Meio Século de Lutas

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO DEPARTAMENTO DE JORNALISMO

Acadêmico: Guilherme Longo Disciplina: Redação VII

Meio século de lutas Há 50 anos, João Geraldo Carvalho se mudou para a Ponta do Leal, no Estreito. Desde então, faz parte de uma das comunidades mais combatentes da cidade, que busca o direito de uma moradia digna. “O diferencial é que o povo da Ponta do Leal é um povo que luta. Luta pela sobrevivência. Corre atrás do prejuízo, não fica parado. Tenta vencer. E a gente venceu” Todos os dias, Seu Geraldo segue a mesma rotina. Acorda antes do nascer do Sol, pois sua alma de pescador fala mais alto, por mais que esteja aposentado há dez anos por problemas no coração. Depois de fazer café, pega uma xícara e sai andar pelas ruelas e observa os casebres de madeira da comunidade da Ponta do Leal, sua casa por meio século. Mas no último ano, uma construção tem feito Geraldo olhar todos os dias para além das casas de seus vizinhos e amigos. Suas novas casas. Um conjunto de prédios, financiados pelo Governo, para realocar toda a comunidade. Sair das cem casas de madeira que abrigam centenas de famílias e ir para apartamentos próprios, não necessariamente com mais espaço, deixa Seu Geraldo feliz e triste ao mesmo tempo. Por mais que esteja garantindo uma moradia permanente para si e sua família, teme que esse relacionamento com seus amigos se modifique. Teme também que a história da comunidade acabe se perdendo com o tempo. História que Seu Geraldo lembra todo dia com emoção ao ver as construções, conquista de anos de disputas com a Prefeitura e o Governo, ao longe. João Geraldo Carvalho tinha apenas cinco anos quando sua vida passou por uma grande reviravolta. Morava em São Francisco do Sul, junto seus pais e os irmãos, um mais velho, Antônio e outro mais novo, João. Em 1964, pouco antes do Golpe Militar, seu irmão se casou e mudou para Florianópolis, deixando a família no interior do estado. Quase todo o trabalho em casa ficava nas mãos do pai e dos irmãos, porque a mãe de Geraldo era cega. Até o momento em que o pai inexplicavelmente adoeceu e


morreu, deixando a esposa e os filhos sozinhos. Para Antônio, a saída era levar todos para a capital. Antônio morava com a esposa em uma casinha pequena, na Rua XV de Novembro, no Estreito, mas o espaço não era suficiente para abrigar mais três moradores. Decidiu então que era a hora de ficar mais próximo do mar, de onde tirava seu sustento trabalhando como pescador. Enquanto construía sua casinha e um rancho para guardar seu barco, tinha início a comunidade da Ponta do Leal. De vez em quando, a família de Geraldo voltava a São Francisco do Sul para visitar parentes e amigos. Geraldo lembra que parte da conversa era sempre igual: “E aí, tem emprego por lá?”. Assim, vários conterrâneos vieram para a Ponta do Leal nos anos seguintes. O embrião da comunidade disputava espaço com uma multinacional. Naquela mesma área, a Texaco havia construído um cais para receber navios com carregamento de combustível. Representantes da empresa foram diversas vezes falar com os novos moradores para tentar dissuadí-los de morar ali, mas todas sem sucesso. Geraldo foi muito importante para o desenvolvimento da comunidade. Além de trabalhar como pescador, também servia de carpinteiro, construindo as casas para as famílias recém-chegadas. Não fugia do serrote e do martelo. Para ele, o mais importante era conseguir dinheiro para sustentar seus seis filhos. Mas várias vezes tentou ser impedido de construir as moradias pela polícia. Sempre respondia com a mesma frase. “Trabalhar agora é crime? Dos ricaços que constroem casas em qualquer lugar vocês não pedem o alvará”. Nos primeiros anos, a situação de vida na Ponta do Leal era precária. Não havia água nem luz para os moradores. A solução era buscar em outros locais. Geraldo e seus irmãos arrumavam luz através de um “gato” feito na Casan. Ele conta que havia conseguido uma extensão de aproximadamente 50 metros que ia do prédio da Companhia até as casas. Toda noite iam conversar com os seguranças da Casan para que conectassem a extensão na tomada para assim terem luz. Já a água as famílias iam buscar em poços que ficavam a uns 500 metros da Comunidade. O perfil da comunidade mudou bastante com os anos. Grande parte dos moradores originais e as primeiras gerações de filho se dedicavam exclusivamente à pesca. “Até porque os tempos eram outros, o acesso era mais complicado e pra maioria não compensava sair daqui”, comenta Geraldo. Mesmo com o pouco dinheiro que ganhavam, ninguém reclamava. As pessoas viviam felizes, pensando pouco no mundo que estava ao redor. “O pescador é malandro. Pensa só no mar. Quer estar sempre lá”. Geraldo chegou a ter três de seus filhos trabalhando com ele na pesca.


