Paris, Gallimard,
_ _ _ _ o
Não deixa de ser curioso que O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante, que aparentemente repete as mesmas falas e a mesma música sem sair do lugar, a partir de sua associação indelével entre comida e sexo, acaba por penetrar, de maneira contínua e incessante, em várias camadas
1989. Paulo Menezes é professor doutor do Departamento de Sociolog ia da FFLCH-USP
de nosso co rpo e ao mesmo tempo em vá rias dimensões de nossa moralidad e insuspeita . O corpo de Georgina é exposto na mesa como se fosse um faisão, comido pelas palavras de Spica como se fosse um salame, exposto
45
46 A dialética do corpo no imaginário popular José de Souza Martins
46! 47 A n t o n i o D í a s
FIQUEI INTRIGADO COM O TELEFONEMA DA ASSISTENTE SOCIAL DO Hospital do Câncer para lá comparecer e providenciar a remoção de "seu" Zé Rodrigues, internado na véspera para uma operação. Aparentemente, "seu" Zé recusara-se a ser operado. Melhor que eu fosse lá com urgência e conversasse com o médico. Eu conhecera "seu" Zé Rodrigues alguns anos antes, na casa do bispo dom Pedro Casaldáliga onde ele e eu estávamos hospedados. Foi na época de minha pesquisa na região amazônica, sobre os conflitos na frente de expansão. Ele era um dos "enfrentantes" que lideravam os posseiros do povoado de Santo Antônio do Rio das Mortes, pressionados por uma grande empresa para que deixassem a terra que ocupavam há muito. Enquanto conversávamos, sentados em nossas redes, no alpendre da casa, reparei que havia um tumor grande na sola de um de seus pés. "Pisei num estrepe quando estava roçando o mato", explicou-me. "Daí a ferida começou a crescer e ficou desse jeito". Por iniciativa do pessoal da Prelazia de São Félix, foi enviado a Cuiabá e lá operado. A biópsia, porém, revelou que o tumor era maligno. Melhor ir para São Paulo, sugeriram os médicos, operar de novo, ver se não havia ficado ainda algo do tumor, apesar de removida quase inteiramente a planta do pé, refeita por meio de um enxerto. E assim foi feito. Por meio de um médico que era pai de uma das agentes de pastoral da Prelazia, "seu" Zé foi encaminhado ao Hospital do Câncer e examinado. Passou a receber tratamento sob cuidados da equipe de um imunologista que se tornaria famoso, o dr. Dráusio Varela. Posseiro muito pobre de uma região paupérrima, "seu" Zé Rodrigues teve daquela equipe e do hospital tratamento exemplar. Ficaria em observação, sob tratamento em seu próprio povoado, lá na beira do rio das Mortes, retornando a São Paulo, periodicamente, para exames. Coube a mim a responsabilidade de enviar-lhe a cada quinze dias, eventualmente com ajuda de amigos, as ampolas do BCG oncogênico que poderia impedir a expansão da doença. Foram anos de empenho de uma verdadeira cadeia de solidariedade para assegurar que "seu" Zé continuasse vivo, se possível trabalhando e participando da justa luta pela terra dos I)loradores de seu povoado. A cada quinze dias eu ia ao Butantã, comprava as vacinas, acomodava-as numa caixa de isopor com gelo e ia para o aeroporto de Congonhas despachar o pacote para Goiânia pela Vasp. Em Goiânia, outro amigo de "seu" Zé abria a caixa, colocava gelo novo e a redespachava pela Votec no aviãozinho que diariamente fazia a rota do Araguaia . Na Ilha do Bananal, junto à aldeia de Santa Isabel do Morro, dos índios Karajá, a caixa
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era recolhida por outro amigo de "seu" Zé e levada de barco para São Félix do Araguaia, um pouco acima. Lá, uma religiosa da Prelazia, a Irmã Irene, colocava novo gelo e outro barqueiro levava a caixa a Santo Antônio, muitas
horas rio aciima, no rio das Mortes, afluente do Araguaia. A vacina tinha que ser tomada diariamente. Um dia veio um recado esquisito. "Seu" Zé não estava mais tomando as vacinas. À medida que elas chegavam regularmente, a cada duas semanas, ele as jogava fora . Um curandeiro lhe havia prometido cura completa e definitiva em troca de quase tudo que possuía, que era muito pouco -a lguns poucos bagulhos de casa e muito pouco dinheiro. Preparou-lhe umas garrafadas, tomadas no lugar da vacina. Em poucos meses, vários tumores começaram a aparecer na perna afetada. Receoso , porque consciente de que abandonara o tratamento sem dizer a ninguém do grupo de apoio, nem aos médicos, "seu" Zé não veio para São Paulo. Foi para Brasília, no meio do caminho, hospedou-se na Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e procurou ali o Hospital de Base. Feitos os exames, telefonaram-me para dizer que os médicos haviam recomendado encaminhamento urgente ao Hospital do Câncer em São Paulo. Pediam que eu fosse recebê-lo na rodoviá ria na manhã seguinte e que o encaminhasse imediatamente à equipe que o atendia. No mesmo dia da chegada, "seu" Zé foi internado. Para desalento do dr. Dráusio Varela e dos outros médicos, que haviam posto tanto cuidado na preservação da sua saúde e no prolongamento de sua vida , a doença havia se espalhado . Após novos exames, a equipe concluiu que havia uma possibilidade de contê-Ia mediante a amputação da perna. Na mesa de operação, "seu" Zé deu-se conta de que algo grave ia acontecer. Desde o começo de suas vindas a São Paulo, tinha dificuldade para entender o que as pessoas diziam, ele um caboclo maranhense que falava um português praticamente perfeito , arcaico, sem erros, como é costume no sertão de sua terra. Devem ter-lhe falado em amputação, que ele não sabia o que era. Desconfiou, porém, do que se tratava quando, na mesa de operação, viu a prepara ção dos instrumentos cirúrgicos. Quis saber o que ia acontecer. O cirurgião explicou-lhe , então, que precisava cortar-lhe a perna. Assustado , "seu" Zé recusou. O médico ainda tentou convencê-lo de que depois receberia uma perna mecânica e poderia viver normalmente. Não adiantou. Mandou, então , levá-lo de volta ao quarto e pediu ao serviço socia l para que chamasse um parente ou responsável para convencê-lo ou removê-lo, se não houvesse jeito. Quando cheguei, acompanhado de um amigo dele e meu, o Carlão, foi-
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nos explicado que ele não podia ficar no hospital ocupando uma vaga, quando havia uma fila de pessoas na porta esperando uma oportunidade de tratamento. Fomos falar com ele. Explicamos de novo o que ia acontecer, que depois da amputação, com a perna mecânica, ele poderia até voltar a trabalhar. "O senhor está com medo, 'seu' Zé?" "Não", disse-nos ele. "Então por que o senhor não deixou que o médico fizesse a operação?" "Porque ele não soube me responder uma pergunta", explicou acabrunhado. "E qual é a pergunta?" Fixou-nos no rosto, entre assustado e resignado, e disse quase em voz baixa: "No Dia do Juízo, eu vou ressuscitar lá no Mato Grosso e minha perna vai ficar aqui em São Paulo?". Embatucamos. Pedimos um tempo a ele e ao médico. íamos procurar quem entendesse do assunto. Saímos atrás de um padre ou uma freira que pudesse dizer uma palavra sensata e fundamentada a respeito . Todos os esclarecimentos eram filosóficos . "Seu" Zé, porém, estava firme na sua convicção . Ele aprendera, acima de qualquer dúvida, pois estava lá no credo apostólico: "Creio na ressurreição da carne ...", do mesmo modo que "Creio em Deus Pai, todo poderoso ..." . Não houve jeito. "Seu" Zé foi retirado do hospital e enviado para sua casa no Mato Grosso, depois da remoção dos tumores e dos cuidados pós-operatórios necessários. No jornal O Estado de S. Paulo, Dráusio Varela publicou um longo artigo sob o título de "A perna do sr. José Rodrigues". Tecia justas considerações sobre os anos de esforços para manter "seu" Zé vivo e com a saúde possível. Mas, para ele, acostumado a salvar vidas, era incompreensível e inaceitável que todo élquele empenho tivesse se perdido nos meandros das relações sociais e dos desencontros de um mundo tão distante das possibilidades da medicina e da dedicação dos médicos. Seu desencanto e frustração não eram menores do que os meus e de todos os que por tanto tempo criaram e mantiveram uma rede de apoio para assegurar a vida do paciente. O artigo era um desabafo. Mas, para "seu" Zé Rodrigues era incompreensível que alguém pudesse não compreender a sacralidade do corpo: mais importante do que a vida terrena era a vida eterna. E mais importante do que a saúde física do corpo era a incolumidade eterna do corpo. Meses depois, "seu" Zé Rodrigues foi levado de Santo Antônio para o pequeno hospital de São Félix do Araguaia, porque estava muito mal. Quando se deu conta de que se avizinhava a hora derradeira , pediu para ser levado de volta para casa. Várias vezes, em minha casa, pedira-me que, se por acaso ficasse evidente que poderia morrer, enviasse-o de volta ao Mato Grosso, pois queria morrer em casa, no meio da família . Ficara aterrorizado uma noite, no hospital, quando seu companheiro de quarto, um fumante inveterado,
50 151 Fl orian Ra iss
com adiantado tumor na garganta, entr.ou em agonia. Chamou a enfermeira, que o tranqüilizou dizendo que nada podia fazer. Pediu a ela que acendesse uma vela e a pusesse na mão do moribundo. A enfermeira se foi sem essa providência, para ela inútil. Em desespero, ele acendeu fósforo depois de fósforo para que o doente tivesse numa das mãos a luz para o doloroso transe, para que não enfrentasse nas trevas a passagem para a eternidade. Esse dia foi decisivo para ele, que me falara várias vezes da morte e que me mostrara uma visão completa da morte e do mundo dos mortos, um verdadeiro fato social total, na acepção de Marcel Mauss. Colocado no pequeno barco que sua comunidade, com grandes sacrifícios, havia comprado para emergências, o "Nossa Senhora da Esperança", deslizou rio acima com amigos e parentes que o acompanhavam de volta à família e à casa. Navegou a noite toda e morreu de madrugada, minutos antes do barco atracar no porto do povoado de Santo Antônio do Rio das Mortes. Para "seu" Zé Rodrigues, o corpo era um corpo carnal e simbólico ao mesmo tempo, uma dádiva de Deus, um bem a ser zelado, o templo do Espírito Santo. Nessa concepção, o corpo do homem não pertence ao homem. Na Eternidade, não há lugar para os corpos mutilados, para os corpos desfigurados pela mão do homem. Com o tempo fui colhendo outras informações sobre esse mundo complexo, imaterial, que define para o corpo vivo apenas a fração fragmentária e terrena do tempo da vida, minúsculo momento de uma espera, a do gozo da eternidade. Os suicidas e os assassinados ficarão apartados de Deus, porque morrem antes do tempo, porque sua vida, obra do Criador, foi interrompida por mão humana, uma espécie de profanação. Para expressar essa marginalização, de muitos modos são também simbolicamente apartados no imaginário das religiões populares. Os propositalmente mutilados também. Numa pesquisa que faço sobre linchamentos no Brasil, encontrei um bom número de casos de mutilação inflingida
à vítima pelos linchadores como forma de impor-lhe condenação eterna e irremediável; verdadeiros ritos sacrificiais cumpridos em nossas ruas cotidianas, supostamente apenas lugares de passagem de todos, todos os dias. Duas práticas não são raras: furar ou arrancar os olhos ou, então, queimar o corpo ainda vivo da vítima. Ou o terror da escuridão eterna ou a consumação eterna, a impossibilidade da reconstituição do corpo no dia do Juízo Final, o dia da sentença. O morto ausente não receberá sua sentença, vagará eternamente na escuridão da morte. O mundo simbólico em que o corpo realiza a sua eternidade e a sua vitalidade é o mundo da luz, o que está vedado a quem não tem os olhos, e não necessariamente a quem não tem a visão.
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Esse corpo sim bólico passa por metamorfoses já em vida. Os cuidados rituais com o corpo carnal são, na ve rdade, cuidados rituais com o corpo simbólico, a realidade dupla e dialética da corporeidade do homem. Mas, a morte e a separação da alma em relação ao corpo constituem momentos particularmente graves na transformação da pessoa. Não só é necessário que o corpo seja ajudado a se libertar dos lugares dos vivos, como a casa, também é necessário encaminhá-lo de modo ritualmente correto para o lugar dos mortos, para que sobreviva na eternidade, para que nela encontre a sua imortalidade. Nesses passos, é necessário que a terra consuma o corpo para que alma se liberte. Do contrário, se a terra recusar o corpo, então é a danação. Lembro-me de que, quando menino, morando na roça, tinha que atravessar uma área arborizada e sombria quando ia ou voltava da escola: 16 quilômetros de cami nhada através de fazendas , sítios e chácaras. Nesse local, diziam as outras crianças, havia um corpo seco. Era o corpo de alguém que definhara, nem vivia nem morrera, e permanecia insepulto numa cova aberta, por conta das maldades que fizera. Uma múmia viva. Luís da Câmara Cascudo explica que é o corpo do "homem que passou pela vida semeando malefícios e que seviciou a própria mãe"(1972:295). É o corpo expelido da terra, por ela recusado. O corpo seco é a antítese irremediável do corpo santo na dialética da eternidade. Fato que ganha sentido na contraposição do corpo incorruptível, que a terra não comeu porque corpo santo e santificado, mas acolheu. Nas exumações, os corpos íntegros são reconhecidos como indício de santidade, que se sobrepõe ao pecado original e aos pecados veniais. São os corpos dos escolhidos. A centralidade do corpo persiste mesmo onde concepções modernas das relações sociais dominam os processos interativos e, supostamente, também o imaginário. Em 1983 - lembro bem que foi num Primeiro de Maio -participei de uma reunião de estudos com trabalhadores bóias-frias, homens e mulheres, cortadores de cana-de-açúcar, na região de Jaboticabal, no interior de São Paulo. Nessa época eu estava muito envolvido, do mesmo modo que alguns outros professores universitários de vá rias regiões do país, no que chamávamos de Unipop (Universidade Popular e Itinerante). na realização de cursos para trabalhadores rurais, muitas vezes pessoas que nunca tinham ido à escola e que nem mesmo sabiam ler e escrever. Naquela reunião, um dos objetivos era aprofundar a compreensão do que é a exploração do trabalho, porque todos se consideravam explorados. Quando se procurava saber por que assim se consideravam, não poucos diziam que eram explorados pelo dono do armazém da cidade que lhes ven dia
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os gêneros de que precisavam para viver: "o salário não sobe e a mercadoria sobe de preço", diziam. Falavam-me, portanto, da dimensão fenomênica da exp loração, sua forma mais eleme ntar, mais visível e mais escamoteadora. Para eles, a exploração não se dava nas relações de trabalho. Não compreendiam, portanto, que a exploração é, na sociedade atual, o modo como o homem é privado daquilo que produz e, em conseqüência, o modo como se aliena e se descobre a si mesmo como estranho, socialmente produzido pela coisa que produziu. Antes que se chegasse a essa constatação, ainda na fase em que cada um expunha seu próprio modo de interpretar o assunto, lá no meio do grupo levantou-se uma jovem senhora cortadora de cana e explicou-me: "Eu sei que sou explorada porque quando faço amor com meu marido, meu corpo dói. Meu corpo dói quando lavo roupa ou cozinho para minha família. Ele não dói quando estou cortando cana lá no canavial para a usina. Meu corpo já não é meu: é do canavia l e do patrão". A dimensão antropológica dessa formulação filosófica feita por uma trabalhadora braçal não pode ser ignorada: ela nos fala de uma "consciência de classe" que se constitui pela mediação do corpo e de uma concepção tradicional e sagrada da corporeidade do ser humano. Historiadores europeus, como Thompson, já chamaram nossa atenção para a importância do propriamente antropológico e tradicional na luta pelos direitos sociais e mesmo pelos direitos civis. Entre nós, o tema foi deixado de lado, porque nossas instituições tradicionais sempre foram supostamente frágeis e nem subsistiram. A persistência do corpo, na sua dialética de corpo carnal e simbólico, como mediação fundante da consciência social, porém, está em toda a parte. Ela é a referência revolucionária da universalidade do homem no contraponto crítico e contestador à coisificação da pessoa e à exploração do homem pelo homem na mediação das coisas. Até hoje não nos perguntamos por que as demandas sociais por serviços de saúde em nosso país e por que os temas do bem-estar do corpo são tão fortes e tão centrais nas reivindicações sociais e políticas do povo. Para as nossas esquerdas iluministas, importa apenas o corpo da classe, e não a classe do corpo. Referência bibliográfica CÂMARA CASCUDO, Luís da. Dicionário do folclore brasileiro, tomo I, 3a edição. Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1972.
José de Souza Martins é professor associado do Departamento de Sociologia da FFLCHUSP; professor titular da Cátedra Simón Bolívar da Universidade de Cambridge (Inglaterra) em 1993 - 94 e fellow do Trinitv Hall.
54 155 Franklin Cassaro
56 Do corpo para ser visto ao corpo invisível: do teatro da crueldade ao império do terror Marcos Alvito Acorreram, então, numerosos
Aquivos
para admirar a imponencia e a beleza do corpo de Heitor, sem que nenhum de feri-lo deixasse, ao passar pelo corpo. Muitos entre eles falavam, virando-se para os mais
próximos:
"É, por sem dúvida, muito mais brando de ser apalpado, do que no dia em que fogo lançou nos navios
recurvos".
Golpes seguidos lhe deram, trocando discursos como esse. —Homero, Ilíada
a Maria Lúcia Aparecida Montes, minha amada mestra
o PACATO
MORADOR DA FAVELA DE ACARI' COMENTA COMIGO QUE,
antigamente, era capaz de largar seu almoço pela metade ao ver passar um
do local tentara estuprar sua mãe. A atividade desonrosa do traficante é assumida em nome da honra familiar: era preciso, era necessári0 2
homem amarrado, indo na direção dos fundos da favela, para ser executado.
Parazão, um dos sucessores de Tonicão, já no início da década de 1990,
Depois de assistir a tudo, o morador vo ltava para sua casa e terminava, sem
fica famoso por adotar outro método: "transgressores" e inimigos são quei-
problemas, sua refeição. Hoje em dia, compara desgostoso, "nem gosto de
mados vivos, com pneus, em pleno campo de futebol. Suas atrocidades são
ver presunto ... ". Antigamente, em meados da década de 1980, era o tempo
relatadas minuciosamente. Certa vez, um viciado em cocaína mata a mulher
de Tonicão:
de seu amigo e parceiro na droga. Parazão, inicialmente, entrega o homem
Coisas que as pessoas fazia errada, assim, teve uma época que ele matou
à população, que o surra continuamente . Depois, inicia uma lenta execução:
um rapaz de dezesseis anos porque estrupou uma menina, ali pra baixo
põe álcool em uma parte do corpo do homem, acende o fogo e depois apaga
ainda era tudo mato, ele matou o rapaz e jogou lá e ainda chamou a gente
com água do va lão; em seguida, espeta e fura a carne do infeliz. O horrendo
pra ir ver, aí a gente foi ver o rapaz morto porque ele matou, porque estu-
espetáculo prossegue até que alguém do bando sugere que acabem logo
prou a menina. Assim, só coisa grave mesmo era que ele fazia isso.
1 Aca ri , na verdade. é um aglomerado formado por 3 favelas e um co njunto residencial, localizado a cerca de 25 km do centro do Rio de Janeiro. Em uma área equivalente a cinqüenta campos de futebol. vivem quarenta mil pessoas. No imaginário urbano, desde a década de 1980, Acari tornou-se sinónimo de tráfico de drogas e vio lência, embora, no seu auge, os envolvidos no comércio de drogas representassem apenas 0,5% do total dos moradores. Estes, em sua maioria. são operários. serventes, carregadores do Ceasa, empregadas domésticas, biscateiros etc. Sobre as divisões internas de Acari e suas rivalidades, ver "Um bicho de sete cabeças" (Alvito, 1998). 2 Para uma aná li se mais detalhada dessa questão ver "A honra de Acari" (Alvito, 1996).
O corpo jogado no valão impuro, loeus de despejo de dejetos orgânicos e humanos indesejáveis. A suprema e última humilhação : o corpo exibido como testemunha da "Lei", pois "Tonicão era pelo certo". Mesmo que depois se descobrisse que o rapaz em questão fora vítima de uma intriga . Na proteção aos corpos femininos e à honra familiar, antes pecar pelo excesso . Afinal, o próprio Tonicão tornara-se chefe do tráfico, reza a lenda, depois que o ban-
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com aquilo. Faz um corte vertical no abdômen do supliciado e usa as mãos
para assistir à aplicação da "Lei". Tonicão parecia, na verdade, estar varrendo
para afastar e rasgar os membros. Separam a cabeça do corpo, colocando-a
a violência para fora da "comunidade". Parazão, por sua vez, mais temido do
no cemitério onde a mulher fora enterrada com um bilhete: "assassino de
que respeitado pelos moradores, dá início ao "teatro da crueldade" .
uma mãe de tantos filhos .. ." .
A expressão "teatro da crueldade" foi cunhada por Françoise Héritier
Se Tonicão executava com as próprias mãos, Parazão tinha um especia-
(1996 : 16) a partir de um poema do século XVI. A autora analisa diferentes for-
lista , um matador lendário chamado Batista, o qual , diz-se, bebia o sangue
mas de violência contra os inimigos em Ruanda, na Iugoslávia e na América
dos inimigos, arrancava-lhes os olhos, jogava futebol com a cabeça dece-
do Sul. No primeiro caso, mutilações : seccionamento do tendão de Aquiles,
pada . Quando da morte de Batista, um morador lembra-se de ter ido até
dos pés, das mãos ou dos braços, tornando inertes como vegetais imóveis
onde estava o cadáver, na intenção de dar ainda um tiro ou uma facada no
"aqueles que são temidos como inimigos" . O script é outro na Iugoslávia,
corpo, mesmo sem vida. Assim como os guerreiros aqueus infligindo golpes
onde o caráter étnico-religioso do conflito faz com que as mulheres sejam
no corpo de Heitor no trecho citado na epígrafe deste artigo.
capturadas, violadas, engravidadas e impedidas de abortar para " lhes fazer
Se a forma de execução praticada por Tonicão assemelhava-se a uma
pôr no mundo ... crianças de uma outra religião" , como se a semente mascu-
expulsão, lançando o corpo sem vida para fora dos limites da zona habitada,
lina carregasse sozinha a identidade biológica, étnica e religiosa . Já no caso
chamando os moradores para ir ver como que se prestam contas, Parazão
dos esquadrões da morte latino-americanos, a serviço da preservação dos
transforma a morte em espetáculo e a traz para o palco do mais popular lazer
poderes constituídos, trata-se simplesmente de fazer desaparecer o inimigo,
comunitário. O corpo agora torna-se irreconhecível: é apenas combustível pa-
como se ele jamais tivesse existido. Em todos esses casos, a questão é fazer
ra o fogo que purifica e amedronta. A violência de Tonicão não era vista como
dos corpos o suporte de uma mensagem que nega a humanidade do Outro.
tal, a ponto de o morador fazer tranqüilamente uma pausa no seu almoço
Em 1999, também já não há cadáveres para ver em Acari . Ao menos
58 159 Albrecht Dürer
provenientes dos "acertos de conta" ou das "execuções" praticadas pelos
reinava em Acari, Bezerra da Silva cantava em homenagem a Escadinha :
"traficantes". O inimigo agora é esquartejado como Tiradentes, e seus des-
Ah, meu bom juiz,
pojos, espalhados e lançados em diferentes locais . A vala negra e o pneu de
não bata esse martelo nem dê a sentença
caminhão foram substituídos pelo saco preto de lixo. E já não se fala em
antes de ouvir o que meu samba diz,
matar ou queimar, mas em picar.
porque esse homem não é tão ruim quanto
Os famosos "jornais populares" percebem a mudança . Não exibem mais
o senhor pensa.
"presuntos", e sim cabeças dependuradas com um bilhete, corpos sem
Vou provar que lá no morro ele é rei,
cabeça, braços, lembrando filmes americanos . O que significa essa pas-
coroado pela gente.
sagem, do teatro da crueldade para o império do terror? Ela se restringe à
-Beto Sem Braço e Serginho Meriti, "Meu bom juiz"
favela? Como freqüentador assíduo do Maracanã, lembro que, na década de
Na década de 1990, entretanto, a mutilação do X- 9 (delator) já era te~a de
1970, os goleadores eram chamados de artilheiros, provável menção às
uma música de humor macabro:
bombas, isto é, aos fortes chutes que dirigiam às metas adversárias. No
Cagüete é cagüete mesmo,
decorrer da década de 1990, tais jogadores passaram a ser chamados de
vejam só como ele é,
matadores, pois deles emana a morte simbólica do adversário vencido. E
é que cortaram as duas mãos do safado,
mais recentemente, em meio a inúmeros episódios envolvendo ferimentos
ele agora cagüeta com o dedão do pé.
e mortes causadas pelos cães da raça pitbull, a torcida do Flamengo criou
(... ) ele fica no orelhão de cabeça pra baixo
um novo hino em homenagem ao seu ídolo: "Uh, uh, uh, Romário é pitbull".
discando denúncia com o dedão do pé.
O samba também registra a mudança. Na década de 1980, quando Tonicão
- Claudinho Inspiração, "Ele cagüeta com o dedão do pé"
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Em um texto perturbador, Hannah Arendt (1990) critica o consenso existente
violência, mas pela opinião, e naturalmente pelo número de pessoas que
entre os teóricos da violência de defini-Ia como "uma flagrante manifestação
a compartilham. Tudo depende do poder atrás da violência (idem: 146),
de poder", Neste modelo, o Estado é apenas uma supra-estrutura coerciti va,
Seria fácil obter exemplos "acarianos" do que foi dito , Em uma rodinha de
e o poder apenas um instrumento de domínio, praticamente igualando vio-
moradores, um deles lembra que, "em outros tempos", ele já viu "muito
lência e poder, Arendt propõe uma outra definição, que diferencia e até
nego apanhar mesmo estando com AR - 15 na mão", Como deixar de lemprar
mesmo opõe poder e violência: A forma extrema de poder é Todos contra Um; a forma extrema de violên-
da lição de R" conversando comigo na Penitenciária Lemos Brito: "é preciso alguma ordem, o que controla a cadeia não é a força, e sim a influência e o
cia é Um contra Todos , E esta última nunca é possível sem instrumentos
respeito" , A autoridade do chefe acima do poder de fogo, ao contrário do
(idem: 145),
que se pensa, Antônio Rafael Barbosa (1998:114) fica surpreso diante da
Seguindo esse raciocínio, devemos abandonar a concepção de poder como
afirmativa do seu interlocutor: "Se o home [o chefe] chegar e falar assim: 'Me
uma mera "fachada, uma luva de veludo que ou encobre uma mão de ferro
dá tua arma que eu vou te matar ', você dá",
ou mostrará pertencer a um tigre de papel", em suma, algo que tem na vio-
Diante da incredulidade do antropólogo, vem a explicação: "Dá! Dá sim , É a
lência sua precondição, Arendt. de certa forma, inverte essa proposição:
lei", O próprio Tonicão gostava de dizer: "eu sou pela Lei; pelo certo e o
para ela a violência é inútil quando não há mais poder, o que importa não é
errado ", o que foi confirmado por um morador, saudoso e emocionado: "ele
a violência (ou a capacidade de empregá-Ia) atrás do poder, e sim o poder
era justo, ele era pelo certo ",
que permite a utilização da violência, pois:
Voltando a Hannah Arendt. a violência seria apenas instrumental e, como
Onde as ordens não são mais obedecidas, os meios de violência são
tal, sempre necessita de uma justificativa, Portanto, a violência não pode ser
inúteis; e a questão dessa obediência não é resolvida pela relação ordem-
a essência do poder, o qual necessita de legitimidade, mas não de justi-
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ficativar Aqui a autora chega ao ponto central de sua argumentação, diferenciando claramente violência e poder :
Em meio ao caos (simbolizado na ocorrência de estupros, desrespeito ao limite último da honra dos chefes de família). Tonicão alçou-se como "defen-
O poder não necessita de justificação, sendo inerente às próprias comu-
sor" da comunidade. A forte preservação dessas histórias na memória, pela
nidades políticas: o que realmente necessita é legitimidade. O comum
sua transmissão oral, demonstra de que modo o poder de ambos só era legí-
emprego destas palavras como sinônimos é tão enganoso e confuso quan-
timo em função do passado: a ordem deve guardar a memória do caos.
to a comum identificação entre obediência e apoio. O poder brota onde
No caso de X, o chefe atual , e dos "meninos" , não há passado a evocar.
quer que as pessoas se unam e atuem de comum acordo, mas obtém a
Um de seus irmãos disse-me o que motivara X a tornar-se chefe: "ninguém
sua legitimidade do ato inicial de unir-se do que de outras ações que se
entra nessa coisa pra ser mandado, todo mundo quer ser o chefão". Uma
possam seguir. A legitimidade quando desafiada fundamenta -se a si
justificativa meramente individualista, que aponta para um objetivo futuro
própria num apelo ao passado, enquanto a justificação se relaciona com
(alcançar a liderança), carente de passado, de memória e, portanto, de legiti-
um fim que existe no futuro. A violência pode ser justificável, mas nunca
midade. Por isso as crianças não brincam de X, apenas encarnam os velhos
será legítima. Sua justificação vai perdendo em plausibilidade conforme
chefes, os heróis fundadores. X aparece claramente como um usurpador, e
seu fim pretendido some no futuro. Ninguém questiona a violência como
em vez de representar a continuidade da linhagem, representa a sua destrui-
legítima defesa, pois o perigo não somente está claro mas presente, e o
ção, daí os boatos de que iria expulsar as mulheres e todos ligados ao seu
fim que justifica os meios é imediato (1990: 148).
antecessor, Jorge Luis (considerado "filho de Tonicão"). X não se opõe à vio-
Para entendermos melhor essa passagem, talvez devêssemos nos remeter
lência, ele a personifica de uma maneira tão terrível que os moradores evitam
novamente a histórias acerca da tomada do poder por parte de Tonicão . A
a todo custo pronunciar seu nome. O movimento pendular caos-ordem-caos
importância daquilo que Arendt chama de "ato inicial de unir-se" é flagrante.
recomeçou . Como ensina Hannah Arendt (idem:149): "O domínio pela pura
62 163 Laura Lima
violência entra em jogo quando o poder está sendo vencido". Talvez isso ex-
exposto debaixo da iluminação exclusiva da razão teria pouca credibili-
~ii que o motivo pelo qual X mandou arrasar todos os monumentos de cunho
dade. Ele não consegue manter-se nem pelo domínio brutal nem pela
sagrado construídos por Jorge Luis. Sem legitimidade, sem ato inaugural,
justificação racional. Ele só se realiza e se conserva pela transposição,
sem passado, sem nome, X não pode conviver com a memória dos funda-
pela produção de imagens, pela manipulação de símbolos e sua organi-
dores da linhagem que ele destruiu.
zação em um quadro cerimonial (1982:7).
Diríamos mais, ao perder toda e qualquer relação com o poder, definido
Ora, o poder de Tonicão e de seu sucessor, Jorge Luis, produzia imagens e
como "capacidade humana não somente de agir mas agir de comum acordo"
símbolos em profusão. Junto às bocas de fumo, construía altares para São
(idem: 145). X, "nascido e criado" mas incapaz de reconhecer todo e qual-
Jorge e para a escrava Anastácia. Apropriava-se de símbolos religiosos e étni-
quer vínculo - mesmo de amizade ou de parentesco - ultrapassa a violência.
cos: Zé Pilantra, Xangô e Bob Marle y 3. A teatralidade de Tonicão a passear
E personifica o terror.
com seus filhotes de leão, emblema da realeza africana, a percorrer as ruas
A legitimidade de Tonicão e de Jorge Luis (em menor escala do que seu
de Acari com seu cetro-porrete em pose altiva e fazendo "bico" com a boca
antecessor). permitia que o poder deles fosse exercido abertamente, como
(semelhante ao "caboclo" da umbanda). A imposição de penas vergonhosas,
um espetáculo: chamando a população para assistir à execução de um
como o "castigo" que determinava a prisão domiciliar por prazos tão longos
estuprador, carregando a vítima encapuzada por toda a favela, espancando
quanto um ano. Tudo isto demonstra a sua legitimidade. Era essa legitimi-
no meio da rua com um enorme porrete (a "perna-de-3") os que haviam
dade que impedia o pacato morador de sentir-se mal durante a sua refeição.
errado. Nas palavras de Georges Balandier:
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Hoje em dia, entretanto, é tempo de X. Em tempo de X, afirmamos, não
O poder estabelecido unicamente sobre a força ou sobre a violência não
há poder nem violência, apenas terror. O terror é o espaço da Morte (Taussig,
controlada teria uma existência constantemente ameaçada; o poder
1993:27). no qual as coisas se tornam humanas e os homens transformam-se
em coisas. O fuzil AR - 15 toma vida e não mais existem cadáveres: a prática
(seu apelido) e usava um anel com as iniciais 'JL'. Quanto a X, ninguém o vê,
agora é fazer "picadinho" e ensacar os vestígios do inimigo, enterrar seus pés
não tem casa, só esconderijo, não tem roupa (muito menos indumentária),
em uma parte e queimar o restante em outro local, enfim, desmembrá-lo até
apenas' disfarce, e não ergue monumentos, destrói-os. Ao contrário de
que perca o seu sentido humano. Tal qual começa a freqüentar os jornais
Jorge Luis, não pode mais ostentar um "harém", e a corte real desapareceu,
populares, que mostram cabeças decepadas, braços solitários, um abdômen
não há mais o infindável debate sobre qual das mulheres seria a mais bela
aberto com órgãos feito balões inchados. Antes cadáveres, agora "coisifica-
ou a "favorita" do chefe. A "sedução" parece ter sido substituída pelo estupro.
dos" pelo Terror que os desmembra. Restos que viram brinquedos: o dedo
O retorno ao caos. O império do terror.
arrancado do inimigo, com o qual o matador do bando passeava pela favela,
Voltemos à Ilíada. Depois de despojar Heitor de sua armadura, entre-
"assustando" as pessoas, como em uma brincadeira infantil. O corpo que vira
gando o cadáver à contemplação admirada e à sanha vingativa dos heróis
alimento para os porcos. As culturas do terror, lembra Taussig (idem:30), ali-
do exército grego, Aquiles pede aos companheiros que cantem o hino da
mentam-se do silêncio e do mito, para "controlar populações numerosas, clas-
vitória enquanto levam o cadáver do inimigo até o acampamento (Ilíada, XXIII,
ses sociais inteiras e até mesmo nações, por meio da elaboração cultural do
391 e ss.). Em seguida, Aquiles fura os tendões do cadáver e, amarrando-o
medo". O Mal absoluto, desprovido de sentido, justificativa ou previsibilidade,
ao carro com uma tira de couro, arrasta o corpo de Heitor com o rosto vira-
e cujo nome não se pronuncia, cuja onipresença contrasta com sua invisibilida-
do para o "chão duro", a levantar poeira. Deposita-o junto à pira do amigo
de. Toda e qualquer história acerca de X me é contada, mesmo (e quase exclusivamente) dentro de casa, em voz baixa, como se as paredes pudessem ouvir. Tonicão tinha uma mansão real, com dezenas de aposentos, piscina e jaula para seus leões. Jorge Luis mandou fazer bonés da Turma do Barroso
3 A leitura e a interpretação desses símbolos foi feita em As cores de Acari (Alvito, 1998). tese da qual derivou este artigo. Sem a generosidade pessoal, a inteligência e a sensibilidade antropológica da minha querida orientadora. Maria Lúcia Aparecida Montes, o trabalho não teria sido possível. Dedico este artigo a ela. com carinho de flamenguista.
65
Pátroclo, onde são lançados nas chamas "quatro soberbos cavalos", dois dos
o co rpo , sendo contidos pela mu ltidão. Tiveram que contentar-se em lançá-lo
nove cães que Aquiles possuía e os cadáveres de doze jovens troianos, de
ao va lão, como antigamente. Os moradores tiveram que impedir aquele últi-
famílias nobres. Durante doze dias, ao acordar, Aquiles amarrava o corpo nu
mo ultraje ao corpo e à honra de seu herói. Não havia deuses a protegê-lo .
de Heitor ao carro e dava com ele três voltas em torno do túmulo de Pátroclo. Tudo em vão, pois tais ultrajes em nada macu lam o corpo de Heitor: Apo lo ampara o cadáver dos go lpes, Afrodite o unge "com óleo flagrante e divino", e até mesmo dos raios do so l ele é protegido por uma nuvem divina. Aquiles, por fim, desiste de lançar o corpo aos cães e aceita devolver Heitor ao seu pai, que viera até o acampamento inimigo, sob a proteção dos deuses e guiado por Hermes. Antes, manda as escravas lavarem e ungirem o herói com óleo, envo lvendo-o em uma be la túnica e dois mantos, para que então fosse entregue a Príamo. O poema, iniciado com a có lera de Aquiles, termina em paz (mesmo que momentânea). com a trégua de doze dias para que fosse consumado o funeral de "Heitor, domador de cava los". Quando o aprendiz de antropólogo iniciou o trabalho de campo em Acari, em novembro de 1995, a comunidade vivia ainda o choque do assassinato de um jovem gerente do tráfico, cometido por dois desafetos do próprio bando. Mais de um ano depois, vim saber que os assassinos queriam picar
66 167 Rosângela Rennó
Referências bibliográficas ALVITO, Marcos. "A honra de Acari" in: Velho, Gilberto & Alvito, Marcos. Cidadania e violência. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ/FG\I. 1996. ~_ .__ . "Um bicho-de-sete-cabeças" in: Za luar, Alba & Alvito, Marcos. Um século de favela. Rio de Janeiro, Editora da FG\I. 1998. ~___ . As cores de Acari. SR USR 1998. Tese de doutorado em Antropologia Social apresentada ao PPGAS da USP Mimeo. ARENDT, Hannah. "Da vio lência" in: Religião e sociedade. n. 15-1 . Rio de Janeiro, 1990. BALANDIER. Georges. O poder em cena. Brasília, Editora da UnB, 1980. BARBOSA. Antônio Carlos Rafael. Um abraço para todos os amigos. Algumas considerações sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Niterói, Eduff, 1998. HÉRITIER, Françoise (org.). De la violence. Paris. Odile Jacob.1996. HOMERO. Ilíada. Trad . em versos de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro, Ediouro, s/d. TAUSSIG. Michael. The nervous system. New York. Routledge. 1992. ~~~_ . Xamamsmo. colonialismo e o homem selvagem - um estudo sobre o terror e a cura. SR Paz e Terra, 1993.
