[espaรงo-entre] arquitetura e arte
lado
Giovana Cruz Alves
Centro de Artes
Departamento de Arquitetura e Urbanismo
[espaço-entre] arquitetura e arte Giovana Cruz Alves
lado
Universidade Federal do Espírito Santo Vitória, 2009
Projeto de Graduação apresentado ao Departamento de Arquitetura e Urbanismo do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito para a obtenção do título de Arquiteta e Urbanista.
[espaço-entre] arquitetura e arte Giovana Cruz Alves
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Orientadora: Martha Machado Campos Co-orientador: Bruno Massara Rocha
[F01] mesa interativa | Museu da LĂngua Portuguesa
folha de aprovação Giovana Cruz Alves
projeto de graduação aprovado em
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/
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ata de avaliação da banca
avaliação da banca examinadora nota
data
profª Martha Machado Campos
nota
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prof° Bruno Massara Rocha
nota
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convidado(a)
[F02] mesa interativa | Museu da LĂngua Portuguesa
agradecimentos Àqueles que contribuíram para a realização deste trabalho: à Martha e ao Bruno, pelo apoio, incentivo e confiança, à Bebel, pelas conversas e opiniões imensamente enriquecedoras, ao Vitor, por sua biblioteca sempre disponível e pela minuciosa revisão, aos queridos amigos que emprestaram suas vozes para a realização do vídeo, a todos aqueles que foram ouvintes, conselheiros e companheiros, ou simplesmente fizeram parte da minha vida no instigante e maravilhoso período de desenvolvimento deste Projeto de Graduação.
Àqueles que compartilharam de alguma maneira o amor pela arquitetura: a todos os amigos que fiz ao longo desta faculdade, aos de todas as horas e aos de poucas oportunidades, aos de perto e aos de longe, aos amigos professores e aos professores amigos, enfim, a todos que somaram peças importantes neste meu percurso. Em especial à Mirella, companheira de todos os momentos da minha história no CEMUNI III, e ao John, o maior incentivador dos meus sonhos e um dos grandes responsáveis pela visão que tenho hoje da arquitetura.
Àqueles que sempre foram e sempre serão essenciais para a minha vida: aos meus pais, à minha irmã, e a Deus.
[F03] mesa interativa | Museu da LĂngua Portuguesa
[...] o que experimentamos e nos atrai em uma obra de arte é o fato de que ao contemplá-la podemos conhecer e reconhecer algo nela e, simultaneamente, em nós mesmos. Carlos A. L. Brandão
[F04] mesa interativa | Museu da LĂngua Portuguesa
resumo ‘[espaço-entre] arquitetura e arte’ trata das questões espaciais na/da arte. Busca um aprofundamento no universo das experiências estéticas e sensoriais proporcionadas pelas obras artísticas e tenta compreender as influências que a arquitetura exerce sobre a fruição de um espectador em uma exposição. Tem como objetivo discutir os pontos comuns às duas disciplinas (arquitetura e arte) e estabelecer uma espaço de interseção entre elas. Através de aproximações com objetos artísticos e arquitetônicos de períodos distintos, o trabalho tece uma linha lógica de “evolução” dos processos criativos da arquitetura e da arte, no que concerne especificamente aos conceitos da espacialidade, e alcança um breve panorama das tendências dessas disciplinas na sociedade contemporânea.
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[primeiras palavras] arte, espaço e ação estética o(s) corpo(s) o movimento o tempo corpo, movimento, tempo e tecnologia [lista de fotografias]
[anexo] ensaio da palavra
[referências bibliográficas]
[espaço-entre]
a arquitetura expositiva - expografia (e cenografia)
o museu e o centro cultural contemporâneos
o lugar da arte - do cubo branco à arte pública
arquitetura como earthwork
[primeiras palavras]
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85 b
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47 b
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sumário
[primeiras palavras] A experiência estética intrínseca à existência humana e atualizada através dos nossos sentidos é um dos deleites mundanos mais incorporados ao diaa-dia dos sujeitos contemporâneos. Cores, formas, luzes e texturas fazem-se presentes em tudo e em todos, estabelecendo uma comunicação constante entre as pessoas e entre elas e o mundo. Arquitetura e arte fazem parte dessa experiência cotidiana. A arquitetura, fazendo do abrigar uma possibilidade de experiência sinestésica que funde razão e emoção. A arte, reinterpretando os dramas e conflitos humanos e devolvendo-os ao mundo das mais diversas formas. Assim surgiu “[espaço-entre] arquitetura e arte”. Nas voltas de uma experiência estética particular entre o universo da arquitetura e da arte. Como ponto de partida, estavam as inquietações de uma, até então, espectadora da arte estimulada pelas visitas que fazia aos espaços culturais das cidades por onde passava.* Foi a partir dessas experiências de “degustação” da arte que começaram a surgir alguns questionamentos em relação às influências que os suportes, percursos, linguagens e ordenamentos determinados para uma exposição poderiam causar na fruição de um espectador. Para esses questionamentos, no entanto, as respostas não tardaram. É claro que todos esses fatores influenciam, e muito, a apreensão por parte daqueles que experimentam o espaço expositivo. Mas estava pela frente uma série de outras questões que viria como conseqüência dessa aproximação entre dois campos disciplinares. Estava pela frente um estimulante projeto de pesquisa acerca do espaço na/da arte. “[espaço-entre]” veio, então, como mergulho nesse universo híbrido, cunhado a partir de um olhar por vezes arquitetônico, por vezes artístico, outras
* As fotografias que acompanham a primeira página de cada capítulo fazem parte do arquivo pessoal da autora. São registros das exposições, galerias, museus e centros culturais já visitados.