Mas não trabalhou somente como pescador. Nas épocas de baixa produtividade, arrumava empregos na área da construção, como pintor, carpinteiro, produção de moldes de gesso, entre outros. Enquanto atuava como pescador, Geraldo acordava todo dia às 3 da manhã. Gostava de ir para o mar no máximo às 4, depois de tomar uma xícara de café e preparar um lanche para comer enquanto estivesse trabalhando. Voltava cedo, umas 9 da manhã. Nesse horário, sua esposa assumia o barco e ia pescar. Já outros pescadores possuem seus ritmos próprios. Alguns gostam de ir pescar à meia-noite e voltar com o amanhecer. Outros às 5 da manhã para voltar no horário do almoço. Durante todo o dia, é comum ver os barquinhos navegando pela baía. Com o acesso mais fácil à educação e uma melhora na qualidade de vida, a segunda geração passou a tentar a sorte fora do Leal. “Eu ouvia minha filha falando pro meu neto: ‘Não. Não é mais pescador igual meu pai. Meu pai sofreu muito, não ganhava nada. Tu vai estudar pra ser alguém na vida.’ Doía ouvir, mas era a realidade”. Para os moradores, um dos maiores problemas era o preconceito com quem morava por ali. Próximo à comunidade, fica a escola Aderbal Ramos da Silva. Geraldo batalhou por muitos anos para que as crianças pudessem estudar lá. Mas o diretor, até pouco tempo atrás, discriminava os alunos e proibia a sua entrada. Assim, eram obrigados a frequentar uma escola no Monte Cristo. O preconceito também vinha de quem morava nos bairros próximos. Várias pessoas queriam a comunidade bem longe dali. Chegaram até a fazer alguns abaixo assinado, sem sucesso. Nos anos 90, Geraldo viu uma grande quantidade de pessoas de outros locais do país se mudarem para a Ponta do Leal. Mas um se destacou dos demais. Ramon veio da Bahia e se relacionava pouco com os moradores. Vivia dentro de sua casa, recebendo pessoas desconhecidas o dia inteiro. Havia muita desconfiança sobre o que ele fazia ali. Os moradores dos arredores comentavam que ele era traficante e que sua boca estava se tornando uma das maiores da região. Com medo, algumas pessoas da Comunidade resolveram se armar para proteção. Quando ficou sabendo disso, Ramon decidiu deixar a Ponta do Leal, para não criar problemas. Foi preso pela polícia uma semana depois com mais de 50 quilos de maconha e crack. Ao longo de 50 anos, a comunidade recebeu visita de diversos políticos. Candidatos à vereador, prefeito, deputado, senador e até governador. A história era sempre a mesma: promessas de instalação de luz elétrica, rede de esgoto, realocação da comunidade, melhorias de vida no geral. A contrapartida? O voto. Mas todos sempre percebiam as reais intenções das pessoas. Uma vez, Geraldo e outro morador chegaram a brigar com um candidato a Deputado. Ele havia prometido diversas coisas