Marcos Alvito é professor do Departamento de Hi stó ria da Universidade Federal Fluminense e doutor em Antropologia Social pela FFLCH-USP
68 Totem e tabuleiro O corpo da baiana nos requebros da canção Valéria Macedo Meio
e mensagem
do Brasil, pela tessitura
a canção popular
soletra
densa de suas ramificações
em seu próprio
corpo as linhas
e pela sua penetração
social,
da cultura. — J o s é Miguel Wisnik
A not a só do samba
Se no Brasil "a canção popular soletra em seu próprio corpo as linhas da cultura", recitando Wisnik (1997: 123), podemos dizer que a cultura brasileira elegeu o cancioneiro nacional como um dos mais contundentes traços de sua identidade. Intérprete, autora, mediadora de uma sociabilidade complexa e peculiar, a canção popular tem presença visceral dos momentos mais cotidianos aos mais extraordinários, pontuando biografias, histórias e "História". Como a musa da contundente canção', o cancionista (compositor ou intérprete) pisa distraído no chão salpicado de estrelas que é o repertório da cultura brasileira. Com espontaneidade e engenho, ele orquestra constelações culturais e deixa reconhecer cristalizações cosmológicas confundindo os papéis de artista e bricoleur 2 Pois quanto melhor cancionista for, com mais ênfase a obra eclipsará sua autoria para orbitar um imaginário comum, corpo autônomo e coletivo, como se não fossem homens que cantam canções, mas as canções que se cantam nos homens. A paródia do célebre excerto das Mitológicas 3 para o un iverso da canção brasileira não é fortuita. Nessa obra, Lévi-Strauss estabelece uma série de aproximações entre a música e os mitos, destacando o modo como se apropriam do tempo: "tudo se passa como se a música e a mito logia só precisassem do tempo para infringir-lhe um desmentido. Ambas são, na verdade, máquinas de suprimir o tempo" (1991 :24). Para o autor, ambos convergem na superação da antinomia entre um tempo histórico irreversível e uma estrutura permanente. Em outra clave, o semiótico e cancion ista Luiz Tatit (1996) tematiza essa antinomia, quando reconhece como característica fundamental da canção a dualidade que administra entre o tempo cronológico-que não volta e empurra para frente, dando forma à evolução melódica que particu1 "Chão de estrelas", de Silvio Caldas e Orestes Barbosa ("1 ... 1A porta do barraco era sem trinco / E a lua furando nosso zinco / Salpicava de estrelas nosso chão / E tu, tu pisavas nos astros distraída / Sem saber que a ventura dessa vida / É a cabrocha, o luar e o violão"). 2 Lévi-Strauss reconhece no brico/age uma metáfora do mecanismo de reflexão mitopoética. Segundo o autor, brico/eur é aquele que se va le de materiais diversos e muitas vezes já elaborados para recombiná-Ios de modo a conformar um "Todo" (o brico/age) nãoprojetado e diferente de cada uma das partes que o constituíram (1989:37). O brico/age preenche com conteúdo imprevisto uma estrutura que já é dada; diferente da arte. em que essa estrutura só se conforma ao fin al da obra. a partir de uma criação autoral do artista. Nas palavras de Lévi-Strauss: "A arte procede, então, a partir de um conjunto I... ] e vai à descoberta de sua estrutura; o mito parte de uma estrutura por meio da qual empreende a construção de um conjunto I... ]" (1989:41) 3 Na abertura de O cru e o cozido, Lévi-Strauss afirma a pretensão de mostrar não "como os homens pensam nos mitos, mas como os mitos se pensam nos homen s, e à sua revelia" (1991 :24)
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lariza a composição - e o tempo rítmico-que retém, presentifica o passado, anunciando uma regularidade por meio das células musicais que se repetem e permitem reconhecer um gênero musical. Nessa direção, Paul Valéry aproxima a música ao rito, uma vez que ambos engendram processos que privilegiam o corpo, o presente, a matéria, contra a efemeridade e a velocidade inexorável das práticas cotidianas (1991). E como não entoar o "Genipapo absoluto" do cancionista Caetano Veloso: "cantar é mais do que lembrar, é mais do que ter tido aquilo então, mais do que viver, do que sonhar, é ter o coração daquilo". Ou seja, o canto evoca o corpo daquilo que seria apenas a sombra do vivido e do rememorado se não tivesse adentrado a máquina de driblar o tempo da canção. A canção pode ser assim dimensionada como sopro ritual que circunscreve uma temporalidade peculiar, na contradança entre o cíclico e o cronológico, com artifícios para segurar o tempo, ou trazê-lo de volta, ou mesmo distraí-lo para que passe mais rápido. Presente no lazer e fazeres rotineiros, ela também pode vasculhar territórios insuspeitos, quando a displicência do dia-a-dia é irrompida por aquela canção que galvaniza um antigo amor, um outro perdido no passado, ou um si mesmo, uma juventude, uma tarde que foi boa, uma cidade, uma paisagem, um país ... O compositor não raro é cronista de uma época, de uma cidade, de uma sorte de relac ionamentos. A alma pode vagar pela noite paulistana com "Ronda", ou transmutar-se melancólica ao calçadão de Ipanema com "Lygia", ou ainda acompanhar as nádegas de uma mulata numa ladeira de Salvador com "Na baixa do sapateiro"4 Porém, pelas artimanhas melódicas que fixam o significante 5 , o que era uma noite, uma mulher, uma rua, enfim, um recorte contextuai pecu liar, pode vir a sedimentar-se no conjunto de representações, chão de estrelas compartilhado por um grupo. E se o cancionista manipula, mesmo distraidamente, esse repertório como matéria-prima, as canções não só dialogam com o contexto no qua l ganham corpo, mas com outras peças do cancioneiro popular. Desse modo, se analisadas em conjunto, podem revelar recorrências, continuidades, regiões fluidas pelas quais se compartilham símbolos, personagens, valores e relações. As canções, sob esse olhar, são estruturas musicais que podem decantar estruturas de longa 4 Composições de Paulo Vanzolini, Tom Jobim e Ary Barroso, respectivamente. 5 De acordo com Luiz Tatit (1996), a fala, uma vez pronunciada, transmite o significado e seu significante facilmente se esvai. Ou seja, tão logo o conteúdo é transmitido, as palavras utilizadas para tal são esquecidas. A canção, ao fixar um traçado melódico, sedimenta os significantes na composição. Dessa forma, as palavras ganham um corpo perene, perdendo sua utilidade meramente pragmática e contextuaI.
70 171 Eduardo Viveiros de Castro
duração, ou seja, conteúdos culturais que articulam mudanças com persistências ao longo do tempo. Dessa forma, se Tatit esquadrinhou a canção no vértice entre fala e cant0 6 , talvez seja possível fazer um desdobramento, reconhecendo-a de quando em vez no interstício entre cotidiano e rito, ou entre crônica e mito no imaginário brasileiro. Mas em meio à "tessitura densa de suas ramificações", retomando a epígrafe, talvez possamos identificar um tronco estruturai no século XX: o samba. A identidade do samba é dada por características rítmicas definidas, que compreende uma pulsação regular de fundo. Segundo Luiz Tatit (1996:30). o ritmo estabelece uma sintonia natural com o corpo, prescindindo da mediação com a consciência. É quando o corpo da canção dialoga diretamente com o corpo biológico por meio das pulsações orgânicas, dos batimentos cardíacos, da respiração. O organismo não fica imune ao samba e, quando não dança, acompanha seu pulso com os dedos, com os pés, com a cabeça. José Miguel Wisnik sintetiza o samba como a configuração urbana de uma música a partir da articulação de danças binárias européias e batucadas negras (1987: 118). Essa dupla filiação faz com que o samba oscile entre duas ordens distintas, ou melhor, preencha sua identidade nos espaços entre ambas matrizes musicais. Partindo dessa nota, Wisnik nos reporta a uma dinâmica apreendida por Antonio Candido na análise da obra de Manuel Antônio de Almeida. Em Memórias de um sargento de milícias, as personagens de um Rio de Janeiro oitocentista, provenientes das camadas intermediárias da sociedade escravocrata, são expoentes da malandragem, definida por Candido como uma postura amoral em relação ao mundo, na qual se opera uma dialética entre a ordem e a desordem de acordo com as vantagens que o malandro pode tirar em cada circunstância. Sugere Wisnik que a síncope metaforizaria a dialética da malandragem no domínio da música, por meio do acento deslocado para os tempos fracos, mantendo o movimento num rebatimento contínuo entre o ritmo binário da polca e o contratempo da percussão africana 7. O samba, contudo, está imerso na dialética da malandragem não apenas por sua dinâmica musical, mas também pelos cancionistas fundadores desse ritmo, os malandros do Rio de Janeiro das primeiras décadas do XX, tempo e cenário primordiais da "fisionomia musical do Brasi l moderno" (Wisnik, 1987: 118). Tal "Brasil moderno", protagonizado pelos operários da era Vargas, tinha
nos sambistas um contraponto, marcado por inversões, descontinuidades e identificações. Como na cadência sincopada do samba, os ma landros sam-
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bistas alternavam o elogio do trabalho e da orgia, acentuando porém, o "contratempo" no qual não se escuta o bater do ponto na fábrica. "O bonde São Januário leva mais um operário, sou eu que vou trabalhar", nessa estrofe de Ataulfo Alves e Wilson Batista há quem diga que se podia trocar "operário" por "otário". Pela vida boêmia e desregrada - "Eu faço samba e amor até mais tarde e se tenho muito sono de manhã ... "; "Levanta, levanta nega manhosa, deixa de ser preguiçosa, vá procurar o que fazer... " - , o operário era uma referência de alteridade para esses malandros da primeira metade do XX. Noel Rosa cantou o desencontro de um compositor com uma arrogante operária que lhe despreza, ao passo que é submissa ao gerente da fábrica . Enquanto ela faz pano, ele lhe faz versos junto ao piano: "Quando o apito da fábrica de tecidos vem ferir os meus ouvidos eu me lembro de você ... "B Nos anos 1930 e 40, enquanto os trabalhadores de Getúlio construíam a cidade, os malandros compositores a reinventavam em seus versos. Uma cidade poetizada, em que os prazeres, o ócio, os amores, a vaidade, o lirismo, muitas vezes calavam as restrições econômicas, o desprezo social, a violência, a marginalidade vivida no cotidiano. Os malandros eram o Outro da cidade da "ordem e progresso" e algumas canções- "meu paletó virou estofa e eu pergunto com que roupa eu vou"; "tenho passado tão mal, a minha cama é uma folha de jornal"9-não deixavam de expressar suas privações e, por vezes, a vontade de mudar de vida - "Se você jurar que me tem amor, eu posso me regenerar... " lO No repertório musical, no entanto, em geral os malandros são os donos dessa cidade dos desejos, os que dão as cartas, que desmandam. E o samba é o grande paradigma, aquele que explica e dimensiona a existência. De matéria mítica, ele não se aprende na escola, mas pode ter bacharéis, como alegou Noel Rosa. E, nesse saber, a instabilidade das relações, a fugacidade da vida, a certeza da morte, tudo ganha sentido se abarcado pelo samba. "Quero morrer numa batucada de bamba, na cadência bonita do samba"". 6 Tatit (1996) parte da idéia de que toda canção popular tem sua origem na fala, porém camuflada em tensões melódicas. Ele reconhece a canção na confluência da oralidade cotidiana (que é aperiódica mas esboça desenhos entoativos) com a melodia perene da música. 7 José Miguel Wisnik explorou essa relação entre a dialética da malandragem elaborada por Antonio Candido e a síncope do samba em sa la de aula. S "Samba e amor", de Chico Buarque de Holanda, "Samba rubro-negro" , de Jorge Castro e Wi lson Batista, e "Três apitos", de Noel Rosa, respectivamente. A composição de Chico Buarque é posterior a esse período, porém o autor dialoga com essa tradição, o que faz com que a canção se encaixe tão bem nessa identidade "malandra". 9 "Com que roupa?", de Noel Ro sa, e "O orvalho vem caindo", de Noel Rosa e Kid Pepe. 10 "Se você jurar", de Ismael Silva, Newton Bastos e Francisco Alves. 11 "Na cadência do samba", de Ataulfo Alves, Paulo Gesta e Matilde Souza.
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No decorrer dos anos, indústrias e canções multiplicaram-se e o samba foi se irradiando nos acordes e nas cordas vocais de tantos cancionistas e ouvintes, a ponto de atingir dimensões solares nas ruas das cidades, nas ondas do rádio, nas avenidas transfiguradas pelo carnaval, até ganhar estatuto de "símbolo nacional" e "tesouro da cultura popular". Ao investigar O mistério do samba, porém, Hermano Vianna (1995) desconstrói o mito de sua criação como fruto autêntico e puro do morro, sendo antes um produto de complexa negociação, da qual participaram não apenas os malandros e populares, mas intelectuais, folcloristas, artistas da elite e mesmo estratégias governamentais, fazendo convergir diferentes interesses culturais, políticos e econômicos. Assim, no final dos anos 1920 se teria operado a invenção de uma tradição que, para ter força simbólica, deveria parecer pura e natural, e desse modo forjou-se o samba como estandarte da unidade nacional, estreitamente vinculado ao imaginário da mestiçagem . Uma vez historicizado o mito, contudo, resta ainda o desafio de entender sua graça. Por que o samba, assim como o carnaval e o futebol, são práticas abraçadas por significados tão cotidianos e ao mesmo tempo míticos, estandartes de uma "identidade nacional" que fincaram estacas em todo século XX, numa recriação dessa dialética da malandragem que já se fazia presente no Império e quiçá tenha origens na nossa formação colonial 127 Ginga e mandinga. Rima que não preenche a lacuna deixada por essa pergunta, mas a requebra e enfeitiça. Categorias fundamentais na destreza e na beleza do samba, da capoeira, do carnaval e do f.utebol Gingar 13 é inclinar-se para um e outro lado ao sambar, ao driblar com uma bola, ao jogar capoeira e mesmo ao andar - como o malandro caminhando na ponta dos pés como quem pisa nos corações, ou o rebolado da menina que vem e que passa num doce balanço 14 Com efeito, a ginga embriaga os sentidos, confunde as referências, desorganiza a ordem e conduz ao imprevisível as ações. Gingar pode ser também caçoar, flagrando a fragilidade do outro pela graça; ou ainda negar-se, com certo desdém, à satisfação de um pedido.
É portanto fazer manha, provocando desejo e sentimento de incompletude no outro. Metáfora maior da dialética da malandragem, ter ginga é ainda "se 12 Dos meandros da sociabilidade brasileira e de sua formação muito se falou, na chave da mestiçagem com Gilberto Freyre (Casa-grande e senzala, 1933), ou da cordialidade com Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, 1936), para citar dois exemplo s da década de 1930. quando o samba carioca também dava sua interpretação da história. 13 As definições de ginga e mandinga são baseadas no dicionário Michaelis, 1998. 14 Em artigo originalmente publicado no New York Times (1991), Caetano Veloso diz que "Garota de Ipanema" remete à figura da baiana, podendo imaginá-Ia com frutas na cabeça
74 175 Maíra Bühler
virar", ter "jogo de cintura" para driblar as adversidades - as misérias, os inimigos, os rivais e quaisquer dificuldades-, trapaceando fronteiras da ordem e da desordem, do público e do privado, da generosidade e da crueldade. A mandinga está atada ao sortilégio, à feitiçaria, sendo também a dificuldade provocada por eles. No samba, na capoeira e no futebol, a mandinga pode potencializar os atributos da ginga, pois, sendo mistério, torna ainda mais indecifrável o corpo já encantado e inapreensível pelo movimento (o gingado que faz que vai, mas não vai, e acaba indo ... ). O cancionista, por sua vez, pode valer-se do samba como ritmo que faz o corpo mexer (gingar) sem a mediação da razão (mandinga). enfeitiçando corpos e mentes. Porém mandinga e ginga também estão presentes nas relações e personagens das canções, que guardam entre si uma série de recorrências e homologias com freqüência dadas por esses dois ingredientes, como a baiana, o malandro, a(o) morena(o). a(o) mulata(o). a cabrocha, a escola de samba, o morro, a cidade etc. Se nesse repertório musical o Rio é o cenário principal, a Bahia e sua representante feminina estão comprometidas com o samba desde o momento de sua criação. E sua dupla filiação configurou-se não apenas nas referências européias e africanas, como também nas cariocas e baianas, já que o samba teve seu nascimento quase mítico na casa da Tia Ciata (1854- 1924). personagem peculiar do começo do século. Nascida na Bahia e moradora do Rio de Janeiro, ela reunia em festas e saraus figuras da elite e populares, sediando, nas palavras de José Ramos Tinhorão, um "ponto de reunião da gente mais heterogênea possível". E mais, a baianos e cariocas o pesquisador atribui a criação do samba, sendo "obra coletiva de um grupo de velhos foliões baianos e de gente da moderna baixa classe média carioca" (Tinhorão,s/d: 123)15. A influência de mão dupla entre Rio de Janeiro e Bahia também se expressa na insistência com que sambistas cantaram a Bahia e sua representante feminina nas ruas do Rio. Geraldo Pereira e Ary Barroso são exemplos de mineiros que cantaram a mulher baiana na paisagem carioca, ou então Dorival Caymmi, um baiano que canta a Bahia de perto da baía da Guanabara. A figura da baiana construída pelos cancionistas é instigante não só pela recorrência, mas por sua identificação como fetiche do país, tanto pelos de dentro, como pelos de fora (não é à toa que Carmem Miranda fez tanto sucesso na América). É certo que são muitas as baianas cantadas e inúmeros os seus compositores, porém talvez haja uma corporalidade subjacente a elas passível de dissecamento e que nos convide a um esboço estrutural.
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o que é que a baiana tem? Corpo feito de rendas, contas, ouros, balangandãs . Toda menina baiana tem um jeito que Deus dá. Corpo que pisa nas pontas, requebra, mexe, remexe, dá nó nas cadeiras, revira os olhinhos e entra no samba de qualquer maneira. Toda menina baiana tem segredos. Corpo que fala aos santos, é o diabo sambando, joga quebrantos, mostra encantos, sedução, canjerê, ilusão, candomblé, sob a guarda de Senhor do Bonfim. Nas várias maneiras em que foi cantada e decantada pelos cancionistas, a baiana ganha forma na tessitura da canção como um brico/age, pois seu corpo jamais se anuncia inteiro tampouco estático, furtando-nos uma unidade não só por estar em movimento, mas porque é sempre construído por partes de diversas proveniências, como a natureza, a cidade, as comidas, os instrumentos musicais, as rendas, o linho, o tabuleiro, os colares e os membros em proeminência . No gingado pra /á e pra cá, de cima embaixo, confundem-se as belezas dos cenários e dos órgãos, os cheiros das frutas, dos sexos, o mexer nos tachos, nas ancas, as pernas trespassadas no samba, os batuques, as cordas, os bambas, bundas, orixás, promessas, quebrantos, requebros, mandingas, gingas, misérias e a maestria em se virar na dança e na vida. Esse corpo é a própria materialização carnal do samba, que não se prende, que só se apreende no movimento, reinventando a cada (com)passo a dialética da malandragem. Wisnik esboça o ethos malandro traduzido no corpo musical do samba, no qual "a exposição das intenções vem minada por inflexões, intervalos, subentendidos e o corpo oscila e preenche o vazio das síncopas contrapondo às palavras a presença de uma ação intermitente e não-dita" (1987: 118). Essa cadência musical se desdobra nas cadeiras da baiana, que se insinuam e infletem, osci lantes e intermitentes. No balanço entre a ordem e a desordem, a moral é amolecida no dendê, em meio à exuberância do sensível, num corpo besuntado de plasticidade e movimento. Em incessante gingado, os pés e demais órgãos aproximam-se e afastam-se, assim como o objeto do desejo e aquele que deseja, pois o corpo mimetiza a instabil idade emotiva e moral. O sujeito está imerso no jogo de sedução e desilusão, fazendo da baiana perigo e promessa de felicidade, numa dialética de cobiça e recusa, conjunção e disjunção. Ela convida para sambar, porém depois fará sofrer; ele quer com ela juntar os trapinhos, mas o amor é fugaz 15 A troca de referências culturais entre Bahia e Rio de Janeiro não cessou desde então e se faz presente, por exemplo, na condição da ala das baianas como a mais tradicional das escolas de samba cariocas.
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e enganador; ela é sestrosa-a manha é um não querer desmentido - , rejeita o beijo, o abraço e some ... O encanto da baiana, contudo, não advém apenas de sua plasticidade e mobilidade, emana de uma unidade inacessível que se insinua em comunicação com o sagrado. Um mistério que se deixa entrever nas frestas dos apetrechos que revestem de emblemas o corpo e no contratempo do samba. A mandinga, o quebranto, a filiação com os santos anunciam um invisível, inaudível e intocável naquela imagem absolutamente carnal. De tal forma que, para além das ambigüidades que afloram do corpo e trejeitos, o traço dessa personagem se desenha no embate entre a ginga e a mandinga, o visível e o invisível, o samba e o inaudível, o corpo e o intocável . Como se o sensível (o corpo cantado) embriagasse o sujeito para resguardar o sentido (o corpo encantado). O Todo ocultado pelas partes que (de)compõem a unidade concretizada apenas no plano mítico. A emoção estética é definida por Greimas como "a esperança inocente de fusão total do sujeito e do objeto" (1987 :99) Na acepção de MerleauPonty, é o corpo que estabelece a relação de identidade entre sujeito e objeto, constituindo a face material da continuidade entre as duas instâncias. Tatit. alinhavando essas idéias, define corpo como concretização da unidade do ser (1996a:203). A beleza da baiana, corpo animado pelo samba, jamais desfaz a esperança de fusão entre sujeito e objeto, contudo é um corpo minado de magia, filiado ao sagrado, o que promove a descontinuidade entre essas duas instâncias, desmantelando e tornando instável a unidade do ser. A emoção estética resulta dessa unidade adivinhada, que no entanto se fende numa dialética entre o ser mesmo e o ser outro-o mesmo como a presença do corpo na carne do samba; o outro como esse que escapa, sobrenatural, sobre-humano. Há, portanto, uma dialética entre conjun ção carnal (corpos enredados no samba) e disjunção espiritual (a baiana tem acesso ao sagrado, não é possível decifrá-Ia, possuí-Ia integralmente e tampouco fiar-se dela). "O Corpo é um espaço e um tempo dentro dos quais encena um drama de energias. O exterior é o conjunto dos começos e dos fins" (Valéry, 1973 apud Tatit. 1996a:204). O drama de energias encenado no corpo da baiana e desmembrado no corpo do samba ocorre entre o tempo que foge e aquele que volta. O samba prende seu corpo na tessitura da canção, ela que sempre lhe escapa no texto, porém retorna na reiteração melódica, na regularidade rítmica. Na dimensão do espaço, sua corporalidade confunde começos e fins, fazendo oscilante sua duração na dança, no rebolado, nos balangandãs, assim como nos dramas de relações a ela imbricados.
78 179 Carmem Miranda
A natureza ensaística deste texto permitiu fundir tantas baianas num só corpo, brincar de brico/eur comb inando partes de diversos Todos compostos pelos cancionistas . É tempo de devolver-lhes a autoria para nuançar algumas peças particulares dos anos 1930 e 40, em que esse drama de energias é encenado . Porém, de modo breve, lançando luz apenas na tríade acima anunciada: a baiana como brico/age (corpo expresso por partes e impresso com objetos exteriores). corpo definido pelo movimento (ginga no sambar, no caminhar etc .) e portadbra de um mistério ou vínculo sagrado (mandinga). Para começo de conversa, não dá para falar de ba iana sem evocar Ca rmem Miranda e o baiano Dorival Caymmi, que teve seu primeiro sucesso no final da década de 1930. "O que é que a baiana tem?", interpretado por essa portuguesa criada no Rio de Janeiro, aqual inco rporou a personagem
O que é que a baiana tem?
como uma marca registrada e cada vez mais estilizada no decorrer de sua carreira .
o que é que a ba iana tem? O que é que a baiana tem? Tem torso de seda, tem Tem brincos de ouro, tem Corrente de ouro, tem Tem pano da Costa, tem Tem bata rendada, tem Pulseira de ouro, tem Tem saia engomada, tem O que é que a baiana tem? Como ela requebra bem O que é que a baiana tem? Só vai no Bonfim quem tem Um rosário de ouro Uma bolota assim Pois quem não tem balangandãs Não vai ao Bonfim Oi não vai ao Bonfim Não vai ao Bonfim ... Quando você se requebrar, Caia por cima de mim Caia por cima de mim, Oh baiana
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A.:canção começa com a pergunta crucial que se desdobra em outras perguntas específicas, todas seguidas de respostas afirmativas. O desenho melódico de cada frase repete-se ao sabor do ritmo, cadenciado pelos acentos consonantais - segundo Luiz Tatit (1996), tais acentos dão um efeito rítmico, criando repetição e segurando o tempo - , o que torna as perguntas quase respostas, nas quais a baiana é apresentada, metonimicamente, pelos acessórios que incorpora (corrente de ouro, pano da Costa, bata rendada,
Lá vem a baiana
saia engomada etc.). Já na segunda estrofe, a primeira pergunta é repetida, porém num anda-
Lá vem a baiana
mento mais lento, alongando as vogais em vez de privilegiar o atrito das
De saia rendada, sandália enfeitada
consoantes, como antes. E, no lugar de uma resposta, temos a exclamação
Vem me convidar para sambar
passional elogiando seu requebro e graça. Portanto, se na primeira parte
Mas eu não vou .. .
temos a baiana como brico/age (balangandãsL na segunda é o corpo nãoestático, requebrado, que a define. É então que a tríade se fecha, quando
Lá vem a baiana
entra em cena o cenário sagrado do Bonfim. É preciso possuir ba/angandãs
Coberta de contas, pisando nas pont as
para ter acesso a ele. Esse signo, por sinal, insinua movimento e diversidade,
Dizendo que eu sou o seu ioiô
mas é ao mesmo tempo enigmático, já que nem todos podem decodificá-Io.
Mas eu não vou ...
Porém, se apenas ela vai ao Bonfim, anunciando disjunção com aqueles que não podem fazê-lo, a conjunção acontece no momento da dança, "quando
Lá vem a baiana
você se requebrar caia por cima de mim" ; nessa hora a melodia se requebra
Falando dos santos, mostrando os encantos
numa curva descendente, mimetizando a letra e caindo por cima do sujeito. Em outra composição protagonizada pela baiana, Caymmi enfatiza não
Dizendo que é filha do Senhor do Bonfim Mas para cima de mim ...
apenas o fascínio por seus encantos, mas o perigo que representam, problematizando o encontro de corpos de natureza diversa .
Pode jogar seu quebranto Que eu não vou Pode invocar o seu santo Que eu não vou Pode esperar sentada baiana Que eu não vou Não vou porque não posso resistir à tentação Se ela sambar eu vou sofrer E mesmo esse diabo Sambando é mais mulher E se eu deixar ela faz o que bem quer Não vou, não vou, não vou Nem amarrado porque sei Se ela sambar, hum, huhuhum ...
81
É um corpo temido e desejado, repleto de enfeites e encantos, chegando e querendo sambar. Ela vem de saia rendada, sandália enfeitada, repleta de
contas, pisando nas pontas, num rebolado, como na canção anterior, reiterado pela melodia (o "ada" final das duas primeiras frases se encaixam a uma circularidade melódica, assim como o "ontas" das frases seguintes). No entanto, o desejo despertado por essa composição de adereços e ginga (ela vem pisando nas pontas e convida para sambar) confronta-se com o medo e a desconfiança (se ela sambar, ele vai sofrer). Ela fala dos santos, mostra os encantos, diz que é filha do Senhor do Bonfim, pode jogar quebranto e é o diabo sambando. Por isso ele foge, evita .o contato com a criatura que pode levá-lo ao inominável (sublinhado por "hum, huhuhum ... "). Porém, pela reiteração das células musicais (te matização). pelo ritmo regular do samba, a letra é desmentida, pois ele já está enredado em seu corpo pelo corpo do samba. Os acentos dados na descrição da baiana, o desenho entoativo de cada item que a compõe, cheio de ginga, mimetizando seu andar em direção àquele que a vê chegar, denuncia que ele já foi. Quando canta "Mas eu não vou ... " a sensação contrária é ainda mais enfatizada,
A falsa baiana
pois cai o andamento das notas e se prolongam as vogais "ou", trazendo à tona a paixão do sujeito. Na última estrofe, quando diz, "não vou, não vou,
Baiana que entra no samba e só fica parada
não vou nem amarrado porque sei, se ela sambar, hum, huhuhum .... .", a
Não samba, não mexe, não bole nem nada
melodia revela que ele já está indo, amarrado pelo samba que, em sua cir-
Não sabe deixar a mocidade louca
cularidade, o torna inexorável vítima da baiana. Porém seu futuro não saberemos, está nas mãos do diabo que, sambando, é mais mulher e fará com ele o que bem quiser...
Baiana é aquela que entra no samba De qualquer maneira
Na fusão de horizontes da escadaria do Bonfim com o Morro da
Que mexe, remexe, dá nó nas cadeiras
Mangueira, está Geraldo Pereira, nascido em Juíz de Fora/MG (1918-1955) e
Deixando a moçada com água na boca
criado no Rio de Janeiro. Grande expoente da malandragem dos anos 1940, sua vida foi permeada de mulheres, bebida e boêmia, culminando numa
A falsa baiana quando entra no samba
morte lendária em briga com outro famoso malandro conhecido como
Ninguém se incomoda, ninguém bate palma,
Madame Satã. Além de escurinhas desejadas, escurinhos brigões, madames
Ninguém abre a roda
que dizem que a raça piora por causa do samba, malandros e otários dis-
Ninguém grita oba
putando a dama sem compromisso, a baiana era uma de suas escolhidas.
Salve a Bahia Senhor do Bonfim
Contudo, diferente de Caymmi, não é o sujeito que está em cheque, e sim a ontologia da baiana.
Mas a gente gosta quando uma baiana Samba direitinho De cima embaixo Revira os olhinhos Dizendo eu sou filha de São Salvador
82 183 J.R.Duran/Patrícia Carta
Se na outra canção o sujeito nega a conjunção por medo que ela gere disjunção (sofrimento). aqui a falsa baiana é negada para delinear os contornos da verdadeira 16 . Ela não é caracterizada pelos enfeites, mas seu corpo se faz igualmente metonímico, pois se expressa por partes específicas: as cadeiras e os olhos. É pelo jogo de partes do corpo que revela sua identidade. Ela bole, mexe, remexe, de cima embaixo, revira os olhinhos e entra no samba de qualquer maneira, pois é a própria consubstanciação do samba . Quando ela dança, todos se incomodam, abrem a roda e saudam a Bahia e o Senhor do Bonfim. A filiação com a cidade de Salvador e seu santo padroeiro é o elemento de força mágica, encanto e sedução que só a verdadeira baiana tem . Portanto, sua originalidade está na capacidade de enlouquecer sendo o corpo do samba e a filha espiritual do Senhor do Bonfim. Por fim, um outro mineiro, menos malandro, mas igualmente apa ixonado pela baiana. Ary Barroso (1903- 1964) foi o responsável pela "sinfonização do samba", na expressão de Wisnik (1987: 120), e ganhou fama no Estado Novo esmerando-se no samba exaltação, no qual enfatizava a identificação cívica, num estilo ufanista em busca de uma unidade cultural para o país (Tatit.
No tabuleiro da baiana
1996:85). "Aquarela do Brasil" é o exemplo mais evidente desse trajeto,
porém "No tabuleiro da baiana" também revela um fascínio por esse espéci-
No tabuleiro da baiana tem
me tão brasileiro.
Vatapá, oi, caruru, mungunzá, oi
16 Caetano Veloso (1991) caracteriza Carmem Miranda como uma reinventara do samba.
Tem umbu para ioiô Se eu pedir você me dá o seu coração,
Porém, nos EUA ela se tornou a "fa lsa baiana", identificando as "verdadeiras baianas" (cita Maria Bethânia, Gal Costa. Margareth Menezes) como "grandes artistas da alegria e do mistéria" (grifos meus)
Seu amor de iaiá No coração da baiana tem Sedução, oi, canjerê, Ilusão, oi, candomblé para você Juro por Deus, pelo Senhor do Bonfim Quero você baianinha inteirinha para mim E depois, o que será de nós dois Seu amor é tão fugaz, enganador Tudo já fiz, fui até um canjerê Para ser feliz, meus trapinhos Juntar com você E depois, vai ser mais uma ilusão No amor quem governa é o coração
84
A canção "O que é que a baiana tem?" inaugura com uma pergunta terminada em "tem", do mesmo modo que finda a primeira frase dessa composição . No entanto, o "tem" de Caymmi se mostra asseverativo, ou seja, puxa a melodia para baixo, indicando uma sorte de certeza, um tom conclusivo. Já o "tem" de Barroso não é uma pergunta, e sim uma insinuação, e leva a melodia para o alto, indicando um tom passional e incompleto de sentido. Então começa o elenco de coisas contidas no tabuleiro da baiana, prevalecendo aí a tematização, ou seja, a repetição rítmica e melódica que anuncia a conjunção do sujeito com o objeto (ver Tatit,1996). pontuada por um "oi" que sempre salta na tessitura e marca o recomeço da célula musical. A segunda parte da canção, no entanto, alonga as vogais e aponta para uma disjunção, reiterando a dialética entre desejo/exuberância carnal e medo/insegurança espiritual ou emotiva . Dessa vez o brico/age não salta aos olhos pelo que a baiana tem, mas pelo que tem em seu tabuleiro , farto de delícias típicas da nação e da mulher "tropicais", como frutas da terra, comidas apimentadas, sedução, ilusão, canjerê, candomblé. O samba aqui não é nomeado, é contudo quem embala a apresentação da baiana e traz de volta o tempo (tematização, como "parara pará, parara pará, parara parara parara pará .. .") e os significantes que querem fugir, mas retornam na reiteração melódica e na rítmica . O encanto dos dotes físicos da baiana estão entrelaçados a seus vínculos com os santos do candomblé. Ele a queria "inteirinha", porém a inteireza da baiana é da ordem do mistério, inacessível. Então ele a busca na junção dos "trapinhos", mas as partes não devem juntar-se, e sim gingar. Ele vai ao canjerê em busca da ajuda aos santos, porém o amor é mandinga, enganador, por isso não pode estabilizar-se, culminando na fugacidade de um incessante gingado. Enfim, seja como objeto de exaltação do país ou como alter ego do malandro, a baiana que samba no imaginário do cancioneiro popular é boa para pensar o Brasil, "nossa caricatura e nossa radiografia" 17 É possível pensar e cantar a baiana como signo de ambivalência de um país de natureza e cultura exuberantes mas de identidade oscilante, fugidia, sempre às voltas consigo mesma, porém que tem algo que escapa, que não cabe - paradoxo de unir o que é inconciliável e que torna inefável o seu próprio nome. Nele, a ginga da malandragem anuncia mas não revela - cifra mas não decifra - o mal-estar com raízes nem sempre fincadas no sagrado, e sim numa partitura sócio-econômica que vem reiterando hierarquias e privando de cidadania 17 Definição de Carmem Miranda por Caetano Veloso (1991 l.
85
quem quer que esteja do lado de cá ou de lá da ordem legal; pois a ordem que vinga é aquela em que só quem tem balangandãs vai a um bom fim. Mas, em se tratando de samba, há sempre a contrapartida, o acento no contratempo, e aí os que estão destituídos dessa possibilidade têm lá as suas manhas e bênçãos que não são para qualquer um; pelo menos é o que dizem Noel Rosa e Vadico em seu "Feitio de oração": "Batuque é um privilégio, ninguém aprende samba no colégio. Sambar é chorar de alegria, é sorrir de nostalgia, dentro da melodia". Como nas construções míticas, as contradições postas pela figura da baiana-tenham elas matrizes sociais, cosmológicas, musicológicas, semióticas etc.-não estão para serem resolvidas, e sim para experimentarem aproximações e distanciamentos de síntese inacessível. O mistério da baiana, o segredo do tempero, não é para ser descoberto, porém degustado. Afinal, como diz o mestre cantor Tatit, "não podendo revelar os mistérios da criação só nos resta valorizá-los, distinguindo-os cada vez mais daquilo que não tem mistério" (1996:27). E se os totens não são bons para comer, mas para pensar-já disse Lévi-Strauss -, a baiana é boa para pensar, mas sobretudo para cantar e sambar, e, por que não, para comer. Referências bibliográficas ALMEIDA, Manoel Antônio de. Memónas de um sargento de milícias. São Paulo, Ática, 1986 (1 a ed., 1853). CANDIDO, Antonio. "Dialética da malandragem" in : O discurso e a cidade. São Paulo, Duas Cidades. 1992. LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas, Papirus, 1989. O cru e o cozido. São Paulo, Brasiliense. 1991 . MERLEAU-PONTY. Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo, Martins Fontes. 1994. Moderno dicionário da língua portuguesa Michaelis. São Paulo, Melhoramentos, 1998. TATIT, Luiz. "A construção do sentido na canção popular" in: Língua e literatura, n. 21, 1994- 1995. _ ___ oO cancionista-composição de canções no Brasil. São Paulo. Edusp, 1996. ____ o"Corpo na semiótica e nas artes" in: Silva. I. A.(org.) Corpo e sentido. São Paulo, Unesp, 1996a. TINHORÃO, José Ramos. Pequena históna da música popular. São Paulo, Círculo do Livro, s/do VALÉRY. Paul. Variedades. São Paulo, Iluminuras, 1991 . _ ___ oCahier.s I. Paris. Gallimard. 1873. VELOSO. Caetano. "Carmem Miranda dada" in: Folha de S. Paulo, São Paulo, 22 out. 1991. VIANNA. Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995. WISNIK, José Miguel. "Algumas questões de música e política no Brasil" in : Bosi. A. (org.). Cultura brasileira - temas e situações, São Paulo. Ática, 1987. _ _ _ _ o
Valéria Macedo é integrante do corpo editorial da Sexta Feira.