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vezes “miscigenado”, já que os limites e fronteiras entre arquitetura e arte são demasiadamente tênues nesse campo específico de pesquisa. Através de uma abordagem teórica que reflete o próprio processo de construção do trabalho, as aproximações com o objeto artístico e arquitetônico foram separadas em dois grandes blocos. [lado a] e [lado b] configuram-se como duas entradas para um mesmo fim. Dois lados de um disco, que tentam distinguir o olhar arquitetônico e artístico de uma problemática, mesmo sabendo que estes olhares freqüentemente se contaminam e se entrelaçam nos meandros de suas existências. Por meio do [lado a], o trabalho reflete uma aproximação com as práticas artísticas num recorte histórico não necessariamente linear que engloba desde as experimentações dadaístas do início do século XX até as artes tecnológicas dos dias atuais. Tentando abordar o viés mais “arquitetônico“ e “espacial” que a arte pode oferecer, o percurso do [lado a] desenrolou-se a partir das práticas estéticas levadas a cabo por uma ação (o ‘andar’) e seguiu destrinchando os componentes básicos dessa ação (o corpo, o movimento e o tempo). Ao fim dessa abordagem, os mesmos componentes foram considerados à luz das tecnologias atuais. No [lado b], a discussão aborda inicialmente as práticas arquitetônicas que recorrentemente são desenvolvidas no trecho limítrofe entre as disciplinas da arquitetura e da arte, para depois construir um panorama das soluções arquitetônicas, museográficas e expográficas em espaços culturais, num recorte político e socialmente contextualizado, que abrange mais especificamente o intervalo entre o final do século XIX e os dias de hoje. O [espaço-entre], configurado como a fronteira entre as duas abordagens propostas, é onde se obtêm de fato a interseção das aproximações arquitetônicas e artísticas. Com caráter conclusivo, o [espaço-entre] traduz-se como o intervalo que possibilita a digressão. Todo entre é lugar da espera, da suspensão e da fissura que nos levam à experiência do sublime. E este é o papel de “[espaço-entre] arquitetura e arte”: despertar no leitor a reflexão sobre o potencial
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dessas disciplinas enquanto experiências do sublime. O anexo traz ainda os registros de um exercício lúdico chamado ensaio da palavra, que, com um caráter ilustrativo, tenta abarcar as conclusões advindas das ponderações deste trabalho. Sendo assim, em direção ao [espaço-entre], o leitor poderá dar início, por um lado ou por outro, ao seu mergulho no universo aqui apresentado. Por mais que haja uma sugestão em relação ao percurso de leitura desse trabalho (pois quando falamos em [lado a] e [lado b], já se pressupõe que “a” vem antes de “b”), cada leitor poderá escolher, a partir de suas afinidades e interesses, qual caminho tomar. E seja qual for a sua escolha, a apreensão das reflexões propostas será distinta daquela que me fez adentrar por esse campo de pesquisa. Isso é o que se espera, pois afinal, já não será somente a minha reflexão, mas a sua.
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[F05] Catรกlogo | Valeska Soares | 2008
arte, espaço e ação estética Transitando entre os campos da arquitetura e da arte, daremos início a esse viés a que chamamos [lado a]. Esta será a face do trabalho onde tentaremos seguir um ponto de vista artístico, para discutir as questões que dizem respeito às experiências espaciais proporcionadas pela obra de arte. A pergunta chave neste caso é: quando e como a arte começou a contestar o espaço? Imersos na contemporaneidade, época em que as manifestações artísticas extrapolam o senso espacial e passam a se colocar de formas imprevisíveis aos nossos olhos, essa pergunta pode soar ultrapassada, mas o fato é que há não muito tempo a arte ainda era completamente vinculada à arquitetura e há menos tempo ainda ela passou a ter autonomia e se colocar de forma independente, porém sem ter o perfil de traduzir em formas e espacialidades as suas proposições. A arte que discute o território, o corpo, suas apropriações, enfim, a arte que faz referência ao espaço é de certa forma recente. E esse será o nosso ponto de partida. O início dos questionamentos da arte acerca das problemáticas espaciais. No livro El Espacio Raptado – Interferencias entre Arquitectura y Escultura (1990), Javier Maderuelo aborda tais questões sob o ponto de vista da busca por uma arte pública.1 Por meio de exemplos artísticos da segunda metade do século XX, Maderuelo nos coloca o momento quando, de fato, os artistas começaram a reclamar a categoria de arte pública para suas obras, derrubando os conceitos da arte que se voltava meramente para o espaço institucional. A politização da arte, em meio a conflitos latentes em todo o mundo naquela época, acabou por gerar, em alguns artistas, a repulsa ao sistema comercial da arte e a conseqüente tomada do espaço público para a exposição das novas propostas que surgiam naquele momento. Grupo Fluxus, Gordon Matta-Clark, Robert
1 Vale lembrar que até o século XVIII, às artes plásticas reservavam-se apenas os ambientes particulares de casas e palácios ou, no máximo, as igrejas, que tinham as obras como vínculo de aproximação do mundo terreno com o mundo divino. Somente após a criação dos museus, a arte começou a ser acessível a outras pessoas que não os próprios colecionadores e seus convidados. No entanto, um certo ar privado continuou a fazer-se presente nos espaços museológicos.
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Smithson, Walter De Maria, são exemplos de grupos e artistas que participaram efetivamente desse momento na História da Arte. Fica nítido o caráter público da arte que Maderuelo aborda através das iniciativas e propostas desses artistas. No entanto, além da clara crítica em relação à acessibilidade da arte, estava arraigado a essas propostas o questionamento acerca do espaço em si e da relação que a arte estabelecia com ele através da sua inserção. Mas será que este foi mesmo o início de tais questionamentos? Na verdade fica difícil definir com precisão um marco inicial, pois na História da Arte nem tudo ocorre linearmente. Por vezes algumas iniciativas aparecem isoladas de um movimento, tornando difícil demarcar um ponto de partida preciso. Fazse necessário, então, estabelecer um referencial. Por isso, nos apropriaremos a partir de agora das considerações de Francesco Careri em seu livro Walkscapes – El Andar como Práctica Estética (2002) e tomaremos o ‘andar’ como ato determinante para compreender o início desse processo artístico. O ato de andar, nos primórdios, era inerente à noção de sobrevivência. Era preciso andar para caçar, para plantar, para ter o que comer, enfim, para viver. Era uma necessidade, e assim foi durante muito tempo. As pessoas andavam somente pela sobrevivência. Quando, então, o ‘andar’ deixa de ser meramente necessidade e passa a ser ação estética, assumindo um caráter simbólico, agregando um conceito questionador e modificando o espaço atravessado, podemos dizer que aí se dá o momento que representa, para nós, o início da investigação arquitetônica-artística-espacial a que se propõe este trabalho. Hoje, através desse ‘andar’, é possível construir fisicamente o espaço e modificá-lo em seus significados. Durante a travessia de um espaço, o sujeito o percebe e, simultaneamente, imprime nele a sua percepção. Ou seja, transforma-o, ainda que esta transformação possa não estar num plano tangível. Andar é a leitura e escritura simultâneas do espaço. (CARERI, 2002, p. 27)
Sabendo disso, passaremos a considerar, ainda adotando Careri, três impor-
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tantes momentos na História da Arte que apontam o ‘andar’ como prática estética através da atuação de arquitetos e artistas na cidade, afim de, implícita ou explicitamente, questionar o espaço e a utilização/apropriação do mesmo. Resumidamente, podemos elencar: 1) as incursões dadaístas pelos lugares banais da cidade de Paris, quando o ‘andar’ assumiu o papel de anti-arte; 2) a Teoria da Deriva e seu jogo lúdico-criativo proposto pelos situacionistas, como ação coletiva na cidade; 3) a utilização do ‘andar’ como forma artística autônoma através da exploração da natureza com as proposições dos land artistas.
