Desvio inesperado Aquele grupo de aproximadamente 50 estudantes estava indo para a viagem que esperaram o ano inteiro. Eram formandos do nono ano do ensino fundamental que estavam indo para uma pousada no interior de Goiás, famosa pelas piscinas quentes. Dentro do ônibus, estudantes de duas escolas de cidades diferentes, Palmital e Santa Cruz do Rio Pardo, pequenos municípios localizados no sul do estado de São Paulo, próximos à divisa com o Paraná. Tinham se conhecido pessoalmente horas antes, mas já conversavam através do MSN há meses. Já haviam feito amizades e conversavam sobre a separação dos quartos, que seria decidida quando chegassem à pousada, como havia determinado um dos professores que acompanhava os alunos. Já passava da meia-noite do feriado de 15 de novembro de 2007. Naquele momento, o ônibus estava próximo da divisa de São Paulo com Minas Gerais. Na estrada, o movimento era quase inexistente, por mais que fosse um final de semana de feriado prolongado. Dentro do ônibus, a maioria dos estudantes dormia na parte de cima, desconfortável nos bancos que de reclináveis não tinham quase nada; no andar de baixo, cerca de 10 alunos estavam acordados conversando e jogando truco. Ao final da partida, Vitor, um dos viajantes, resolveu ir ao banheiro. Para brincar com ele, o pessoal resolveu trancar a porta, impedindo sua volta. Como seu parceiro de jogo havia saído, Guilherme passou a olhar a estrada, esperando o sono chegar. Queria dormir antes de chegar à pousada para que pudesse aproveitar o primeiro dia. Queria, acima de tudo, aproveitar todos dias da viagem, independente de sol, chuva, frio. Estava cansado do trabalho que teve durante o ano. Era o líder da comissão organizadora da formatura de sua turma. Não tomava muitas decisões, já que os estudantes do terceiro colegial tinham preferência. Mas tinha como obrigação recolher o dinheiro dos seus companheiros de classe, como pagamento da festa e de rifas e convites, depositar no banco e fazer um balanço semanal da conta para apresentar para a professora responsável pela festa. Também estava irritado, porque Bárbara, sua companheira de turma e líder da comissão não estava ajudando em nada na preparação. Uma parada que o ônibus fez cortou seu pensamento. Achou estranha essa parada repentina, mas como ela durou menos de 15 segundos, não ligou. De repente, o barulho de alguém tentando abrir a porta chamou a atenção de todos. Como achavam que era o Vitor, começaram a rir e a falar: - Vai lá pra cima dormir, não vamos abrir nada! Mas a pessoa continuou a tentar abrir a porta, sem sucesso, pois estava trancada. Até que em um momento, ouviu-se o barulho do vidro se quebrando.
Todos falaram na hora: “Que merda é essa Vitor? Tá louco?”. Porém se depararam com uma pessoa encapuzada, portando uma espingarda: - Aqui não é o Vitor. Agora abre essa porra que isso é um sequestro. Com o choque, demorou alguns segundos para que alguém tivesse uma reação e abrisse a porta para o sequestrador. Quando conseguiu entrar, a surpresa foi ainda maior: junto dele havia outras cinco pessoas, todas encapuzadas e com espingardas na mão. O bandido que havia quebrado a porta era aparentemente o líder, já que começou a dar ordens: - Dois ficam aqui com esse pessoal, três sobem e eu vou conversar com o motorista. Assim como todos os outros, Guilherme ficou em estado de choque com a situação. Não conseguia captar direito o que passava. Tudo estava acontecendo meio rápido. Sentia nos colegas a mesma confusão. Via que alguns choravam, outros estavam em estado de pânico e o resto rezava. Não sabia o que fazer, a qual grupo se juntar. Começou a entrar em pânico quando ouviu gritos vindos do andar de cima. Achou estranho que um dos sequestradores se apressou em dizer: - Não é nada, podem ficar tranquilos. O pessoal de cima só deve ter acordado com o susto. Como ele poderia pedir calma naquele momento? Guilherme estava inconformado com o pedido. Nem todos conseguem ter a frieza para ficar tranquilo durante um sequestro. Mas conseguiu se segurar e não falar nada. Não queria que nada de pior acontecesse. Um dos sequestradores desceu, e chamou o que havia pedido calma para conversar do lado de fora da sala de jogos. Todos estavam apreensivos, pois não tinham a mínima ideia do que poderia sair dessa conversa. Enquanto isso, o choro, o pânico e a reza continuavam: os alunos só queriam que isso acabasse logo. Naquele momento, alguns já queriam até abortar a viagem e voltar para a casa, para ficar junto de seus pais. Quando retornou, o bandido anunciou: - Em 10 minutos começaremos a recolher celulares, câmeras, joias e dinheiro. Não escondam nada, porque vamos vasculhar. E se acharmos alguma coisa, vai ser pior para vocês. Um dos sequestradores percebeu o baralho espalhado em cima de uma das mesas. Pegou as cartas e começou a falar: - Vocês estavam jogando truco? Quem aqui é bom? Alguém tá a fim de jogar?