86 187 Carla Zaccagnini
88 O estranhável debate do prof. Cassiano Marvalho com os atores da Companhia do Latão 0 leitor julgará estranhas muitas das opiniões veiculadas neste texto. Diante de seu caráter polêmico, algumas vezes explosivo, optou-se por ocultar o nome dos atores e técnicos da Companhia do Latão que participaram do debate com o iminente estudioso do teatro paulista moderno, o sr. Cassiano Marvalho. Realizou-se no Teatro de Arena Eugênio Kusnet em abril de 1999.
Prof. Cassiano Marvalho
Bem. senhores atores. dito isto, espero não importuná-los mais com minhas idéias sobre o teatro paulista atual. Encerro esta conferência sugerindo que nossa conversa continue fora do teatro. O que acham de comermos uma esfiha aí em frente?
Sr. V Prof. Marvalho Cenotécnico
Sr. V
Desculpe Prof. Marvalho, mas tenho que discordar da sua proposição geral. Só dessa? A esfiha aí na frente não presta não . Não é possível aceita r sua op inião de que os nossos principais modelos de interpretação são idiotas. Concordo quanto aos chamados atores "tele-naturalistas". O senhor tem alguma razão quando diz que eles todos representam "em geral". Já trazem na manga uma naturalidade pronta para qualquer situação. São atores genéricos, que se transformam muito pouco . Mas quanto àqueles que o senhor chama de atores "antunes-filhistas" e de "zécelseiros", não concordo que sejam modelos nocivos. Creio que o senhor exagera. Zé Celso e Antunes Filho são grandes artistas de teatro .
Prof. Marvalho
Se o senhor bem se recorda, em momento nenhum condenei ninguém. O pior que fiz foi ass in ala r uma certa idiotia do corpo. No caso dos "antunesfilhistas", os joelhinhos flexionados, os pés para dentro, a boca abe rta- e uma grande confusão de propósitos quanto ao sentido da composição. No caso dos "zé-ce lseiros", a bacia projetada para a frente, os braços se movendo loucamente, a voz gritada na garganta - e enormes enganos sobre a pretensa "comunhão orgiástica".
Cenotécnico
(animado) Estes são muito loucos ! Uma vez eu estava na platéia do Teatro Ofi-
cina e um ator deles, que estava pelado , me deu uns tapinhas na bochecha. Prof. Marvalho Cenotécnico
Sr. L Cenotécnico
Sr. V Prof. Marvalho
Sr. V
E você, é claro, se divertiu muito com isso. Muito. Virei um soco naquele peladão e eles tiveram que parar o espetácu lo. Grosseirão. Não tem sensib ilid ade para a troca corpora l. Me desculpe, para isso eu tenho. Mas professor, esses diretores são grandes mestres do teatro brasileiro. (ao cenotécnico) Então o senhor aprecia o teatro interativo?
Eu passei por aquele treinamento do Antunes Filho e ele me deu muita disciplina e consc iência técnica.
Sr, L Prof. Marvalho
(superior) E o que seria um ator sem técnica?
Comp reendam, senhores: de que serve um sujeito passar meses aprendendo a andar como se estivesse numa bolha de sabão, de que serve o su jeito se convencer de que um ato r nunca pode ficar parado po rqu e a imobilid ade é má no teatro, de que serve assistir aos melhores filmes da Greta Garbo para imitar sua "vibração" física, se a finalidade da personagem na história
89
que está sendo contada for de outra ordem? Srta. N.
(que estava calada, subitamente se interessa) Desenvolva, professor. Que conceito de história o senhor tem em mente?
Prof. Marvalho
Eu penso na técnica como meio artístico. Não como um fim em si mesmo. Se o ator treina uma técn ica desvincu lada da história, se treina, por exemplo, um certo andar desequilibrado apenas para não parecer "naturalista", ele estará correndo o risco de cair numa ideologia de formas tão genéricas quanto as do mau naturalismo. Cairá numa "teatral ice" abstrata, que pretende pôr o artista acima da história em que ele atua. É a nova roupa da velha ideologia universa li sta do castelo de pureza da arte.
Sr. L
(rápido e incisivo) Mas somos artistas mesmo. E daí? Até isso querem nos tirar agora?
Sr, V
Queremos ser admirados. Ninguém seja hipócrita com isso. E o público
Sr. L
E todos ficariam decepcionados se não pudessem nos julgar como bons ou
Prof. Marvalho
Os senhores têm absoluta razão. É nesta tensão entre a realidade e a ficção
paga, entre outras coisas, para apreciar o nosso desempenho. maus atores. que está a força possível do teatro. O espectador sempre percebe simultaneamente os dois planos, o da história e o dos atores, o da ficção e o da realidade da sala de espetáculos. O que eu me pergunto é: qual a finalidade? Qual a intenção da peça? Qual a sua esperança em relação ao espectador? (apontando para a srta. T, até agora quieta mas dispersa) Seria somente causar admiração pela beleza das atrizes? Srta. T
(demonstra seriedade e arruma os cabelos atrás da orelha) Também isso. Não é?
Srta. N
A história. Se eu estou entendendo bem, o senhor defende uma focalização maior na história. E uma diminuição do foco nos atores.
Prof. Marvalho
Não exatamente. A meta é mostrar que a história não aparece pronta nem no palco nem na vida, mas é construída pelas ações dos homens. Os homens são sujeitos da história como personagens, e sujeitos do espetáculo como atores. Eu gosto de um teatro que critica situações perversas em que os homens são reduzidos a "coisas" por outros homens. Que nos permite criticar as muitas violências em que o sujeito é tornado objeto. Mas creio que não é possível mostrar isso se o próprio ator deseja se exibir como objeto da admiração do público. Ele, ator, deve ser admirado por sua ação consciente, livre e produtiva. Aquilo que lh e perm ite superar seus dotes naturais. Essa construção da história a partir da relação entre seus agentes me parece um projeto importante.
90 191 Mulher Maravilha
Srta. N
É a idéia marxista de que a situação social terrível em que vivemos não é natural e eterna . E portanto pode ser transformada.
Sr. V Prof. Marvalho
Sr. L
Nada de novo nisso. Aliás uma idéia muito gasta . Não acho. Historicamente, ainda não foi levada a sério como devia. Aqui na Companhia do Latão existe essa mania de se falar em marxismo o tempo todo. Toda vez que eu tento falar algo contra, sou massacrado. Que marxismo é esse que não tolera a divergência?
Srta . T
Cenotécnico Sr. V
Ah, por fa vor. não vamos discutir na frente de um vis itante !
É por isso que eu gosto desse grupo. Eles nunca falam de teatro. Digam. vamos. Sejamos honestos. Aqui alguém ainda acredita que é possível transformar a sociedade em que vivemos? Todos os dias vindo para cá eu vejo mais e mais mendigos nas ruas do centro . Tudo piora . sempre. E o nosso papel de artistas é simplesmente fazer uma boa arte. Ponto final. É isso que nos cabe . Uma grande arte. Já é dificílimo hoje em dia .
Srta. N
Sabe, professor, hoje de manhã eu estava lendo o diário do Lamarca, escrito em forma de cartas para a mulher que ele amava.
Srta. T Srta. N
É tão lindo. Por co incidência sublinhei um trecho que comenta isso, a possibilidade prática da transformação, de uma revolução.
Cenotécnico Sr. L Sr. V Srta. N
Eu vi o filme. Não era mal. Melhor que o Carlota Joaquina. Ninguém pediu sua opinião . Não vamos desviar o assunto de novo. Posso ler o trecho 7 (silêncio constrangedor) Vou ler: "Entre existir ou não condições para a prática revolucionária, eu fico com a luta pela criação dessas condições na prática. O que não é um processo curto, nem indolor- é longo, vio lento, e chei o de humanismo".
Sr. V Prof. Marvalho
O mundo inteiro mudou e nós ainda fazemos teatro pensando nisso. Diga-me, senhor, essa arte que você defende, essa Arte com "a" maiúsculo, pode existir sem ser prática revolucionária?
Sr. V Prof. Marvalho
Não entendo a pergunta. Agora há pouco você concordou que a média dos atores de novelas de televisão trabalha num registro fácil, de emoções genéricas e empatia grosseira . Você aceita então que uma obra de arte precisa alm ejar uma diversão mais complexa do que isso. Não?
Sr. V
Evidente. Foi por isso que defendi as experiências dos nossos mestres de teatro .
Prof. Marvalho
92
Então me diga: numa época em que a produção cultural tem como referência
a procura da superficia lid ade da diversão, você não acha que a busca de complexidade exige uma superação desses padrões dominantes? Sr. V
Acho. É isso que um gênio tem que fazer. Ir além dos padrões comuns. Por isso só posso aplaudir tudo que rompa com o naturalismo burro dos "teleatores", com seu corpo relaxado e suas fórmulas óbvias.
Prof. Marvalho
Mas, e quando um desses gênios do palco nos mostra sua esquisitice na moldura de uma "invenção artística"? Quando ele nos aparece como objeto de admiração porque supõe-se que na sua obra exista algum valor cultural maior, ao qual eu, espectador comum, não tenho acesso, você não acha que essa "qualidade artística" está se tornando muito parecida com os outros objetos de consumo da indústria cultural? O que estou querendo dizer é que o corpo em exposição do ato r "zé-celseiro", ou o corpo tecnificado do ator "antunes-filhista", quando se objetualizam, eles não passam, em outro registro, a se assemelhar ao corpo das moçoilas que requebram em programas de auditório?
Sr. V
Cenotécnico Srta. T Sr. L
Srta. T Cenotécnico Srta. N
Não sei. Quero pensar melhor. Moçoila, que palavra antiga!
É preciso um corpo revolucionário. (doce) O seu já não pega em armas há muito tempo.
De você não espero nenhuma baioneta. Eu adoro teatro. Uma prática revolucionária, nos assuntos e formas da arte, mas também nos modos de produção. O nosso trabalho é coletivo. Dependemos uns dos outros para que a peça fique boa. É isso que pensei com o texto do Lamarca: precisamos criar condições práticas para que a vida de todos melhore. É uma boa finalidade.
Prof. Marvalho
Eu proponho que nós procuremos uma esfiha menos suspeita do que essa aí da frente. Para que as idéias se aclarem é melhor estar de barriga cheia. Tendo em vista uma série de indícios, os editores da Sexta Feira suspeitam que este texto foi escrito por Sérgio de Carvalho e Márcio Marciano, diretores teatrais da Companhia do Latão, embora estes neguem de pés juntos qualquer vínculo com o episódio.
93
94 As metamorfoses do corpo (breve ensaio sobre um tema ameríndio à luz de uma entrevista com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro) Renato Sztutman Veja: o corpo inclui e é A significação,
a idéia
mestra,
E inclui e é alma. Seja você quem for - que esplêndido Ou qualquer parte
e divino é o seu corpo dele!
—Walt Whitman Não devemos
nos surpreender
com um pensamento
corpos como grandes diferenciadores a sua
transformabilidade.
—Eduardo Viveiros de Castro
94|95 Eduardo Viveiros de Castro
que põe os
e afirma ao mesmo
tempo
o QUE SIGNIFICA DIZER QUE,
PARA GRANDE PARTE DAS POPULAÇÕES
para o conhecimento de um universo cultural alheio - , algo como havia suge-
ameríndias, certos animais são, no fundo, humanos? Essa é uma das ques-
rido Maurice Merleau-Ponty (1996) no memorial que introduzia o antropólogo
tões que têm movido boa parte dos antropólogos especializados em socie-
Claude Lévi-Strauss ao College de France 2
dades indígenas em suas investigações etnográfi.cas. Por mais absurda que
O argumento de Viveiros de Castro de que a idéia de um espírito
possa soar aos nossos ouvidos, tal indagação remete a um debate mais
humano universal comum às espécies não-humanas resultaria de um
antigo sobre os mecanismos de operação do pensamento humano, que não
"perspectivismo" característico do pensamento ameríndio estimulou os
se esgota nos esquemas filosóficos ocidentais.
debates, vindo inclusive a habitar a fala de outros antropólogos, também
Deparamo-nos então com uma estranha forma depensamento - encon-
conferencistas, como Philippe Descola e Patrick Menget. O fato de os
trada em todo o continente americano-que postula que muitas espécies ani-
homens pensarem que os animais pensam ser humanos implica a reve-
mais e vegetais possuem, por trás de seus disfarces corpóreos, um espírito
lação de uma epistemologia e uma ontologia distintas da nossa. Os índios,
humano. Eis um pouco da paisagem cosmológica esboçada pelo antropólogo
nesse sentido, veriam o mundo de uma maneira bastante diversa daquela
carioca Eduardo Viveiros de Castro em alguns de seus trabalhos recentes,
que somos adestrados para ver; ou melhor, eles diriam que vêem da
cujos resultados foram expostos, por exemplo, na conferência realizad a em
mesma maneira que nós, mas que vêem mundos diversos (mundos que,
outubro do ano passado no ciclo "A outra margem do Ocidente" l , evento
para nós, não poderiam ser apreendidos pelo aparelho perceptivo). Para
que antecipou a comemoração dos quinhentos anos do "descobrimento" do
eles, as categorias de humanidade e animal idade escapariam de um mo-
Brasil, reunindo antropólogos, filósofos, historiadores, indigenistas, índios,
delo evolucionista tal como concebemos, no qual a primeira seria derivada
entre outros. Naquela ocasião, discutia-se o impacto do encontro com socie-
da segunda. Se a ciência ocidental tende a acreditar que os homens
dades indígenas sobre a formação do pensamento ocidental. De certo modo,
descendem dos animais e conforma uma concepção naturalista, que pos-
configurava-se um novo debate sobre as possibilidades de um "alarga-
tula o humano como decorrência do animal e a natureza como domínio do
mento da razão" promovido pela experiência antropológica - via de acesso
puro acaso, o pensamento ameríndio atribui a todos os seres viventes uma
96
mesma condição, firmando uma relação de identidade e continuidade entre
de fisiologia. E é por apontar essa nova província de significação que ela
natureza e sociedade 3
merece ser levada em conta .
Se são todos, animais e humanos, possuidores de uma alma comum, a
A apercepção do corpo como "um conjunto de significações vividas"
diferença entre os homens e os animais e entre os homens entre si só pode-
(Merleau-Ponty, 1985:212), e não como mera materialidade parece ser um
ria estar dada no corpo. Dito de outra forma: se o Ocidente tem na alma um
dos pontos fundamentais nas discussões sobre a concepção da pessoa hu-
índice de diferença e no corpo um dado universal, o pensamento ameríndio
mana nas sociedades indígenas. Por muito tempo, essas sociedades foram
inverte essas premissas. Os critérios de distinção e singularidade vigentes
mantidas à margem da reflexão antropológica por se distanciarem dos mo-
entre os seres devem ser construídos tendo em vista a intensa variabilidade
delos clássicos de sociedades ditas primitivas, colhidos sobretudo no conti-
dos corpos. Esse é um dos argumentos centrais de Eduardo Viveiros de
nente africano. A organização social ameríndia era descrita até então em
Castro ao elaborar a noção de "perspectivismo ameríndio" -tema por ele
termos de ausências-ausência de Estado, ausência de grupos corporados,
discutido na entrevista concedida à Sexta Feira . Dizer que os índios pensam de uma maneira perspectivista consiste na idéia de que animalidade e humanidade são antes estados jamais estanques e que podem ser cambiados. Encontramo-nos, pois, com certas cosmologias que valorizam a possibilidade de transformação de um estado em outro . Em outras palavras, a diferença - capturada pelo corpo-deixa de ser um obstáculo para se tornar um destino (ver Viveiros de Castro, 1986). A alma não estaria então restrita a uma única morada, mas sim multiplicada por suas possíveis migrações. Como bem observamos, a noção de corpo à qual nos referimos acaba por distanciar-se de maneira acentuada da concepção, cara à medicina ocidental,
1 Conferência intitulada "O mundo como afeto", realizada em 14 de outubro de 1998 durante o ciclo "A outra margem do Ocidente" promovido pelo Instituto Itaú Cultural e que aconteceu entre 14 de setembro e 15 de novembro. Esse evento integrou a série "Brasil 500 anos: Experiência e destino", que deverá lançar outros ciclos de conferências em 1999, ainda sobre o tema do quinto centenário do "descobrimento" do Brasil. 2 O memorial citado, "De Mauss a Lévi-Strauss", foi lido diante da assembléia do College de France em favor da criação da cátedra que veio a ser ocupada por Claude Lévi-Strauss. 3 Esse assunto foi matéria da conferência de Philippe Descola, "Natureza, toda e una", durante o ciclo "A outra margem do Ocidente". Também em outros trabalhos (1986, 1998), Descola distingue uma filosofia "naturalista" comum ao Ocidente e a filosofia "animista" cara ao mundo ameríndio, onde natureza e sociedade são pensadas não como ordens descontínuas, mas como entidades que se contaminam e se admitem como contínuas.
97
ausência de escrita, ausência de lei. Se a antropologia britânica até meados
lembrança inesquecível" (1978: 131)4 A sugestão de Pierre Clastres faz-se
do século havia conseguido, para a África, encontrar analogias para nossas
ecoar nas análises dos etnólogos recentes. Acredito, por exemplo, que Eduar-
categorias e instituições sociais, o mesmo parecia falhar entre as popula-
do Viveiros de Castro conferiu à intuição desse autor uma sofisticação teóri-
ções da América. Nesse sentido, muito do esforço da antropologia do con-
ca e etnográfica notável5 , concedendo ao corpo um estatuto metafísico de
tinente americano-que começava a aflorar apenas nos anos 1960, devido
aguda importância. É nesse sentido que pretendo guiar-me, nos próximos
em parte às contribuições da obra de Claude Lévi-Strauss - consistiu na
parágrafos, pelos itinerários da obra desse autor de maneira a adentrar (de
investigação de mecanismos de vinculação dos indivíduos à sociedade que
modo introdutório apenas) a questão do corpo nas sociedades indígenas.
não passassem pela definição de grupos corporados, tal como a organização em linhagens (grupos de descendência unilinear) que tanto caracteriza
Da fabricação à metamorfose em duas sociedades indígenas
as populações africanas. Cabia à disciplina encontrar, via etnografia, novas
Em 1975, Eduardo Viveiros de Castro realizou sua primeira visita a uma popu-
categorias que nos permitissem adentrar esse universo aparentemente
lação indígena: os Yawalapíti do Alto Xingue. Sua breve estadia entre esses
imprevisível. E o corpo parecia ser uma delas.
índios rendeu-lhe, em 1977, a dissertação de mestrado intitulada Indivíduo e
Pierre Clastres em um belo artigo, "Da tortura nas sociedades primitivas" (1978). foi um dos primeiros a iluminar a corporalidade como instância de produção de significações sociais. Para ele, as populações indígenas não careceriam de aparelhos de coerção social, uma vez que a sociedade é, desde cedo, inscrita no corpo das pessoas por meio de técnicas variadas, como tatuagens, escarificações e perfurações . É como se as leis e as instituições formais fossem ali substituídas por marcas impressas, com muito sofrimento, no corpo dos homens - "a lembrança escrita pelo corpo é uma
98 199 Ernesto Neto
4 ''As cicatrizes desenhadas sobre o corpo são o texto inscrito da lei primitiva, é, nesse sentido, uma escrita sobre o corpo. As sociedades primitivas são, dizem-no com veemência os autores do Anti-Oedipe, sociedades da marcação. E, nessa medida, as sociedades primitivas são, de fato, sociedades sem escrita, mas na medida em que a escrita indica antes de tudo a lei separada, distante, despótica, a lei do Estado, que escrevem sobre os seus corpos, indica os co-detentos de Martchenko" (Clastres, 1978: 130). 5 Não pretendo entrar em discussão, entretanto, a respeito de uma possível disparidade teórica entre ambos os autores, mesmo porque não há espaço aqui para efetuar uma discussão a respeito das sugestões de Pierre Clastres. 6 índios falantes de uma língua aruaque.
sociedade no A/to Xingu. As pesquisa s em voga naquele momento fixavam-
dade. Estudos como os de Júlio César Melatti (1976) sobre os Krahó e de
se prioritariamente no Brasil Central, região que abrigava grande parte das
Roberto DaMatta (1976) sobre os Apinayé 7 revelavam que esses grupos pau-
populações de línguas Jê e Bororo. O interesse sobre essas populações havia
tavam-se em uma oposição rígida entre corpo e nome, ou seja, a pessoa
sido despertado sobretudo pelas análises estruturalistas de Claude Lévi-
humana era pensada como portadora em si mesma de duas metades, uma
Strauss. O estruturalismo descobria no Brasil Central "sociedades modelo",
mais ligada à natureza - o corpo fabricado pelas substâncias de seus genito-
por assim dizer, uma vez que o que se chamava de estrutura social - um con-
res -e outra mais ligada ao social-o nome atribuído por indivíduos com os
junto conceituai de regras sociais e não as relações empiricamente dadas -
quais não se mantinha qualquer relação de parentesco (ou pelo menos não se
era encontrado de forma cristalizada na organização espacial dessas popu-
considerava tal relação sob o título de parentesco). Em outras palavras, o cor-
lações. Por exemplo, se os Bororo pensavam o cosmos como resultante da
po era concebido como algo que conferia à pessoa humana uma identidade
interação de duas forças opostas e complementares, esse mesmo dualismo
biológica em detrimento de sua identidade social, atualizada longe do âmbito
se via inscrito no espaço da aldeia. De um lado, as aldeias eram divididas
daqueles com os quais se compartilha as mesmas substâncias fisiológicas B
em duas metades diametrais e simétricas, cada qual contendo quatro clãs,
O fato de designar uma identidade biológica não quer dizer, no entanto,
igualmente demarcados . De outro, os índios faziam uma séria distinção entre
que lá o corpo não fosse tido como uma categoria de ação. A porção social e
o centro, domínio masculino e lugar das relações políticas e cerimoniais, e a
a porção corporal são importantes na mesma medida e constituem a pessoa
periferia, domínio feminino e lugar das rela ções informais, que acabavam
por meio de um movimento de oposição e complementaridade. Não há como
por constituir outro par de metades, primordial para o desenrolar da vida
entender a formação de grupos sociais entre as populações Jê e Bororo
social. Para o sabor dos pesquisadores da época, tudo nessas sociedades
sem estar atento aos processos de fabricação do corpo e de nominação, os
parecia respond er a esse esquema dualista de coisas. Os estudos sobre as populações Jê e Bororo haviam atentado à central idade do idioma corporal para a compreensão do lugar do indivíduo na socie-
100
primeiros responsáveis pelo pertencimento a um "grupo de descendên cia corpórea" (Seeger, 1980). e os segundos, pelo pertencimento a grupos sobretudo cerimoniais e políticos.
Ora, não era esse o quadro etnográfico que Viveiros de Castro, aluno de Roberto DaMatta e Anthony Seeger e então um iniciando no campo da etno-
podiam ser dissociadas. O físico humano era então fabricado, modelado pela cultura.
logia indígena (ele havia ingressado no mestrado com uma pesquisa em
A idéia de que o corpo só ganha existência mediante um processo de
antropologia urbana). encontrara no Alto Xingu. A antinomia corpo/nome
fabricação cultural pode ser verificada nos diferentes momentos de pas-
deveria ser dissolvida, tendo em vista que lá a corporalidade se mostrava
sagem (comumente ritualizados) - puberdade, doença, iniciação xamanística
como idioma simbólico total, não se restringindo à esfera privada. Assim,
-em que o indivíduo é submetido a um estado de reclusão. Nessa etapa,
não haveria como reduzir a realidade xinguana a uma oposição entre o físico
verifica-se a mudança substantiva do corpo, propriamente uma reforma da
e o moral, entre o corporal e o social; era necessário antes entrever uma
personalidade sujeita a regras alimentares e sexuais rígidas. A transição social
relação de interação-contaminação, e não contrariedade-entre os dois
não pode ser dissociada da mudança corporal e aparece como vergonhosa,
aspectos.
devendo então ser mantida longe dos olhos de outrem. É nesse sentido que
Como atentou Viveiros de Castro (1987). as teorias yawalapítis sobre o corpo devem ser tomadas "ao pé da letra", se quisermos compreender sua
o autor identifica o complexo da vergonha e da reclusão ao "aparelho da construção da pessoa xinguana" (1987:36) .
lógica interna. Isso significa dizer que quando eles comentam que o corpo
Paralelamente à fabricação, os xinguanos travariam conhecimento de um
de um indivíduo é fabricado, devemos extrair daí uma concepção da pessoa
outro processo de alteração do corpo, a metamorfose. Ao passo que o pri-
humana que pressupõe uma ação direta da sociedade na constituição da
meiro atua pela criação de um corpo humano via negação das possibilidades
porção fisiológica de cada indivíduo. Com efeito, a sociedade intervém dire-
de um corpo não-humano, o último prevê a transformação dos homens em
tamente sobre as substâncias que comunicam o corpo e o mundo, como
7 Ambas as populações habitam o atual estado do Tocantins. 8 DaMatta (1976) elaborou a noção de "comunidade de substância" para se referir, entre os Jê, aos grupos constituídos por pessoas que se consideram constituídas das mesmas substâncias físicas . Pai, mãe e irmãos fazem parte imediatamente dessa comunidade e se opõem à classe de pessoas com as quais se estabelece uma relação via nominação.
fluidos corpóreos, alimentos, tabaco, óleos, tinturas vegetais, entre outras coisas. Entre os Yawalapíti, Viveiros de Castro (1977) percebia sobretudo que as transformações do corpo e da posição social eram uma só coisa e não
101
seres não-humanos ao reintroduzir o excesso e a imprevisibilidade depostos
autor debruçou-se justamente na investigação desse complexo canibal.
pelo primeiro caso. O processo de metamorfose apresentaria um contraponto
Segundo os Araweté, seus mortos, ao subir ao céu, eram devorados pelos
à ação da sociedade, indicando um dado que escapa ao controle desta: a
ma/. divindades respeitadas ao mesmo tempo que inimigos temidos. Tor-
natureza animal e múltipla do corpo humano. A faculdade de metamorfosear-
navam-se, depois disso, igualmente mai, divinizavam-se. Essa metamorfose
se, ver o mundo sob o prisma de um corpo animal, é, no mais das vezes, um
do humano em deus, destino certo de todos, indica um desejo de transfor-
atributo dos xamãs. O xamanismo, por sua vez, não fora o assunto privile-
mação fortemente presente na cosmologia desses índios. Assim, o caniba-
giado nessa primeira incursão etnológica, realizada entre os Yawalapíti. Con-
lismo implicaria um movimento de devir-inimigo, o abandono da posição
tudo , o contato com os xinguanos abriria trilhas para indagações posteriores
humana conhecida na vida terrena rumo a uma posição divina e mais próxima
a respeito da tópica da transformabi/idade dos corpos inerente às cosmolo-
do ideal da pessoa Araweté.
gias ameríndias.
Humanidade e divindade seriam, dessa forma, estados pelos quais toda
A verdadeira aproximação em direção a essa tópica seria dada no momen-
pessoa humana deve passar. A cosmologia Araweté postula, assim, a pos-
to etnográfico seguinte à obra de Viveiros de Castro: o encontro, no começo
sibilidade de passagem de um estado ao outro por meio da devoração dos
dos anos 1980, com um grupo Tupi-Guarani recém-contatado pela Fundação
corpos dos mortos. Os deuses libertariam"nos de sua feição humana, confe-
Nacional do índio (Funai). os Araweté do Pará meridional. A metamorfose, tal
rindo-lhes uma posição divina. Concluída a metamorfose, os mortos tornar-
como definida acima, era concebida entre esses índios primordialmente por
se-iam igualmente deuses: cumpriam o seu destino ao se transformarem
meio de seus ideais canibais. Diferente dos Tupinambá, com quem se depa-
em seus severos inimigos. Vislumbramos, a partir dessa interpretação, uma
ravam os portugueses e franceses do século XVII e que comiam os corpos de
cosmologia que tem no devir-outro seu principal fundamento. O corpo próprio
seus inimigos de guerra, os Araweté transpunham esse mesmo ímpeto
como definidor de um "eu" não é jamais tido como "prisão da alma", mas
antropofágico em seus discursos sobre o destino póstumo das pessoas.
como objeto de devoração que devolve a alma ao mundo e que a possibilita
Em sua tese de doutorado, Araweté, os deuses canibais (1986), esse
102 1103 Ernesto Neto
habitar novos corpos e apropriar-se de outros pontos de vista sobre o uni-
verso. Assim, esse "eu" não pode ser tomado como valor em si, já que seu
vescência de trabalhos monográficos de fôlego sobre populações indígenas
ideal reside sempre alhures, está sempre projetado na alteridade.
(sobretudo amazônicas) contemporâneas . Tal é o caso de um livro de Philippe Descola, La Nature domestique (1986).
Uma nova perspectiva sobre o continente americano
dedicado às relações entre natureza e sociedade segundo os índios Achuar,
O canibalismo como tópica central da cosmologia araweté seria apenas uma
um subgrupo Jivaro que habita a alta Amazônia, entre Peru e Equador. Para
dentre as diversas manifestações de uma teoria indígena que concebe a pos-
esses índios, não haveria diferenciação, em termos ontológicos, entre hu-
sibilidade de metamorfose do corpo. A ênfase na relação humanos/s obre-
manos e não-humanos, uma vez que todos seriam constituídos de uma
humanos é muitas vezes deslocada para a relação humanos/outras espécies.
mesma alma. Animais e plantas eram percebidos como sujeitos sociais,
Em muitas populações ameríndias , acredita-se na possibilidade de um devir-
dotados de instituições e comportamentos simétricos aos dos humanos e
animal reversível, ou seja, é possível voltar da experiência de transformação e
cujas identidades eram igualmente sujeitas a metamorfoses. Em outras
narrá-Ia àqueles que não têm acesso a ela. Eis a faculdade dos xamãs: tra-
palavras, entre os Achuar, não era possível negar a humanidade dos animais .
duzir a experiência de ver o mundo de um ponto de vista que não é humano.
E não apenas entre os Achuar, já que a leitura de grande parte da literatura
Estamos em plenos anos 1990 e as longas estadias entre os Araweté
etnográfica sobre a Amazônia parecia confirmar esse fenômeno como sendo
cedem lugar a uma tarefa de síntese de um grande arsenal etnográfico. O
constitutivo das cosmologias amazônicas em geral.
tema no qual Viveiros de Castro se debruça não é mais uma certa cosmolo-
A idéia de que a diferença entre os homens, os animais e as plantas não
gia, mas uma certa maneira de pensar o mundo comum às populações
é de natureza, mas sim de grau, parece permear um pensamento tipica-
ameríndias em geral, uma maneira perspectivista. Trata-se de um esforço de
mente ameríndio e tornou-se matéria da indagação de muitos etnólogos.
juntar os pedaços da etnologia contemporânea e encontrar ressonâncias
Dentre eles, Tânia Lima, então aluna de Viveiros de Castro , foi além das pro-
entre os diferentes materiais etnográficos. Seria impossível mencionar essa
posições de Descola. Em sua tese de doutorado (1995). sustentava que os
tarefa de síntese a que se dispõe o autor se não o situarmos face à efer-
Juruna, população tupi-guarani do Alto Xingu, pensavam de um modo próxi-
104
mo ao relativismo - um relativismo, não obstante, peculiar e distante do
manter: o modo de ver o mundo resulta da posição que se assume e do cor-
nosso. Para eles, a humanidade não se restringia à espécie humana, era, no
po que se possui. Chegamos então à questão fundamental: o que significa,
entanto, uma condição universal. Algumas espécies se pensavam como
para o pensamento ameríndio, afirmar que é possível ocupar um corpo outro,
humanas 9 , o que nos conduz à afirmação de que a humanidade não seria
metamorfosear-se? O estatuto do corpo é central para esse pensamento
um atributo fixo, mas uma posição passível de ser conquistada.
designado "perspectivista" (Viveiros de Castro, 1996). E a primeira premissa
Entre os Juruna, os xamãs são originalmente aqueles que possuem o poder de transitar por entre as diferentes perspectivas, ou seja, são capazes
na qual este se apoia é a de que "o ponto de vista está no corpo". Viveiros de Castro alia à etnografia comparada insights contidos em algu-
de se metamorfosear, de ocupar outros pontos de vista, outros corposl O É
mas reflexões de Gilles Deleuze sobre o perspectivismo barroco. Pautando-se
porque as suas almas migram para corpos animais que eles sabem que os
em Leibniz, Deleuze define o ponto de vista como uma posição, um sítio, e o
animais se vêem como homens. É por isso que eles sabem que o barro no
sujeito como "aquele que vier ao ponto de vista, ou sobretudo, aquele que se
qual chafurdam os porcos não é para os porcos o mesmo barro com o qual
instalar no ponto de vista" (1985:37). Estamos diante de um pensamento em
nos sujamos, mas o cauim, bebida fermentada que os homens tanto gostam
que sujeito e objeto são posições passíveis de trânsito. Assim, se os objetos
de beber em suas festivid ades. Os porcos, sob essa ótica, viveriam em sociedade e possuiriam os mesmos hábitos que os humanos, e, mais ainda, desejam se aproximar dos homens, fazer amizade e estabelecer relações com eles (ver Lima, 1996). A idéia de que é possível ver como os animais se vêem e compreender que eles se vêem como humanos não seria exclusividade da população Juruna. Daí, a necessidade de se buscar, pelo continente afora, variações dessa mesma proposição. E dessas variações, uma premissa parece se
9 "Eu poderia assim dizer que os Juruna pensam que os animais pensam que são humanos. É claro que o verbo pensar sofre um enorme deslizamento semântico quando se passa de um segmento de frase para outro. O que para nós merece ser dito por soar absurdo, mas também estratégico para a descrição etnográfica, [ ... ]. para os Juruna é preciso ser dito (lembrado, considerado) por ser potencialmente grave, perigoso . O ponto é que os animais estão longe de serem humanos, mas o fato de se pensarem assim torna a vida humana mais perigosa" (Lima, 1996:26-27). 10 A autora acrescenta que os Juruna atuais perderam os seus xamãs, o "ponto de vista da variação entre aqueles pertencentes às diferentes categorias de alteridade" (idem :33). mas as suas faculdades puderam transpor-se na própria sabedoria humana.
105
são potencialmente sujeitos, não é o sujeito que cria a verdade do mundo,
ou de morfologia fixa; é um conjunto de afecções ou modos de ser que cons-
como querem os relativistas culturais; ele é antes determinado por ela. Por
tituem um habitus. Entre a subjetividade formal das almas e a materialidade
isso, o perspectivismo não pode ser confundido com uma relativização da
substancial dos organismos, há um palco intermediário que é o corpo como
verdade, ele expressa, sim, a "verdade da relatividade" (idem, ibidem).
feixe de afecções e capacidades, e que é a origem das perspectivas" (Vivei-
Dessa forma, as populações indígenas afastariam-se de um relativismo
ros de Castro, 1996: 128). Voltamos à idéia, colhida entre os Yawalapíti, do
cultural tal como o postulamos, pois, para elas, animais e humanos não vêem
corpo como lugar de confronto entre humanidade e animal idade, em que
o mundo de formas diferentes, mas, ao contrário, o que se vê é exatamente
fisiologia e sociologia se confundem. A necessidade e o acaso agem em
a mesma coisa (e isso implica dizer que os animais tendem a ver os humanos
conjunto no sentido de produzir e manipular substâncias, processos e trans-
como animais). Os referentes são os mesmos para todos, o que muda é o
formações. O corpo próprio não pertence nem ao domínio da biologia, nem
ponto de vista, ou seja, o lugar de onde se vê. A humanidade para os ame-
ao da cultura, trata-se antes de uma entidade intermediária que percebe o
ríndios seria a forma geral do sujeito, a forma pela qual se vê o mundo. A
mundo ao apropriar-se dele. Não há mudança espiritual que não passe por
animalidade, por conseguinte, é a forma geral do objeto que só existe por
uma transformação do corpo, pela redefinição de suas afecções e demandas.
meio de suas metamorfoses ou na declinação de seus perfis. A forma interna
Não há mudança corporal que não reflita uma transformação moral, a aqui-
-o espírito-de todos os seres é a forma humana. A forma manifesta-o
sição de um novo ponto de vista sobre o mundo.
corpo-de todos os seres é variável, aparece como "roupa" ou "envelope"
A diferença está dada no corpo, não no espírito, conclui Viveiros de
e é visível somente aos olhos da própria espécie. De um lado, uma essência
Castro (1996) a respeito desse perspectivismo. Nesse momento, o Ocidente
antropomórfica de tipo espiritual; de outro, uma aparência corporal variável.