as deambulações No primeiro momento, os dadaístas, inspirados no flanar de Baudelaire, ousaram levar o ato de andar para o campo da operação estética, tentando unir a arte e a vida cotidiana. Os próprios artistas passaram a assumir o papel do flaneur, que antes perambulava pelas ruas de Paris vagabundamente. A ação costumeira em um lugar corriqueiro constituiu o começo de uma inversão de valores que, um pouco mais tarde, seria exacerbada por Duchamp, ao inverter completamente a lógica da arte com a Fonte (1917) ocasião em que fez de um urinol uma obra de arte. Ou seja, pode-se dizer que as deambulações dadaístas somadas à Fonte de Duchamp consolidaram a idéia de levar a arte ao espaço banal e o objeto banal ao espaço da arte. Citando Duchamp, é imprescindível lembrar o importante papel que ele desempenhou no contexto das artes e principalmente entre os dadaístas. Foi Duchamp um dos primeiros a incitar o movimento das imagens nas artes. Em Nu Descendo a Escada N°2 (1912) fica nítida essa referência à ação. As linhas quase paralelas, de forma descendente, sugerem a idéia do deslocamento contínuo da imagem. Trata-se de um encontro com o movimento. [...] A não objetividade que emerge neste evento pode ser traduzida em termos de uma busca pela radicalidade do movimen-
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to. O corpo perde sua homogeneidade, perde sua pretensa unidade. Ele é explicitado como coletivo múltiplo e multiplicador. É escancarado pelo movimento; arrebentado pela ação, torna-se a própria ação. O corpo é movimento, é uma multidão. (PIRES, 2007, p. 58)
Essa mesma idéia de movimento, até então inexistente na arte, materializouse com a excursão dadaísta à igreja Saint-Julien-le-Pauvre em Paris, no dia 14 de abril de 1921, que ficou conhecida como La 1ère Visite. Nessa ocasião, o movimento, como anti-arte, passou a ter a proposição de uma espécie de “escritura automatica en el espacio real” (CARERI, 2002, p. 82). Um pouco diferente do ‘andar’ do flaneur de Baudelaire, que por alguns é visto como um mero burguês entediado e sem propostas na Paris do século XIX, o ‘andar’ dadaísta era dotado de proposição, ainda que fosse a proposição do banal, embebida de um caráter onírico. Esse caráter, no entanto, foi logo superado pelos surrealistas, que passaram a adotar preceitos da psicologia para suas
[F06] Fonte | Duchamp
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[F07] Nu Descendo a Escada N째 2 | Duchamp
incursões ao centro da França, numa tentativa de, através do ‘andar’, alcançar a perda do controle orientador, que os faria entrar em contato com a parte inconsciente do território. Movido pelo mesmo espírito motivador, Flávio de Carvalho, que durante seus estudos na Europa conheceu os surrealistas parisienses, também propôs as suas Experiências erráticas pelas cidades brasileiras. Em Experiência N°2, realizada em 1931 na cidade de São Paulo, ele se lançou contra a maré, num caminhar oposto ao sentido de uma procissão de Corpus Christi. Tomei logo a resolução de passar em revista o cortejo, conservando o meu chapéu na cabeça e andando em direção oposta à que ele seguia para melhor observar o efeito do meu ato ímpio na fisionomia dos crentes. (CARVALHO, 2001, apud PIRES, 2007, p. 196)
A experiência teve início no desejo de deslocamento e principalmente no desejo de ser um “outro” para os crentes, através do seu deslocamento. Segundo o próprio, essa obra foi uma “experiência sobre a psicologia das multidões” (CARVALHO, 1931, apud JACQUES, 2004) e uma forma de “palpar psiquicamente a emoção tempestuosa da alma coletiva” (CARVALHO, 2001, apud PIRES, 2007, p.201). Você anda. Não será já uma experiência? Você anda na
[F08] Experiência N° 2 | Flávio de Carvalho
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rua. Você anda no sentido contrário. Você entra no fluxo. Você é o contra fluxo. Você é o fluxo no contra fluxo. Fazer uma experiência. Fazer da experiência a experiência. Andar. Andar contra. Encontrar aqueles que não são você. Encontrar o outro nos outros. Encontrar você nos outros. Andar. (PIRES, 2007, p. 195)
a deriva O segundo momento a ser considerado no contexto das proposições estéticas através do ‘andar’ foi conduzido pela Internacional Letrista. Fundada em 1952, por Guy Debord e alguns amigos, a IL assumiu o “perder-se pela cidade” como ato anti-artístico e estético-político capaz de subverter o sistema capitalista do pós-guerra. Como forma de aproximação entre arte e cotidiano e principalmente como instrumento de crítica ao funcionalismo moderno vigente naquele momento, o ‘andar’ letrista, foi além do ‘andar’ surrealista, pretendendo alcançar e investigar as zonas inconscientes da cidade através de uma leitura subjetiva baseada na psicogeografia. Com a dissolução da Internacional Letrista e a fundação da Internacional Situacionista (que teve também Guy Debord como um de seus fundadores) em 1957, à inquietação por propor algo que fosse além dos padrões da Arte Moderna, somaram-se generosas doses de desejo por novas proposições também na cidade, já que - logo perceberam - a associação entre arte e cotidiano a qual tinham como objetivo estaria totalmente vinculada à vida urbana e à cidade como um todo. Indo da arte ao urbanismo, então, as investigações do ‘andar’ situacionista foram, cada vez mais, perdendo o tom onírico presente nas deambulações dadaístas e dando lugar a uma objetividade que se fez presente nos métodos para a construção de situações na realidade urbana. Nesses métodos, o acaso era aceito, mas já não era este o elemento que determinaria (ou não determinaria) o caminhar, e sim as regras do jogo lúdico-criativo que acabava de ser proposto. Estava consolidada, então, a Teoria da Deriva de Guy Debord.
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Tal teoria indicava que para alcançar e investigar as tais zonas inconscientes da cidade, era necessário criar situações. Nesse ponto, inerente ao conceito de situações, pode-se ler a questão do tempo-espaço, ou seja, do instante. De acordo com a Teoria da Deriva, o próprio território e os efeitos por ele causados no corpo, deveriam induzir determinadas situações para que estas conduzissem o ‘andar’ coletivo sem rumo pela cidade. E seria através desta escrita do corpo na cidade que alcançariam a construção coletiva do espaço urbano. A tese central situacionista era a de que, por meio da construção de situações se chegaria à transformação revolucionária da vida cotidiana [...]. (JACQUES, 2003)
a land art O terceiro e último momento desse recorte na história do ‘andar’ estético aponta para a utilização do ‘andar’ como atitude artística autônoma, a qual se funde ao espaço natural e acaba por configurar a própria obra no movimento da land art. Com início datado do fim dos anos 1960, o movimento da land art surgiu como uma corrente artística que pretendia ultrapassar as quatro paredes das galerias de arte, para se integrar ao mundo e unir-se aos espaços abertos e à natureza. Negando também o sistema de comercialização das obras e as amarras das tecnologias industriais, os trabalhos de land art associavam-se de maneira peculiar às questões da “terra” e manifestavam, em geral, um forte caráter ecológico. Ambiente e obra passaram a ser elementos indissociáveis. A paisagem já não era mais o simples cenário que abrigava a obra, mas ela mesma a própria obra que se materializava através de uma ação estética no território. Totalmente inseridas no sítio natural, as obras eram passíveis de destruição, já que a natureza pressupõe as ações cíclicas e transformadoras. Vento, clima, erosão e a própria intervenção humana como ações da natureza poderiam criar, transformar ou destruir os trabalhos de land art.