aos moradores porém não havia cumprido com o acordo e retornou quatro anos depois com o mesmo discurso. Após algumas camisas rasgadas e olhos roxos, a polícia chegou para interferir. Mas o crescimento da comunidade chegou a um ponto em que perdeu o controle. Muitos filhos da comunidade começaram a casar entre si e continuaram morando no local. Isso trouxe o problema da coabitação para grande parte das famílias. Geraldo vivia em uma casa de madeira com pouco mais de 35 metros quadrados com sua esposa, os seis filhos, além de uma nora e um neto. Se duas de suas filhas não tivessem se mudado há alguns anos, a situação poderia ter sido ainda pior. Para ele e Gão, presidente da Associação de Moradores, era a hora de lutar por um espaço maior e melhor para as mais de 100 famílias. Para facilitar o trabalho, a comunidade decidiu formar uma comissão entre os membros da Associação de Moradores para participar das reuniões e reivindicar seus direitos. Geraldo era um dos escolhidos, mas sempre preferiu deixar o diálogo com Gão: “Ele sempre soube falar melhor que eu. Consegue bater de frente com quem que seja”. Mas nunca tomaram as decisões sozinhos. “Não decidimos nada. Tudo passa por uma assembleia com todos os moradores. Não damos nenhuma resposta na hora”. Para a dupla, o mais difícil foi ter que estudar. “Não sabíamos as leis. E tínhamos que aprender. Sem isso, iam contornar a gente na primeira reunião”. Geraldo agradece todo dia pela ajuda e o empenho de Gão na luta da comunidade. O esforço do amigo era tão grande que toda semana Gão vinha até a Universidade participar de reuniões e tirar xerox de documentos necessários a pé, por não ter dinheiro para pagar a passagem de ônibus. Gastava cerca de três horas para fazer o percurso de ida, mais três para a volta. Foram mais de 15 anos de luta. No total, a dupla participou de mais de 150 reuniões com representantes da prefeitura, do governo estadual e até do federal. “Ir para Brasília foi um dos melhores momentos dessa luta. Conseguimos contar a nossa história para muita gente importante”. A gestão de Dário Berger na prefeitura de Florianópolis marcou um dos momentos mais tensos da luta pela realocação da comunidade. Na época, Átila Rocha, secretário de Habitação, durante uma reunião com representantes da Ponta do Leal chegou a ameaçar os moradores: “Ou vocês saem por bem ou saem por mal. Porque eu vou trazer as máquinas e passar por cima de guri pequeno, de mulher, o que tiver que matar”. Geraldo precisou controlar os presentes, que não queriam deixar que o secretário saísse sem uma retaliação. O próprio Átila precisou pedir ajuda a Geraldo, mesmo depois de tudo o que havia dito.


Nesses 15 anos, diversas propostas foram apresentadas à comunidade. Em 2009, tudo dava a entender que a busca ia chegar ao fim. Um representante da prefeitura foi até a Ponta do Leal apresentar a proposta de um terreno no Monte Cristo com espaço suficiente para todos os moradores terem suas próprias casas. Todos se animaram com a proposta, exceto Geraldo e Gão, que tinham a impressão de que não estavam lhes dizendo tudo. Foram um dia até o local para conhecer um pouco melhor e se surpreenderam com o que descobriram. O ponto era linha de fogo entre duas favelas dominadas por traficantes. Os tiroteios eram constantes no local. Foi o fim de qualquer negociação entre os moradores e a prefeitura, pelo menos enquanto Dário estava no poder. Em 2013, Geraldo estava em casa descansando quando o telefone de sua casa tocou. Era um representante da Secretaria de Habitação. A prefeitura e o governo federal haviam chegado a um acordo para ceder parte do terreno da Casan para construir três prédios de apartamentos para realocar as famílias. Enquanto ouvia a notícia, não sabia o que falar, como reagir, a quem falar primeiro. Estava atônito. Foram vários “aham”, seguido de um “ok, obrigado”, antes de desligar o telefone. Na mesma hora foi até a casa de Gão, que dormia após uma noite de trabalho. Acordou o companheiro para contar a novidade. Na mesma hora, convocaram uma reunião da Associação de Moradores para a mesma noite. A festa durou a noite inteira naquele dia. Infelizmente, está chegando a hora de Seu Geraldo se separar de alguns amigos. O novo prédio, localizado atrás da Casan, terá espaço para apenas 88 famílias. As outras 10 se mudarão para o Jardim Atlântico, em um prédio do programa “Minha Casa Minha Vida”. Mas ainda resta algum tempo. Para as 10 famílias, a mudança deve acontecer apenas em outubro desse ano. Para as demais, somente depois do Carnaval do ano que vem. 50 anos se passaram desde que Seu Geraldo chegou àquela praia. Lá, não somente levantou sua casinha e exerceu sua profissão. Viu Florianópolis se desenvolver ao longo da baía que estava na sua frente todos os dias quando acordava. Ajudou dezenas de famílias a fazerem daquele local seus lares. Fez amigos, inimigos, companheiros de luta. Agora, tudo estava chegando ao fim. Era hora de descansar e aproveitar.


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