11 "Não há dúvida que os corpos são descartáveis e trocáveis, e que 'atrás' deles estão subjetividades formalmente idênticas à humana. Mas essa idéia não é semelhante à nossa oposição entre a aparência e a essência; ela manifesta apenas que a permutabilidade objetiva dos corpos está fundada na equivalência subjetiva dos espíritos" (Viveiros de Castro, 1996:133).
trocável e até mesmo descartável. O corpo ao qual nos referimos agora está situado num ponto entre o sensível e o inteligível". Dessa forma, "não é sinônimo de fisiologia distintiva
1061107 Eduardo Viveiros de Castro
distancia-se radicalmente dos ameríndios. Nas nossas lições de anatomia,
se trata de um modelo de distanciamento em relação ao mundo, mas de um
apreendemos um modelo do corpo universal, sujeito a leis e funciona-
devir-outro, ato de cumplicidade com a alteridade. Metamorfosear-se em
mentos igualmente universais. Trata-se de um corpo que nasce, cresce e
um corpo animal é atingir a diferença, vislumbrar a mesma verdade, o mesmo
perece de modo uniforme. Nada assusta mais o homem ocidental que a
mundo, porém sob um novo ponto de vista.
certeza da finitude de seu corpo, da inevitabilidade de sua dura sorte, o retorno às cinzas 12 Mas se os corpos estão fadados a um destino trágico
Glosa
universal e irreversível, é o espírito quem carrega a promessa de uma eter-
As reflexões de Eduardo Viveiros de Castro sobre a corporalidade e o pers-
nidade e um projeto de identidade. Se os corpos equacionam os homens,
pectivismo permitem-nos apreender os caminhos que separam o pensa-
seus espíritos os separam. Se, no século XVI, os europeus não podiam negar
mento ameríndio do pensamento firmado pelo Ocidente. Como afirmara
que os índios possuíam corpos, questionavam se neles residiam almas.
Lévi-Strauss (1989). teimamos em apartar o conteúdo sensível da significação
Colocação ilegítima para um indígena, para o qual não é possível negar que
e lançamo-nos em um projeto de reconstruir o mundo por meio de concei-
um europeu, assim como um jaguar, possua alma humana. A pergunta por
tos e abstrações distantes do concreto. Domesticamos nosso pensamento
ele lançada seria de diferente teor : "que tipo de corpo é esse desses estra-
em função de uma crença numa natureza una e ausente de qualquer sentido
nhos forasteiros/". Ou ainda: "O que a aconteceria se nós o devorássemos?".
próprio. Em contrapartida, ao postularem a existência de várias naturezas
O conhecimento, segundo o pensamento ocidental, é um ato de meta-
para um só espírito, por serem "multi naturalistas" (Viveiros de Castro, 1996).
morfosear o espírito, transformá-lo a partir das suas projeções na realidade
os ameríndios atribuem lógica e sentido ao conteúdo sensível do mundo. A
objetiva-desprovida de intencionalidade - do mundo. Para o pensamento
natureza deixa de ser uma ordem exterior para se tornar cúmplice dos
ameríndio, em contrapartida , conhecer é ter a capacidade de ocupar um cor-
processos sociais vivenciados. O corpo deixa de estar subordinado ao espí-
po outro repleto de afecções. É devorar o inimigo de guerra, transformar-se
rito que almeja a transcendência pela cultura para tornar-se integrante ativo
em um jaguar feroz ou travar comunicação com os espíritos da floresta. Não
do mundo, agente imanente do concreto.
108
Mas são os mesmos caminhos que nos separam do pensamento ame-
enfim penetrado e, se possível, compreendido. Talvez seja essa a contri-
ríndio os que nos fazem retornar a ele. Exatamente por soar absurdo, esse
buição da antropologia para todo o alvoroço que ainda hão de causar essas
pensamento apresenta-se como "bom para pensar" nossa própria realidade
comemorações dos quinhentos anos do "descobrimento": mostrar que,
social, atuando como contraponto às nossas visões de mundo usuais. Não
para além de sua beleza como metáfora, o pensamento ameríndio é nosso
por menos, ele figura e figurou em muitos campos das artes como fator de
contemporâneo e deve ser levado a sério. Permanece vivo e pulsante a des-
inspiração. A "arte antropofágica"1 3 que tem sido revisitada recentemente é
peito dos prognósticos fatalistas constantes nas décadas passadas. Nem as
um exemplo dessa recorrência. Imaginamo-nos canibais, vislumbramos a
sociedades desapareceram, nem suas cosmologias sucumbiram aos esque-
possibilidade de resgate de um estado primevo entre a humanidade e a ani-
mas ocidentais de pensamento. Metamorfoseiam-se, isso sim, ao longo do
malidade, buscamos tornar carnais as metamorfoses pelas quais nossos
curso de um fluxo incessante que reconhecemos como História.
espíritos são interpelados. Enfim, a arte surge como experiência que nos
12 Cualquier instante de la vida humana/Es un nuevo argumento que advierte/Cuán frágil es, cuán mísera, y cuán vana. Um poema do poeta barroco espanhol Francisco de Quevedo (1580 - 1645) ilustra esse mal-estar defronte a idéia de finitude, idéia quase insuportável para uma civilização que incorre na tentação do mármore, na busca por algo que permaneça a despeito do destino trágico que é a morte. 13 Faço referência sobretudo ao tema da XXIV Bienal de São Paulo -a antropofagia-que, por sua vez, reconhece como fonte de inspiração o "Manifesto Antropofágico" de Oswald de Andrade (de 1928). marco histórico da produção cu ltural no Bra si l.
devolve a possibilidade de identificação com o mundo. Também a filosofia -e sobretudo a filosofia das "luzes" que se ergue no século XVIII - faz referência, por indireta que seja, a essa forma de pensamento, não em termos de experiência, mas como probabilidade de aludir a um estado anterior à Razão, "estado de natureza" cuja superação nos funda como civilização. Aqui, os ameríndios figuram novamente como aforismo, remetem a algo que ainda não é e que, portanto, pode nos conduzir ao que já foi ou ao que será.
Renato Sztutman é integrante do co rpo editorial da Sexta Feira.
A experiência antropológica afasta-se da arte e da filosofia por uma simples razão: ela pretende ir além da metáfora necessária do Outro para pensar o Nós. O cosmos ameríndio deixa de existir como musa inatingível para ser
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_ _ _ _ o
112 Entrevista c o m o a n t r o p 贸 l o g o E d u a r d o de C a s t r o Renato Sztutman, Silvana Nascimento e St茅lio Marras
ESTA ENTREVISTA SE DESENROLOU NA TARDE DE 21 DE DEZEMBRO DE 1998 no apartamento de Eduardo Viveiros de Castro , no Rio de Janeiro . Tratase da formalização de uma conversa iniciada em São Paulo, um mês antes , durante o ciclo de conferências em homenagem aos noventa anos de Claude Lévi-Strauss, promovido pelo Departamento de Antropologia da USP Aliás, nada mais estimulante que um debate sobre a obra de Lévi-Strauss para que nos debruçássemos sobre uma questão intrigante que perpassa o fórum antropológico: como penetrar os domínios de um pensamento - o ameríndio - distanciado dos nossos pressupostos culturais. Foi então que Eduardo professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ). diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS, Paris) e autor de Araweté, os deuses canibais (RJ, Jorge Zahar, 1986)-aceitou o convite para a entrevista e nos falou longamente. Expôs as etapas de sua formação intelectual, os eixos centrais de suas reflexões atuais e suas posições em relação à produção mais recente em ciências sociais. A propósito do entusiasmo pelo estudo minucioso de populações indígenas, seu ofício há mais de 20 anos, ele nos confessou logo de. início: Eu quero ver um detalhe pequeno da coisa. Um pedaço que ninguém viu. Qual era o seu ideal de antropologia quando começou a estudar as sociedades indígenas? Eu queria fazer uma etnografia "clássica" de um grupo indí-
gena. Meu problema teórico era entender aquelas sociedades em seus próprios termos, isto é (e só pode ser). em relação às suas próprias relações: as relações que as constituem e que elas constituem, o que obviamente inclui suas relações com a alteridade social, étnica, cosmológica .. . Acho que existem dois grandes paradigmas que orientam a etnologia brasileira. De um lado, a imagem antropológica da "sociedade primitiva"; de outro, a tradição derivada de uma "teoria do Brasil", de que a obra de Darcy Ribeiro é talvez o melhor exemplo. O título de um livro de Roberto Cardoso [de Oliveira], Sociologia do Brasil indígena, é expressivo dessa segunda orientação : o foco é o Brasil. os índios são interessantes em relação ao Brasil, na medida em que são parte do país. Nada a objetar, essa sociologia do Brasil indígena é uma empresa altamente respeitável e resultou em trabalhos extremamente importantes . Mas essa não era a minha. A minha era a mal-chamada "sociedade primitiva", meu foco eram as sociedades indígenas, não o "Brasil": o que me interessava eram as sociologias indígenas. A minha era Lévi-Strauss, Pierre Clastres, e também as antropologias de Malinowski, de Evans-Pritchard .. Em que pé estavam os estudos sobre a Amazônia indígena na época de suas primeiras investigações etnológicas? É preciso não esquecer que boa parte
da Amazônia que veio a ser estudada nos anos 1970 não existia do ponto de
113
vista geopolítico, tendo sido incorporada à sociedade nacional a partir do boom desenvolvimentista iniciado naquela década. Não era a Amazônia, mas o Brasil Central que estava então na berlinda, graças aos trabalhos de [Curt] Nimuendaju da década de 1930 e 40, que tinham sido discutidos por [Robert] Lowie e Lévi-Strauss. Este último - estava-se no apogeu do estruturalismo, nas décadas de 1960 e 70 -
colocou o Brasil Central na pauta teórica da
antropologia. O grupo que estudou a região, ligado a David Maybury-Lewis, foi o que teve o maior número de pessoas trabalhando coordenadamente em uma mesma área da América do Sul; uma área, aliás, exclusivamente brasileira. Quando eu era estudante, na década de 1970, a impressão que se tinha era que a única coisa interessante que restava em etnologia indígena era o Brasil Central. Eu não tinha nem muita clareza de que a Amazônia existisse como possibilidade de trabalho. Em parte, porque estava lendo maciçamente teses e livros dos meus professores e associados deles, que eram todos sobre grupos Jê, Bororo e tal. Todo o meu trabalho posterior foi muito marcado por um "escrever contra" a etnologia centro-brasileira - "contra" não no sentido polêmico ou crítico, mas como a partir de, como figura que se desenha contra um fundo: contra a paisagem em que se deu minha formação. O que mais o impressionou no campo com os Vawalapíti do Alto X ingu, sua primeira experiência de pesquisa em uma sociedade indígena? A primeira
coisa que me chamou a atenção, no Xingu, foi aquele sistema social, diferente dos regimes do Brasil Central. Uma preocupação que me acompanha desde então tem sido como descrever uma forma social que não tem como esqueleto institucional qualquer espécie de dispositivo dualista, considerando que minha imagem básica de sociedade indígena era a de uma sociedade com metades etc. Aquele era um tempo em que as oposições binárias eram consideradas a grande chave de abertura de qualquer sistema de pensamento e ação indígenas. Ficou claro para mim que o que acontecia no Xingu não podia ser reduzido à oposição, essencialmente durkheimiana, entre o físico e o moral, o natural e o cultural, o orgânico e o sociológico . Ao contrário, havia entre essas dimensões uma espécie de interação muito mais complexa do que os nossos dualismos. O que me chamou a atenção foi o complexo da reclusão pubertária do Alto Xingu, em que os jovens têm o corpo literalmente fabricado, imaginado por meio de remédios, de infusões e de certas técnicas como a escarificação. Em suma, ficava claro que não havia distinção entre o corporal e o social: o corporal era social e o social era corporal. Portanto, tratava-se de algo diferente da oposição entre natureza e cultura, centro e periferia, interior e exterior, ego e inimigo. Minha pesquisa com os
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Yawalapíti foi um tipo de indagação sobre essas questões, embora eu estivesse fazendo uma espécie de aquec imento etnológico, muito mais do que uma pesqu isa. Como o tema do corpo surgiu como questão teórica fund amental em seus estudos iniciais? Quando cheguei no Xingu, vinha de uma tradição
(reforçada por minha educação jesuítica) que ensinava que o corpo era uma coisa insignificante, em todos os sentidos dessa palavra. No Xingu, a maioria das coisas que consideramos como mentais, abstratas, eram escritas concretamente no corpo. O antropólogo que primeiro efetivamente tematizou a questão da corporalidade na América do Sul foi Lévi-Strauss , nas Mitológicas, uma obra monumental sobre a "lógica das qualidades sensíveis", qualidades do mundo apreendidas no corpo ou pelo corpo: cheiros, cores, propriedades sensoria is e sensíveis. Ele demonstrava como era possível a um pensamento articular proposições complexas sobre a realidade a partir de categorias muito próximas da experiência concreta . Em 1981 você conheceu os Araweté do Pará. com os quais rea lizou sua pesquisa de campo mais longa. O que mais te atraiu em começar uma pesquisa com esse grupo Tupi-Guarani contemporâneo. parentes (distant es) dos Tupinambá. famosos por suas práticas antropofágicas? Os Tupi, quando
comecei a estudar antropologia, eram vistos meio como povos do passado, extintos ou "aculturados". Era como se não se houvesse mais o que se fazer em termos de pesquisa etnológica junto a eles, que não fosse reconstrução histórica ou sociologia da "transfiguração étnica". Só que, na década de 1970, com a abertura da Transamazônica, alguns grupos Tupi-Guarani "isolados" do Pará foram "contatados" : Assurini, Araweté, Parakanã ... Obviamente, o que chamava a atenção no material tupi-guarani clássico era o famoso canibalismo guerreiro tupinambá, mas eu não tinha a menor idéia de que fosse encontrar algo do gênero nos Araweté . Estava indo para os Araweté porque queria um grupo pequeno e não estudado . Por acaso aquele grupo era Tupi. A pesqu isa entre os Araweté foi complicada, porque eles tinham cinco anos de contato, e cinco anos é muito pouco. O grupo ainda está desorientado, ainda está administrando a revolução social e cosmológica - e mais que tudo , a catástrofe demográfica - desencadeada pelo contato. Eles eram "selvagens" para valer, uma gente dramática e enigmática, ao mesmo tempo gentil e brusca, sutil e exuberante; eram muito diferentes dos povos do Alto Xingu, que haviam me impressionado pela etiqueta, pelo refinamento, pela compostura quase solene. Como foi. então. sua primei ra experiência de contato com os Araweté? Eles estavam elaborando a experiência deles conosco. Testavam todos os modos
possíveis. Não sabiam ainda muito bem o que iriam fazer com aqueles caras,
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os brancos. Eu fui uma das primeiras cobaias deles. Tentaram comigo vários métodos, digamos assim, de administração da alteridade. Foi uma pesquisa psicologicamente complexa, mas me dei muito bem com eles. Eles não tentaram te afogar, como fizeram muitos índios com os colonizadores europeus no século XVI? Não, não me afogaram, pelo menos não daquele jeito-pois acho que vocês estão se referindo àquela anedota de Lévi-Strauss sobre os espanhóis e os índios das Antilhas ... Embora para eles eu sempre tenha sido uma espécie de enigma, impressão, aliás, recíproca. A pesquisa toda foi marcada por eles investigando a minha natureza. Claro que já conheciam branco desde muitos anos antes do contato oficial. Os Araweté são uma daquelas sociedades que devem ter tido vários encontros com brancos nos últimos séculos, se é que eles não são remanescentes de grupos Tupi que tiveram contato direto com missões cristãs ou coisa parecida. Eles esqueceram muita coisa, mas
nem tudo. Você percebe que sabem muito mais sobre a gente do que dão a impressão de saber. A pesquisa interessava a eles porque, como eu não tinha uma grande questão teórica a perseguir desde o início, segui os interesses dialógicos dos Araweté. Não tinha questão, então tive de ir acompanhando o que interessava a eles e o que eu conseguia entender, quer dizer, flutuei inteiramente ao sabor da corrente de nossa interação. De que modo a experiência com os Araweté inspirou a elaboração da noção de "perspectivismo ameríndio"? Meu livro sobre os Araweté está cheio de referências a um perspectivismo, a um processo de pôr-se no lugar do outro, que me apareceu, inicialmente, no contexto da visão que os humanos têm dos Mar, os espíritos celestes, e reciprocamente. Propus, em seguida, que o canibalismo tupi-guarani poderia ser interpretado como um processo em que se assume a posição do inimigo. Mas esse ainda era um perspectivismo meu, o conceito era meu, e não dos índios. Está lá, mas sou eu que formulo: o canibalismo tem a ver com a comutação de perspectivas etc. Anos depois, Tânia Stolze Lima, (então) minha orientanda e (ainda) amiga, estava escrevendo sua tese sobre os Juruna, que concluía com uma discussão sobre o relativismo juruna, que me fez vo ltar a pensar na questão do perspectivismo. Trata-se de um trabalho esplêndido, uma das etnografias mais originais do pensamento indígena até agora produzidas em nossa disciplina. Eu e Tânia começamos a conversar sistematicamente sobre o material que ela analisava. Foi aí que começamos a definir esse complexo conceituai do perspectivismo, a concepção indígena segundo a qual o mundo é povoado de outros sujeitos ou pessoas, além dos seres humanos, e que vêem a realidade de modo diferente.
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Como foi possível passar das manifestações particulares registradas por essas etnografias recentes à construção de um modelo genérico - o "perspectivismo ameríndio"? Tal generalização é de minha exclusiva irresponsabili-
dade: Tânia não tem culpa de nada aqui ... A minha questão era identificar em diversas cu lturas indígenas elementos que me permitissem construir um modelo, ideal em certo sentido, no qual o contraste com o naturalismo característico da modernidade européia ficasse mais evidente. Obviamente, esse modelo se afasta mais ou menos de todas as realidades etnográficas que o inspiraram. Por exemp lo, os Araweté não têm .essa idéia, tanto quanto eu saiba, de que certas espécies animais vêem o mundo de um jeito diferente do nosso. Seja como for, o fenômeno que Tânia enco ntrou entre os Juruna era muito comum na Amazônia, embora a imensa maioria dos etnógrafos não tenha tirado grandes conseqüências dele. Eu tinha a impressão de que se podia divisar uma vasta paisagem, não apenas amazônica mas panamericana, na qua l se associavam o xamanismo e o perspectivismo. Era possível perceber também que o tema mito lógico da separação entre humanos e não-humanos, isto é, "cultura" e "natureza", não significava a mesma coisa que em nossa mitologia evolucionista. A proposição presente nos mitos é: os an imais eram humanos e deixaram de sê-lo, a humanidade é o fundo comum da humanidade e da an ima lidade. Em nossa mitologia é o contrário: éramos animais e "deixamos" de sê-lo, com a emergência da cultura etc. Para nós, a condição genérica é a animalidade: "todo mundo" é animal, só que uns são mais animais que os outros, e nós somos os menos. Nas mitologias indígenas, todo mundo é humano, apenas uns são menos humanos que outros. Vários animais são muito distantes dos humanos, mas são todos, ou quase todos, humanos na origem, o que va i ao encontro da idéia do animismo, de que o fundo universa l da realidade é o espírito. Você poderia nos dar um exemplo de como opera esse pensamento perspectivista na vida cotidiana de grupos indígenas? Tenho um exemplo que
mostra a atua lidade e a pregnância do motivo perspectivista. Há uns três anos, o filho de Raoni [líder dos Kayapó Txukarramãe] morreu, creio que na aldeia dos Kamayurá, onde ele estava em tratamento xamanístico. Tinha sido enviado pe la família para ser tratado pelos xamãs de lá. Esse rapaz morreu, segundo os médicos brancos, de um ataque epi léptico. Bem, ele havia matado dois índios (não me recordo se em sua própria aldeia, onde tinha ido passar um tempo entre as diversas fases da cura xamanística, ou na aldeia kamayurá mesmo). e algum tempo depois morreu. A morte desse rapaz entre os Kamayurá virou notícia na Folha de S. Paulo, que publicou uma reportagem sobre o clima de tensão intergrupa l que se seguiu, com os Kayapó acusando
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os Kamayurá de feitiçaria. Parece que se chegou mesmo a falar em guerra entre os dois grupos. Então começou aquela paranóia e a Folha, sabendo disso (sabe-se lá como). mandou um repórter e fez uma matéria . Pouca s semanas depois, Megaron, Txukarramãe que é o diretor do Parque do Xingu (e sobrinho do Raoni), resolveu escrever uma carta para a Folha dizendo que não era nada daquilo que o repórter havia contado, e que os Kamayurá eram feiticeiros mesmo ... Acho fascinante isso de acusações de feitiçaria entre grupos indígenas no Xingu sendo ventiladas em cartas à redação da Folha. Acho que essa coisa de modernização, depois de pós-modernização, de globalização, não quer dizer que os índios estejam vi rando brancos e que não haja mais descontinuidades entre os mundos indígenas e o "mundo global" (que talvez fosse melhor chamar de "mundo dos Estados Unidos"). As diferenças não acabaram, mas agora elas se tornam comensuráveis, coabitam no mesmo espaço: na verdade aumentaram seu potencial diferenciaI. Assim, no mesmo jornal você pode ler as platitudes político-literárias do Sarney, um empresário discorrendo sobre as propriedades miraculosas da privatização, um astrofísico falando sobre o big-bang - e um Kayapó acusando os Kamayurá de feitiçaria. Tudo no mesmo plano, na mesma folha. Bruno Latour, em seu Jamais fomos modernos, insiste com muita pertinência nesse fenômeno. Pois bem. Megaron argumentava, em sua carta: "Esse rapaz morreu porque foi enfeitiçado pelos Kamayurá . É verdade que ele matou duas pessoas antes de morrer, mas isso foi porque achou que estava matando animais, pois os pajés Kamayurá deram um ciga rro para ele e ele achou que estava matando bicho. Quando voltou a si, viu que eles eram humanos e ficou muito abalado." Essa explicação recorre ao argumento perspectivista, essa coisa de ver gente como anima l. Acontece que, quando uma pessoa vê os outros seres humanos como bichos, é porque ela na verdade já não é mais humana: isso significa que está muito doente e prec isa de tratamento xamanístico. Megaron diz, entretanto: foram os xamãs Kamayurá que enfeitiçaram o rapaz e o desuman iza ram, fazendo-o ver os humanos como bichos, isto é, fazendo-o comportar-se ele mesmo como um bicho feroz. Pois uma das teses do perspectivismo é que os animais não nos vêem como humanos, mas sim como anima is-po r outro lado, eles não se vêem como animais, mas como nos vemos, isto é, como humanos. Eis ass im que o perspectivismo não só está bem vivo, como pode entrar em pa lpitantes argumentos po líticos. Em que medida esse modelo perspectivista pode ser estendido para todos os grupos ameríndios, mesmo tendo em vista as profundas diferenças
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entre eles? Como falar, por exemplo, em perspectivismo entre populações Jê que não têm no xamanismo uma prática corrente? Bem, acabamos de
ver um membro de um grupo Jê recorrendo a um argumento desse tipo. De qualquer modo, mesmo que os Jê não digam que os animais atuais são humanos ou que cada animal vê as coisas de um certo jeito etc., sua mitologia, como a de todos os ameríndios, afirma que, no começo dos tempos, animais e humanos eram uma coisa só, que os animais são ex-humanos , e não que os humanos são ex-animais. Tal humanidade pretérita dos animais nunca é completamente evacuada, ela está lá como um potencial - justo como nossa animalidade "passada" permanece pulsando sob as camadas de verniz civilizador ... Além disso, não é preciso ter xamãs para se viver em uma cosmologia xamanística. (Os Txukarramãe, acrescente-se, estavam usando os xamãs dos Kamayurá, logo ...). A idéia de que os animais são gente, comum a muitas - mas não todas, nestes termos simplificados-cosmologias indígenas, não significa que os índios estejam afirmando que os animais são gente como a gente . Todo mundo em seu juízo perfeito, e o dos índios é tão ou mais perfeito que o nosso, "sabe" que bicho é bicho, gente é gente. Mas sob certos pontos de vista, em determinados contextos, faz todo o sentido, para os índios, proceder segundo a noção de que alguns animais são gente. O que significa isso? Quando você encontra numa etnografia uma afirmação do tipo "os Fulanos dizem que as onças são gente", é preciso ter claro que a proposição "as onças são gente" não é idêntica a uma proposição trivial do tipo "as piranhas são peixes" (isto é, '''piranha' é o nome de um tipo de peixe"). As onças são gente mas são também onças, enquanto as piranhas não são peixes mas também piranhas .. . As onças são onças, mas têm um lado oculto que é humano. Ao contrário, quando você diz "as piranhas são peixes" não está dizendo que as piranhas têm um lado oculto que é peixe. Quando os índios dizem que "as onças são gente", isso nos diz algo sobre o conceito de onça e também sobre o conceito de gente. As onças são gente-a humanidade ou "personitude" é uma capacidade das onças-porque, ao mesmo tempo, a oncidade é uma potencialidade das gentes, e em particular da gente humana. Aliás, não devemos estranhar uma idéia como "os animais são gente". Afinal, há vários contextos importantes em nossa cultura nos quais a proposição inversa, "os seres humanos são animais", é vista como perfeitamente evidente. Não é isso que dizemos, quando falamos do ponto de vista da biologia, da zoologia? Entretanto, achar que os humanos são animais não o leva necessariamente a tratar seu vizinho ou colega como um boi, um badejo ou um
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urubu .. . Do mesmo modo, ac har que as onças são gente não signif ica que se um índ io encont ra uma onça no mato ele vai necessa ri ame nte t ratá-Ia como se u cu nh ado humano ... Tu do depende de como a onça o t ra ta..
O que você quer dizer exatamente quando afirma que o perspectivismo não é um relativismo? Foi no diálogo com a Tânia que surg iu a questão de que esse pe rspectivismo teria a ve r co m o relativismo oci denta l, de que se ri a uma espécie de relativismo. Eu ac hava que não era relat ivismo, e sim outra coisa. O perspectivismo não é uma fo rma de relativismo. Seria um relativismo, por exemplo, se os índios dissessem que pa ra os po rcos todas as outras espéc ies são no fu ndo po rcos, embora pareçam humanos, onças, jacarés etc . Não é isso que os índios estão dizendo. El es dizem que os po rcos no fundo são humanos; os porcos não ac ham que os humanos sejam no fu ndo porcos.
Quando eu digo que o ponto de vista humano é sempre o ponto de vista de referência quero dizer que todo animal, toda espécie, todo sujeito que estiver ocupando o ponto de vista de referência verá a si mesmo como humano-inclusive nós. Como bom estruturalista, o que você pensa dos caminhos trilhados pela antropologia pós-lévi-Strauss? Sou um estruturalista, co mo todo bom antropólogo. Só não sei se sou um bom estrutura lista .. . A minha impressão é que o estrutura lismo foi o último grande esforço feito pela antropo logia para encontrar, como fizeram várias outras correntes anterio res, uma mediação entre o un iversal e o particular, o estrutural e o histórico. Hoje você vê uma divergência cada vez ma ior dessas duas perspectivas , elas estão se tornando incomunicáveis. É como se a herança da antropo log ia clássica tivesse sido dividida: os un iversa is foram incorpo rados pe la ps ico log ia; os pa rt iculares, pe la hi stó ria. Como se a antropolog ia fosse hoje apenas uma soma co nt ingente de psicolog ia e hi stória, como se ela não tivesse um objeto próp rio. Mas com isso se perde, a meu ver, a dimensão própria de realidade do objeto antropológico: uma realidade coletiva, isto é, relacional, que possui uma propensão à estabilidade transcontextual da forma. E isso me parece uma coisa que é preciso recuperar. Acredito que a antropologia deva escapar da divisão para encontrar o "mundo do meio", o mundo das relações sociais.
Tendo em vista essa especificidade, como você pensa a diferença entre a antropologia e a sociologia? A antropo logia é o estudo das relações sociais de um ponto de vista que não é deliberadamente domi nado pe la expe ri ênc ia e pela doutrina ocidentais das relações socia is. El a tenta pensar a vida soc ial sem se apoiar exclusivamente nessa herança cu lt ura l. Se vocês quiserem, a antropologia se d isti ngue na medi da em que ela presta atenção ao que as outras soc iedades têm a dizer sobre as relações sociais , e não pa rte, simplesme nte, do que a nossa tem a dizer para ver como é qu e isso f un ciona lá.
122 1123 O livro d e cabeceira
Trata-se de tentar dialogar para valer, tratar as outras culturas não como objetos da nossa teoria das relações sociais, mas como possíveis interlocutores de uma teoria mais geral das relações sociais. Para mim, se há alguma
diferença entre antropologia e sociologia, seria essa: o objeto do discurso antropológico tende a estar no mesmo plano epistemológico que o sujeito desse discurso. Como é possível para a antropologia escapar do objet ivismo hegemônico no pensamento ocidental, esse pensamento domesticado? A gente sabe, pelo menos quem leu Kant sabe, que o ato de conhecer é constitutivo do objeto de conhecimento. Ainda assim, nosso ideal de ciência guia-se precisamente pelo valor da objetividade: deve-se ser capaz de especificar a parte subjetiva que entra na visão do objeto, e de não confundir isso com o objeto em si. Conhecer, para nós, é dessubjetivar tanto quanto possível. Você conhece algo bem quando é capaz de vê-lo de fora, como um objeto. Isso inclui o sujeito: a psicanálise é uma espécie de caso limite desse ideal ocidental de objetivação, aplicado à própria subjetividade. Nossa ideologia básica é de que a ciência será um dia capaz de descrever todo o real em uma linguagem integralmente objetiva, sem resto. Ou seja, para nós a boa interpretação do real é aquela em que se pode reduzir a intencionalidade do objeto a zero. Sabemos que as ciências sociais, na ideologia oficial, são ciências provisórias, precárias, de segunda classe. Toda ciência deve se mirar no espelho da física ... O que significa isso? Significa guiar-se pela pressuposição de que quanto menos intencionalidade se atribui ao objeto, mais o conhece. Quanto mais se é capaz de interpretar o comportamento humano em termos, digamos, de estados energéticos de uma rede celular, e não em termos de crenças, desejos, intenções, mais se está conhecendo o comportamento. Ou seja, quanto mais eu desanimizo o mundo, mais eu o conheço. Conhecer é desanimizar, retirar subjetividade do mundo, e idealmente até de si mesmo. Na verdade, para o materialismo científico oficial, nós ainda somos animistas, porque achamos que os seres humanos têm alma. Já não somos tão animistas quanto os índios, que acham que os animais também têm. Mas se continuarmos progredindo seremos capazes de chegar a um mundo em que não precisaremos mais dessa hipótese, sequer para os seres humanos. Tudo poderá ser descrito sob a linguagem da atitude física, e não mais da atitude intencional. Essa é a ideologia corrente, que está na universidade, que está no CNPq, que está na velha distinção entre ciências humanas e ciências naturais, que está na distribuição diferencial de verbas e de prestígio ... Não estou dizendo que esse seja o único modelo vigente em nossa sociedade. É claro que não é. Mas é o modelo dominante.
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Em contrapartida ao esquema ocidental, o que move as epistemologias indígenas? Eu diria que o que move o pensamento dos xamãs, que são os cien-
tistas de lá, é o contrário. Conhecer bem alguma coisa é ser capaz de atribuir o máximo de intenciona li dade ao que se está co nhecendo. Quanto mais eu sou capaz de at ribu ir inte ncionalidade a um objet o, ma is eu o conheço. O bom con hecimento é aquele capaz de interpretar todos os eventos do mundo como se fossem ações, como se fossem resultado de algum tipo de inten-
é reduzir a intencionalidade do conhecido. Para eles, explicar é aprofundar a intencionalidade do conhecido, isto é, determinar o objeto de conhecimento cio nali dade. Para nós, explicar
como sujeito. Até no nosso senso comum esse modelo é dominante, .. Exatamente. Sejamos objetivos. Sejamos objetivos? Não ! Sejamos subjetivos, diria um xamã, ou
não vamos entender na da. O pecado ep istemológ ico aqui é a falta de subjet ivida de. Bem, esses respectivos ideais ou modelos imp licam ganhos e perdas, cada um de seu lado . Há ganhos em subjetivar, como há perdas. São escolh as culturais básicas. Que lugares sobrariam na nossa sociedade pa ra um conhecimento menos objetivo e mais intencional? Você tem uma série de ideais alternativos, é
claro, mas são casos dominados, subalternos, ou então restritos a certas dimensões do real, que se vê ontologicamente dualizado: ninguém prega ou pelo menos ninguém leva muito a sério se alguma vez alguém o pregou - que a Verstehe n, a compreensão intersubjetiva , deva incluir as plantas, as pedras, as mo lécu las ou os quarks ... Isso não se ria ciência. Aquele ideal de subjetivid ade que penso co nstituir o xaman ismo como epistemo log ia indígena enco ntra-se em nossa civilização confinado àquilo que Lévi-Strauss chamava de parque natural ou reserva ecológica no interior do pensamento domest icado: a arte. O pensamento se lvagem foi confinado oficialmente ao domínio da arte; f ora da li, seria clandestino ou alternativo . Valorizada, a experiência artística nada tem a ver com o experimento científico: a arte é inferior à ciência como produtora de con hecimento. Ela pode até ser emociona lmente superior, mas não é epistemologicamente superior. É essa distinção que não faz nenhu m sentido no que eu estou chamando de ep istemo logia xamâ ni ca, que parece proceder mais de acordo com o modelo de nossa arte que co m de nossa ciênc ia. O xaman ismo, como a arte, procede segundo o princípi o de subjeti vação do objeto. Uma escultura talvez seja a metáfora material mais evidente desse processo de subjetivação do objeto. O que o xamã faz é um pouco isso: ele esculpe sujeitos nas pedras, paus e bichos, esculpe conceitualmente uma forma humana. Como você vê os estudos atuais em antropologia urbana? Não gosto da exp ressão "a ntropo log ia urbana". Nada contra estudar em cidades, evidentemente.
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Mas não gosto da expressão antropologia urbana, como não gosto de antropo logia suburbana, rural, silvestre, montanhosa, costeira, submarina .. Mas não creio que vocês estejam pensando em antropolog ia urbana no sentido de estudo dos contextos soc iais das grandes ag lomerações humanas, que é antropolog ia como outra qua lqu er. Vocês estão falando, suponho, da chamada "ant ropologia das soc iedades comp lexas", das pesquisas sobre soc iedades nacionais de tradição cu ltural eu ropé ia (ou eurasiática). Boa parte do que se fez em antropologia das sociedades comp lexas limitava-se a projetar para o contexto urbano os conceitos e o tipo de objeto característico da antropologia "clássica". Isso não foi muito longe, pois para fazer uma verdadei ra projeção, te ria que ser uma projeção no sentido geométrico da palavra: o que se deve preservar são as re lações, não os termos. Então, o "equiva lente" do xamanismo ameríndio não é o neoxaman ismo californiano, ou mesmo o candomb lé baiano. O equivalente funcional do xamanismo indígena é a ciência. É o cientista, é o laboratório de física de altas energias, é o acelerador de pa rtícu las . O chocalho do xamã é o acelerador de partículas de lá. Isso não quer dizer que não devamos estudar candomblé ou neoxamanismo, pois é evidente que devemos. O que estou dizendo é, simplesmente, que uma verdadeira tradução da antropologia das sociedades de tradição não-ocidenta l para a antropo logia das sociedades ocidentais deveria preservar certas relações funcionais internas, e não apenas, ou mesmo principalmente, certas continuidades temáticas e históricas. Não estou dizendo, insisto, que não se deva estudar parentesco, candomblé, xamanismo urbano, pequenos grupos, interações face a face .. . Mas, sim, que uma antropologia urbana que "fizesse a mesma coisa" que a etnologia indígena - supondo que isso seja algo desejável, o que não é óbvio - estaria ou está estudando os laboratórios de física, as multinacionais do setor farmacêutico, as novas tecnologias reprodutivas, as grandes correntes de pensamento nas universidades, a produção do discurso jurídico, político etc. Então, que tipo de produção você qualificaria como digna do título "antropologia das sociedades complexas"? Para ficarmos apenas nos nomes estrangeiros, evocaria autores tão diferentes como Louis Dumont, Michel Foucault. Bruno Latour ou Marilyn Strathern. Eu veria o trabalho de Foucault como mais representativo de uma autêntica antropologia das sociedades complexas que, por exemplo, o estudo de Raymond Firth sobre o parentesco em Londres. A antropologia das sociedades complexas apenas recentemente descobriu toda uma nova área de antrop%gicidade das sociedades complexas que até então era reserva cativa de ep istemólogos, soció logos,
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cie ntist as políticos, historiadores das idéias ... Contentávamo-nos com o margina l, o não-oficial. o privado, o fami liar, o doméstico, o alternativo. Faziase antropo log ia do candomblé, mas não havia antropologia do catolicismo . Antropolog ia da religião de sociedades complexas é só estudar culto afrobrasileiro? Por que não a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil]?