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[F09] A Line Made by Walking | Richard Long
Em A Line Made by Walking (1967), obra de Richard Long, é nítida a fusão entre território e ação. Da combinação entre natureza (território) e ‘andar’ (ação), resultou a escultura (linha). E isso bastou. Foi tudo. Nunca antes o ‘andar’ fora encarado tão radicalmente como ação estética. Da mesma forma que a natureza nunca antes assumira papel tão extremo enquanto campo de ação. Apesar de não ser a obra mais emblemática da land art, há que se dizer que ela bem representa e ilustra o fio condutor da proposição de Careri ao destacar os três importantes momentos do ‘andar’.
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Assim como em A Line Made by Walking, o conhecido Spiral Jetty (1970) de Robert Smithson, esta sim a obra mais emblemática da land art, territorializou um espaço desabitado. Este, situado às margens do Great Salt Lake em Utah, Estados Unidos, foi reconfigurado através da remoção e disposição de rochas e terra que construíram um braço espiralado de aproximadamente 460 metros de comprimento sobre as águas rasas do lago. Marco físico erigido numa inóspita paisagem, Spiral Jetty foi também um marco simbólico da possibilidade de conversão sígnica de um sítio natural a partir da ação estética do homem. Em um vídeo, onde documentou o processo de construção do Spiral Jetty, podemos ver, em imagens aéreas, o próprio Smithson a correr por sua obra, quando por fim ela se encontrou concluída. Foi o simples ato de andar ganhando autonomia e completando o sentido da obra. Outro exemplo dessa fusão entre arte, território e ação é a obra Wrapped Walk Ways, de Christo e Jeanne-Claude, realizada em 1978, no Loose Park, Kansas City (EUA). Nesse trabalho, que fez parte de uma série de outros muitos de mesmo caráter, os artistas “embalaram” o caminho de pedestres do parque. Foram usados 12.540m² de tecido amarelo para “embalar” 4.5 Km de caminho. Essa ação despertou os olhares para um lugar que, em geral, não teria grandes atrativos para os passantes. O interessante é que o ato de empacotar, que geralmente tem por objetivo esconder um objeto, assumiu a função oposta: a de revelar algo “camuflado” no ambiente. Neste caso, a ação chamava a atenção para o espaço do parque destinado ao caminhar e estimulava nos transeuntes o exercício de atribuir novas características, qualidades e funções para estes caminhos.
andar = corpo + movimento Discorrendo sobre esses três momentos podemos chegar à constatação de que o ‘andar’, como ação motivada não mais pela subsistência, mas pelo desejo de se configurar como prática estética, como linguagem e como expressão, pressupõe dois conceitos primordiais: o corpo em si, associado à trama de forças que o leva a uma ação, e o movimento, desenho do corpo no espaço que gera
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[F10] Spiral Jetty | Robert Smithson
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a tal escritura no sítio onde a ação se desenvolve. Temos então uma equação simples que norteará os próximos passos do desenrolar deste trabalho. Andar = corpo + movimento. Para melhor entender e desdobrar o papel do ‘andar’ (ou da ação) no contexto da arte, nos aprofundaremos a partir de agora nas demandas que envolvem o corpo e o movimento na arte.
[F11] Spiral Jetty | Robert Smithson
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[F12] Wrapped Walk Ways | Christo e Jeanne-Claude
[F13] Wrapped Walk Ways | Christo e Jeanne-Claude
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[F14] Leviathan Thot | Ernesto Neto | 2006
o(s) corpo(s) Partimos então para a apreciação do corpo (ou dos corpos). Antes de qualquer coisa, é preciso entender o que é, para nós, o corpo. Corpo é a materialização de uma imensa e complexa rede de subjetividades. É a localização orgânica de uma combinação dessas redes no mundo. É a materialidade que, segundo estímulo e ritmo particularmente distintos, exerce isoladamente ou em grupo o papel de ser ação no mundo. Ação esta que se traduz em extensão ou prolongamento do próprio corpo e das tais redes de subjetividade num espaço/tempo. Quando dizemos que cada corpo, sendo ação, é movido por estímulos distintos e atua sob ritmos também distintos, trazemos à tona a noção de singularidade do corpo. Cada corpo é único e indiviso. Isso porque o corpo, antes de qualquer coisa, é lugar de memória. E a memória, ao contrário do que parece, não é relativa ao passado. Memória é o presente ativado através da percepção do mundo. Ou seja, memória é aquilo que guardamos de percepções em temposoutros, mas que ativamos no tempo-presente através da nossa percepção no tempo-agora. Sendo assim, a percepção do agora pelo corpo está diretamente ligada ao repertório perceptivo que ele já teve ao longo da sua existência. De forma cumulativa, cada experiência perceptiva de hoje torna-se memória de amanhã e é exatamente isso que confere ao corpo o caráter de unidade. Através de sua memória particular, e delineado pela coexistência de passado e presente (memória e percepção), o corpo estabelece a sua relação com o mundo através do seu poder de ação. Essa ação, por sua vez, é o meio através do qual o corpo se permite extrapolar os limites da sua própria materialidade em direção ao encontro com o mundo. Nesse momento, o da ação, o corpo dá forma a uma espécie de fala, constituindo uma comunicação com o espaço e
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com o outro. Como conseqüência, tanto corpo como espaço acabam por imprimir suas subjetividades um no outro, de maneira que se transformam mutuamente. Assim, podemos dizer que um corpo é também o próprio espaço. Imaginemos então, o corpo urbano. O corpo que anda, corpo nômade. Corpo enquanto agente da ação, enquanto propositor. O corpo errante, recorrente na bibliografia de Paola Jacques, que se livra dos paradigmas imagéticos da cidade contemporânea para exercitar a experiência sensorial da urbe. É através, prioritariamente, das vivências e ações que o corpo errante experimenta a cidade e fica inscrito no corpo-urbano, alcançando assim o corpo-outro. Esse jogo de leitura e escrita simultâneas entre corpo e cidade é o que Jacques chama de corpografia. Uma corpografia urbana é um tipo de cartografia realizada pelo e no corpo, ou seja, a memória urbana inscrita no corpo, o registro de sua experiência da cidade, uma espécie de grafia urbana, da própria cidade vivida, que fica inscrita mas também configura o corpo de quem a experimenta. (JACQUES, 2008)
Um só corpo pode, então, conter e imprimir uma série de corpografias, tantas quantas forem as suas experiências no espaço. Segundo Jacques, à medida que o corpo se torna mais errante e se ocupa mais em desorientar-se no espaço, ao invés de orienta-se, mais corpografias serão impressas nele próprio e no corpo urbano. O desorientar-se figura como o processo que busca a percepção do espaço-todo, ou seja, o espaço em todos os seus sentidos: cheiro, som, gosto, textura e imagem. Indo de encontro à cultura demasiadamente imagética da sociedade contemporânea, que nos faz reduzir o mundo a simples combinações de imagens, o ser errante age no sentido de apreender o espaço-todo e, como conseqüência, acaba por acumular uma carga de memória urbana extremamente densa que resultará, por sua vez, em corpografias muito mais complexas.