O silêncio foi absoluto. O sequestrador largou as cartas e voltou a vigiar a porta da sala. A revolta de Guilherme atingiu o limite nesse momento. Como que ele poderia fazer essa pergunta no meio de um sequestro? Ele só podia estar sendo muito sarcástico, brincando com os estudantes nesse momento de medo. Queria levantar e começar a xingar todos os bandidos. Estavam estragando a viagem que estava esperando desde o início do ano e ainda não tinham respeito nenhum pelas pessoas. Eles estavam apavorados, não queriam ouvir piadas. Mas novamente conseguiu se segurar e desviou o pensamento antes que a situação piorasse. Começou a pensar em sua família. Naquele momento seus pais estavam dormindo e não tinham nem noção do que estava acontecendo com ele. Pensou no susto que todos levariam quando descobrissem sobre o sequestro. Mas como descobririam? Com certeza pegariam o celular de todos. Será que os pais de todos os estudantes os fariam voltar para casa depois disso? Não conseguia chegar a uma conclusão do que ele queria naquele momento. Na parte de cima, o arrastão já havia se iniciado. Os estudantes entregavam tudo o que tinham. Se entregavam pouca coisa, os sequestradores perguntavam onde estava o resto. Para que não acontecesse nada de mal, diziam a verdade: a maior parte do dinheiro estava nas malas. Ao concluir o arrastão, um dos sequestradores gritou para o pessoal da parte de cima: - Quem falou que tem coisa na mala, levanta. A gente vai pegar lá embaixo. O professor responsável do pessoal de Palmital, Jorge, ficou com medo de que fizessem algo com os estudantes. Exigiu que fosse levado junto para garantir que isso não iria acontecer. Na sala de jogos, Guilherme se encontrava em um momento de dúvida: não queria que nada acontecesse com ele, mas ao mesmo tempo queria tentar salvar alguma coisa. Sabia que era extremamente arriscado e que estava jogando com sua vida. Acabou tomando a decisão mais sábia: entregar o que tinha. Ao passar o saco, jogou dentro seu celular, sua câmera e sua carteira, fechada. Resolveu arriscar com a carteira, pois dentro dela havia somente 30 reais e o cartão de crédito de seu pai. O resto do dinheiro vivo estava em sua mala, mas resolveu não contar. Ficou mais tranquilo quando o sequestrador resolveu não olhar o interior de sua carteira. Passado alguns minutos, o pânico voltou a tomar conta, ao ver seus amigos descendo do ônibus na mira da arma, para uma noite escura e atipicamente fria. Mas essa última poderia ter sido desencadeada pelo medo. Queria saber o que estava acontecendo, mas não tinha coragem de perguntar. Não tinha coragem de
dizer nada, somente de ficar abraçado ao seu joelho em seu banco. Ficou mais tranquilo quando ouviu um dos sequestradores falando o que era aquilo. Algum tempo depois, que poderiam ter sido 10 minutos, meia-hora ou uma hora inteira, já que com o medo e sem celulares e relógios haviam perdido a noção das horas, os estudantes começaram a voltar para dentro do ônibus. Aparentemente nada havia acontecido com eles, mas era difícil de confirmar, pois estava muito escuro. Mas um deles não subiu as escadas: entrou na sala de jogos. Era Vitor. Imediatamente começaram a perguntar o que havia acontecido quando ficou trancado para fora. Vitor contou que ao sair do banheiro, percebeu que a porta da sala de jogos estava trancada, por isso resolveu subir para dormir um pouco. Enquanto subia a escada, sentiu o cano da arma em sua barriga e levou um susto. Só não gritou porque o sequestrador foi mais rápido e exigiu que não falasse nada para que não ocorresse nada de pior. Depois desse detalhe, o que se seguiu não surpreendeu ninguém, a não ser um comentário feito por ele no final do relato: - Eles levaram a gente para o meio do canavial. O pânico voltou a tomar conta de todos que estavam no andar de baixo. Se perguntavam por que haviam levado eles até o canavial. Algumas pessoas começaram a achar que iriam fazer algo com eles. Esse medo ficou na sua cabeça até que um dos sequestradores anunciou: - Todo mundo lá pra cima, já. Ao subir, se juntou aos demais colegas que não havia visto durante todo o sequestro. A situação no andar de cima era ainda mais tensa que da sala de jogos: várias pessoas choravam incontrolavelmente e tremiam de medo. Chegou a achar até que algumas meninas iriam passar mal, de tão descontroladas que estavam. Quando os sequestradores desceram novamente e nenhum ficou observando os alunos, Renata, uma das estudantes, contou o que havia feito: enquanto o pessoal descera pegar o dinheiro e outros objetos de valor na mala, aproveitou o fato de ter conseguido esconder seu celular e ligou para a polícia. Mas de nada adiantou: não sabia explicar onde estavam. Quem estava ao redor e ouviu a história ficou furioso: - Como você pode? Se te descobrissem podiam ter matado a gente! - Você é idiota menina? Do lado de fora do ônibus, os primeiros raios de sol começavam a despontar no horizonte, mas ainda estava bem escuro. Alguns minutos depois, perceberam que o ônibus estava sendo ligado. Não entendiam o que estava acontecendo, mas o
professor logo subiu e explicou: o sequestro estava chegando ao fim. Eles seriam reconduzidos para fora do canavial e poderiam seguir viagem. Todos comemoravam. Mas não pelo fato de que poderiam seguir viagem. Estavam simplesmente aliviados que aquele pesadelo estava chegando ao fim. Ao retornarem à estrada, os carros dos sequestradores arrancaram e logo desapareceram. E mesmo com todo o stress que haviam passado, o professor decidiu que a viagem continuaria em direção ao seu destino, em Goiás. Ninguém reagiu, pois o cansaço bateu na hora. Aos poucos conseguiram dormir, mas Guilherme demorou a pegar no sono, juntamente com alguns outros colegas que estavam nos bancos da frente. Continuaram conversando baixinho para não atrapalhar ninguém. Até que perceberam algo na estrada: roupas jogadas nos acostamentos e malas no meio do mato. Logo reconheceram os pertences de seus amigos. No final das contas, além de levar os objetos de valor, os sequestradores resolveram levar consigo as malas de alguns alunos. Mas em um primeiro momento ninguém se importou: só queriam fingir que as últimas horas não tinham acontecido de fato.