É claro que é mais fácil -e foi absolutamente necessário - , num primeiro momento, transportarmos o que aprendemos nos estudos de rel igião africana para os estudos sobre o candomb lé. Mas não estivemos aqui preserva ndo as relações, só os termos. No seg undo momento, pe rcebe-se que há ma is co isas a fazer do que t ranspo rtar te rmos. Você pode t ransportar relações, e ao fazer isso estará criando conce itos, algo que a antropologia das sociedades complexas levou algum tempo para fazer. Até bem recentemente, a antropologia estava muito marcada po r aqueles conceitos básicos produ zidos em seu contexto clássico: reciprocidade, feitiçaria, mana, troca , totem, tabu. Então os antropólogos das sociedades complexas buscavam o mana aq ui, o totemismo acolá ... Tudo bem, mas acho que dá para ir mais
longe, e estamos efetivamente indo mais longe: estamos começando de fato a fazer antropologia simétrica, que é antropologizar o centro, e não apenas a periferia da nossa cultura. O centro da nossa cultura é o estado constitucional, é a ciência, é o cristianismo. Ser capaz de estudar esses objetos é uma conquista recente da antropologia . A antropologia das sociedades complexas teve o inestimável mérito de mostrar que o periférico e o marginal eram parte constitutiva da realidade sociocultura l do mundo urbano-moderno, desmontando assim a autoimagem do Ocidente como império da razão, do direito e do mercado . Mas o próximo passo é analisar essas realidades mais ou menos imag iná ri as que, de início, empenhamo-nos em desleg iti ma r. Não é mais tão necessário deslegitimar essas coisas; agora é prec iso estudar se u funcionamento. Você acredita que sua obra possa contribuir para uma antropologia da sociedade brasileira? Não estou excessivamente familiarizado com a antropo log ia
da sociedade bras ileira ... Fui fazer etnologia para fu gir da sociedade brasileira, esse objeto compulsório de todo cientista soc ial no Brasil. Como cidadão, sou brasileiro e não tenho nenhuma objeção a sê-lo. Mas como pesqu isador não acho que meu objeto seja obrigatoriamente a chamada "rea li dade brasileira", essa curiosa e intraduzível noção. Não se exige isso dos matemáticos ou dos f ísicos . Os fís icos brasileiros não estão estudan do a "rea lidade bras il eira". Estão estudando, sa lvo enga no (m eu ou deles), apenas a rea lidade. Por que um cientista soc ial bras il eiro não pode fazer a mesma co isa? O Brasil é uma circunstância para mim, não é um objeto; e penso, igua l-
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mente, que o Brasil é uma circunstância para os povos que estudo, e não sua condição fundante. E o compromisso em relação às sociedades indígenas que você estuda? Aqui é outra história. Acho que o "Brasil", isto é, o Estado e as classes dominantes, sempre se comportaram de maneira ignóbil perante as populações indígenas . Escolhi estudar os índios. Mas meu "compromisso" com esses povos que estudo não é um "compromisso político", e sim um compromisso vital. Não faço do meu "compromisso" com os índios nem o objeto da minha pesquisa, nem sua justificativa . Ele não é nenhuma dessas coisas; é a condição do meu trabalho, que aceito e que nunca me pesou. Tenho grande desconfiança de justificações políticas da pesquisa. Não acho uma coisa muito nobre justificar-se mediante um apelo, em geral ostentatório, à importância política da pesquisa. Os perigos da auto-ilusão e da autocomplacência são enormes. Por fim, tenho visto tantas vezes esse tal de "compromisso político" sendo usado como uma espécie de tranqüilizante epistemológico .. . Confesso que não tenho nenhuma simpatia por isso. Nada tenho contra os tranqüilizantes, mas quando se trata de pensamento, prefiro os inquietantes. Essa entrevista contou com a colaboração de Carlos Machado Dias Jr., Clarice Cohn, Florencia Ferrari e Valéria Macedo em uma conversa prévia com Eduardo em São Paulo, no dia 28 de novembro de 1998. Renato Sztutman, Silvana Nascimento e Stélio Marras são integrantes do corpo editorial da Sexta Feira .
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130 [o cru e o cozido] Alimentando o c o r p o — O que dizem os Caxinauá sobre a função nutriz do sexo Eliane Camargo
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EM PORTUGUÊS, O TERMO "COMER" CARREGA. FREQÜENTEMENTE,
língua dispor de um termo específico para "estar faminto de carne" (pintsi).
uma conotação sexual. Todavia, tal associação entre comida e sexo não é
diferenciado do genérico "estar faminto" (buni) 3 . Entre esses dois termos,
exclusividade nossa e pode ser encontrada em outras partes do mundo.
um terceiro se insere, indicando outra concepção de fome: a de "estar fa-
Em muitas línguas indígenas, por exemplo, a terminologia para "fazer sexo"
minto de sexo" (hin ik-) .
costuma manifestar o sentido de nutrir o corpo . Sob essa ótica, os alimen-
Segundo os Caxinauá, a falta de carne enfraquece o corpo (yuda) e seu
tos de origem animal e vegetal aparecem como insuficientes e, como
pensamento (xinan). Sem esse último, seu princípio vital (yuxin) se evade e
aponta a antropóloga Elsje Lagrou (1998) em seu recente estudo sobre os
o corpo, amolecendo de fraqueza, morre. O terceiro termo, "estar faminto
Caxinauá da Amazônia Ocidental, faz-se necessário que elementos como
de sexo" (hin ik- ), associado aos demais, conduz-nos às concepções de
sêmen e sangue (nutrientes masculino e feminino) se misturem para sus-
corpo e alimento de que esse grupo dispõe para especificar lexicalmente
tentar um corpo gerador de vidas. Essa concepção do sexo como alimento
essas diferentes acepções do comer. Os três termos que designam formas
do corpo, formalmente expressa na língua desse grupo, é o assunto das
distintas de "estar faminto" indicam que a atividade sexual é concebida
próximas linhas.
como necessidade fisiológica, tanto como o comer (pikindan). o beber (akindan) e o ingerir (xeakindan). O corpo feminino, ao receber o sêmen
o comer entre os Caxinauá
(huda). está ingerindo (xeakindan) um alimento, cuja função é a de gerar cor-
Os Caxinauá pertencem à família lingüística Pano e vivem na bacia dos rios
pos (tunku akindan)4.
Juruá e Purus, nos dois lados da fronteira entre Brasil e Peru. São um grupo
Elsje Lagrou afirma que o corpo necessita da mistura do alimento mascu-
e o mundo da caça (yuinakabu) faz parte de sua concepção de vida
lino e feminino para produzir a vida: o sangue (ainbu himi) feminino coagula
em sociedade. O papel da caça e da carne (nami) é relevante a ponto de a
por meio da repetida mistura com o sêmen, modelando, assim, o feto (tunku)
caçador 2
132
(1998:78)5. Assim, o comer sexual é designado pela ingestão desse líquido.
e a caiçuma (mabex); e na última, os remédios à base de ervas (ni pei dau).
Essa concepção não é restrita aos Caxinauá. Segundo Edilene Lima , entre
a sopa (beten) e a água (unpax). Restrinjo-me aqui sobretudo ao termo
os Katukina do estado do Acre, "a teoria nativa da concepção diz que a ges-
xeakindan ("comer alimento de consistência líquida") empregado no "comer
tação é resultado da troca de fluid os corpóreos entre homens e mulheres,
o alimento sexual"7
por meio de repetidos intercursos sexuais" (1998:8). A autora adianta ainda que é admitido que uma pessoa possa ter mais de um genitor masculino. Tais informações corroboram com o que foi apresentado sobre a atividade sexual pensada pelos Caxinauá como uma necessidade fisiológica concebida nos mesmos parâmetros que o alimento sólido (comer) e o alimento líquido (beber). A participação de esposos e amantes é impreteríve l na fabricação do alimento corpóreo e na maturação da gestação do feto. A língua caxinauá dispõe de diferentes termos para o comer que especificam o alimento e sua consistência: "comer alimento kuin 6 de origem animal e vegetal de consistência sólida" (pikindan). "comer alimento kuin de consistência líquida" (akindan) e "comer alimento de consistência líquida" (xeakindan). Na primeira classificação, encontram-se, por exemplo, a carne de caça (yuinaka), a pesca (baka) e os vegetais representados por amendoim (tama).
banana (mani), macaxeira (atsa) e milho (xeki); na segunda, o mingau (mutsa)
Expresso o meu agradecimento a Dominique Tilkin Gallois e a Renato Sztutman pelas sugestões fornecidas a esse artigo. 2 Para mais informações etnográficas, ver McCallum. 1989; Deshayes & Keifenheim, 1994; Kensinger, 1994. 3 O termo buni refere-se a uma fome natural. O corpo da pessoa não recebeu nenhum tipo de alimentação, seja animal ou vegetal, e expressa a necessidade de alimento . 4 Tunku designa "feto" e tunku akindan, "gerir, conceber e reproduzir corpo". 5 A referência à bola é uma extensão semântica do sentido primeiro de tunku (feto). 6 Dentre os termos do sistema classificatório caxinauá, kuin, de difícil tradução nas línguas ocidentais. faz referência ao sai, isto é, selt. como amplamente discutido em Camargo, 1991; Deshayes & Keifenheim, 1994; Kensinger, 1994; Erikson, 1994. Esse epíteto parece ser erroneamente interpretado por alguns estudiosos do caxinauá como "verdadeiro ". Um outro termo preenche a noção de "verdadeiro " nessa língua - kayabi - e revela que a acepção semântica de kuin é mais ampla . 7 Esse termo indica composições líquidas, como infusões de ervas (dau xeakindan), nas quais água e ervas se misturam. Tomar sopa (beten) é designado por xeakindan se só o ca ld o for ingerido.
133
o ato aliment ar
o mito da descoberta do amor
A relação sexual (txutakindan) é um tema onipresente no cotidiano e na cos-
Tentarei resumir aqui o conteúdo do mito da descoberta do amor-mito da
mologia nativa. Os Caxinauá concebem o sexo como alimento da sobrevi-
descoberta da função da vagina (xebi xui)-que os Caxinauá do Peru, com
vência. Dizem que as relações precisam ser freqüentes para que o sangue
os quais trabalhos, narram de maneira intrigante.
femin ino (ainbu himi) e o sêmen (huda) se misturem e gerem vidas. Essa
Os antepassados eram muitos ignorantes. Pensavam que a vagina não
concepção envolve todos, casais concebidos socialmente como ta is ou
era perfurada, mas sim uma ferida. Aliás, comentavam que as mulheres
amantes. A ausência da atividade sexual é revelada por enunciados como
nem vagina (receptáculo do amor) tinham, só tinham uretra.
en bene manuai ("estou sentindo fa lta do meu esposo").
Tentavam curá-Ia com as mais diversas ervas e curativos, usando o máx-
Muitos termos re lativos ao comer confirmam que o ato sexua l é um ato
imo de seus conhecimentos farmacêuticos; mas, ao urinar, a ferida da
alimentar. Falamos aqu i do hin ikindan ("estar faminto de sexo") que deriva
mulher se abria novamente. Até que um dia, Hidi Xinu saiu para caçar e
de hina ("pênis"). Isso nos leva a crer que o pênis é o instrumento que conduz
se deparou com um casal de macacos-prego que copulavam9. Voltou imediatamente à aldeia, anunciando a boa nova, e passou a curar as
o alimento ao invólucro fem inino e que sacia a "fome sexual". Como anedota, va le a pena reve lar a inquietude que alguns Caxinauá demonstram quando prolongo minhas estadias com eles. A preocupação com a fraqueza de meu corpo torna-se grande: ou um parceiro me é proposto ou sou incitada a vo ltar para casa para reencontrar o meu marido . Alguns me dizem que temem até mesmo a min ha morte pela fa lta de comida sexua l, o que poderia ocasionar prob lemas com o "presidente brasileiro".
134 1135 Cry/ng Freeman
8 Em 1994, passei a trabalhar com os Caxinauá do rio Curanja, afluente do alto rio Purus, no Peru. Antes disso, desenvolvi um estudo lingüístico com os Caxinauá da Reserva Indígena do Alto rio Purus (RIAP), no Brasil. 9. O nome do personagem Hidi Xinu está relacionado com o nome da espécie dos macacosprego (x/nu), caracterizados - tanto na cultura caxinauá como na nossa- pelo seu comportamento libidinoso. Esse mito parece ser comum nas culturas pano (Erikson, comunicação pessoal). Melatti (1986), por exemplo, revela diferentes versões desse mito em marubo.
°
mulheres' com o movimento de vai-e-vem de seu pênis.
(epa) entra então em ação, buscando as ervas para aplicar naquele corpo
Hidi Xinu anunciou que a ferida era, na verdade, o receptáculo da pene-
que teme o cantata com o sexo masculino. A maior preocupação diz respeito
tração. "Vamos trepar! Ei querida, é muito bom", disse à primeira parceira.
à necessidade do corpo da mulher núbil em receber o alimento sexual.
E assim passou a deflorar todas as mulheres que expressavam o desejo
As ervas provocam, segundo os índios, o sentimento de "desejo do
de ter relações sexuais, desejo de experimentar essa cura. "Deite-se para
esposo". Terminados os banhos, o marido pode então encontrar sua esposa
trepar!", disse ele a uma mulher. Então outra observou aquele ato de pene-
amansada e fazer sexo com ela. Não há mais medo, a menina não ficará mais
tração e falou: "Comigo também, trepe comigo!" Então HidiXinu deflorou
assustada para ter relações sexuais.
todas as moças, uma após a outra. Depois de tê-Ias iniciado à vida sexual,
Presenciei uma situação em que uma jovem arredia teve de receber
seu pênis, inchado, rompeu-se, levando-o à morte. Seu pênis ficou mole,
vários banhos. Com o passar dos dias, ela se sentia melhor. Quando o ato
o receptáculo da moça com quem copulou estava duro (seco) e ele não
foi consumado, um grande buchicho e muita fofoca tomaram conta da aldeia.
pôde mais penetrá-Ia. Então o seu pênis rompeu. Ele morreu desse jeito.
A esposa se sentia intimidada e o esposo aliviado, depois de horas e horas
Embora o sexo não seja tabu no cotidiano dos Caxinauá, mocinhas ainda têm
de tentativas sem êxito. Enfim, Os banhos de ervas haviam funcionado.
receios quanto à iniciação. Muitas, ao terem de consumar o casamento, rea-
. 0.
gem de forma violenta: injúrias ao esposo, caras feias, indiferença e até agres-
A terminologia aqui apresentada para as várias modalidades de "estar fa-
sões físicas. O esposo (bene) tenta agradá-Ia com presentes industrializados,
minto" revelou que a concepção de sexo entre os Caxinauá passa, de fato,
sem obter o menor sucesso. Pede ajuda às suas mães classificatórias (ewa)
por uma necessidade fisiológica. Diferente da nossa concepção, cuja função
e às suas irmãs mais velhas (txipi). Todas conversam com a esposa assus-
biológica se limita à reprodução, entre os Caxinauá essa atividade inclui
tada (ainbu dananan), mas seu trabalho é vão l O pai classificatório da menina
sobretudo a noção de nutrição, sem a qual o corpo sucumbe. Um corpo que
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não pratica sexo torna-se fraco e perece. O prazer que o sexo propicia é, desse modo, o alimento mais básico dos homens. Assim dizem os Caxinauá. 10 Uma versão desse mito é apresentado por D'Ans, 1979. Os trechos aqui apresentados são extraídos de uma versão coletada por mim na comunidade de Colombiana (Peru), em 1997. Referências bibliográficas CAPISTRANO DE ABREU, J. Rã-txa hu-ni-ku-i. A língua dos Caxinauás do rio /buaçú, aft/uente do Murú (Prefeitura de Tarauacá). Rio de Janeiro, Livraria Briguiet, 1941 [1914]. CAMARGO, Eliane. "Peut-on traduire les termes du systéme catégoriel du caxinaua". texto
apresentado no 47" CIA. em Nova Orleans, EUA, 1991, mimeo. The meanings of "eating" in wayana: indigenous cu/ture, identity and collective rights in the Guyana's. 49th ICA. no prelo, 1997. - -- -"La découverte de I'amour par Hidi Xinu. Récit caxinauá" in Bu/letin de /'Institut , Franç?is d'Études Andines. Lima, CNRS, 1999 (1). D'ANS, André-Marcel. Le dit des vrais hommes. Paris, Union Générale d'Editions, 10/ 18, 1979. DESHAYES, Patrick & KEIFENHEIM, Barbara. Penser /'autre chez les Indiens Huni Kuin de I'Amazonie. Recherches et documents, Amériques Latines. Paris, LHarmattan. 1994. ERIKSON, Philippe. La grifte des aieux. Marquage du corps et démarquages ethniques chez les Matis d'Amazonie. Paris, Éditions Peeters. 1994. KENSINGER. Kenneth. The way real people ought to live: essays on the peruvian Cashinahua . Waveland Press, Prospect Heights, Illinois, 1994. LAGROU, Elsje Maria. Caminhos, duplos e corpos. Uma abordagem perspectivista da identidade e alteridade entre os Kaxinaua. Tese de doutorado apresentada à FFLCH-USP. São
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137
138 Fragmentos de corpo espelho p a r t i d o — A trajetória de Sabino Kaiabi no Parque Indígena do X i n g u Mariana K. Leal Ferreira
1 3 8 1 1 3 9 Valdirlei Dias N u n e s
ESTE ENSAIO DÁ FORMA À INTERLOCUÇÃO ENTRE O PAJÉ E LíDER político Sabino Kaiabi e esta antropóloga. Colocando em cena o drama de nossos encontros no Parque Indígena do Xingu entre 1980 e 1990, é minha ambição delinear o campo de poder que me autoriza a falar sobre a experiência de vida do líder Kaiabi. Argumento que a história de vida de Sabino (Ferreira, 1994) foi construída de maneira dialógica e intersubjetiva num "palco espelhado" (Lacan, 1977). onde corpos existenciais foram fragmentados pelo reflexo de espelhos partidos. O corpo, aqui, é entendido em sua perspectiva individual ou fenomenológica (Merleau-Ponty, 1996; Schutz, 1962). a partir da qual Sabino experimenta e vivencia o mundo cotidiano. Espelhos, por sua vez, são zênites da modernidade - superfícies refletoras que iluminam, neste caso, o processo de construção do sujeito. Nesse sentido, o ensaio revela nuanças da operação textual da antropologia, mostrando que ao produzir conhecimento sobre o "outro", nós, antropólogos, também somos observados e inscritos (Clifford, 1983; Rabinow, 1986). Conte-me sobre o espelho. Nós sempre pensamos que você é diferente porque você nunca olha no espelho. Minha mulher sempre diz: "a casa da Mariana não tem espelho'" Olhe para esse pedaço de vidro que te dei. Por que você insiste em se portar assim? Eu não posso te dizer quem eu sou se você não revelar quem é. Diga quem você é. Olhe no espelho e me diga quem você é. Eu quero ouvir, mas tenho que falar. As palavras de Sabino suspendem as certezas que carrego sobre mim mesma, consumindo miragens de um passado que não quero recordar. Sabino insiste em perguntar sobre desencantos, distúrbios, cicatrizes históricas. Os múltiplos ângulos do espelho quebrado que seguro firmemente na mão esquerda não parecem dizer nada sobre quem sou. Em 1990, durante visita ao Parque Indígena do Xingu, onde vivem 655 Kaiabi (ISA. 1996). Sabino me pediu para escrever sua trajetória de vida, para que "as crianças possam ler a história na escola da aldeia Tuiararé 1 e os brancos entendam o que significa ser Kaiabi hoje". Narrada por oito dias em kaiabi, a história foi precedida por uma explicação de Sabino sobre seu atual status de uriat (pajé). Depois de ter a "alma" (aean) roubada por um anang (espírito maligno). Sabino ficou parcialmente paralítico - "final-
mente podendo descansar". O status de uriat entrou em conflito com os sintomas de doença e de incapacidade que profissionais de saúde da Fundação Nacional do índio (Funai).
140
em Brasíl ia, haviam recém-diagnosticado. Sabino estava, agora, de acordo com os profissionais, "seriamente incapacitado", "um homem velho e inútil" que tinha sofrido um infarto. Para minha surpresa, e em resposta às minhas perguntas sobre como estava se virando com o braço e a perna esquerdos paralisados, Sabino afirmou nunca ter se sentido tão bem e relaxado em toda a vida. Você também pensa que estou doente, não? Os médicos não se cansam de dizer quão doente estou . Me enc hem de remédio e me mandam fazer exercício . Mas você não entende; você não entende porque não sabe nada sobre m im . Se você soubesse quanto eu sofri toda a vida desde que minha mãe morreu, quando eu tinha quatro anos de idade; minha vida nos seringais; o trabalho na Funai , no SPI (Serviço de Proteção aos índios) e nas frentes de atração; aí você poderia compreender como me sinto. Finalmente posso descansar, cuidar dos Kaiabi nos meus sonhos, conversar com eles, dar conselhos, contar histórias e cantar. Eu não preciso andar ou correr, trabalhar na roça, caçar, pescar, construir casas ou canoas. Vê os homens trabalhando lá fora? Estão construindo as casas desta grande aldeia com que sempre sonhei. Agora escute o que vou dizer, escute. Além das maravilhas da modernidade O olhar de Sabino se volta ao passado , mas não há retorno. Só espaços vazios, de amor e de sonhos . Promessas que jamais se concretizaram : o regresso ao território que os Kaiabi abandonaram nos anos 1950 e 60, no sul do Pará, em troca de espelhos, miça ngas, café, armas de fogo e antibióticos 2 A geografia Kaiabi foi invadida por anang, espíritos ma lignos que perturbam a ordem do cosmos, reivindicando a fama de Tuiararé, o Criador. O olhar de Sabino exp lora esta terra de ninguém, identificando seres perversos que ameaçam a integridade do universo. Os anang estão por toda a parte . Eles são ruins, ruins como os brancos que fizeram nosso povo sofrer. Acho que os anang são os espíritos dos homens brancos, porque eles são os piores seres que já vi. Os brancos nos matam com armas de fogo e doenças. Os anang matam com mamaévevé objetos 1 A aldeia Tuiararé foi criada em 1987 em homenagem a Tuiararé, criador do mundo Kaiabi . O intuito, seg undo Sabino, foi reunir várias famílias Kaiabi, dispersas ao longo do rio Xingu, num mesmo local, para garantir um melhor atendimento da Fundação Nacional do índio (Funai). 2 Os Kaiabi foram transferidos dos territórios tradicionai s no sul do Pará e norte do Mato Grosso para o Parque Indígena do Xingu entre 1950 e 1970, pelo Serviço de Proteção aos índios (SPI) e pela Fund ação Nacional do índio (Funai).
141
mágicos e também com enfermidades fatais. A mesma coisa , não? Eu vi anang em muitas ocasiões quando eu trabalhava nos seringais , mas eles
nunca conseguiram roubar minha alma. Só conseguiram me fazer adoecer, mas logo fiquei bom. No ano passado, anang conseguiu capturar minha alma. Com sorte, a consegui de volta. Seqüestrada por anang 3 , a alma de Sabino vagueia sem rumo, além das fronteiras terrestres para as profundezas do tempo e do espaço, pelos diferentes domínios do cosmos Kaiabi . Em vôo, o uriat se comunica com diferentes espíritos, animais, objetos animados e "gente", humanos ou não. A extraordinária capacidade de comunicação do uriat por meio de discursos, canções ou sonhos é o que lhe garante tremendo respeito do povo Kaiabi. A viagem cósmica é produto do roubo da alma que revela, em sonhos ou transes, a morte simbólica e a ressureição do pajé. Sabino parte de um nível mais imediato de realidade para um estado de consciência mais elevado. Em êxtase, o uriat gradualmente se familiariza com o domínio espiritual e aprende diferentes melodias-o cerne da terapêutica corporal Kaiabi. No início da década de 1930, Sabino e sua mãe, além de outros Kaiabi nascidos em aldeias espalhadas ao longo dos rios Teles Pires e dos Peixes, no Mato Grosso e no sul do Pará, mudaram-se para o Posto Indígena Pedro Dantas, administrado pelo SPI. Este foi o primeiro posto de "atração" e "pacificação" dos Kaiabi, índios arredios e temidos por serem caçadores de cabeça e por serem canibais. Enquanto alguns grupos insistiam em se manter hostis às táticas "civilizatórias" -atacando os integrantes das frentes de pacificação, missões religiosas, seringais e garimpos-, outros Kaiabi procuravam trabalho, assistência à saúde e abrigo nos estabelecimentos oferecidos pelos brancos. Emprego, assistência médica e refúgio acabaram virando escravidão, doença e morte para Sabino e muitos índios. A mercadoria trazida ao Posto Pedro Dantas por Inário, funcionário do SPI, estava contaminada com sarampo. Todos os Kaiabi adoeceram. Primeiro foram dez e depois minha mãe. Nenhum branco adoeceu. O enfermeiro, 3 O roubo da alma é o principal meio pelo qual um Kaiabi se torna pajé. Esta desincorporação. apesar de involuntária e eventualmente fatal. precipita a comunicação entre seres humanos e sobrenaturais. O cosmos Kaiabi, à semelhança de outros grupos Tupi. é organizado em uma série de camadas ou domínios. habitados por diferentes criaturas : seres humanos e diversos seres espirituais. benignos ou malignos. Apesar de seres humanos e seres espirituais possuírem atributos semelhantes - podem falar. ouvir, cantar, constituir família e possuir bens materiais e animais de estimação-o os primeiros possuem uma alma (aean) que habita um corpo (aipit). enquanto os outros seres. na sua invisibilidade e "espiritualidade", podem assumir qualquer forma ou habitar, na tentativa de se fazer visíveis. qualquer objeto. animal ou humano.
1421143 Miguel Rio Branco
Antonio Pretenso, não cuidou bem da gente. Ele deu soro de cobra para os Kaiabi que estavam morrendo, para matar mais rápido. Assim que ele dava a injeção, os índios morriam. Foi assim que esse cara ajudou o sarampo a matar o povo Kaiabi ... Em duas semanas, 198 Kaiabi morreram. Só quarenta sobreviveram. Pássaros fictícios desvencilham o imaginário
Sabino e eu nos refugiamos no diálogo . Ele indaga como eu me sinto. Minhas lágrimas desaparecem no chão seco de terra batida da casa do uriat, enquanto me esforço para captar todos os detalhes da narrativa no papel. "Você escreve como um pássaro correndo ligeiro pela praia", diz Matareiup, filho do pajé. O gesto revelador toma forma nas imagens distorcidas, refletidas no pedaço de espelho que Sabino, graciosamente, fez repousar no meu colo . "Você precisa de um espelho", afirma, novamente, relembrando o palco opaco e sem luz da minha casa no Posto Indígena Diauarum, no Parque do Xingu, onde vivi, entre 1980 e 1984. A ausência de espelhos conflitava com a ontologia do homem branco, que deve conhecer o "outro" a partir do próprio reflexo numa tela . Eu chego a tremer e fechar os olhos . O uriat Sabino faz o mesmo. Em vôo, o corpo de Sabino engole o mundo. A viagem cósmica tem por objetivo identificar os seres esquisitos que habitam os vários domínios cósmicos. Equiparar anang com colonizadores revela, de modo sinistro, as causas do mal. Sabino intervém num cosmos supostamente sobrenatural, tornado menos "sobre" e muito menos "natural" ao nomear os interlocutores: agentes pacificadores, indigenistas, missionários, seringueiros, garimpeiros, prefeitos, médicos, fotógrafos , antropólogos. São os modernizadores de um "espaço vazio" -o Brasil Central. Uma arena teatral é produzida. Os índios, por sua vez, são fantasmas que assombram os homens brancos, entidades invisíveis que o desejo do colonizador não quer fixar na imagem que produz o mundo "novo". A descoberta de áreas remotas do planeta deu sustentação à perversa relação geométrica que vem permitindo aos colonizadores negar as visões terríficas, fantasmagóricas, frutos da própria crueldade deles-corpos moribundos, consumidos pela fome e por doenças contagiosas, a própria imagem da morte. Chorando a morte da mãe, Sabino viajou vários dias de canoa com o tio Kawaip, um dos sobreviventes da epidemia de sarampo, para conhecer o capitão Júlio. O irmão mais velho de Sabino, Júlio, permanecia hostil às tentativas de
144
paci!~ação.
Indignado com as notícias, Júlio resolveu voltar
à aldeia com Sabino, para matar os homens brancos que haviam assassinado os Kaiabi. Todos haviam partido, o capitão Júlio tornou-se o líder dos sobreviventes. A esperança de vingar os parentes mortos não resistiu à epidemia de sarampo, ocorrida alguns anos mais tarde. O SPI nomeou Sabino, contra a própria vontade, para ocupar a chefia do Posto Indígena Bezerra, renomeado para prestigiar outro "pacificador de índios bravos". Eu falei a eles que eu não queria ser chefe de posto, porque eu era casado e tinha filhos para criar. Eles nem ligaram. Disseram que eu seria punido, mandado para Campo Grande sozinho, para trabalhar lá. Eu não tive escolha.
o espelho
partido cai do meu colo, Sabino abriu os olhos. Envergonhada,
suo em profusão. O calor é tremendo. O pajé sugere que eu vá me banhar no rio Xingu . Eu obedeço. Na volta, Sabino pede que eu sente num pequeno tatu sem cabeça , esculpido em jatobá por Matareiup. "Os Kaiabi eram caçadores de cabeça" , diz o pajé . "Isto enlouqueceu os brancos. Nós cortávamos as cabeças depois que eles torturavam, estupravam as nossas mulheres e matavam as nossas crianças. Achavam que nós éramos bárbaros, selvagens. Começaram a nos tratar como animais ." Juliana, a mulher de Sabino, passa um objeto arredondado, todo enrolado em fio de algodão. "É o crânio de um homem branco" , afirma. "Tome, segure isto ... Você tem medo?" Dentro da cabeça, consigo reconhecer... Será que é mesmo o meu próprio cabelo, aquele que cortei anos atrás e que sumiu , misteriosamente, de minha casa no Diauarum? "Veja, é o seu cabelo! Nós usamos para uma dança. Era tão bonito, tão comprido! Agora é seu." Afasto minha visão do crânio, do cabelo, da mulher. "Onde estão seus meninos? Acostumaram-se ao tupai [faixa de carregar criança] que te ensinei a tecer?", indaga ela, enquanto amarra meus joelhos com algodão. "Você sempre amarra muito apertado", reclamo, mas ela não parece se importar. "Hoje à noite vamos dançar." Peço a Sabino que prossiga com a narrativa, mas ele pergunta sobre os meus sonhos daquela noite, sobre o que costumo sonhar durante o dia. Amedrontada, mais uma vez, o espelho corta minha mão, manchando de vermelho as folhas de papel que trazem a vida do uriat. Onde estou eu na história que escrevo? Como pôr em palavras os sonhos inefáveis que o pajé pede para narrar? Sonhei que estava caindo, meu corpo caía de um lugar de onde eu tentava escapar. Então é isso, você quer voltar para São Paulo porque tem medo de nós? Por isso você partiu anos atrás? De que mais você tem medo?
145
"Por que você está fazendo isso comigo?", pergunto, aterrorizada. "Por que você insiste em saber de mim?
Vocês, antropólogos, fazem o mesmo. Perguntas. Os meus sonhos, a minha vida. Sem entender quem você é, não posso te contar quem sou eu . Quero saber por que você não gosta de espe lh os. Estou curioso. A sua casa não tinha espelhos. Nunca vi isso em casa de branco. Por quê? Tenho a sensação de estar capturada em um campo de poder circunscrito pelo olhar de Sabino, refletido no espelho que seguro nas mãos. Será que não reconheço a minha própria imagem no vidro partido? A sensação é de que desejo ver, mas não consigo enxergar. Disfarço, fecho os olhos, mas nada traz alívio. Sab in o explica que mesmo com os olhos fechados se pode ve r. "Olhar é ter força, ter poder", diz ele. "Olhar é ter contro le da situação".
Ser o chefe do Posto Indígena Bezerra significava supervis ionar os Kaiabi que trabalhavam para os seringueiros, o que comprova a íntima articulação entre a política indigenista oficial e os interesses dos colonizadores que adentravam o Brasil Centra l no começo do século. Além dos facões, machados, foices e enxadas que foram dadas a Sabino para limpar as trilhas dos seringais, ele recebeu pano para as mulheres dos trabalhadores, uma faca, um rifle e "quinhentos cartuchos para manter a situação sob controle" . Os Kaiabi eram freqüentemente molestados sexualmente por não-índios nos se ri ngais, e Sabino deveria prevenir conflitos entre as partes. O SPI também mandou que eu contatasse os Kaiabi selvagens. Eles me convenceram dizendo que os índios poderiam estar todos morrendo de alguma doença, precisando de cuidados. Mas agora vejo que eles queriam mais escravos para fazer borracha. Kaiabi trabalha bem e conhece a mata . Então o meu primeiro trabalho foi atrair os Kaiabi arredios com espelhos, pano, anzóis, facões e outras ferramentas, prometendo que aquilo era só uma amostra . Eles poderiam ter quantos espelhos quisessem, logo, logo. Rompendo laços de servidão imaginária Voando, a visão do pajé é ofuscada pelo sol, refletido em superfícies espelhadas: telhados de alumínio, rios saturados de mercúrio, aviões reluzentes . Terra adentro, pendurados nos galhos da floresta tropical, espelhos baratos, emoldurados em plástico, estrategicamente dispostos pelos pacificadores, para estimular a imaginação da "criança" a ser domada . Zênite do homem moderno, espelhos criam ficções e produzem conhecimentos e corpos fragmentados. Qual é a ficção que cria o índio no espelho? "Sempre me pergunto por que o branco é atraído por espelhos, e por que
146 1147 lole de Freita s
eles querem que nós sejamos também. Você sabe me dizer?", pergunta o pajé, notando minha perturbação com o pedaço de vidro que ainda seguro nas mãos. De volta ao seringal, após pacificar os Kaiabi arredios de várias aldeias ao longo do rio Teles Pires, a cozinheira Akamá Kaiabi contou a Sabino que, durante sua ausência, várias mulheres haviam sido estupradas pelos seringueiros. Disposto a matar os agressores, Sabino foi acalmado pelo patrão Antonio Bernardino, que prometeu dar um jeito na situação. Bernardino me pediu para chamar os três estupradores e levá-los em uma pequena viagem no Toyota. Paramos numa clareira e ele fez os três cavarem as próprias covas. Eu mesmo tive de levá-los até a beirada dos buracos, só para assistir Bernardino dar um tiro em cada um, e todos eles caírem mortos, dentro das covas que cavaram. "Você acredita em Deus?", pergunta Juliana, tirando um crucifixo de dentro do sutiã. "Este é o Deus em que devemos acreditar, de acordo com os brancos ... Você não tem Deus", sussurra a mulher. "Brasil. Toma, faça um vestido para você". A bandeira verde-amarela, comida por traças e cheirando a mofo, é recordação do banquete grotesco que presenciei em 1982, no Posto Leonardo, ao sul do Parque. Funcionários da Funai, na época em mãos de militares, deliciavam-se, em festa de fim de ano, com pencas de uva italiana e queijo suíço, em meio aos "selvagens". Os índios tiveram de se contentar com as sobras dos pratos e um sorteio de calcinhas, meias de futebol, balas para crianças e o hino nacional. "Vocês nos dão os restos, restos de comida, restos de terra, restos de roupa, restos de remédios." "Por que você me inclui?" "Olhe no espelho, o espelho." Cansado de trabalhar para o SPI, na década de 1950, Sabino foi contratado pelos donos dos barracões de seringa como inspetor. Tinha ordens de matar seringueiros que não o obedecessem. Em troca, ganhou roupas, ferramentas, rede, cobertor e comida-leite em pó, macarrão, extrato de tomate, café, açúcar. No início dos anos 1960, recusou convite de Prepori Kaiabi, que já trocara o território tradicional, no Pará, pela "segurança" do Parque do Xingu. Não quis se mudar para a reserva. Eu não queria mudar para o Xingu porque meus patrões me davam muita comida e eu temia que no Xingu não houvesse o que comer. Mas o Prepori insistiu muito, falou que no Parque tinha de tudo. Todos os Kaiabi que
148
se mudaram para lá estavam contentes . Ele insistiu tanto que eu ace itei. Mas quando cheguei no Posto Indígena Diauarum, não vi nada. Só quatro casinhas, um barco e um campo de pouso. Nada de comida ou roupa. Hu ê hê, hu ê hu ê hu ê .. . Hu ê hê, hu ê hu ê hu ê .. . Hi ê wa, hi ê wa, hi ê hê ki ê, hê ki ê, he ki ê ... Hi ê hê ki ê, hê ki ê, hê ki ê ... Sabino canta e assopra o yawacan (apito de osso de onça). em t ranse. " Ele está chamando mamaé para te curar", revela Ju liana. " Mas eu não estou doente, estou?" "Você não tem Deus, não é? Onde está sua alma?", pergunta Jul ia na. " Provavelmente está vagando po r aí", diz ela, apontando para o céu . "Você reza? Canta?", insiste a mu lher. "Eu ... Eu ..... . Magnetizada pela cena, perco o contro le da fala. O espelho ca i no chão e se parte em dois. "Sua aéan foi capturada também, Mariana . Anang te pegou com tudo." Matareiup, fi lho de Sabino, traduz a canção do pai: Eu vejo por tudo Há um camin ho po r lá Onde ouvi a voz Uma voz baixa No meio do cami nho há um gavião No lugar onde quase me perdi Primeiro, eu não conhecia o caminho Por so rte eu tinha com ida Quase esq uec i como reza r Quase mo rri Ainda bem que nada ocorreu Quase te deixe i Vou fi cando po r aqui Assim eu amanso os animais bravos Assim eu amanso o gavião Assim eu amanso os animais ferozes para nós Quando os animais ficarem loucos Eu os amansa rei co m minha reza Tudo f oi ama nsado
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Deu tudo certo Vou rezar por nós Tudo vai dar certo entre nós "Ele está amansando os espíritos", diz Juliana. "Está nomeando cada um:
Ouacapeun madeira preta, Yurupininun boca pintada com pintas pretas, Aucoun cabelo preto, Uyupchinin flecha barulhenta, Caawot mato escuro ... Tome, segure o espelho, e não perca os sentidos." Vou amansá-los para você Vou rezar Segure firme Vou pegar o espírito para você Vou pegar e vou agarrar Não vou deixá-lo se ir
É difícil acreditar Estou falando com mamaé "Ele está tentando tirar o mamaévévé objeto mágico que está lhe fazendo mal, do seu corpo." Vai ficar tudo bem
É isso o que me foi dito " Eu vou curar"
É isso o que ele me disse "Tudo vai dar certo"
É isso o que ele me disse "Não tenha medo Nós vamos curar Eu estou aqui Eu vou cuidar daquilo que está doente"
É isso o que ele me disse Aquele que vai curar comigo Hi ê wá wá, hi ê hi ê ... Hi ê wá, hi ê wá ... Hi ê wá wá, hi ê wá ... Hi ê, hê ki ê, hê ki ê hê hê ... Hê ki ê, hê ki ê, hê ki ê... m~~~~~~~~~~~~~~~
Juliana acende o cigarro de folhas de tabaco e assopra a fumaça por todo o meu corpo, enquanto canta com Sabino. Imagens de minha juventude, meu pai, a cabeça cortada, a carne moqueada, a criança chora ... Abro os olhos e vejo linhas de luz, o espelho partido na mão de Sabino.