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Uma questão que vale a pena ressaltar é que, apesar de estarmos falando de corpografia (o que remete a uma espécie de escrita), a experiência do corpo errante não se ocupa com registros físicos como os que estamos acostumados, tipo mapas, desenhos, fotografias, escritos. Os registros são subjetivos e ficam inscritos no espaço experimentado, assim como ocorria nos happenings e performances e ainda ocorre hoje através de intervenções urbanas de caráter efêmero. Essas proposições artísticas muitas vezes (não todas) são apreendidas apenas no instante em que acontecem e não deixam qualquer registro material. Mas deixemos, por hora, tais práticas artísticas e voltemos ao corpo errante. Visto pelos olhos da arquitetura e do urbanismo, o indivíduo que erra (que pratica a errância) é capaz de, conscientemente, atualizar o trabalho do urbanista. Ao projetar uma cidade, ou outro espaço, o arquiteto/urbanista prevê e indica um determinado uso para ele, mas somente aqueles que usufruem daquele espaço (e principalmente aqueles que usufruem de forma errática) são capazes de o atualizar. É através das vivências, das apropriações, das configurações de caminhos imprevistos, não pensados e não projetados pelas mãos do arquiteto/urbanista, que o espaço se torna legítimo. É através dessa prática errante que se estabelece o diálogo entre corpo-urbanista, corpo-cidade e corpo-cidadão. Dessa maneira, podemos dizer então que é intrínseca à ação errante a noção da alteridade, visto que a própria ação do corpo errante já se configura como diálogo entre ele e o espaço, sendo que este último é dotado de significadosoutros, resultantes de diálogos-outros com corpos-errantes-outros. Ou seja, mesmo que a ação errante se dê através de um corpo solitário, o diálogo que se estabelece nesse momento pressupõe uma infinidade de corpos e as respectivas corpografias que cada um imprimiu em tempos diversos naquele espaço da ação. Ainda que seja através da memória do espaço, e ainda que seja inconsciente, é fato que esse diálogo se estabelece entre um e outro corpo que ali produziu a sua corpografia.
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É aí que o espaço do mundo (espaço público, semi-público, privado, ou qualquer outro) torna-se palco e cenário dos encontros e das ações. Dizemos que a ação errante é também uma ação de entrega, pois pressupõe a existência do outro e vai em direção ao seu encontro. Citando Pires (2007, p. 72), em seu livro Cidade Ocupada, dizemos que o encontro pode ser entendido como: “espaço e ato de propagação da lógica da desigualdade”, já que, como vimos, cada corpo é formado por uma combinação distinta de forças subjetivas, que agem segundo ritmo e compasso também distintos. Ou seja, o outro é sempre sinônimo de produção de diferença. É por isso que uma simples ação errante configura-se como uma entrega, um lançar-se. Lançar-se entre. Assim, esse entre, é operado como criação de uma localidade horizontal para o encontro [...]. (PIRES, 2007, p.77, grifo do autor)
Tal capacidade do corpo de se encontrar consigo mesmo e com o outro revela a sua pré-disposição em afetar e ser afetado. Isso é comum a todos os corpos. O que difere um de outro é o que podemos chamar de linguagem. Cada um se apropria da linguagem que lhe convém para se expressar e instituir a sua comunicação com o mundo. Movimento, velocidade e tempo são elementos da linguagem própria de cada corpo. Mas não só desses elementos o corpo se apropria para comunicar-se. Se um corpo é capaz de ser afetado através dos seus sentidos, tudo aquilo que os provoca ou estimula é capaz de afetá-lo como um todo. Portanto, o corpo se utiliza de “objetos”, que podemos considerar aqui como outros corpos, porém sem vida, para estimular os sentidos e, assim, dialogar e transformar o outro e o mundo. Arquitetura, música, design, toda manifestação artística carrega grande potencial de comunicar ou de instigar a comunicação. Através de suas formas, cores, texturas, sons, luzes, enfim, através de suas expressividades enquanto corpos, são capazes de atribuir significados ao mundo. Especificamente no campo das artes, dois movimentos chamam a atenção por serem linguagens expressivas que se encontram intimamente ligadas às ques-
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tões ditas até então sobre o corpo. Happenings e performances escaparam dos “padrões” das artes ditas plásticas a fim de propor algo novo e de deslocar o ponto focal do produto para o processo, da obra para o criador. Quanto as happenings, eles exerciam, de fato, a atividade criativa livre das preocupações referentes ao mercado e ao gosto do público e uniam sujeito e objeto, relação que antes pressupunha a idéia de separação. Tratava-se, então, de abordar o corpo no processo artístico de forma direta, colocando em questão a problemática que envolvia a comunicação e a percepção. Além da atuação do corpo do próprio artista, esses acontecimentos, que eram realizados de maneira improvisada em espaços alternativos, previam também a participação do público, que podia agir e estabelecer uma espécie de parceria com o artista. Já as performances, apesar de possuírem um caráter parecido com os happenings, configuravam-se como um movimento das artes plásticas, porém dotado de expressividade cênica. Agregavam, geralmente, elementos da música, dança, teatro, poesia e vídeo. E, neste caso, havia muito mais preparação e ensaio em detrimento da espontaneidade e do improviso. Estes passaram a ocorrer de forma bem mais tímida. Para estreitar ainda mais o campo de discussão acerca do corpo e das suas linguagens pertinentes ao espectro da arte, nos aproximaremos da obra de Hélio Oiticica, que talvez tenha sido o artista brasileiro que melhor abordou a ação do corpo como objeto artístico, juntamente com Lygia Clark e Lygia Pape. Através de sua experiência com a dança, Hélio desenvolveu uma sensibilidade corporal extremamente aguçada, o que veio a se refletir nas proposições artísticas da sua fase pós-concreta. Após a morte de seu pai, em 1964, Hélio foi morar na favela da Mangueira, onde começou a ter contato com o samba e o carnaval carioca. A vivência na Mangueira foi fundamental e determinou o rumo que a arte de Hélio tomou logo em seguida. Na Mangueira ele conheceu uma outra estrutura social, onde
