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A palavra insensata TAGS: Literatura
Para além de uma expressão estética, a literatura aparece para Foucault como o terreno privilegiado em que se efetua uma experiência extrema de pensamento Pouco antes de sua morte, em 1984, Michel Foucault publicou um texto notável, no qual interroga as qualidades de certos espaços que nos cercam. Para além dos locais empíricos, bem como das utopias – que são posicionamentos fora da realidade –, ele destaca o que chama de “heterotopias”: lugares que, mesmo sendo localizáveis, se configuram como um lugar à parte, constituindo uma espécie de contestação ao mesmo tempo mítica e real do espaço em que vivemos. Cada heterotopia teria uma função no tecido social, que variaria entre pólos extremos: ora abrigando o desvio – como acontece com as prisões ou com os bordéis –, ora projetando os ideais de uma sociedade, como é o caso das bibliotecas ou dos museus. A imagem mais bem acabada da heterotopia, porém, seria dada pelo barco. Como observa Foucault, o barco é um espaço flutuante, um lugar sem lugar, que vive por si mesmo, fechado em si e, ao mesmo tempo, lançado ao infinito do mar. Daí ele funcionar, desde o século 16 até os dias de hoje, não apenas como um importante instrumento do progresso econômico das sociedades, mas também como “a sua maior reserva de imaginação”. Nas civilizações sem barcos, conclui o autor, “os sonhos se esgotam, a espionagem substitui a aventura e a polícia, os corsários”.1? Sonhos, aventuras, personagens fantasiosos – é digno de nota que o autor de As palavras e as coisas tenha descrito o mais expressivo desses “outros espaços” por meio de elementos tão próprios à literatura. Aliás, o texto de Foucault sugere várias afinidades entre a escrita ficcional e as heterotopias: o que dizer, por exemplo, da função de “reserva de imaginação” atribuída aos barcos, que os aproxima definitivamente da escrita literária? Com efeito, essa aproximação está longe de ser pontual, visto que ela retorna em diversas passagens da obra foucaltiana. A começar por sua insistente afirmação da espacialidade da linguagem, desenvolvida na contracorrente das teorias que advogam sua relação primitiva com o tempo. Foucault disse e repetiu inúmeras vezes que a dimensão temporal descreve apenas uma função da sintaxe, mas não o seu ser: “o que permite a um signo ser signo não é o tempo, mas o espaço”. Ou, em resumo: “a linguagem é espaço”.2? Para justificar afirmativas tão categóricas, o autor lança mão de uma série de aspectos estruturais da linguagem, no empenho de confirmá-la como um sistema de signos que obedece a exigências sincrônicas, simultâneas, arquitetônicas e, por conseguinte, espaciais. Esse seria, se quisermos, o núcleo mais duro de seu pensamento sobre o tema, configurando concepções que por vezes chegam a resvalar em certo dogmatismo. Vale lembrar, contudo, que tal vertente de inspiração francamente estruturalista não esgota a formidável rede de relações entre espaço e literatura que ele explora com particular vigor. Prova disso se encontra em vários textos seus, em especial os dedicados à moderna ficção européia, quase todos escritos nos anos 60. Num artigo consagrado a Maurice Blanchot, por exemplo, o autor toma um ponto de partida já fortemente marcado pela noção de espacialidade para definir a literatura como “a linguagem se colocando o mais distante possível dela mesma”.3? Trata-se, portanto, de uma definição tópica, que supõe um deslocamento essencial no modo de ser da linguagem, em paralelo a um novo tipo de experiência discursiva que surge a partir do século 19. Experiência fundamentalmente negativa, completa Foucault, já que ela atenta sem cessar ao efeito de desrealização que repousa no horizonte de todo enunciado. Alheia a esse efeito, a fala cotidiana toma palavras e coisas como equivalentes, na crença de que a simples evocação do nome pode restituir a presença do ser. Se essa crença também está na base de toda estética da representação, é precisamente a ela que a literatura moderna vai dar as costas, ao postular a irrealidade como sua própria razão de ser. Daí sua inquietude, sua instabilidade, mas também seu poder e sua liberdade. Daí, principalmente, a sua insensatez. Foucault vai eleger a obra de Blanchot como expressão exemplar desse discurso insensato, atentando para a prática da ausência que se trama em seus escritos. Com efeito, para o autor de A parte do fogo, a linguagem sempre impõe um recuo inevitável diante da existência: “Eu me nomeio, e é como se eu pronunciasse meu canto fúnebre: eu me separo de mim mesmo, não sou mais a minha presença nem minha realidade, mas uma presença objetiva, impessoal, a do meu nome, que me ultrapassa, e cuja imobilidade petrificada faz para mim exatamente o efeito
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