1501151 Edgard de Souza
...
"Era isso que estava te incomodando. Toma, guarde bem este mamaévevé para ele não machucar mais ninguém." Entre 1966 e 1974, Sabino trabalhou como cozinheiro e faxineira para Cláudio e Orlando Villas-Bôas, no Parque Indígena do Xingu. Serviu também em diferentes frentes de atração e pacificação da Funai, como as dos índios Arara, Tapayuna e Panará. Em 1967, esteve no Posto Leonardo Villas-Bôas, no sul do Parque. Fiquei apavorado. Ninguém gostava de lá. Os índios poderiam enfeitiçar minhas crianças e minha mulher não queria ir. Mas o Cláudio falou que o barco já estava esperando por mim. Ele insistia em dizer que haveria muita comida para os meus gêmeos, recém-nascidos. O homem ficou furioso e tive que ceder. E de novo a decepção: no Leonardo não havia nada. O posto estava em ruínas, e fui encarregado de fazê-lo funcionar e de manter os índios de lá quietinhos. As sensações que experimento mal permitem que tome notas. O corpo treme. a cabeça parece girar. e só com esforço consigo acompanhar a narrativa do pajé. "Por que eu?", pergunto a Sabino. "Por que o espelho?" "Eu te curei. Você é responsável agora. Você amansou o espelho. Conte às suas crianças sua história, sua própria vida. Mostre a eles o espelho. Você tem espelhos na sua casa em São Paulo?" Somente aos cinqüenta anos de idade, quando os Villas-Bôas se aposentaram, Sabino pôde se reunir com os Kaiabi do norte do Parque e plantar a própria roça, caçar e pescar para a mulher e para os filhos, sentar ao redor do fogo à noite para cantar e contar histórias. Tornou-se líder de um importante grupo Kaiabi e é respeitado por todos os povos xinguanos. Aos 62 anos, porém, ao ter a alma roubada por anang, Sabino, enfim, conseguiu descansar. Agora que consigo olhar para trás lá de cima, agora que meus braços não podem trabalhar e minhas pernas não me levam a lugar nenhum, me sinto livre. Livre para ser um Kaiabi de verdade e para sonhar com aqueles dias terríveis que se passaram e olhar para a frente. Veja o meu filho Matareiup, chefe do Posto Oiauarum, eleito pelos índios. As primeiras eleições do Parque do Xingu!
Você sabe por que insisto? Eu insisto porque nos meus vôos não consigo dissociar espelhos de minhas próprias representações da humanidade. Como um olho sinistro, espelhos favorecem o imaginário, dando movimento à imagem e ao ambiente que lhe dá sentido. Eu só pude olhar para o eu que existe em mim através dos fragmentos de um espelho partido. Do mesmo
152
modo, Sab in o construiu uma narrativa a pa rtir da perspectiva existencia l e dialógica. Sua maneira de estar-no-mundo foi enunc iada à medida que o meu próp rio ser pôde se revelar e fazer parte da história. Referências bibliográficas CLl FFORD, James. "Power and dialogue in ethnography: Marcel Griaule's initiation" in: Stocking, G. (ed.) Observers observed: essays on ethnographic fieldwork. MadisontWisconsin, University of Wisconsin Press, 1983. FERREIRA, Mariana K. Leal. Histórias do Xingu. Coletânea de depoimentos dos índios Suyá, Kayab/~ Juruna, Trumai, Txucarramãe e Txicão. São Paulo, Núcleo de História Indígena e do Indigenismo - USP/Fapesp . 1994. INSTITUTO SOCIOAMB IENTAL (ISA). Povos indígenas no Brasi/1991/1995. São Paulo, ISA. 1996. LACAN, Jacques. "The mirror stage as formative of the function of the I" in: Écrits. A selection. Nova Iorque, W. W. Norton & Company, 1977 (1966). MER LEAU-PONTY, Maurice. "Experiência e pensamento objetivo: o problema do co rpo" in: Fenomenologia da percepção. São Paulo, Martins Fontes. 1996. RABINOW, Paul. "Representations are socia l facts: modernity and post-modernity in anthropology" in: Clifford, J. & Marcus, G. (eds.) Writing culture. The poetics and politics of ethnography. Berkeley, Los Angeles, Londres, University of Cal iforn ia Press, 1986. SCHUTZ, Alfred. Problema de la realidad social. Buenos Aires, Amorrortu, 1962.
Mariana K. Leal Ferreira é doutora em Antropo logia Médica pela Universidade da Cal ifórnia em Berkley (EUA) e, atualmente, pós-doutoranda do Departamento de Antropo logia da FFLCH-USP. sob f inanciamento da Fapesp.
153
154 Ekspirro Vadim Nikitin diálogo para u m ator, elaborado a partir d o r o m a n c e Mahne
Morre,
de S a m u e l Becke«, e da peça Tio Vânia, de A n t ó n T c h é k h o v — j u n h o de 1999
quando
se
espirra,
já não se morre nesse dia — d i t o popular
1541155 Jac Leirner
cn
CJ1
...
PERSONAGEM: i; CENÁRIO: UM CORPO NO CHÃO. IMOBILIDADE TOTAL,
calmo) eis a questão. (tempo) um relâmpago arvorejando?
tando. (tempo. i desafiador) e fulano que esteja à espera do espirro? (i mais
qualquer fulano que espirre fica sendo, por um relâmpago, uma árvore gri-
tudo aqui ao redor já é uma árvore plantada em mim. porque logicamente
só a pilha que está fraca
quanto tempo eu estou assim? (tempo) não, o relógio não parou. (tempo) é
nunca passaram por isso. às vezes até um espirro demora a chegar. há
eu estou esse i porque eu estou esperando um espirro, não me digam que
de pé ou deitado? nunca se sabe
humana do espirro de vocês fosse esse i que vos fala
nho. e vocês aí me olhando, como se a luz, o bichinho ou a cosquinha
mentira. não há narinas nem dedos. aliás, nem luz, embora talvez um bichi-
quer dizer, capazes de espirrar (i ri) sem cosquinha humana de nenhum tipo
um pra nos dar nada menos do que a esperança de um dia sermos felizes,
vital. às vezes nos tiram sono, sangue, sopa, mas em compensação basta
sábia. (i saudoso) mesmo esses bichinhos têm função assegurada no ciclo
de qualquer uma das minhas duas narinas ... a natureza, apesar de tudo, é
cravado no dedão do meu pé direito se instalasse um segundo na mucosa
quando se está esperando um espirro. ou, por outra, se o bichinho que está
olhando fixamente pra essa luz, recomenda-se olhar fixamente pra luz
(i utopista) se se acendesse uma luz em algum lugar. .. eu poderia ficar
menos - deixa pra lá
dizer: ah!, só isso' ah, só isso. i de isso. eu conheço gente que por muito
(i grave) eu estou assim porque eu estou esperando um espirro. vocês vão
um número sempre vale uma coisa certa, enquanto esta letra torta
um i, logo eu (i suspira), que tanto queria ser um número quando crescesse,
longe do corpo, i de caligrafia de bilhete de suicida (i ri), esse aí sou eu, eu!,
- i, um i, o pingo é a cabeça, longe do corpo, quase outro corpo de tão
lUZ: A MíNIMA POSSíVEL
QUEBRADA APENAS POR PEQUENAS AÇÕES DA CABEÇA E DAS MÃOS;
.....
."
...
Vadim Nikitin diretor dramaturgo
puta que me pariu . foi só um bocejo
ó ã ã ah ah AH
olha ó ó ó ó eu acho que chegou a hora agora vai vai eu acho que ó ó eu ó ó
bamba de baba mendigo sem emenda i de fim i no meio o resto é lucro i i i
quem? não deixa eu logo eu ah cosquinha humana que nojo ekspirro corda
queria poder até que enfim tapar a boca mas ah a língua rabo abanando pra
que já tomei todas as precauções só falta a boca o último dos buracos eu
um pó um pólen uma porra gritantes o bastante pra me pra me pra eu juro
um ventinho (i à beira do choro) se pelo menos um ven tinho à toa trouxesse
ekspirro é esperar um filho
perdão, a culpa não é minha . façam o que quiserem comigo-esperar um
como vocês podem ver, perde-se um pouco em mobilidade
chabu. (tempo) essa névoa? gases antigos. (tempo longo) infelizmente,
que não saia nada. eu, por mim, já tomei as minhas precauções pra não dar
todos os buracos do corpo, sem exceção (tempo. i de boca fechada)-pra
nhum tom professoral) quando se vai ekspirrar, convém apertar muito bem
isso precisa ficar mais claro nas nossas aulas de boas maneiras. (i sem ne-
não pode ser além de tudo cagar fora a alma? sim , sem querer, concordo.
tiquinho espirrando, sim, sem querer. (tempo) então por quê que ekspirrar
(i tosse diplomaticamente) às vezes também se peida ou até se caga um
escapar. expirare, ekspirare-ou seja, morrer. (tempo) latim , ora pitombas.
esp irrar, expirare-ou seja, evaporar-se, lançar soprando, exalar, deixar
não, isso aqui não é papel. papel não tem pêlo
etc.? (tempo. i mais calmo) até aí tudo bem, não vou pensar no pior
escrever em cima de mim? me (i soluça) apagar? me dobrar em aviãozinho?
papel? (i em desespero crescente) então vocês podem tirar xérox de mim?
matamoscas, papeljorn al, papelhigiênico, papelparede, papelmoeda? que
é papel ? (tempo) então estou impresso? em que papel , meu deus? papel-
i sem sombra no papel. a propósito (i cola a bochecha no chão)-isso aqui
(tempo) coisa estranha, o espirro. (i virando a cara) nome de palhaço, é claro
plo, fazem atchim diferente, como fazem au au diferente e ui ui diferente.
(i mostra a língua). espirro não é palavra. e no entanto os russos, por exem-
vem e pronto. mistura de DE REPENTE e de DESDE SEMPRE-daí a careta
procedimento é espi rrar mesmo, foda-se. e o espirro não vem . (tempo) não
a vida nos re se rva momentos em que, não obstant e a etiqueta, o melhor
158 Clones—do grego broto Sylvia Caiuby Novaes
1581159 Tempos modernos
A PREOCUPAÇÃO COM AS ORIGENS DA HUMANIDADE E DA SOCIEDADE
sociedade e dos sistemas de parentesco. Não mais se poderia entender a
européia em particular marca o período inicial da história da antropologia. As
proibição do incesto a partir de razões de eugenia, da busca de proteção da
questões evolutivas estão presentes, desde o final do século passado, tam-
espécie pelos resultados nefastos advindos de casamentos consangüíneos.
bém nas outras disciplinas que se debruçam sobre o ser humano, como a
Afinal, diz Lévi-Strauss, o que a psicanálise demonstrou não foi a repulsa por
paleontologia, a biologia e a psicanálise. Mas esta não é simplesmente uma
relações incestuosas, mas exatamente que o incesto é um desejo universal.
característica típica das ciências que se desenvolvem a partir do século XIX
Para Lévi-Strauss, a sua proibição expressa a passagem do fato natural
na Europa. Nas mais diferentes sociedades, os mitos de criação estão pre-
da consangüinidade para o fato cultural da aliança (idem:66). Tanto a natureza
sentes, numa busca de reflexão sobre os fundamentos da vida social, da pas-
quanto a cultura operam a partir de um duplo mecanismo: o dar e o receber.
sagem de uma natureza indiferenciada e desprovida de regras para a cultura,
Em termos de natureza só se dá aquilo que se recebe. Passamos para nossos
em que o homem se afirma como ser que se apropria da natureza, cons-
filhos a herança genética que recebemos, a herança genética que expressa
truindo uma paisagem física e socialmente diferenciada. Origens, evolução, natureza e cultura são temas que motivaram gran-
exatamente essa permanência e essa continuidade. Já no domínio da cultura, em relação à educação, o indivíduo recebe sempre mais do que dá,
des antropólogos, arqueólogos, paleontólogos e psicanalistas. Seria pos-
para em seguida dar muito mais do que irá receber. No que diz respeito ao
sível pensar e comprovar cientificamente a passagem da natureza para a
parentesco biológico, a cultura é impotente. A herança de uma criança está
cultura? Como pensar a espécie humana a partir dessas duas grandes cate-
integralmente inscrita no cerne dos gens transmitidos por seus pais.
gorias? Onde termina a natureza, onde começa a cultura? São perguntas
Mas se a cultura é impotente no que diz respeito à filiação, em que a
que Lévi-Strauss também se fazia e que o levaram a escrever As estruturas
natureza domina, não é isto que ocorre com a aliança (idem, ibidem). Na natu-
elementares do parentesco, livro publicado em 1949, inaugurando os estu-
reza, a aliança é condição necessária para a sobrevivência da espécie, entre-
dos estruturalistas na Antropologia. Para responder a essas questões, Lévi-
tanto a natureza não determina seu conteúdo. "Se a relação entre pais e
Strauss detém-se no tabu do incesto. Para ele:
filhos está rigorosamente determinada pela natureza dos primeiros, a
'A proibição do incesto não tem uma origem puramente cultural e nem
relação entre macho e fêmea está sujeita apenas ao acaso e à probabili-
puramente natural. O tabu do incesto constitui o movimento fundamen-
dade" (idem:67). A aliança tem, assim, um caráter arbitrário. Nela, diz Lévi-
tai graças ao qual, pelo qual e sobretudo no qual se cumpre a passagem
Strauss, a cultura reina soberana. Pela regulamentação dos casamentos, a
da natureza para a cultura" (1969:58-59).
cultura assegura a permanência de um grupo como tal, substituindo o acaso
Essa perspectiva coloca num novo patamar as discussões, no âmbito das
pela organização. A proibição do incesto é, nesse sentido, o grande ato de
ciências humanas, a respeito da relação entre estado de natureza e estado de
intervenção da cultura sobre a natureza (idem:68).
Para Renée Castelo Branco, com quem comecei a discutir este tema.
160
Em 1949, quando essas reflexões de Lévi-Strauss passam a dominar o
gem da natureza para a cultura eram temas de debate das mais diversas
cenário das ciências humanas, a genética ainda não era alardeada como a
áreas do conhecimento, só recentemente essas disciplinas voltam-se com
área do conhecimento que poderia transformar ficção científica em reali-
mais ênfase para a questão dos destinos da sociedade, da reflexão sobre
dade. Tampouco as novas tecnologias de reprodução humana eram ampla-
seu futuro. As questões ecológicas, a extinção de populações inteiras em
mente difundidas. Vale lembrar que as idéias de Lamarck a respeito da
diferentes partes do globo, principalmente a partir da Segunda Guerra
hereditariedade são do início do século XIX; as teorias de Mendel sobre
Mundial e, mais recentemente, as novas tecnologias de reprodução ani-
transmissão de características hereditárias em seres vivos datam de 1866,
mai, colocam para a antropologia novos temas e novos desafios. Já não se
mas as primeiras tentativas de fertilização in vitro só vão ocorrer em 1944. E
trata de buscar as origens de instituições como a família , a propriedade, o
foi só em 1978 que nasceu Louise Brown, o primeiro bebê de proveta. Nessa
Estado, as grandes religiões, mas entender para onde vamos, o que o
época, o campo da hereditariedade, no qual a natureza ainda reinava, come-
futuro nos reserva. Como diz Franklin Leopoldo e Silva , torna-se cada vez
ça a ser gradativamente invadido pela cultura, que ainda não reinava soberana
mais importante avaliar os focos de conflito entre o avanço do conheci-
e já se imiscuía de modo cada vez mais presente.
mento e sua utilização para a promoção da vida humana (1997: 185). Se
Mas se a preocupação com as origens da humanidade e com a passa-
antes o cordeiro de Deus tirava os pecados do mundo, hoje é a ovelha
161
Dolly e as experiências de lan Wilmut na Escócia que nos colocam frente
consciência e ato. A pessoa é, assim, uma substância racional, indivisível,
a novos desafios.
individual.
Meu objetivo aqui não é discutir a clonagem de seres humanos em ter-
"Cada pessoa humana é um ser único e irrepetível, feito de corpo cor-
mos éticos, genéticos, filosóficos ou religiosos. Interessante é pensar os
ruptível e alma imortal, indissoluvelmente unidos no autêntico composto
valores envolvidos nessa forma de reprodução humana, discutir o que está
humano", diz o cardeal-arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, presidente
em jogo, entender o que significa a noção de pessoa que forjamos ao longo
da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Dom Lucas Moreira
de séculos, ter como horizonte próximo esta possibilidade de clonagem. É,
Neves, num artigo de O Estado de S. Paulo, a propósito das recentes expe-
portanto, a partir de uma perspectiva antropológica que pretendo desenvolver
riências sobre clonagem.
essas reflexões. Comecemos pela noção de pessoa.
O que está em jogo nas discussões sobre a clonagem humana não são
Num artigo hoje clássico, Marcel Mauss busca investigar a noção de
apenas valores judaico-cristãos dessa pessoa que se pensa como única
pessoa a partir de uma pesquisa de direito e de moral, mas na perspectiva
(portanto, não duplicável) em termos de consciência, direito, vontade e
da história social - como, no decorrer de séculos e nas mais diversas socie-
moral. O que está também em jogo aqui são as concepções que a civilização
dades, se estabelece a noção que os homens criaram a respeito de si
ocidental desenvolveu a respeito daquilo que é fruto da criação humana, e
próprios? Mauss detém-se nas várias formas que este conceito assumiu na
que se impregna desse caráter de originalidade única.
vida dos homens, para chegar à noção de pessoa como fato do direito e fato
As reflexões de Benjamin no início deste século a respeito da cópia e da
da moral. Às funções, às honras, aos cargos, aos direitos presentes na con-
reprodução da imagem artística antecipam, de certo modo, as discussões
cepção latina de pessoa, acrescenta-se a pessoa moral consciente. Com os
sobre as novas tecnologias de reprodução . Em "Imagens sem objeto", Olgá-
gregos, a consciência de si passa a ser apanágio da pessoa moral (1968:356).
ria Matos (1991) mostra como, em suas reflexões sobre Paris e Baudelaire,
A noção de pessoa humana, tal como hoje a concebemos, é, segundo o
Benjamin denuncia a perda da capacidade do olhar nas grandes cidades. A
autor, a cristã . O homem tout court, a pessoa humana, é uma entidade meta-
perda da dimensão do olhar significa a dissolução do sujeito. Não há mais
física: "nem judeu, nem grego, nem escravo, nem livre, nem macho, nem
sujeito verdadeiro em um mundo onde as leis de mercado regem a vida de
fêmea, mas um em Cristo" (idem:357). A unidade da pessoa está ligada à
cada um.
unidade da Igreja por relação à unidade de Deus. Trata-se da unidade de três
O vidro é a expressão paradigmática dessa perda. Benjamin mostra o
pessoas-a Trindade, e unidade das duas naturezas de Cristo. A partir
vidro como uma matéria tão dura e lisa que nela nada se fixa. As coisas de
dessa noção de um cria-se a de pessoa, não apenas da pessoa divina mas,
vidro não têm nenhuma aura. O vidro é o inimigo do mistério. Construção
ao mesmo tempo, da pessoa humana, substância e modo, corpo e alma,
em vidro não deixa rastros . Na cidade dominam as vitrines, que expõem,
162 1163 Dolly
"ligam o exterior e o interior, mas ao mesmo tempo devolvem a imagem,
dados preciosos a respeito de nosso fascínio e temor quanto a essas novas
refletem" (idem:30). Não é um reflexo como o do espelho. É um reflexo que
técnicas de reprodução . O que nos apavora? A possibilidade de autonomia
provoca uma superposição de imagens. Nas grandes cidades, "as relações
da cópia?
entre os homens são caracterizadas pela predominância do olhar, mas de
Num romance como Frankenstein, de Mary Shelley (1818), o monstro
um olhar que não vê, a não ser na multiplicação de imagens, em sua super-
concebido pelo médico passa a ter autonomia e, ao fugir do laboratório
posição exterior como simulacro, onde não é possível distinguir entre o mo-
onde havia sido criado, acaba por matar as pessoas afetivamente ligadas a
delo e a cópia" (idem, grifos meus). A imagem, para Benjamin, não encontra
seu criador: o irmão, a noiva, o amigo de Frankenstein . Pessoas que cons-
seu lugar em nenhuma realidad e. São conhecidas as crítica s de Benjamin ao processo de reprodução da
tituem víncu los que ele, sem nome, de uma fealdade monstruosa, feito a
imagem que leva à perda da aura, do hic et nunc do objeto artístico. A perda
de relacionamento de um ser desprovido de parentes, de vínculos sociais
da aura, diz o autor, remete ao rTl undo das mercadorias, da reprodução em
(que pode também ser visto como uma crítica à destruição da família pela
série, das fantasmagorias. A unidade da presença de uma obra de arte, no
industrialização que começa a tomar impulso na Europa). o romance de
próprio local em que se encontra, é a garantia de sua autenticidade. A atua-
Mary Shelley aponta para o poder da ciência, para o fascínio de um conheci-
partir de partes de corpos de cadáveres, não possuía. Além das dificuldades
lidade permanente de um objetO de arte, por meio das técnicas de repro-
mento que da morte procura criar a vida, tornando o tempo reversível. Mas
dução da imagem e do som, que permitem a visualização e a audição em
a obra aponta também para os riscos do cientificismo.
qualquer circunstância, retiram desse objeto artístico sua autoridade. Se
Angustiado com sua solidão, o monstro pede a Frankenstein que lhe
antes a arte era acolhida como objeto de culto, a ser contemplada/ouvida
faça uma mulher. O cientista concorda, mas desiste no meio do caminho, ao
em igrejas e museus, a partir da sua possibilidade de reprodução é o valor
perceber que estaria, assim, criando uma raça de monstros, sobre a qual não
de exibição que toma o primeiro plano. A presença do objeto artístico inde-
teria o menor controle. O romance desnuda esse processo de al iena ção no
pende do original; o objeto reproduzido pode agora encontrar-se em locais
qual aquilo que é produzido pelo homem adquire autonomia, podendo inclu-
e situações jamais imaginadas por aquele que o concebeu. Podemos ver a
sive voltar-se contra ele.
Mona Lisa de Da Vinci reproduzida numa lata de óleo ou ouvir Bach enquan-
Também em Blade Runner (1982). as criaturas vo ltam-se contra o criador.
to tomamos banho. As questões suscitadas por Benjamin com relação à reprodutibilidade
característica marcante dos replicantes do filme de Ridley Scott. Se a ciên-
técnica da obra de arte podem ser retomadas para a questão da clonagem
cia pode criar, duplicar ou clonar corpos, esses são desprovidos de aura.
de seres humanos. A literatura, a ficção científica, o cinema, fornecem-nos
164
O monstro criado por Frankenstein não tinha emoções, e esta também é a
Convivemos tranqüilamente com clones naturais-os gêmeos univite-
linos. Mas não pensamos em gêmeos idênticos como clones, pois para nós
Um pesquisador norte-americano de nome sugestivo - Richard Seed -
são obras do acaso, sem intenção. Na criação de gêmeos, como em qualquer
afirmou que está pronto para gerar um bebê clon e e tem já a sua disposição
processo de reprodução sexual não assistida, é a natureza que reina, e não
oito voluntários, entre os quais quatro mulheres que serão mães de aluguel
a cultura. Não admitimos o clone feito pelo homem. Afinal, quem selecionará
para os futuros clones (Veja, 14 jan. 1998). Fato ou blefe, suas declarações
as características clonáveis?
provocaram reação imediata por parte de cientistas, líderes religiosos e
Nas várias discussões a respeito do clone humano, percebe-se também
chefes de governo. Não é para menos. A concepção, o nascimento e a morte
uma retomada da crença em uma naturalização do homem - a reprodução
são pensados pela sociedade ocidental como eventos em que a natureza
genética garantiria a reprodução de um ser que é social. Logo após o anúncio
deve reinar soberana. São também campos em que a esfera religiosa não
das experiências de Wilmut. os jornais noticiaram a história de um casal que
admite intervenções, campos em que os deuses da ciência devem subor-
a custos conseguira ter um filho e que aos 17 anos fora assassinado. Esse
dinar-se ao deus criador. Nesse sentido, as discussões a respeito da clona-
casa l agora tinha esperanças de clonar o filho perdido.
gem humana devem ser entendidas também a partir dos va lores presentes
Assim como os transplantes, que tanta celeuma causaram logo que
em temas que vêm sendo discutidos há mais tempo, como o aborto ou a
começaram a ser realizados, a possibilidade da clonagem humana apavora .
eutanásia . De certa forma, tanto o aborto e as técnicas anticoncepcionais,
165
quanto a clonagem humana, implicam uma idéia que a Igreja não adm ite: a
em duas condições: "a constância e a continuidade de uma existência no
separação entre sexua lidade e procriação.
interior de um corpo de/imitado, e a diferença entre este psicossoma e todos
Concepção, nascimento e morte são todos processos ligados ao corpo humano. Técnicas anticoncepcionais, aborto, eutanásia, clonagem, implicam
os demais, diferença a ser reconhecida não só por mim mesmo, mas ainda pelos outros com quem convivo" (Mezan, 1988:255, grifos meus).
intervenções nesses processos que tendemos a pensar como absoluta-
Se por um lado a idéia de clonagem seduz, porque de alguma forma
mente naturais (mesmo que não o sejam). ou como fruto de uma vontade
parece garantir a tão sonhada imortalidade, também apavora. Temer a clona-
divina. Será frutífero tentar entender nossas reações a essas intervenções a
gem é temer a ausência da diferença, pois conhecemos o destino fatal
partir das reflexões de antropólogos sobre o idioma da corporalidade como
reservado a Narciso.
a principal via de acesso para a compreensão das sociedades indígenas brasileiras (Seeger et alii, 1979). Também entre nós o corpo pode ser pensado como matriz que articula significações sociais e cosmológicas. Também aqui dados sociais podem ser pensados a partir de processos corporais. E é exatamente dessas associações que os filmes de ficção lançam mão. Será interessante fazer uma reflexão mais aprofundada sobre as transformações e adaptações por que alguns de nossos principais va lores terão que passar: nossa crença tão arraigada no indivíduo como ser único e indivisível, as noções de original e cópia que após o turbilhão causado na esfera artística terão que ser digeridas para se pensar o ser humano, as reflexões de LéviStrauss sobre o tabu do incesto como elemento-chave para pensar a passagem da natureza para a cultura, e a reciprocidade como base da vida sociai. A crença de que uma reprodução genética garantiria a reprodução de um ser que é social faz com que o clone mexa também com nossos processos de formação de identidade e percepção de si, sobre os quais já me detive em trabalho anterior (Caiuby Novaes, 1993). A diferença geracional é um dado sempre presente quando nos vemos em nossos filhos ou nos espelhamos em nossos pais . O sentimento de identidade, como diz Mezan, implica
166 1167 Fernando Cardoso
Referências bibliográficas BENJAMIN, Walter ''A obra de arte na era de sua reprodutibi lidad e técnica" in: Obras esco-
lhidas, magia e técnica, arte e política. São Paulo. Brasiliense. 1996. CAIUBY NOVAES. Sylvia. Jogo de espelhos. imagens da representação de si através dos outros. São Paulo. Edusp. 1993. LEOPOLDO E SILVA. Franklin. "O biofilho" in: Bioética. vol. 5. n.2. pp. 185 -193. 1997. LÉVI-STRAUSS. Claude. Las estructuras elementales dei parentesco. Buenos Aires. Paidés. 1969. MATOS. Olgária. "Imagens sem objeto" in: Rede imaginária, televisão e democracia. São Paulo. Companhia das Letras. 1991 MAUSS. Marcel. "Une catégorie de I'éprit humain: la notion de personne. celle de moi" in Sociologie et anthropologie. Paris. Presses Universitaires de France. 1968. MEZAN. Renato . A vingança da esfinge, ensaios de psicanálise. São Paulo. Brasiliense. 1988. MOREIRA NEVES. Dom Lucas. "O parque dos clones" in: O Estado de S. Paulo. p. A2. São Paulo. 12 mar. 1997. "O homem que queria ser Deus" in: Veja. São Paulo. 14 jan. 1998. SEEGER. Anthony. DA M ATIA. Roberto. VIVEIROS DE CASTRO. Eduardo. "A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras" in: Boletim do Museu Nacional. n. 32. Rio de Janeiro. maio 1979. SHELLEY. Mary Frankenstein . Lisboa. Estampa. 1972. _ _ _ _ o
Sylvia Caiuby Novaes é professora doutora do Departamento de Antropologia da FFLCHUSP e coordenado ra do GRAVI (Grupo de Antropologia VisuaI/USP).
168 Palavras d o c o r p o na c o m p a n h i a de R o d r i g o P e d e r n e i r a s FlorĂŞncia Ferrari, Paula Miraglia, Rose Satiko Hikiji e ValĂŠria M a c e d o
ENCONTRAMOS RODRIGO PEDERNEIRAS, COREÓGRAFO DO GRUPO Corpo, um dos expoentes da dança contemporânea no Brasil, durante a turnê paulista de Benguelê, em novembro de 1998. No bom estilo mineiro das conversas de bar, entre cervejas e amendoins, destilamos experiências, estilos e escolhas de uma trajetória que vem promovendo contradanças entre o popular e o erudito, a dança de rua e o balé clássico, a técnica e a brincadeira. O espetáculo Maria Maria, com trilha sonora de Milton Nascimento e coreografia de Oscar Araiz, foi o marco inicial. Entre 1975, ano de fundação da companhia, e 1999, o Corpo já dançou mais de 23 balés, no Brasil e no exterior, a maioria deles criada por Rodrigo Pederneiras , que estreou como coreógrafo da companhia em 1985, com o balé Prelúdio, sobre música de Chopin . Um olhar sobre o repertório do grupo revela uma unidade estrutural em sua linguagem corporal, explicitada em uma dança que parte de movimentos de quadris e bacias, quebra as linhas rígidas do balé clássico, evita o salto, "cola no chão". Contudo, o clássico ainda impregna a rotina de criação e a prática da companhia. Nas coreografias, encontramos tendus, batiments, ou arabesques ressignificados, traduzidos para uma linguagem autoral do Grupo Corpo. Toda preparação corporal dos bailarinos é baseada em aulas de técnica clássica, que é (re)quebrada nos ensaios dos balés. Uma carreira que já vinha se solidificando, com peças consagradas como
Maria Maria, Prelúdio e 21, foi impulsionada a partir de 1989, quando a Shell passou a patrocinar o trabalho do grupo. Com contratos de longa duração, renovados até hoje, a companhia conseguiu uma estabilidade que garante a periodicidade na criação de novos espetáculos. Fundamental no gerenciamento da companhia é a sua organização "familiar". Além do próprio Rodrigo, integram o Corpo os irmãos Pedro, Paulo e Miriam Pederneiras, respectivamente engenheiro de palco, diretor artístico-administrador-iluminador e ex-bailarina e, hoje, assistente de coreografia. À família, unem-se a arquiteta Freuza Zechmeister (figurinista) e Fernando Velloso (cenógrafo), amigos de longa data. A música é, para Rodrigo Pederneiras, a principal fonte de inspiração. As produções tiveram como ponto de partida obras de compositores eruditos estrangeiros, como Bach e Mozart, e brasileiros, como Villa-Lobos e Carlos Gomes. A partir dos anos 80, o Corpo adota a estratégia de parceria com músicos contemporâneos, como Philip Glass e grandes nomes brasileiros, que compõem trilhas especialmente para o grupo. A estréia, em 1982, foi com os mineiros do Uakti. Desde então, o Corpo vem dançando trilhas com
169
diversos sotaques lo ca is, desde Tom Zé e Zé Miguel Wisnik até, recentemente, João Bosco e Arnaldo Antunes. Convidamos o leitor a partilhar um cadinho dessa conversa. Como você e seus irmãos se articularam como membros desse Corpo? A dança é uma herança familiar? Que nadai Meu pai é um engenheiro, careta, católico. A gente teve uma educação muito rígida. Ele sempre foi muito sério, e minha mãe era porra-louca do jeito dela, caladinha , mas daquelas "para os filhos tudo pode". A certa altura dos acontecimentos, meu pai viu que tinha seis filhos e os seis - na década de 70 em Belo Horizonte - iam ser bailarinos. Ele pirou! Esse foi o gesto de grandeza do meu pai: era absolutamente contra, mas viu que não tinha jeito, então procurou a melhor maneira de ajudar, dando simplesmente a única casa que tinha e mudando para um apartamento alugado. Parece haver no Corpo uma tendência de criação a partir de referências da tradição popular brasileira, A elaboração dos espetáculos inclui pesquisas sobre danças, festas e elementos da nossa chamada cultura popular? Jamais faço pesquisa. Em Bengue/ê, por exemplo, tem congada, tem folia de reis, quadrilha, essas brincadeiras .... Eu nasci nesse meio e freqüentei muitas festas do interior, mas nunca me vi pensando: "eu vou utilizar isso". Acho que procurar as coisas no nosso quintal foi um processo que veio com a idade, com o tempo, com o nosso amadurecimento. Aí se começa a voltar mais para as suas coisas, cheiros ... E como o Grupo Corpo dialoga com essas influências? A dança brasileira é uma dança de rua, sensual e bem característica. A partir daí, buscamos uma linguagem nossa. Mas o que seria isso' De onde partiria? Selecionamos pontos básicos dessa dança popular e, então, desenvolvemos uma outra coisa . Desde 82 até agora, o que a gente tenta fazer é isso: desenvolver uma linguagem que seja facilmente reconhecível como brasileira, que as pessoas olhem e digam: "isso só pode ser feito no Brasil, ou pelo menos abaixo da linha do Equador". O europeu não faz, o americano não faz. Com o tempo, fomos aprimorando essa linguagem e hoje o grupo tem um perfil muito claro, muito definido, uma forma de dançar, um estilo coreográfico pessoal. Daqui a alguns anos, estamos pensando em codificar esse trabalho e desenvolvê-lo de forma didática. Não trabalhamos com coisas já prontas: tendu, pirueta, não sei o quê ... O que estamos tentando criar é um vocabulário nosso. A ênfase em explorar os planos médio e baixo vêm dessa gestualidade? Tem a ver com a forma das danças populares. O Candomblé tem muito disso também . Acho que o que nós temos de mais rico como influência na nossa cultura é esse lado negro. Existem aspectos pontuais em cada espetáculo que identifiquem uma estrutura com esse vocabulário particular do Grupo Corpo? A base da grande
170 1171 Grupo Corpo
maioria das danças populares é a bacia, como é o caso do samba. A bacia
é o centro do corpo, é o que faz o resto acontecer. A intenção é que a movimentação parta sempre dela. Mas, a cada espetáculo, dependendo do que se vai fazer, é preciso mudar a resposta do resto. Isso é que você vai dar a particularidade para o trabalho. Mas é tudo muito chão. A grande dificuldade para alguns bailarinos é que não trabalhamos mais com saltos. E quando se estuda dança, se aprende a dar salto, salto, salto ... E os nossos saltos não são saltos. A maior dificuldade das pessoas é isso: é tudo muito colado no chão. Por mais que se salte, é uma coisa de estar sempre aqui (bate nas pernas).