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o tempo era outro, a materialidade era outra, o corpo, o ritmo e a cadência eram outros. A começar pelo habitar. A estrutura de habitação numa favela pressupõe a efemeridade. Os materiais que constroem um barraco não são os mesmos que constroem a cidade formal. Estão fora do âmbito do permanente. O material que hoje cobre o barraco e protege seus habitantes da chuva é o que se tem disponível. Amanhã, quando este não mais servir, será outro. A constante que impera no espaço da favela é justamente a transformação. A transformação do espaço e a transformação do corpo, que se vê obrigado a adaptar-se, através da famosa ginga, ao que lhe é dado. Ginga, dança, música, ritmo. Abrigo e improvisação. Tudo isso está explícito em uma das obras mais emblemáticas de Hélio Oiticica e que mais representam a sua inquietação e busca por uma arte sensorial, o Parangolé (1964). Como uma capa que remetia à idéia de abrigo para o corpo, o Parangolé se constituia com pedaços de tecidos, plásticos, telas ou esteiras e deveria ser vestido e agitado como verdadeiro estandarte através da ação do sujeito. Ao invés de ser suporte ou ferramenta para a arte como ocorria, por exemplo, na body art de Yves Klein, que usava corpos femininos como pincéis vivos, o corpo em Parangolé era incorporado à obra. Ou melhor, o corpo em Parangolé, configurava a obra, visto que o simples pedaço de tecido, ou a simples capa, era absolutamente nada sem o corpo e sem a ação e a dança do corpo. [...] o espectador veste a capa, que se constitui de camadas de pano de cor que se revelam à medida que este se movimenta correndo ou dançando. A obra requer aí a participação corporal direta; além de revestir o corpo, pede que este se movimente, que dance, em última análise. (OITICICA, 1986, p. 70) Na dança, as imagens são móveis, rápidas, inapreensíveis – são o oposto do ícone, estático e característico das artes ditas plásticas – em verdade a dança, o ritmo, são o próprio ato plástico na sua crudeza essencial [...]. (OITICICA, 1986, p. 73)
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Assim como no samba, a dança do Parangolé não pressupunha as coreografias, as quais Hélio considerava demasiadamente organizadas. Numa escola de samba, por exemplo, o corpo não precisa de coreografias ou ensaios para pôr-se a sambar. O soar dos tambores e tamborins dita o ritmo e este conduz o movimento sinuoso e natural do corpo, compondo o bom e velho samba. Assim também acontecia com o Parangolé. Sem ensaios ou coreografias, o corpo era convidado a vestir a sua capa e dançar conforme o instante o conduzisse. E somente aí a obra estaria concluída. Somente a ação e a dança do corpo seriam capazes de finalizar a obra do artista. Com isso, Oiticica pôs em questão a noção do artista enquanto criador da obra de arte. Nesse caso, por exemplo, o artista era apenas o propositor de uma ação estética e criativa que se configuraria como obra. O Parangolé, sem o corpo, era uma obra inacabada, era apenas uma peça de incitação artística. Para ser concluída, a obra precisava do espectador, que já se tornava, assim, co-autor da obra de arte. A passividade do estado de contemplação artística foi, nesse momento, convertida por Oiticica em atividade estética e artística do corpo. O estado de espera e contemplação do espectador, acostumado com a unilateralidade da obra de arte, foi abalado. Agora participador, ele passou a ter o papel, assim como o artista, de questionar. Questionar através da ação. Não-acomodação e não-aceitação eram as premissas dessa magnífica obra de Hélio Oiticica. Há como que uma violação do seu estar como “indivíduo” no mundo, diferenciado e ao mesmo tempo “coletivo”, para o de “participar” como centro motor, núcleo [...]. (OITICICA, 1986, p. 71, grifo do autor)
Dessa forma, quebrando o conceito de arte unilateral, Hélio Oiticica passou a estabelecer um diálogo entre ele e o espectador-participador. Assim como corpos errantes, os corpos participantes de sua obra tinham a oportunidade de imprimir as suas subjetividades no espaço-tempo em que agiam/dançavam. E sendo cada corpo único e carregado de significados particulares, o Parangolé
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poderia tomar diversos “formatos”, tantos quantos fossem os diferentes corpos dispostos a serem núcleos da obra. Podemos dizer que, neste caso, a obra nunca é a mesma. Podemos dizer até mesmo que, se o mesmo corpo vestisse o mesmo Parangolé por mais de uma vez, ainda assim a obra não seria a mesma porque o instante seria outro, as influências do entorno seriam outras e, consequentemente, o movimento seria outro. Com a mesma preocupação em relação ao corpo, mas de uma forma ainda mais sensitiva2, Lygia Clark também criou obras para serem concluídas através da co-autoria do espectador-participador. A obra (de arte) deve exigir uma participação imediata do espectador e ele, espectador, deve ser jogado dentro dela. (CLARK, 1980, apud SPERLING, 2006)
Sem o caráter coletivo que o Parangolé trazia através da dança, mas não menos dependente do corpo do espectador-artista, as Máscaras Sensoriais (1967) de Lygia Clark eram um verdadeiro convite à introspecção e ao auto-conhecimento do corpo. Assim como as capas, as máscaras só se tornavam obras quando vestidas pelo corpo participador. Uma vez vestido, o corpo recebia estímulos sensoriais através da máscara, que, confeccionada com materiais diversos, de cores diversas, provocavam cada um dos sentido. No lugar dos olhos, orifícios com materiais diferentes. Na altura do nariz, ervas e sementes aromatizantes. Nos ouvidos, sons e ruídos. Imerso nesse “outro universo”, o espectador se desvencilhava de toda interferência do entorno para dialogar com o seu próprio corpo. Aqui, em contraponto à obra de Oiticica, a coletividade e o diálogo deram lugar à solidão e ao auto-conhecimento. Mesmo quando a experiência era realizada em grupo, cada corpo permanecia distante do outro e do ambiente que o cercava. O estado de isolamento aguçava as possibilidades sensoriais, induzindo o corpo para o seu próprio interior. A experiência com o outro corpo se dava apenas no campo da observação, por aquele que acompanhava de fora a introspecção do participante.
2 Lygia Clark foi umas das artistas que mais exacerbadamente lidou com a questão da ampliação da experiência artística para além do âmbito do olhar. Ela procurava explorar todo o conjunto de órgãos e sentidos através de suas proposições e chegou, até mesmo, em certa altura de sua carreira, a agregar um trabalho terapêutico em sua obra, no intuito de “tratar” o corpo e seus traumas para reativar a qualidade de suas experiências estéticas.
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[F15] Parangolé | Hélio Oiticica
[F16] [F17] Parangolé | Hélio Oiticica
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[F18] Mรกscara Sensorial | Lygia Clark
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[F19] Divisor | Lygia Pape
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[F20] Divisor | Lygia Pape
Em Divisor (1969), de Lygia Pape, outra artista que muito contribuiu para a arte conceitual, a coletividade era a essência da obra. Nesse caso, a obra dependia não só do corpo como indivíduo, mas do corpo como coletividade, como grupo. Ela consistia num pedaço de tecido de 900m² com vários rasgos, por onde os participantes colocavam suas cabeças e se moviam formando um só corpo. Um imenso corpo.
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[F21] Descendo a Escada | Regina Silveira | 2007
o movimento Para a noção de movimento, nada melhor que a aproximação com a dança para definirmos essa expressividade natural do corpo, através da qual este se comunica com o espaço. A relevância da dança para a apreensão do conceito de movimento está justamente no fato do movimento ser, para a dança, o meio e o fim. Condição e finalidade. E será principalmente através da apreensão da dança contemporânea que chegaremos ao movimento que nos interessa. Em artigo publicado no livro Arte no Pensamento (2006), Ferraz fala sobre Movimento Total - o corpo e a dança (2001), livro no qual o filósofo José Gil propõe o pensamento e conhecimento do corpo e de seu movimento em uma dimensão total. Aí, segundo Ferraz, total não remete a uma idéia de homogeneização, mas, ao contrário, ao “plano infinitesimal e nascente de todo movimento” (FERRAZ, 2006, p. 324). Para tais proposições, Gil usa o corpo do bailarino como foco central da discussão e da dança contemporânea como lócus de investigação, enquanto lança mão das experiências de alguns coreógrafos para abordar o que seria então o movimento total. Foi através do coreógrafo Merce Cunningham que a dança passou a conviver com a abstração. A falta de interferências exteriores, de sentimentos e expressões como força motriz do movimento foi o que passou a caracterizar a dança de Cunningham. Para ele a dança não deveria ser fruto de uma historinha, um enredo. Não deveria ser a mera representação de uma trama. Deveria, sim, ter autonomia e ser dança por ela mesma. Todo mundo conhece os traços gerais da coreografia de Cunningham: a recusa das formas expressivas, o descen-
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tramento do espaço cênico, a independência da música e dos movimentos, a introdução do acaso na coreografia, etc. Todos esses traços obedecem a uma mesma lógica cujo princípio é tornar possível o movimento por si, sem referências exteriores. (GIL, 2000, p. 8)
Com essas características, Cunningham conseguiu separar a dança das referências externas, tanto no que se trata da própria encenação, que já não tinha o tema e a referência de antes, como no que se trata do corpo do bailarino, que já podia desligar-se também dos seus referenciais externos para concentrar-se apenas no seu movimento. O caminho estava traçado em busca do movimento puro, do movimento pelo movimento. Tudo aquilo que o norteava, que o orientava, que ditava uma determinada finalidade do movimento do corpo, passou a ser substituído pela noção de desorientação e de acaso. É claro que quando falamos de desorientação e acaso, entendemos que alguma ordem ainda se fazia necessária, pois o objetivo não era fazer com que os bailarinos se movessem de maneira desordenada, como bem entendessem. Mas a relação entre os elementos que compunham uma coreografia passou a ser mais livre e independente. A própria relação entre movimento e música, por exemplo, passou a ser construída em determinadas bases que permitiam o descompasso e a não sincronia entre si. [...] ele despoja a experiência do bailarino de seus elementos representativos ou emocionais como motores do movimento [...] Como ele consegue isso? Obrigando a atenção do bailarino a se concentrar no movimento puro, ou seja, na “gramática”. Ou seja: a consciência do corpo se fixa na energia, nas articulações, nos movimentos, e não mais, de forma alguma, nas emoções ou nas imagens de uma narrativa. (GIL, 2000, p. 13)
Além disso, essa desorientação e esse acaso aos quais nos referimos dizem respeito a uma outra proposta da coreografia de Cunningham, que é a perda da organicidade do corpo, como uma fissura que permite a ruptura no
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[F22] [F23] [F24] [F25] [F26] Grupo de Danรงa Merce Cunningham
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[F27] [F28] [F29] Grupo de Danรงa Merce Cunningham
espectro tradicional das possibilidades do corpo e a abertura, portanto, a outros “movimentos possíveis ainda não explorados” (GIL, 2000, p. 9), isto é, a movimentos não baseados no equilíbrio simétrico e convencional do corpo. Com isso, torna-se possível “despedaçar” o corpo, conferindo autonomia às partes. Cada parte passa a ser fragmento e todo no conjunto associativo dos movimentos que conferem equilíbrio ao corpo. As configurações dos braços e das pernas de um lado e de outro do corpo se quebram, os movimentos dos membros se desconectam para alcançar o equilíbrio móvel, não estático, fazendo com que se superponham no mesmo instante múltiplas posições no espaço. Devendo variar não-organicamente, os movimentos atingem um ponto máximo de deformações e de assimetrias como se múltiplos corpos coexistissem num só corpo. (GIL, 2000, p. 10)
Essa busca pelo movimento puro e pela perda da organicidade do corpo estava associada ainda à busca por um determinado estado de consciência que podemos chamar de ausência de consciência. Quando enxergamos a consciência como aquilo que dá significado às coisas, aquilo que determina finalidades e funcionalidades, percebemos o quão grave se torna a tomada de consciência, no contexto da dança de Cunningham. Para alcançar o movimento puro, era preciso banir do corpo o seu instinto de dar significado ao movimento. No entanto, indo na contramão daquilo que imaginamos de imediato, a ausência da consciência não advinha do seu abandono. Não era uma questão de prescindir da consciência, mas sim de entregá-la ao corpo, no sentido de dar permissão ao corpo para ocupar os interstícios da consciência objetiva. O ponto-chave era fazer com que a consciência deixasse de ser racional para ser irracional. [...] em Cunningham, a consciência do corpo comanda a consciência. (GIL, 2000, p. 13)
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Movimento puro, acaso, consciência do corpo, comunicação de inconscientes. Mas não eram também esses os interesses do corpo errante de Jacques? Pois, afinal, de que se vale o corpo para alcançar o estado errante e experimentar o espaço através do seu viés mais sensorial? Se a consciência é natural do corpo, a ausência dela, ou a transferência dela de um estado racional para um estado irracional, passa a ser um desafio. No caso do corpo errante, que é o corpo que nos interessa para o recorte deste trabalho, esse desafio se traduz em método, para que a sua escrita no espaço seja mais pura e a sua leitura mais densa. Ou seja, para que a sua corpografia seja mais complexa. Tudo isso que vimos em relação ao movimento do bailarino na coreografia contemporânea dialoga muito bem com o movimento que o nosso corpo errante pretende. A esse movimento, Jacques atribui a qualidade de labiríntico. Segundo ela, o labirinto é muito mais do que um espaço que incita a perda. Vai muito além da materialidade da arquitetura e do urbanismo. É uma experiência subjetiva. Muito melhor que falar de labirinto, então, é falar de estado labiríntico como o estado do corpo em que o labirinto perde a sua dimensão física para se tornar predisposição corporal. O labirinto é o percurso, o trajeto, a repetição diferente dos caminhos. (JACQUES, 2001, p. 92)