Além da centralidade do quadril, podemos dizer que a brincadeira e o despojamento são outras marcas estruturais do Corpo? São. Outra coisa que vem das danças populares é a tentativa de criar um tipo de dança que seja mais dinâmica do que formal. No balé clássico, aprende-se o passo que é "um e dois e três e ... ", mas depois existe um tempo para que isso entre no corpo e aconteça de uma maneira diferente. O trabalho é desmanchar essas linhas, essas formas tão definidas, e privilegiar um novo lado. Desse modo, se dá muito mais liberdade para o bailarino. Depois que aprendeu a movimentação, ele coloca uma forma própria de ser. Acho que o tesão é muito maior para dançar quando cada um encontra sua maneira. Você acredita que, no futuro, além de aprenderem balé clássico, as pessoas terão aulas de "balé Corpo"? É o que pretendemos: desenvolver uma linguagem para ser utilizada como matéria didática. Mas nunca deixaremos de fazer clássico. É fundamental. Se você olha Bengue/ê, acha que não precisa de clássico. Mas ponha uma pessoa que não tem a técnica clássica para fazer isso: não faz mesmo! Tem que ter a técnica e, depois que a adquiriu, desmanchá-Ia. Como você sintetizaria o corpo do brasileiro? Acho que existe uma soltura muito maior na maneira de ser. O jeitinho brasileiro, do qual as pessoas
falam mal, eu acho uma maravilha! Existe uma malemolência, as pessoas caminham de um jeito diferente. As mulheres são mais sensuais . Acho que é essa mistura sangüínea que a gente tem. Quanto mais pura é a raça, que não é o nosso caso, o campo de visão vai se fechando e isso tudo se reflete no corpo. Não sei, nunca pensei nisso assim ... E como é o corpo do bailarino do Corpo? Não interessa se o bailarino é gordo, magro, preto ou branco. Em vez de ficar importando com esses físicos tão definidos, optamos pela variedade. Acho que não tem que diferenciar homem e mulher também. O nome Grupo Corpo veio da idéia de uma companhia de dança que fosse uma corporação: nunca tivemos primeiro bailarino nem solista. Na Europa, em uma época que só tinha uma preta na companhia (que está agora com a Pina Bausch), uma jornalista indignada veio perguntar porque só tinha uma negra no Corpo e nenhum homem negro. O Pedro virou
172
pa ra ela e disse: "a gente até tinha homens pretos, mas eles tinham uns dentes tão bons que nós os vendemos" ! Os bailarinos da companhia são muito gostosos, muito bonitos, não tem aquela estética do esquelético, do ascético. Eles são sensuais e têm um olhar provocador dirigido à platéia. Eu cost umo dizer pa ra eles: sejam
sacanas ! A sacanagem é o que torna as co isas sensuais . A com panhia tem um pessoal muito lega l. Essa fo rma de a gente traba lhar tem harmon ia, brincadeira, saca nagem que vira saca nagem mesmo e que é tão sadio !! E seus bailarinos também bebem e fumam como você ou eles levam uma vida mais ascética? Fuma-se e bebe-se pra cacete! É claro que se você pega r
o Ameri can Ball et, as bai larinas t êm 1,80 m e pesam 45 quil os, todas iguaizin has. M as até aí, falar que ba il arino t em que ser assim, é conversa f iada. Aqui se cai na lama mes mo ! Você acha que aqui alguém dorme antes das t rês horas da manhã? Como vocês se relacionam com o público no exterior? Os contornos dessa "brasilidade" do Corpo ficam mais definidos? Ficam que é uma loucura ! Na
Europa, a galera pira com Parabe/o. É coisa de dez minutos batendo pé e palma! Mas é só no campo da arte que existe interesse. A gente e merda são a mesma coisa para eles. Há uma tendê ncia: "vamos ver ba nana, porq ue é bom ver banana, é bo m ver bun da". E no fu ndo a cu lpa é nossa porque, prin cipalm ente durante o período militar, para atrair turista, o que se vend eu foi bunda. A bunda é a melhor coisa do mun do! O que não é lega l é a bunda da mu lata estereotipada, da mulhe r que ti ra a ca lça, rebo la e senta no co lo do tu rista. É muito legal no Carnaval, mas não é só isso a cu ltura brasileira. Acho que grande parte do turismo sexua l foi impulsionado por isso. Mas é cu lpa nossa, do governo militar. Com exceção da mús ica brasileiraque é mais conhecida porque é de quali dade e é uma coisa que eles não fazem mesmo - acho que passamos anos querendo engoli r, po r mais quad rado que descesse, essa cu ltura euro péia do "ve lh o mundo" . E os militares não mostravam nada lá f ora além de ba nana e bu nd a. Foram vinte anos e isso não se desfaz em pouco tem po. Mas quando assistem a um espetác ul o, com um t ipo de movimentação e de dinâm ica que para eles é completamente novo, e ainda por cima com um acabamento que é raro ver inc lusive lá, enl ouquecem! No fundo, es peram ver uma coisa exótica , mal acabada, malfeita. A crítica se espanta co m nosso acabamento nos espetácu los. Como vocês refinam isso para não cair no exótico, na "banana"? Acho que as pessoas faze m mu ito o segui nte: pegam a capoeira e trazem da ru a pa ra
o palco . Mas a capoeira não prec isa di sso. A rua é o lu ga r dela. O t em po todo você prec isa beber em ce rtas fontes, mas tentand o faze r um a out ra co isa. Não é pega r aq ui lo que está ali, trazer para o pa lco, iluminar bonitin ho e pronto: é dança conte mpo rânea .
173
No que diz respeito ao repertório musical, você poderia falar um pouco da relação entre o erudito e o popular, o regional e o universal, nas escolhas do Corpo? Depois de Maria Maria, nós começamos a trabalhar a partir de
compositores eruditos. Na verdade, fomos um pouco na contramão da época, porque existia uma tendência violenta no meio de dança de não se aceitar nada que não fosse brasileira. Só que a gente via espetáculos que tratavam desses temas com uma linguagem que não tinha nada de brasileiro. Ainda se usava muito o clássico, muita pirueta, muito arabesque, não sei o quê ... Então era: "oh, vou morrer: quinze piruetas e pluff". Como eu usava muita técnica clássica, comecei a trabalhar com os compositores eruditos brasileiros. No início dos anos 80, houve uma guinada. Sempre escutei mu ita música e, basicamente, música erudita. A princípio, começamos com compositores brasileiros: fizemos Nepomuceno, Henrique Oswald, Villa-Lobos, Carlos Gomes. Depois, começamos a convidar músicos que compusessem para a companhia. O primeiro foi o Uakti , em 82, quando fizemos o 21. A partir de então, passamos a pensar de outra maneira, enfatizando um tipo de dança brasileira, sem abrir mão do nosso modo de trabalhar: sem contar história, sem narrativas, sem fazer teatro e buscando temas brasileiros de forma subjetiva. A música também segue essa direção? Sim. Por exemplo, em Bengue/ê, convidamos o João Bosco . Esperávamos explorar o lado negro que influencia sua
música, mas ele compôs uma trilha clássica, pensando em ba lé. E era tudo o que não queríamos l A gente queria o João Bosco ! Ele pegou o violãozinho dele, foi para Belo Horizonte e ficou quatro dias. E a trilha foi composta na cantina do Corpo. A gente ficava tomando cafezinho, comendo pão de queijo e vendo os temas. Em quatro dias, ele saiu com outro esboço de trilha. Quando foi entrar no estúdio, aceitou várias de nossas sugestões e ficou maravilhoso. Às vezes, quem dá a tônica do espetáculo é o músico. No caso do Tom Zé e do Zé Miguel Wisnik foi assim. Quando fizemos o Nazareth, a idéia era trazer Pixinguinha e Nazareth. Fomos falar com Zé Miguel e ele já tinha um trabalho pronto sobre Nazareth . Encaixou. Ele também pegou vários contos, como Esaú e Jacó do Machado de Assis, que tinham uma linha parecida, uma coisa espelhada, e a gente foi lendo isso, e ele foi compondo, e eu compondo também, da mesma maneira. Isso não significa que você sente para ver Nazareth e veja Machado de Assis. É a última coisa que alguém pensa .. Mas isso não interessa. Interessa para a gente, não para quem está vendo.
E em Parabelo ? Tom Zé e Zé Miguel resolveram assinar tudo junto, mas tem coisa que é só de um ou de outro e coisa que é dos dois. Um dia cheguei no estúdio e o Zé Miguel disse que eu tinha que ver a ginástica que o Tom Zé faz. E aqueles movimentos do início do espetáculo são a movimentação do
174 1175 "Contornos de mãos e pés andamaneses e tabela de particulares preliminares·'
OBSERVATIONS DR EXTERNAL CHARlCTERS.
7.
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(40) Blond or fair of
". .!.:t..
Tom Zé fazendo exercício no estúdio. Essas coisas é que são legais. A empregada do Zé Miguel, Gilvanete, também canta no espetáculo. Parceria é muito bom, quando as pessoas conseguem não ser orgulhosas demais, quando sabem abrir mão. Aí é o máximo, essa soma é a coisa mais genial do mundo. Entrevista realizada por Florencia Ferrari, Paula Miraglia, Rose Satiko Hikiji e Va léri a Macedo, do corpo editorial da Sexta Feira.
Histórico Maria Maria 1976
música Milton Nascimento, coreografia Oscar Araiz Cantares 1978
música Marco Antônio Araújo, coreografia Rodrigo Pederneiras Último trem 1980
música Milton Nascimento, coreografia Oscar Araiz Tríptico 1981
música Wagner Tiso, coreografia Rodrigo Pederneiras Interânea 1981
música Marlos Nobre, coreografia Rodrigo Pederneiras Reflexos 1982
música Henrique Oswald & Bruno Kiefer, coreografia Rodrigo Pederneiras Noturno 1982
música Alberto Nepomuceno, coreografia Rodrigo Pederneiras Sonata 1984
música Serguei Prokofiev, coreografia Rodrigo Pederneiras Prelúdios 1985
música Frédéric Chopin, coreografia Rodrigo Pederneiras 8achiana 1986
música Heitor Villa-Lobos, coreografia Rodrigo Pederneiras Carlos Gomes sonata 1986
música Antônio Carlos Gomes, coreografia Rodrigo Pederneiras Canções 1987
música Richard Strauss, coreografia Rodrigo Pederneiras Duo 1987
música Heitor Villa-Lobos, coreografia Rodrigo Pederneiras Pas du pont 1987
música Heitor Villa-Lobos, coreografia Rodrigo Pederneiras Schumann ballet 1988
música Robert Schumann, coreografia Rodrigo Pederneiras
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Rapsódia 1988
música Joannes Brahms, coreografia Rodrigo Pederneiras Mulheres 1988
música Krysztof Penderecki, coreografia Suzanne Llinke Missa do orfanato 1989
música Wolfgang Amadeus Mozart, coreografia Rodrigo Pederneiras A criação 1990
música Franz Joseph Haydn, coreografia Rodrigo Pederneiras Três concertos 1991
música Georg Philip Teleman, coreografia Rodrigo Pederneiras Variações enigma 1991
música Edward Elgar, coreografia Rodrigo Pederneiras
21 1992 música Marco Antônio Guimarães/Uakti, coreografia Rodrigo Pederneiras Nazareth 1993
música José Miguel Wisnik, coreografia Rodrigo Pederneiras Sete ou oito peças 1994
música Philip Glass & Uakti, coreografia Rodrigo Pederneiras Bach 1996
música Marco Antônio Guimarães -Sobre a obra de J.S.Bach, coreografia Rodrigo Pederneiras Parabelo 1996
música Tom Zé & José Miguel Wisnik, coreografia Rodrigo Pederneiras Benguelê 1998
música João Bosco, coreografia Rodrigo Pederneiras
177
Leia a resposta do antropólogo francês Philippe Descola ao artigo de Manuela Carneiro da Cunha a favor da moção "os conhecimentos passíveis de ser explorados pertencem aos seus criadores", publicado na última edição da Sexta Feira.
178 [debate] Deve o conhecimento ser livre? Os direitos de propriedade intelectual e suas vicissitudes Philippe Descola 178( 179 E d u a r d o V i v e i r o s d e C a s t r o
MINHA RESPOSTA AOS ARGUMENTOS APRESENTADOS POR MANUELA
te com o crescimento da mecanização e o desenvolvimento de ramos como
Carneiro da Cunha a favor da moção será uma detalhada exegese semânti-
o da química aplicada, que a questão de patentear o conhecimento e o
ca de seu enunciado . A primeira questão que temos que nos perguntar é:
know-how técnico incorporado em objetos tornou-se crucial à competição
como definimos "conhecimento passível de ser explorado?,, 1 De modo geral,
industrial. Nesse sentido, o conhecimento tornou-se uma mercadoria - como
qualquer conhecimento, mesmo o mais abstrato, é passível de ser explorado
a terra e o trabalho-quando seu valor de troca tornou-se independente de
ou potencialmente útil para fins práticos. A língua pode nos servir como um
seu contexto social. O conhecimento como mercadoria não é apenas co-
bom exemplo. Os quatro participantes do debate estão se expressando em
nhecimento possuído ou apropriado por uma pessoa ou por um grupo de
inglês, embora seja a língua nativa de apenas um deles, e apesar do fato de
pessoas, seu valor de mercadoria depende de sua capacidade de ser sepa-
termos diversas outras línguas comuns às quais recorremos em nossas con-
rado radicalmente das relações em que estava preso.
versas particulares. Isso ocorre porque o inglês se tornou uma espécie de
Deixe-me ilustrar esse ponto com um exemplo ao qual Marilyn Strathern
latim do fim do século XX, um veículo conveniente para trocas na comuni-
(1996) alude em sua discussão sobre os direitos de propriedade intelectual: o
dade científica. Mas quando eu estava aprendendo inglês na escola, suando
caso dos Malanggan, objetos rituais típicos do Norte da Irlanda, que atraíram
sobre traduções de Paradise lost ou Pride and prejudice, eu certamente não
a atenção de colecionadores em função de suas qualidades estéticas. Há
tinha idéia de que o conhecimento que estava adquirindo dolorosamente me
aproximadamente dez mil Malanggan em museus e coleções particulares
serviria muitos anos depois em uma carreira antropológica. Eu não tinha idéia,
em todo o mundo. Apesar das diferenças quanto à forma, design e material,
por exemplo, de que esse conhecimento garantiria o con vite à participação
sua função era semelhante: eram expostos brevemente e então destruídos
nesta mesa-redonda, conduzida inteiramente em inglês e inspirada por uma
durante cerimônias funerais e rituais de iniciação (Derlon, 1994). O direito de
instituição tipicamente britânica. Diversas outras línguas têm uma função
reprodução de cada classe de Malanggan era atribuído a indivíduos especí-
similar, embora com menor alcance, especialmente nos países de Terceiro
ficos ou unidades sociais, constituindo, portanto, um direito de propriedade
Mundo, onde um bom domínio da língua do antigo poder colonial pode abrir
não do objeto como tal, mas de seu esquema mental e uso ritual. Esse direi-
várias portas. Nesse sentido, a proficiência em certas línguas é um "conheci-
to autoral poderia ser transferido em certos casos como um arrendamento
mento passível de ser explorado", e é também um bem pessoal altamente co-
temporário e como uma expressão do desejo de construir uma aliança polí-
mercializável, como qualquer um que está procurando emprego deve saber.
tica com o grupo para o qual foi cedido. Embora circulasse, o uso do direito
Se a língua, produto coletivo de uma cultura, pode tornar-se explorável
autoral de uma classe de Malanggan particular permanecia confinado a uma
em certos contextos, então o enunciado da moção é enganoso, já que nin-
área restrita onde servia a propósitos sociais e rituais específicos. Seu direito
guém sustentaria que o inglês ou o francês pertencem aos seus criadores.
de reprodução era apropriado, mas não era uma mercadoria, pois não possuía
Já deve estar claro agora que não estamos discutindo o "conhecimento
valor universal de troca. Mesmo que os objetos, agora retirados do contexto
passível de ser explorado" como tal; não estamos nem mesmo debatendo
que lhes atribuía significado, tenham se tornado mercadorias com um alto
o conhecimento comercializável, no sentido de uma especialização desejá-
valor no mercado internacional de arte nativa.
vel que pode ser comprada ou vendida no mercado de trabalho. Estamos de
Então nós podemos razoavelmente assumir que a moção é de fato: o
fato pensando no conhecimento como mercadoria, como uma série de
conhecimento como mercadoria deve pertencer aos seus criadores? Isso
informações limitadas e reproduzíveis dotadas de valor de mercado em
pede uma nova questão: como podemos identificar e definir os "criadores"
função dos lucros que podem gerar.
desse tipo de conhecimento? O caso menos difícil-que está coberto por
E quando o conhecimento se torna uma mercadoria? Isso certamente foi
leis de patente e direitos autorais - ocorre quando existe um único criador
alcançado depois de muito tempo. Quando Adam Smith e Karl Marx definiram
identificável de uma única criação incorporada a um objeto vendável, como
o sistema econômico da era moderna como aquele no qual terra e trabalho
um livro ou uma música. No entanto, até essa situação aparentemente sim-
eram mercadorias passíveis de troca em um mercado aberto, deixaram de
ples é mais complexa do que parece. De fato, mesmo se o único criador é
lado o conhecimento como fator de produção ou força produtiva. Foi somen-
identificável. o conhecimento produzido pode se revelar difícil de ser distin-
180
guido da produção de outros criadores. Deixe-me tomar o exemplo da
Antes de embarcarmos em tal desafio, temos que nos perguntar: o que
filosofia, que, seguindo Deleuze, deve ser concebida como a arte de criar
é conhecimento cultural? Sabemos que culturas não são entidades socio-
conceitos. Eu admito que conceitos filosóficos não são mercadorias (não
lógicas facilmente definidas e delimitadas de maneira organizada, que se
ainda, felizmente), mas os livros nos quais são expressos podem certamente
prestam a uma identificação legal, para não dizer jurídica. Como designa-
ser qualificados como tais. Quando Merleau-Ponty tenta definir o sujeito da
mos, então, um conhecimento inteiramente específico um grupo específico
percepção em relação ao cogito em sua Phénoménologie de la perception
de pessoas? Consideremos a "cultura grega", por exemplo. Todos concordam
(1945), está comentando um livro de Husserl, Méditations cartésiennes (1931),
que a maioria dos gregos contemporâneos tem um senso forte de pertenci-
uma série de palestras que constituem um comentário crítico do Meditationes
mento a uma civilização milenar com uma tradição antiga e prestigiada.
de prima philosophia (1641), no qual Descartes elabora uma crítica radical
Essa continuidade pode ser contestada, é claro, mas eu sugiro que nós defi-
(embora bastante implícita) à filosofia escolástica. Dessa maneira, o conheci-
namos identidade cultural como usualmente o fazemos na antropologia, isto
mento que Merleau-Ponty criou em seu livro não nasceu no vácuo, mas se ori-
é, baseada em auto-atribuição. Considerando que os gregos contemporâ-
ginou de uma revisão de conceitos e hipóteses que foram sendo elaborados
neos formam uma cultura com herança histórica profunda, podemos dizer
ao longo dos séculos por uma comunidade transnacional e transgeracional de
que a lógica, por exemplo, pertence à "cultura grega"? Mais especificamente,
intelectuais comprometida com a busca de um conhecimento aplicável.
podemos dizer que o silogismo-formalizado por Aristóteles, mas rotineira-
Avaliar quem é responsável pela criação é ainda mais difícil no caso de
mente utilizado como um modo de raciocínio por Platão e pelos Sofistas -
autoria coletiva: equipes de pesquisa, indústrias corporativas e, ultimamente,
pertence aos seus criadores, isto é, à "cultura grega"? Por um lado, certa-
a comunidade virtual da Internet. O crescimento exponencial de processos
mente sim, e os livros de história não fazem outra coisa quando dissertam
judiciais nas áreas de biologia molecular e de programação de computador
longamente sobre o "milagre grego" . Mas dessa resposta positiva, não
é um indicador seguro da dificuldade de estabelecer o que é ato criativo em
podemos argumentar seriamente que a teoria do silogismo deva ser paten-
alguns campos da pesquisa científica e a quem precisamente ele deve ser
teada em benefício da "cultura grega". Todavia, a lógica predicativa fu.nda a
atribuído. No entanto, o grau de complexidade mais alto é quando se lida
lógica moderna, que é, ela mesma, a principal ferramenta para a criação de
com um criador coletivo e anônimo como uma cultura. Embora existam linhas
produtos altamente comerciáveis, os chamados programas de computador.
que nos guiem nesse domínio, particularmente no campo do conhecimento
Meu exemplo parece absurdo, porque quando falamos de conhecimento
etnobiológico (Greaves, 1994), não foi atingido um consenso legal em nível
cultural como uma possível mercadoria, não nos referimos, na verdade, ao
internacional. Eu suspeito que a verdadeira questão que nos foi proposta
conhecimento cultural da "cultura grega", da "cultura francesa" ou da "cultura
nesse debate não é tanto aquela enganosamente simples: o conhecimento
chinesa" . Estamos nos referindo, embora implicitamente, ao conhecimento
deve pertencer aos seus criadores?; mas sim: o conhecimento cultural
cultural das minorias culturais. Então, a verdadeira questão que estamos
deve, sob qualquer forma, ser considerado uma mercadoria? Assim , a
debatendo esta noite é, de fato: o conhecimento cultural de minorias deve
qu estão vai além de nossa competência etnográfica e deve ser dissociada
ser considerado uma mercadoria? Pode-se substituir "minorias culturais" por
de nossas próprias preocupações legítimas com o bem-estar e a proteção
"culturas nativas" ou "sociedades indígenas", mas seja qual for o termo esco-
das minorias tribais com as quais alguns de nós estão associados. Embora
lhido, como definir essas entidades sociais sem voltar a definições essencia-
esse pensamento possa contrariar nossos sentimentos mais profundos, per-
listas do passado e sem separar tais entidades da realidade de humanidade
mite-nos assumir uma postura moral e emitir um julgamento geral como
comum, com todos os riscos implicados por tal identificação seletiva? Mes-
cidadãos do mundo, em vez de nos comportarmos como representantes de
mo que fizéssemos isso, mesmo que recorrêssemos a essa discriminação
povos aos quais, como etnógrafos, sentimo-nos comprometidos (papel que
positiva, vários problemas práticos ainda apareceriam, e o principal seria a
podemos assumir em outros lugares e circunstâncias) . Isso significa, em ou-
questão da propriedade: a quem pertence um conhecimento específico no
tras palavras, que devemos medir todas as conseqüências que a mercantil i-
interior de uma minoria cultural específica ou em uma sociedade indígena?
zação universal do conhecimento cultural pode implicar.
1
A tradu ção refere-se à expressão exp/oitab/e know/edge.
181
Suponhamos, por exemplo, que o cultivo de mandioca, milho ou batata
Ao enfocar
O
debate da propriedade intelectual em questões de ética
doce praticado por uma comunidade nativa na Amazônia mostre-se resistente
etnobiológica, também corremos o risco de ignorar sérias inconveniências
a alguma peste ou doença e possa assim se tornar mundialmente comerciali-
que a defesa da mercantilização do conhecimento cultural acarreta em outros
zável como uma variedade de plantação. Isso é sem dúvida conhecimento,
domínios. Esse processo está, sem dúvida alguma , a caminho, nos países
nascido de cuidadosas experimentações e incorporado em um produto.
desenvolvidos e nos países em desenvolvimento, pressupondo que "cultura
Quem é o criador dessa variedade de plantação? Poderíamos responder: "a
imaterial" deve ser tratada como patrimônio (nacional, regional, "étnico"
cultura na qual foi encontrada". Mas essa variedade de cultivo pode ter sido
etc.) assim como artefatos culturalmente salientes, paisagens ou cons-
usada apenas por uma pequena parcela de uma comunidade local e adquirida
truções. Mas tal concepção ocidental de propriedade-e de protecionismo
em um passado não tão distante de uma comunidade vizinha pertencente a
nacionalista-não considera o fato de que itens culturais vindos de fora
outra "tribo" ou "cultura", na qual, dada a falta de estudos adequados, sua
podem ser altamente valorizados por minorias culturais. Na maior parte da
presença permanecerá ignorada. Os Achuar, subgrupo Jivaro do norte-
região norte-amazônica, por exemplo, o conhecimento xamanístico-isto é,
amazônico, entre os quais realizei pesquisa de campo, conhecem aproxi-
"conhecimento passível de ser explorado" usado para tratamento de infor-
madamente cem variedades de cultivo de mandioca. Cada grupo local tem
túnios-circula por longas distâncias, já que o grupo étnico ou a comu-
suas próprias variedades. Embora a diversidade genética possa ser vista
nidade local tende a considerar o conhecimento xamanístico que vem de
como pertencente à "tribo" Achuar como um todo, uma variedade de cultivo
longe mais eficaz que o seu próprio, ou, pelo menos, como um comple-
específica com valor de mercado potencial pode ser desenvolvida por apenas
mento necessário . Esse conhecimento deve se tornar mercadoria? É dese-
algumas famílias. Apenas essas famílias deveriam ser beneficiadas com os
jável que seja protegido por patentes, impostos de importação e taxas de
possíveis roya/ties que uma patente hipotética pode trazer? Ou a "tribo" inteira
direito autoral? Essas perguntas podem parecer absurdas nessa etapa, em
deveria ser beneficiada? No último caso, como essa propriedade corporativa
parte por causa de um certo preconceito etnográfico que nos faz considerar
seria expressa? Por uma organização nativa? Mas, suponhamos que, como é
genuíno e legítimo o conhecimento etnobiológico (e assim potencialmente
sempre o caso, não exista tal organização. Ou, como é ainda mais comum,
conversível em mercadoria), e superstição o conhecimento xamanístico
que a "tribo" seja dividida em duas ou três organizações conflitantes.
(que, portanto, não merece proteção legal). No entanto, essas questões não
Do ponto de vista moral e jurídico, não há respostas simples para essas
serão absurdas por muito tempo-especialmente com a atual moda das
questões. E o fato de que indivíduos ou firmas inescrupulosos tenham con-
"escolas xamanísticas" euro-americanas-se reconhecermos que o conhe-
seguido patentear conhecimento biotecnológico extraído de nativos amazôni-
cimento não deve ser livre. Acredito profundamente que não é defendendo
cos não torna menos complicadas essas questões (embora diga muito sobre
uma crescente mercantilização do conhecimento que vamos aliviar a situa-
os padrões éticos e o grau de perícia dos escritórios de patentes). Por exem-
ção difícil das minorias tribais, mas sim lutando por um mundo no qual a
plo, o divulgado e vergonhoso caso em que um cidadão americano patenteou
propriedade não seja a única medida da habilidade de controlar seu próprio
a droga alucinógena conhecida na Amazônia como ayahuasca não esclarece
destino. Uma utopia, talvez, porém indispensável.
a questão de sua propriedade original, já que vários grupos étnicos na região usam constantemente esse preparado. Como antropólogo que esteve engajado ativamente durante muitos anos no estudo etnológico de populações nativas amazônicas, asseguro-lhes que eu compreendo completamente a opção de não privá-los do pouco que lhes restou, o chamado conhecimento tradicional. Mas também percebo claramente que, uma vez garantido, o
Referências bibliográficas
OERLON, B. "Orait de reproduction des objets de cultes. tenure fonciere et filiation en Nouvelle Irlande" in: L'homme (130), Paris, 1994. GREAVES, Tom. (org.). Intellectual property rights for indigenous people - a sourcebook. Oklahoma City, Society for Applied Anthropology, 1994. STRATHERN, Marilyn. "Potential praperty. Intellectual rights and praperty in persons" in : Social Anthropology (4), London, 1996.
direito de patentear conhecimento biológico não pode ser restrito aos nativos da Amazônia. Será que realmente queremos que os laboratórios engajados no mapeamento do genoma humano patenteiem seqüências genéticas?
182 1183 Adriana Varejão
Philippe Descola é professor de antropologia social no Laboratório de Antropologia Social do College de France, em Paris. Tradução de Paula Miraglia e Rose Satiko Hikiji, do corpo editorial da Sexta Feira .
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184 [posfĂĄcio] C o r p o , cosmologia e subjetividade. StĂŠlio Marras
UMA MULHER ENCONTRA-SE NUMA SITUAÇÃO DRAMÁTICA - NÃO consegue parir a criança que traz no ventre. Por mais que empregue todas as suas forças nos movimentos de contração, nada mais lhe vale senão recorrer ao xamã, último apelo possível. Tanto esforço exaurido em vão indica que o caso é de cura xamanística. Assim é o protocolo dos Cuna, uma população indígena sul-americana que vive no território do Panamá. O antropólogo Claude Lévi-Strauss decide nos anos 1940 refletir sobre o drama da parturiente amaldiçoada com base em relato recolhido anos antes por um Cu na sobre esse "longo encantamento" que se procedeu a fim de dar cabo ao parto (Lévi-Strauss, 1970:204-224). Antes de tudo é preciso identificar o mal que assola o corpo da mulher para em seguida dissipá-lo. Esse mal é causado por uma desordem criada por Muu, "potência responsável pela formação do feto", que se apoderou da alma (purba) da mãe. Feito o diagnóstico como diríamos nós-, todo o esforço a seguir será para atingir o espírito travesso, travar com ele um combate e, restituindo o purba à mãe, liberar da presa de Muu as almas responsáveis pelo parto. Está assim criada uma situação e estabelecida a meta que a parturiente e o xamã, necessariamente juntos no processo, esperam cumprir - ou morrerá a criança e provavelmente a mãe também. O xamã inicia então repetidos e intermináveis cantos (são mais de quinhentos versículos registrados) que narram o itinerário que ele próprio, como co-protagonista da saga, empreende no interior do corpo perturbado da mulher. A viagem transcorrerá pelo "caminho de Muu" até chegar à morada desse espírito. O pensamento indígena identifica o caminho como sendo a vagina, e a morada, o útero. Espíritos benfazejos são chamados a lutar contra espíritos malfazejos-é preciso reconquistar a alma perdida. O xamã e a parturiente permanecem sempre juntos na difícil aventura de restituição do purba, pois disso depende o desentrave do parto. Estão ambos, portanto, inteiramente engajados no processo, embora o xamã tenha o papel de oficiante e condutor da narrativa. Tudo se passa como se o oficiante tratasse de conduzir uma doente-cuja atenção ao real está indubitavelmente diminuída - e a sensibilidade exacerbada-pelo sofrimento, a reviver de maneira muito precisa e intensa uma situação inicial, e a perceber dela mentalmente os menores detalhes.
É preciso que seja assim. No organismo desordenado da doente é forjado um drama cênico que requer, para que afinal tal se dê, a participação atenta e efetiva da mulher. Ela hospeda no seu corpo a encenação desse teatro e cumpre, a um só tempo, a função de espectador e protagonista. É preciso que
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ela viva intensamente, e nos "menores detalhes" , a experiência do drama.
Com efeito, esta situação introduz uma série de acontecimentos da qual o corpo e os órgãos internos da doente constituirão o teatro suposto. Vai-se, pois, passar da realidade mais banal ao mito, do universo físico ao universo fisiológico, do mundo exterior ao corpo interior. E o mito, desenvolvendo-se no corpo interior, deverá conservar a mesma vivacidade, o mesmo caráter de experiência vivida à qual, graças ao estado patológico e a uma técnica obsedante apropriada, o xamã terá imposto as condições. Se a doente não vive verdadeiramente as cenas que constituem o périplo em busca do purba apreendido por Muu, o mito, produto social, não se confundirá com o desenlace que o xamã quer ver se processar no organismo individual afetado. O mito precisa ser revivido nesse teatro montado nas entranhas do corpo da parturiente. Nisso consiste a passagem do exterior ao interior, como da idéia à fisiologia, do abstrato cosmológico (social) ao concreto orgânico (individual). Sem a experiência íntegra e inequívoca da mulher-situação que exige dela fé absoluta-, o drama estará fadado ao fracasso. O êxito da cura depende da capacidade de interiorização profunda do mito, a tal ponto que assim possam responder todos os seus órgâos, as suas vísceras, os seus músculos. Tudo deverá estar enlevado pela narrativa do xamã, que deve contar com uma técnica extremamente sensível e acurada. Isso porque a mulher precisa "efetivamente" sentir-se penetrada pelos protagonistas evocados pelo xamã. Como se vê, estão ambos, doente e xamã, investidos do poder de proceder à cura. São ambos responsáveis.
A cura consistiria, pois, em tornar pensável uma situação dada inicialmente em termos afetivos, e aceitáveis para o espírito as dores que o corpo se recusa a tolerar. Que a mitologia do xamã não corresponda a uma realidade objetiva, não tem importância: a doente acredita nela, e ela é membro de uma sociedade que acredita. Os espíritos protetores e os espíritos malfazejos, os monstros sobrenaturais e os animais mágicos,
fazem parte de um sistema coerente que fundamenta a concepção indígena do universo. A doente os aceita, ou, mais exatamente, ela não os pôs jamais em dúvida. O que ela não aceita são dores incoerentes e arb/~ trá rias, que constituem um elemento estranho a seu sistema, mas que, por apelo ao mito, o xamã vai reintegrar, num conjunto onde todos os elementos se apoiam mutuamente. Contada ou cantada, a história do xamã "fornece à sua doente uma linguagem". De fato, o que antes era pura desordem e incoerência passa a se inscrever numa ordem dotada de um sentido dado pelo caminho, a rota, a meta,
186 1187 Nazareth Pacheco
cuja finalidade é, como sabemos, o desaprisionamento do purba da parturiente para que enfim ocorra a "descida" da criança pelo caminho percorrido pela narrativa . Lévi-Strauss anota que o xamã canta essa longa narrativa como fosse uma sucessão de imagens "em câmara lenta". E por que será assim? Por que imprimir baixa velocidade à seqüência dos cantos? Por que repetir as imagens de forma sistemática? Ora, a resposta a isso parece-me elucidar o mecanismo intrínseco da cura xamanística, qual seja, a comunicação ou continuidade entre a idéia mental formada por aquelas imagens repetidas e a desobstrução dos processos fisiológicos. Ou, arriscaria dizer, a comunicação entre a alma e o corpo l - essa é a reintegração operada pelo xamã. A reiteração dos cantos diz respeito justamente à cristalização das imagens mentais por parte da doente, à conformação do drama no interior do organismo entravado que passa a ser o palco onde se desenrolam os episódios dos protagonistas citados pelo xamã. Antes mesmo, sem a linguagem de ordem mítica fornecida pelo xamã, havia apenas caos, desordem, incoerência , dor. A terapêutica apurada do médico indígena, esse canto lento e repetido, busca assegurar com a maior verossimilhança possível que a doente simbolize claramente sua dor e a desordem orgânica causada por um parto difícil no combate entre espíritos benfazejos e malfazejos num campo determinado -que é literalmente o corpo da mulher. O texto dos cantos, diz Lévi-Strauss , "põe em causa, direta e explicitamente, o estado patológico e sua sede : diríamos, de bom grado, que o canto constitui uma manipulação psicológica do órgão doente, e que a cura é esperada desta manipulação". O segredo médico do xamã reside portanto na manipulação simbólica"representações psicológicas determinadas são invocadas para combater perturbações fisiológicas, igualmente bem definidas". Mas, diga-se de novo, tal manipulação não teria êxito - a "eficácia simbólica" - se a doente não trouxesse de antemão, consciente e inconscientemente, o complexo de informação fornecido por sua cultura e cosmologia. A eficácia depende da fé dos envolvidos. Mas não uma fé construída naquele momento para fins práticos , como se fosse uma crença circunstancial nas palavras do xamã . A fé define-se por razões profundas e inescrutáveis herdadas pelo emolduramento da cultura , algo de que não se duvida, que nunca se põe como objeto de questionamento, senão arriscando os fundamentos metafísicos da sociedade, as linhas que marcam e definem o caráter da cultura. A crença absoluta e irrestrita no mito é condição sine qua non para que a simbolização dos agentes da doença - a identificação de Muu na obstrução do parto, neste caso da mulher cuna - provoque uma resposta orgânica. A eficácia simbóli-
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ca então se realiza . "Ê a eficácia simbólica que garante a harmonia do paralelismo entre mito e operações." Os deuses existem - a doente e a sua sociedade bem o sabem. O xamã é o herói socialmente creditado a ministrar o encantamento-ela não o põe em dúvida. A mulher finalmente dá à luz o filho. '0'
Que outras conclusões poderíamos tirar a respeito do modo como uma sociedade indígena como a dos Cuna, mas também muitas outras de tradição xamanística, lida com os fenômenos da doença e da cura? Quais as comparações possíveis com o nosso próprio modo? A dicotomia objetividade/subjetividade pode ser bastante útil. De fato, a subjetividade da doente cuna cumpre papel central na consecução da cura. Sem que ela revivesse o mito, estabelecesse uma continuidade, ou "paralelismo", entre o seu drama orgânico e o drama mítico induzido pelo xamã, sem que formulasse tais imagens mentais e as fizesse corresponder à disfunção que seu organismo experimenta (esse é o processo de simbolização). a cura jamais seria alcançada . De fato não o seria nesse modelo que supõe uma experiência total - a íntima articulação entre a cosmologia, a psique e o substrato orgânico. Marcel Mauss, em 1936, já escrevia sobre essa articulação entre o sociológico , o psicológico e o biológico, o "tríplice ponto de vista" exigido na análise do "homem total" (Mauss , 1974). Investigando o tema das "técnicas corporais", Mauss não se referia apenas a essa ou àquela cultura, casos isolados, mas a algo intrínseco à condição humana - essa invariável dependência mútua das três instâncias que, vale adiantar, nossa ciência moderna, sobretudo sua decorrência recente, cuidou de separar e autonomizar em favor, sobretudo , de uma almejada objetividade, essa economia do pensamento destinada a otimizar o controle da natureza . Mas quando a mulher cuna compreende que seu corpo fora vítima de uma desordem de origem mítica, e daí passa a pensar ou simbolizar nesses termos , ela então faz unir a tríplice realidade da experiên cia humana, estabelecendo a ponte que comunica intimamente as três instâncias entre si . Sua subjetividade é absolutamente indispensável nessa modalidade de terapêutica . O xamanismo então apóia-se numa técnica de cura que requer o engajamento da pessoa doente, com participação tão ativa quanto a do condutor 1 Não me atenh o às categori as nativas de alm a e co rp o para os Cu na po r não se r o meu obj eto neste text o. Apenas quero me refe rir à co mun icação da ope ração in telectu al do espírito - cuja ace pção aqui é toma da genericamente co mo si nón imo de alma, id éia. psique, "f unção simbólica" ou su bj etividade - co m os processos fisio lóg icos feno mênicos do co rpo biológ ico.
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"oficiante", e a inferência dos processos psíquicos da doente que, uma vez socialmente orientada a ordenar as coisas de uma determinada maneira (no que o xamã presta papel mediador). fará enfim provocar respostas somáticas 2 Ora, nossa medicina oficial baseia-se num modelo bem diverso. A linguagem o denota. Para nós o doente é paciente. Como paciente, é sujeito passivo da cura. Antes até, o doente não é exatamente um sujeito, não no sentido forte do termo. O sujeito define-se por mover ação. Mas nossos doentes são passíveis da ação. Quem pois detém tal poder? Os médicos? Creio que não. Penso que, no modelo idea l, nem mesmo nossos médicos estão autorizados a emitir a verdade final sobre os casos, seja no diagnóstico seja no prognóstico. Mais e mais confere-se às máquinas a autoridade-mor para se aferir e lidar com doenças. Às máquinas - expressão cultural mais extremada da objetividade, a capacidade pensante, invariável e universal, destituída de intenções. Assim é também a farmácia ocidental. Para os pacientes pouco importa o sujeito que produziu os medicamentos. Quanto aos que os prescrevem e ministram, os médicos, esses também são, ao cabo, pouco importantes, pois o que se exige deles é a correta aplicação, isto é, o modo de administrar remédios segundo comprovadas experiências laboratoriais, baseadas em estatísticas e métodos científicos. Tudo o que se espera do remédio é sua ação meticulosamente dirigida a produzir efeitos químicos na chaga identificada. Nosso modelo oficial e hegemônico de cura busca portanto eliminar a participação subjetiva, seja do paciente ou do médico. A cura xamanística supõe, ao contrário, o engajamento dos agentes 3 O fato é que as concepções de doença e de cura respondem a modelos metafísicos originados das formas culturais. Se queremos investigar os 2 Uma experiência importante de intersubjetivi dade entre xamã e antropólogo pode-se ter em Michael Taussig (1991). Ver também, nesta edição da Sexta Feira , texto de Mariana K. Leal Ferreira a respeito de sua relação com o pajé Sabino. "Eu quero ouvir. mas tenho que falar " - diz a antropóloga meio atónita frente ao pajé, que insiste em persc rutar sua subjetividade. 3 Atenho-me aqui apenas ao modelo oficial de nossa medicina, o princípio objetivante que define seus fundamentos. É claro que, na prática, a participação da subjetividade, do doente ou do médico, nas nossas experiências de doença e cu ra acaba sempre, para menos ou para mais, por negar a execução ipsis litens do modelo oficial. Há se mpre um descompasso entre o ideal objetivante e a prática renitentemente subjetivante. Porque a subjetividade, aqui como sinónimo da atividade da função simbólica, é algo intrínseco da condição humana e portanto resistente à subtração objetivante. Assim, mesmo dentro desse paradigma. ocorre sempre a intervenção da subjetividade. A fé acompanha o remédio tomado. E mesmo a aceitação dos princípios científicos de cura requer crença e compreensão, ou seja. a atividade do espírito-ainda que apareça sob a forma de resíduo. A história da medicina popular, ao contrário, é a hi stó ria da participação subjetiva nas experiências da doença e da cura. Laura de Mello e Souza apresenta exemplos em O diabo e a terra de Santa Cruz (1986)
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fundamentos da terapêutica ocidental a fim de compará-Ia, como sugiro, com a terapêutica xamanística (mas esse é apenas um termo possível de comparação), haveremos necessariamente de examinar a particularidade desses modelos cu lturais . Essa dicotomia objetividade/s ubjetividade que se presta a distinguir a cura xamân ica e a cu ra ocidental hegemônica pode revelar as diferentes formas de conhecimento embutidas nessa distinção. Assim , para muitas sociedades ameríndias sul-americanas, o conhecimento exige o ato de subjetivação . Para nós, ao contrário, "conhecer é dessubjetivar" como explica o antropólogo Eduardo Viveiros de Castr0 4 : Conhecer, para nós, é dessubjetivar. Você conhece algo bem quando é capaz de ver aquilo (inclusive você mesmo) de fora, como um objeto. A psicanálise é uma espécie de método por excelência ocidental em que você é capaz de objetivar o próprio sujeito mais íntimo. Nossa atitude cognitiva básica é de que a Ciência, com C maiúsculo, será um dia capaz de ser descritível numa linguagem completamente objetiva. Isto é, para nós, uma boa interpretação do real é aquela na qual eu sou capaz de reduzir a intencionalidade do objeto a zero. { ..} Ou seja, quanto mais eu desanimizo o mundo, mais eu conheço. Conhecer é desanimizar, retirar subjetividade do mundo, idealmente retirar até de você mesmo. Na verdade, para o mundo da ciência, para o materialismo científico oficial, ainda somos animistas porque achamos que os seres humanos têm alma. Nós não somos tanto quanto os índios, que achavam que os animais também tinham. Mas idealmente nós seremos capazes de chegar num mundo em que não precisaremos mais dessa hipótese. Tudo poderá ser descrito sob a linguagem da postura física, e não mais da postura intencional. Eu diria que o que move o pensamento dos xamãs, que são os cientistas lá, é o contrário. Conhecer bem alguma coisa não é como aqui. Conhecer bem lá é ser capaz de atribuir o máximo de intencionalidade ao que você está conhecendo, e não o mínimo como aqui. Quanto mais eu sou capaz de atribuir intencionalidade a um objeto, mais eu conheço o objeto. [..} Para nós, explicar é retirar a intencionalidade. Com efeito, foi preciso que nossa medicina moderna de certa in spiração iluminista e, ainda mais certa, positivista, baseasse seus pressupostos num mundo desanimizado -o u não cumpriria o desejo ávido do Progresso constante no ambicioso programa da modernidade. As coisas não têm alm a, não têm anima . Não há princípio ou "intencionalidade oculta" que escape ao naturalismo material a que foi reduzido o corpo humano . Homen s e animais guardam uma equiva lência ontológica no plano biológico. Uma nova taxonomia vai se
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afirmando no Ocidente, segundo a qual "o fundo comum da humanidade é a animal idade". O darwinismo viria a reforçar cientificamente a cosmologia . Abria-se assim caminho desimpedido à manipulação médica do corpo humano. O corpo natural substituía o corpo religioso, sacro, encantado ou atravessado de tabus . À igreja restava ceder à laicização e à secularização da matéria. E com isso era enge ndrada uma nova noção de pessoa, cujo caráter passa a ser "autonômico, singularizado, interiorizado", cujo corpo 'naturalizado' torna-se dependente do conhecimento e da manipulação especializada, fragmentada, tecnicizada - conforme bem anota Dias Duarte (1998):
Os fenômenos da 'saúde' e da 'doença ' constituem assim, na cultura ocidental moderna, um subproduto de um cruzamento daqueles princípios: a 'medicalização' ou 'naturalização' decorre da racionalização e fragmentação dos domínios de saber empreendida sistematicamente desde a fisiologia do século XVII contra os antigos saberes cosmológicos holistas (a doutrina dos humores e da melancolia, por exemplo). A lamentada perda da totalidade da experiência do adoecer em nome de um privilégio da realidade reificada das doenças, a que se dedica uma crescente 'especialização' e 'tecnicização', não é senão um dos aspectos desse longo e inevitável processo. Sugiro que essa "perda da totalidade da experiência" refira-se à desarticulação dos mecanismos biopsicossociais, como indicados por Mauss em sua análise das técnicas do corpo . Não por acaso ele acusa uma "amnésia humanística" que sombreia a modernidade dos tempos . Lévi-Strauss examina a cura xamânica da parturiente cuna tendo justamente como objeto de estudo os "mecanismos psicofisiológicos" operantes na terapêutica xamânica. Mais recentemente , Andras Zempléni (1994) repisa a fragmentação da modernidade que fez perder os fios que unem a "tríplice realidade da doença", as suas dimensões "subjetiva, biofísica e sociocultural" . A dissociação da prática médica entre o indivíduo biológico e o corpo social teria levado ao menosprezo e à desqualificação das práticas tradicionais ou não-ocidentais - tidas então como mágicas (no sentido deformador). primitivas, irracionais . Investigando os rituais de pureza e impureza em diversas culturas, Mary Douglas (1976) esbarra com os fenômenos da doença e da cura , pois são fenômenos sociais , participam intrinsecamente da "estrutura total de pensamento" . Os rituais Dinka, a que seu estudo faz tanta referência, articulam essa "unidade da experiência" . Quanto a nós, que diríamos? Ora, parece-me que à medida que perdemos a percepção da experiência total (o diagnóstico 4
Entrevista cedida à Sexta Feira . nesta edição.
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de nossas doenças pouco se refere à moralidade social e menos ainda à religiosidade), perdemos igualmente os rituais que ajudavam a relacionar mundos congruentes-corpo, alma e cultura 5 . Mas que outras referências históricas de nossa própria tradição terapêutica poderiam indicar diferenças importantes em relação às concepções médicas atuais? Proponho uma palavra sobre o assunto. A fisiognomonia. ·0·
Giovan Battista Delia Porta, renascentista italiano, publica em 1599 Della fisonomia del/'uom0 6 . O livro, escrito em latim, ganha uma segunda publicação em 1618 em italiano volgare. Um dos textos toma o assunto das "ciências divinatórias" dos antigos (na então recuperação dos escritos filosóficos greco-romanos) e destaca a fisiognomonia como saber médico de primeira excelência, porque fincado em "princípios da Natureza". Outras adivinhações eram feitas segundo os princípios da Arte. A diferença entre ambas residia na maneira própria de adivinhar. A adivinhação da Arte exigia "razões e conjeturas"; a da Natureza, ao contrário, era preciso abrir-se à "certa excitação ou movimento do nosso espírito". Della Porta assegura que a fisiognomonia era "amada, seguida e reverenciada por cada raro intelecto", entre os quais "Galeno e outros Médicos". Sua virtude consistia em "conhecer os vícios dos outros, para poder vê-los e poder corrigi-los e curar os próprios". O método deveria necessariamente considerar a "recíproca correspondência que tem a alma com o corpo": Disse Platão que nas enfermidades que vêm ao corpo, a alma adoece também, como pode qualquer um capaz de raciocínio considerar: a crua e a falsa pituita 7, e os humores coléricos e amargos que vão vagando pelo corpo em ondas de vapores, penetrando nos lugares mais secretos da alma, constrangem-na a deixar de ser como era e tornar-se audaz, tímida, mole e esquecida. Prova Aristóteles na Fisiognomônica que, quando a alma muda o hábito, 5 "Nossos rituais criam muitos submundos pequenos, não-relacionados. Os rituais deles criam um universo único, simbolicamente congruente ." Mary Douglas (1976). 6 O texto me chega ao conhecimento pela tradução provisória do professor Milton José de Almeida, do Olho-Laboratório de Estudos Audiovisuais da Faculdade de Educação da Unicamp. Agradeço ao professor a permissão de publicar os trechos traduzidos e a gentileza com que me atendeu e forneceu informações adicionais. Agradeço também a Luciano Costa, que me sugeriu a leitura. 7 Segundo Milton José de Almeida, "Antigamente dizia-se 'pituita' o líquido dos ventrículos cerebrais e acreditava-se que a hipófise, chamada por isso de glândula pituitária, tivesse a função de recolhê-lo para expeli-lo fora, através da etmóide, pelas fossas nasais", em nota de tradução do referido texto.
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o corpo muda de delineamento, e o corpo mudando a sua forma, a alma muda ainda ela mesma seus costumes. Quando a alma é melancólica, o corpo torna-se lânguido e sem cor e, estando alegre, o corpo refloresce. Diz Salomão que a alma melancólica resseca os ossos e, sendo alegre, engorda-os. {.'; Portanto, a disposição do corpo corresponde às potências e virtudes da alma; de fato a alma e o corpo amam-se entre si com tanta correspondência que um é a causa da alegria e da dor do outro. { .'; Empédocles de Agrigento diz que
r..; na definição de cada afeto nosso,
aí entram os humores. Como a ira é um aceder de sangue em torno do coração, a mansidão é um resfriamento do mesmo sangue no mesmo lugar; a audácia não é outra coisa que o difundir-se do sangue fora do corpo, e o medo, um reduzir-se do sangue dentro do corpo. Platão diz no Timeu que, por causa do temperamento do corpo, a alma fica ultrajada, porque a pituita acre e os humores do fel ao se espalharem pelo corpo, no lugar para onde convergem, ofendem a alma onde, segundo a natureza desses lugares, a fazem ficar lânguidas e aflitas e se tornam audazes ou tímidas, ou nostálgicas, ou hipócritas. E assim, por este veneno no corpo decorre que o homem torna-se ignorante, pois o quanto mais sábio venha a ser, menos participa do úmido. E Aristóteles { .'; diz que aquele sangue que é o mais terrestre e o mais quente faz o homem robusto e bravo; mas aquele que é mais frio e delicado fá-lo mais sábio e inteligente. {.'; Assim, segundo difira a natureza do sangue, diferem os costumes. O Touro e o Javali são bravos porque seu sangue é quentíssimo. O que nos pode dizer hoje tal concepção que reza sobre a continuidade entre corpo e alma a que respondiam diagnósticos de doenças e prognósticos de cura? Para a ciência médica, parece certo, dirá muito pouco. A teoria humoral, ou o humorismo, passou a ficar obsoleta desde o século XVIII. O avanço da modernidade nas febris últimas décadas do século XIX verte todo esforço científico a pesquisar a transmissão bacteriana, identificação de microorganismos, efeitos químicos, farmacoterapia. A alma passava a ajudar pouco na ciência e na prática médica. Um pouco mais tarde viriam os estudos da psique, espécie de refluxo da modernidade em certo sentido, e que retomaria tal relação, mas já sob os paradigmas objetivantes e hegemônicos da cognição científica. Contudo, nossa reflexão aqui prefere outras veredas. Gostaria de voltar à dicotomia subjetividade/objetividade para pensar os assuntos relativos a doença e a cura. Pois, o que faz a fisiognomonia senão apoiar sua epistéme, seus pressupostos do conhecer, na subjetividade do médico - como faria um Galeno segundo Della Porta. Para identificar a per-
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turbação do doente era preciso que o médico experimentasse "certa excitação ou movimento do nosso espírito". Já na adivinhação pela Arte (na inversão do sentido moderno). o suposto era lançar mão de "razões e conjeturas". Fosse como fosse, uma e outra partilhavam um princípio comumo da adivinhação B Então, o conhecimento e o tratamento das doenças pela fisiognomonia dependia dessa exc itação do espírito, desse investimento subjetivo da parte do médico. Mas também do doente. Delia Porta: "No templo de Esculápio, enquanto os doentes dormiam lhes eram revelados os remédios adequados a eles" . Espécie de procedimento que hoje reconhecemos como próprio doxamanismo (em sentido lato). a "revelação" dos remédios adequados somente é experimentada por aqueles que viviam "castamente e religiosamente longe dos homens". Também como na prática xamânica, a revelação entre os gregos exigia do doente ou do Médico que se retirasse de seu meio social. Um e outro modo recorrem à articulação de cosmologias. Os sonhos de revelação expressavam o parentesco entre a alma e os "Segredos Celestes": pelo que se vê quão aparentada está nossa alma e tanta amizade tem com o céu que no sonho encontra-se quase participante da graça divina, que lhe permite serem revelados os Segredos Celestes. (idem) Talvez, neste plano seja possível reunir, sob o signo da "totalidade da experiência", o pensamento e a prática dita primitiva-como a que se vê no texto de Lévi-Strauss-e os nossos modos antigos, mas pré-positivistas e mesmo pré-iluministas. Por isso propus um recuo à fisiognomonia, para ver que sua eficácia dependia da íntima orquestração entre a subjetividade do doente (como também do médico). o corpo fisicamente debilitado e a estrutura de idéias organizadoras do universo moral e celestial grego. O mundo platônico animado certamente regia tal orquestra . Mas tanta abstração não resistiria ao conhecimento materia l moderno. O corpo agora se nos mostra altamente objetivado-corolário de sua percepção "naturalizada". A tão propa lada fragmentação do mundo no Oc idente, fruto dos processos de raciona lização e tecnicidade que elevam ao máximo o conhecimento objetivo em favor do 8 O historiador italiano Cario Ginzburg refere-se às antigas técnicas de adivinhação que são recuperadas no final do sécu lo XIX, sobretudo pela medicina, na forma do método ou "paradigma indiciário". Prenúncio dos "nós epistemológicos" que as ciências humanas iriam enfrentar décadas adiante, a medicina se via impossibilitada de aplicar à sua disciplina os preceitos positivistas de ciência. O corpo qualitativo não se presta à redução qualitativa - porque a presença do individual. e portanto do qualitativo. era e é "ineliminável". Pouco servia a autópsia e a seção do cadáver - o corpo morto dizia pouco do corpo vivo. Por isso a medicina não podia ainda se desprender de certa virtuosidade médica na identificação de "sinais" ou sintomas que revelariam a natureza das doenças. Ver Ginzburg (1989).
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avanço tecnológico e do controle da natureza (inclusive ou sobretudo o controle do humano). fez-nos perder a "unidade da experiência". Um fosso profundo abriu-se entre a percepção do corpo biológico. seus vínculos com a cosmolog ia e aquilo que o fi lósofo Ma urice Merleau-Ponty denominou de "função simbólica". a capacidade psíquica genuinamente humana. esta que processa a mediação entre o substrato orgânico e a informação cosmológica . E contudo-anti-réquiem! - uma reação se esboça neste fim de milênio. Técnicas e filosofias não-ocidentais parecem tomar o corpo e a alma das pessoas. Temos que reconhecer a ligação dessa contracorrente à valorização de culturas como a hindu 9 • a tibetana. a xamânica dos povos ameríndios. mas tantas outras. O apego a esses outros modos de pensamento. a despeito de oportunismos mercadológicos fortuitos e máximas de efeito. pode bem indicar uma clara oposição ao império do pensamento científico ou os limites do modelo positivista de conhecimento. Tal crítica pode ser expressão sociológica fenomênica do "alargamento da razão" que reclamavam os pensadores estruturalistas de há poucas décadas - talvez a mais bemaventurada promessa iluminista. Porque o Ocidente. ele próprio. cuida gerar dia leticamente o seu contrário. Estaria iniciada nova saga do corpo em busca de seu anima perdido. 9 Os livros de Fritjof Capra - O Tao da física e O ponto de mutação - ose minha memória não trai. parece que foram os primeiros levantes difundidos pelo público mais geral a favor desta concepção mais alargada da ciência na medida em que experimentavam paralelos com os pensamentos não-ocidentais. Mas Albert Einstein também havia dado passos firmes nessa direção. Referências bibliográficas:
DIAS DUARTE, Luiz Fernando. "Pessoa e dor no Ocidente" in: Honzontes antropológicos (9) -corpo, doença e saúde. Porto Alegre. UFRGS/IFCH. PPGAS. 1998. DOUGLAS, Mary. Pureza e pengo. São Paulo. Perspectiva. 1976. GINZBURG. Carla. "Sinais: raízes de um paradigma indiciário" in: Mitos. emblemas. sinaismorfologia e hlstóna. São Paulo, Companhia das Letras. 1989. LÉVI-STRAUSS, Claude. "A eficácia simbólica" in: Antropologia estrutural. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro. 1970. MAUSS, Marcel. "As técnicas corporais" in: Sociologia e antropologia. São Paulo. EPU/Edusp. 1974. MELLO E SOUZA. Laura de. O diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo. Companhia das Letras. 1986. TAUSSIG. Michael. Xamamsmo. colonialismo e o homem selvagem. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1991. ZEMPLÉNI, Andras. "A 'Doença' e suas 'Causas'" in: Cadernos de Campo (4). São Paulo, PPGAS/USP. 1994. Stélio Marras é integrante do corpo editorial da Sexta Feira
198 1199 Vírus HIV
Ramboll-amissAo
O caso referiram-me no Texas, mas aconteceu noutro Estado. Conta com um só protagonista, salvo que em toda história os protagonistas sejam milhares, visíveis e invisíveis, vivos e mortos. Chamava-se, creio, Fred Murdock. Era alto, à maneira americana, nem louro nem moreno, de perfil de machado, de não muitas palavras. Nada singular havia nele, nem sequer essa fingida singularidade que é própria dos jovens. Naturalmente respeitoso, não descria dos livros nem dos que escrevem os livros. Sua era essa idade em que o homem não sabe ainda quem é e está disposto a se entregar ao que lhe propõe a sorte: a mística do persa ou a desconhecida origem do húngaro, as aventuras da guerra ou da álgebra, o puritanismo ou a orgia. Na universidade aconselharam-lhe o estudo das línguas indígenas. Há ritos esotéricos que perduram em certas tribos do oeste; seu professor, um homem idoso, propôs-lhe que fizesse sua morada num acampamento, que observasse os ritos e que descobrisse o segredo que os feiticeiros revelam ao iniciado. Na volta, redigira uma tese que as autoridades do instituto dariam a lume. Murdock aceitou com alacridade. Um de seus antepassados morrera nas grandes guerras da fronteira; essa antiga discórdia de suas estirpes era agora um vínculo. Previu, sem dúvida, as dificuldades que o aguardavam; tinha que conseguir que os homens vermelhos o acolhessem como um dos seus. Empreendeu a longa aventura. Mais de dois anos viveu na pradaria, sob toldos de couro ou à intempérie. Levantava-se antes da aurora, deitava-se ao anoitecer, chegou a sonhar num idioma que não era o de seus pais. Habituou seu paladar a sabores ásperos, cobriu-se com roupas estranhas, esqueceu os amigos e a cidade, chegou a pensar de uma maneira que sua lógica refutava. Durante os primeiros meses de aprendizagem tomava notas sigilosas, que rasgaria depois, talvez para não despertar a suspicacia dos outros, talvez porque já não as precisasse. Ao término de um prazo prefixado por certos exercícios de índole moral e de índole física, o sacerdote ordenou-lhe que fosse recor-
dando seus sonhos e que lhos confiasse ao clarear o dia. Comprovou que nas noites de lua cheia sonhava c o m bisontes. Confiou estes sonhos repetidos a seu mestre; este acabou por revelar-lhe sua doutrina secreta. Uma manhã, sem despedir-se de ninguém, Murdock se foi. Na cidade, sentiu saudades daquelas tardes iniciais da planície em que sentira, fazia t e m p o , saudades da cidade. Encaminhou-se ao gabinete do professor e lhe disse que sabia o segredo e que resolvera não publicá-lo. — Seu juramento o i m p e d e ? — p e r g u n t o u o outro. — Essa não é minha razão—falou Murdock. — Naquelas lonjuras aprendi algo que não posso dizer. —Talvez o idioma inglês seja insuficiente?—observou o outro. — Nada disso, senhor. Agora que possuo o segredo, poderia enunciá-lo de c e m m o d o s distintos e ainda contraditórios. Não sei muito bem c o m o dizer-lhe que o segredo é precioso e que agora a ciência, nossa ciência, parece-me uma simples frivolidade. Acrescentou ao fim de uma pausa: — O segredo, ademais, não vale o que valem os caminhos que a ele me conduziram. Esses caminhos há que andá-los. O professor falou-lhe com frieza: — Comunicarei sua decisão ao Conselho. O senhor pensa viver entre os índios? Murdock respondeu-lhe: — Não. Talvez não volte à pradaria. O que me ensinaram seus homens vale para qualquer lugar e para qualquer circunstância. Tal foi, em essência, o diálogo. Fred se casou, se divorciou e é agora um dos bibliotecários de Yale. —Jorge Luis Borges, O etnógrafo. In: Elogio da sombra,
um ensaio autobiográfico.
São Paulo, Globo, 1993.
Um texto nunca explica uma imagem, uma imagem nunca ilustra um texto .
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Com arte, antropologia, biologia, cinema, fotografia, medicina, moda, pornografia e quadrinhos, a edição das imagens deste número de Sexta Feira optou por selecionar imagens de fontes e naturezas diversas, justapondo o high ao /ow . Procuramos traçar e sugerir, com a ordenação das imagens, seqüências narrativas formais e temáticas que se desenvolvessem paralelamente aos textos aqui incluídos. Por vezes, há rebatimentos e cruzamentos das imagens com conteúdo dos textos; por outras, há imagens que se contrapõem ou parecem sugerir precisamente o contrário do que está impresso na página oposta. Para tanto, em diálogo com o designer Rodrigo Lopez, chegamos a um formato e a uma estrutura de intercalar, no corpo de Sexta Feira , páginas de texto com páginas de imagens. Sublinhando a orientação narrativa, optamos por reproduzir apenas imagens sangradas , sacrificando, muitas vezes, a integralidade da obra para dar força e voz à sua presença gráfica nestas páginas. Nesse contexto, há algumas razões pelas quais a arte contemporânea brasileira tenha sido privilegiada na edição de imagens nesta Sexta Feira . Primeiramente, o corpo é um elemento (como forma, tema e conceito) fundamental na produção brasileira. Se desde os anos 80 ele vem sendo objeto de representações e recodificações na arte em todo o mundo (com Robert Gober, Kiki Smith ou Felix Gonzales-Torres, para citar apenas alguns). é no Brasil que o corpo é abordado como form a, tema e conceito inaugurais por artistas como Hélio Oiticica e Lygia Clark nos anos 50 e 60 e, mais recentemente, por jovens como Ernesto Neto, Franklin Cassaro, Edgard de Souza e Nazareth Pacheco, entre muitos outros. De fato , se há uma presença que caracteriza boa parte de nossa produção artística, esta é a do corpo. Em segundo lugar, apesar de Sexta Feira ter um conteúdo marcadamente antropológico, como seu título indica , é razoável argumentar que é a arte (seja qual for sua natureza, meio, estilo ou período) que há séculos vem dedicando-se a investigar, de forma crítica ou poética, o reino das imagens e das representações. Por último, de maneira não menos relevante. há ainda o fato deste editor trabalhar primordialmente com arte contemporânea, sobretudo a brasileira . É parte importante de nosso projeto a difusão da arte contemporânea para além de seus contextos e sítios especializados - o museu. a galeria. a coleção, o catálogo. a revista de arte. No entanto. é preciso reconhecer que as outras presenças neste conjunto de imagens tão carregado de arte assumem, por sua característica pontual e inusitada em nossas seqüências e narrativas, papéis não menos importantes e memoráveis - de Bobbit às engrenagens de Tempos Modernos. da ovelha Dolly ao vírus HIV Aqui. planejamos algumas re-contextualizações. propusemos destacar e dar nova visibilidade a uma foto ou fotograma. Há certamente outras associações e conexões imagético-textuais no conjunto aqui escolhido e construído. Cabe ao leitor voyeur descobri-Ias. Veja o texto. leia as imagens .
Adriano Pedrosa Editor de im agens
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[imagens]
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2 Raio X de DNA, cortesia Cíntia Fridman - Depto de Biologia/IBUSP. São Paulo 4 Leonilson Os anéis do rapaz (atribuídol detalhe 1989 nanquim sobre papel 25.5x 18cm foto Eduardo Ortega, cortesia Projeto Leonilson, São Paulo 6 Marcelo Krasilcic Andrea detalhe Nova York, 1998 fotografia 100x120cm
115 Rosângela Rennó Sem título da série Museu Penitenciário/Cicatriz detalhe 1996- 97
fotografia digital sobre papel Sommerset (processl111 x77cm cortesia Galeria Camargo Vi laça, São Paulo 119 Fotografia de Roberto Stelzer s/d
10 Sand ra Cinto Sem título detalhe 1998 fotografia 70x 128 cm cortesia Casa Triângulo, São Paulo
123 O livro de cabeceira direção Peter Greenaway França, Holanda, Inglaterra, Japão, 1995
14 Laura Lima Encapuzação de dedos 1997 registro em vídeo da instauração cortesia Casa
127 Caetano de Almeida Quem vê nunca esquece 1994 impressão sobre azulejos 60x30cm
Triângulo , São Paulo 18 Sandro Boticelli Marte e Vênus c.1475- 80 têmpera sobre madeira 69,2x173cm 23 O livro de cabeceira direção Peter Greenaway França, Holanda, Ing laterra, Japão, 1995
duração 123 min. 27 Albrecht Dürer Madona e o menino 1512 óleo sobre madeira 49x37cm
duração 123 min. cortesia Galeria Luisa Strina, São Paulo 131 Edgard de Souza Sem título madeira laqueada 70x18x12cm cortesia Galeria Luisa
Strina, São Paulo 135 Ryoichi Ikegami Crying Freeman detalhe s/d roteiro Kazuo Koike São Paulo: Nova
Sampa Diretriz Editora
31 O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante direção Peter Greenaway Inglaterra, 1989
139 Va ldirlei Dias Nunes Sem título detalhe 1994 óleo sobre tela 20.5x 15cm cortesia Galeria
duração 120 min . 35 Sexxxy capa ano 1 nO5 39 Iran do Espírito Santo Sem título 1989 ferro 100x26cm cortesia Galeria Camargo Vilaça,
143 Miguel Rio Branco She looked tender/y, buL detalhe 1992 cibacromo 80x 160cm
São Paulo 43 Valeska Soares Sem título (From fali) 1994 cibacromo 50x60.5cm cortesia Galeria
Camargo Vilaça, São Paulo 47 Antonio Dias Flesh roam with anima detalhe 1996 insta lação cortesia Galeria Luisa
Strina, São Paulo
Luisa Strina, São Paulo (dípticol cortesia Ga leria Camargo Vilaça, São Paulo 147 lole de Freitas Glass pieces, life slices detalhe 1975 seqüencia fotográfica 50x70cm 151 Edgard de Souza Sem título 1992 bronze 118 x 54x28cm cortesia Galeria Luisa Strina,
São Pau lo 155 Jac Leirner Pulmão (vegetal-mineral) 1987 pilha de papéis laminados 20x 17x 14cm
foto Rómu lo Fia ldini cortesia Galeria Camargo Vilaça, São Pau lo
51 Florian Raiss Quadrúpede 1993 argila policromada 45x30x30cm
159 Tempos Modernos direção Charles Chaplin EUA, 1936 duração 87 min.
55 Franklin Cassaro Abrigo 'Jornal e vento" 1999 performance foto Orestes Locatel corte-
163 Dolly
sia Galeria Biró Senna 59 Albrecht Dürer Adoração da Trindade 1511 óleo sobre madeira 135x123.4cm
167 Fernando Cardoso Sem título 1999 bico de pena e aquarela sobre papel 30x40cm
cortesia Casa Triângulo, São Pau lo
63 Laura Lima Sem título (deta lhei 1997 instauração cortesia Casa Triângulo, São Pau lo
171 Grupo Corpo reg istro de Benguelê 1998 foto José Luiz Pederneiras
67 Rosângela Rennó Sem título da série Museu Penitenciário/Cicatriz deta lhe 1996-97
175 MV Portman e WMalesworth "Contornos de mãos e pés andamaneses e tabela de
fotografia digital sobre papel Sommerset (processI111x77cm cortesia Galeria Camargo Vi laça, São Paulo 71 Mu lher Araweté fotografia de Eduardo Viveiros de Castro 1991 75 Fotografia de Maíra Büh ler 1999 79 Carmem Mi randa 83 Fotografia J.R.Duran edição Patrícia Carta; vestido longo Ocimar Versolato pa ra Eclat
anéis de bri lhante com cravação pavê Maurício Monteiro; à direita, anel-cobra Natan brincos Castro Berna rdes joalheiros. Vogue n.152 1999 cortesia Carta Editorial, São Paulo 87 Carla Zaccagnini Sem título detalhe 1995- 96 impressões vaginais sobre papel
5x40x40cm 32 páginas
particu lares preliminares" em Observations on Excternal Characters, 1894 179 Jovem Araweté fotografia de Eduardo Viveiros de Castro 183 Adriana Varejão Varal 1993 óleo sobre tela 165x195cm cortesia Galeria Camargo
Vi laça, São Paulo 187 Nazareth Pacheco Sem título 1993 gesso, gaze 34x36cm cortesia Ga leria Brito Cimino,
São Pau lo 191 Nazareth Pacheco 1997- 98 cristal, agulha, gilete, vidro, lâmina de bistu ri, anzol
dimensões variáveis cortesia Ga leria Brito Cimino, São Paulo 195 Tunga Sem título 1997 performance cortesia Galeria Luisa Strina, São Paulo 199 Vírus HIV
91 Mulher Maravilha
200 Batman & Robin di reção Joel Shumacher EUA, 1997 duração 70 min.
95 Homem Araweté fotog rafia de Eduardo Viveiros de Castro 1981
202 Rambo II- a missão direção George Pan Cosmatos EUA, 1985 duração 96 min.
99 Ernesto Neto Glop 1996 isopor, poliamida, cravo, pimenta 800x115(hlcmfoto Romu lo
204 Robocop direção Pau l Verhoeven 1987 du ração 103 min.
Fialdini cortesia Galeria Camargo Vi laça, São Paulo 103 Ernesto Neto dentro de uma de suas naves ateliê do artista, Rio de Janeiro, 1998
cortesia Galeria Camargo Vilaça, São Paulo
206 Blade Runner- o caçador de andróides direção Rid ley Scott EUA, 1982 duração 117 min. 208 Frankenstein di reção James Whale EUA, 1931 duração 70 min. 210 Laranja Mecânica direção Stan ley Kubrick Inglaterra, 1971 duração 138 min.
107 Xamã Araweté fotografia de Eduardo Viveiros de Castro
221 Robinson Crusoé di reção George M iller EUA, 1996 duração 100 min.
111 Rogier van der Weyden Tríptico da crucificação detalhe c.1440- 45 óleo sobre
223 Robinson Crusoé di reção George Mi ller EUA, 1996 duração 100 min.
madeira 101 x 139cm Todo esforço foi feito para identificar corretamente e dar créditos aos autores das imagens aqui reproduzidas. Caso haja algum equívoco ou lapso, pedimos que nos contatem.
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[ficha técnica]
Corpo Editorial Evelyn Schuler, Florencia Ferrari, Kiko Ferrite, Paula Miraglia, Paula Pinto e Silva, Renato Sztutman, Rose Satiko Hikiji, Silvana Nascimento, Stélio Marras, Valéria Macedo. Projeto Gráfico Rodrigo Cerviiio Lopez Editor de Imagens Adriano Pedrosa Produção Gráfica Editora Hedra Revisão Cristina Yamazaki e Lívio Lima de Oliveira Colaboradores Adriana Varejão, Antonio Dias, Caetano de Almeida, Carla Zaccagnini, Cíntia Fridman, Edgard de Souza, Eduardo Viveiros de Castro, Eliane Camargo, Ernesto Neto, Fernando Cardoso, Florian Raiss, Franklin Cassaro, Iran do Espírito Santo, Jae Leirner, José de Souza Martins, J.RDuran, Laura Lima, Maíra Bühler, Marcelo Krasilcic, Márcio Marciano, Marcos Alvito, Mariana Leal K. Ferreira, Miguel Rio Branco, Nazareth Pacheco, Patrícia Carta, Paulo Menezes, Peter Greenaway, Philippe Descola, Roberto Stelzer, Rodrigo Pederneiras, Rosângela Rennó, Sandra Cinto, Sérgio Carvalho, Sylvia Caiuby Novaes, Th omas Lehmann, Tunga, Vadim Nikitin, Valdirlei Dias Nunes, Valeska Soares Fotolitos Reflexo Impressão Prol Editora Gráfica Distribuição Editora Hedra Agradecimentos André Torai, André Vianna, Bandeira Filmes, Beto Ricardo, Carla Zaccagnini Carlos Machado Dias Júnior, Carmen Novo, Carol Coutinho Barbosa, Casa Triângulo, Clarice Cohn, Fábio Schivartche, Gabriele Brandstetter, Galeria Baró Senna, Galeria Brito Cimino, Galeria Camargo Vi la ça, Galeria Luisa Strina, luri Pereira, ISA, Kiko Goifman, Lux Vidal, Miriam Moreira Leite, Mozailde, Noemi Moritz Kon, Raul Loureiro, S. Malysse, Vagner Gonçalves. Aos Colaboradores Sexta Feira recebe artigos, ensaios, textos literários, resenhas, entrevistas, ilustrações e ensaios fotográficos. Todo o material recebido será submetido a uma avaliação prévia dos editores, que decidirão o seu ajuste à linha editorial e ao tema da edição. O limite para os textos é de 25.000 caracteres. As fotografias podem ser co lorida s ou p&b e o autor deve dispor de origina l em papel ou cromo. Os autores deverão apresentar o crédito a ser publicado e outras informações importantes para o leitor. O material deve ser enviado para a Editora Hedra: O xx 11 8678304 ou pa ra o corpo editorial no e-mail: pletora @uol.com.br.
222 1223 Robinson Crusoé
12 [campo e contracampo] Corpo e cinema pela boca aberta de Peter Greenaway Evelyn Schuler e Thomas H. Lehmann 22 Lição de Anatomia Paulo Menezes 32 A dialética do corpo no imaginário popular José de Souza Martins 42 Do corpo para ser visto ao corpo invisível: do teatro da
crueldade ao império do terror Marcos Alvito 52 Totem e tabuleiroO corpo da baiana nos requebros da canção Valéria Macedo 64 O estranhável debate do prof. Cassiano Marvalho com os atores da Companhia do Latão 75 As metamorfoses do corpo (breve ensaio sobre um tema ameríndio à luz de uma entrevista com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro) Renato Sztutman 106 Entrevista com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro Renato Sztutman, Silvana Nascimento e Stélio Marras 107 [o cru e o cozido] Alimentando o corpo-O que dizem os Caxinauá sobre a função nutriz do sexo Eliane Camargo 110 Fragmentos de corpo: o espelho partido-A trajetória de Sabino Kaiabi no Parque Indígena do Xingu Mariana K. Leal Ferreira 132 Ekspirro Vadim Nikitin 145 Clones-do grego broto Sylvia Caiuby Novaes 156 Palavras do corpo na companhia de Rodrigo Pederneiras Florencia Ferrari , Paula Miraglia, Rose Satiko Hikiji e Valéria Macedo 165 [debate] Deve o conhecimento ser livre? Os direitos de
propriedade intelectual e suas vicissitudes Philippe Descola 174 [posfácio] Corpo, cosmologia e subjetividade , Stélio Marras sexta feira n.4 [corpoJ