Essa predisposição para perder-se confere ao corpo o mesmo estado errático em que os dadaístas e surrealistas se encontravam nas suas deambulações por Paris e também o mesmo estado de deriva que os situacionistas almejavam nos seus jogos lúdico-criativos. É uma predisposição à ignorância. A ignorância de não saber onde se está. Quando estamos num verdadeiro labirinto, não sabemos nem ao menos se estamos dentro ou fora dele. Não temos a noção do espaço para além dos arredores que nossos olhos são capazes de alcançar. A noção de totalidade não pertence ao espaço labiríntico. Ela é substituída pelo fragmento. Como na dança contemporânea de Cunningham, o movimento do corpo em
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estado labiríntico parece alcançar um grau de quase-vertigem. Livre do objetivo, da funcionalidade, da força motriz e da consciência racional, o corpo é capaz de se colocar no estado labiríntico que o leva ao que Cunningham chamou de movimento puro. O labirinto em si torna-se, então, um tecido maleável à mercê dos movimentos de um corpo que não se preocupa com a consciência racional, mas a coloca à disposição do seu próprio movimento. Para um recorte mais preciso e pertinente ao nosso trabalho, buscaremos, assim como na apreensão sobre o corpo, a obra de Hélio Oiticica como aproximação mais direta entre o movimento, a idéia de labirinto e as artes plásticas. Dessa vez, com os Penetráveis (1960), obras através das quais o artista transpôs para a tridimensionalidade os estudos bidimensionais que desenvolvia em suas telas. Dando forma à sua ânsia por uma arte mais livre, espontânea e imprevisível, Oiticica idealizou verdadeiros labirintos com os seus Penetráveis, que permitiam a apropriação por parte dos espectadores. Como uma extensão dos Núcleos (1960), nos quais Oiticica utilizava tábuas de madeira, pintadas e suspensas por fios de náilon para conceber espaços de caráter labiríntico, os Penetráveis tinham suas tábuas de madeira presas no solo, formando paredes e incorporando um tom arquitetônico à obra. Seu desejo era o de, através do labirinto, pensar o espaço de maneira abstrata e fragmentária, incorporando o espaço real num espaço virtual e estético. Os espectadores, assim como em Parangolé, eram convidados a participar da obra através do movimento do seu próprio corpo. Em seguida, os Penetráveis passaram a incorporar também o teto, o solo e portas rodantes, através das quais se permitiu que o espectador, que já era participador da obra ao poder penetrá-la, pudesse manipulá-la exercendo a liberdade de fazer o seu próprio percurso e determinando uma nova forma por meio do movimento. Nos primeiros penetráveis o caráter de labirinto aparece mais claro: a cor se desenvolve numa estrutura polimorfa de placas que se sucedem no espaço e no tempo forman-
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[F30] Núcleo | Hélio Oiticica
do labirintos. Já nos posteriores o caráter móvel é que dá o sentido labiríntico do penetrável: são os de placas rodantes. Aqui o labirinto como labirinto mesmo já não aparece; é apenas virtual. [...] São como se fossem afrescos móveis, na escala humana, mas, o importante, penetráveis. A estrutura da obra só é percebida após o completo desvendamento móvel de todas as suas partes, ocultas umas às outras, sendo impossível vê-las simultaneamente. (OITICICA, 1986, p. 35)
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[F31] Penetrável | Hélio Oiticica
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[F32] Penetrável | Hélio Oiticica
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[F33] Penetrável | Hélio Oiticica
Ainda embebido por suas experiências na favela, Oiticica praticamente transpôs o espaço labiríntico do morro para o espaço institucional da arte em sua obra Tropicália, exposta pela primeira vez em 1967, na exposição Nova Objetividade no MAM-Rio. Tentando dar uma ambientação aos Penetráveis que vinha realizando, Oiticica levou aos participantes da sua obra um pouco da experiência do movimento na cidade dita informal. Na cidade formal, planejada de fora pra dentro, através de uma visão superior e totalitária do espaço, a noção de liberdade fica muito restrita. Somente através de um espaço fracionado e fragmentado como o da cidade informal é possível experimentar de fato a sensação de estar labirintado.
Tropicália era uma obra ambiente constituída por dois Penetráveis - A Pureza é um Mito e Imagética - num cenário tropical composto por plantas, araras, chão de areia, cascalho e terra. No primeiro, tábuas de madeira foram dispostas formando uma cabine, cujo interior continha a inscrição “A Pureza é um Mito”. Com essa frase o artista se referia à fase purista de sua obra, que passou a não ter mais sentido depois de sua descoberta da/na favela. O abandono dessa pureza lhe permitiu, por exemplo, a Tropicália, que pressupunha uma vivência da representação da favela, como se fosse uma “cartografia sentimental” (ROLNIK, 1989, apud JACQUES, 2001, p. 82). No segundo Penetrável, o Imagética, esse sim um labirinto com apenas uma entrada/saída construído com tábuas de madeira, tecido e tela, o caminho do espectador tendia a lembrar os caminhos da favela. No fim do labirinto o espectador deparava-se com uma televisão permanentemente ligada, através da qual o artista levava ao extremo a problemática da imagem. Tropicália é a primeiríssima tentativa consciente, objetiva, de impor uma imagem obviamente “brasileira” ao contexto atual de vanguarda e das manifestações em geral da arte nacional. (OITICICA, 1986, p. 106)
Apesar disso, não podemos cair no erro de considerar Tropicália uma obra de abordagem puramente imagética. Como labirinto, Tropicália propunha uma
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[F34] Tropicália | Hélio Oiticica
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[F35] Tropicália | Hélio Oiticica
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infinidade de experiências sensitivas além da experiência de percurso. Mais uma vez, a compreensão da obra estava intimamente ligada e até mesmo condicionada à sua experimentação e participação. Desvencilhando-se de preconceitos, condicionamentos sociais e imagens estereotipadas, o participante vivenciava a obra, que não era objeto, mas proposta de movimento. Por fim, nesse labirinto o participante não se perdia, ele se encontrava consigo mesmo e com o outro num exercício de liberdade.
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[F36] Exposição Desvios | Rochelle Costi | 2008
o tempo Abordados os dois assuntos-chave da equação andar = corpo + movimento, percebemos que importa ainda uma outra condicionante, que por muitas vezes se coloca de forma a determinar o curso do corpo e dos seus movimentos. Essa condicionante é o tempo, que se traduz, para nós, em duas vertentes: o tempo-memória, relativo ao corpo e às suas percepções; e o tempo-evento ou tempo-instante, relativo ao movimento e à ação do corpo. Nos aprofundaremos um pouco mais no que se refere ao tempo e principalmente no que se refere ao tempo na arte, sem almejar, no entanto, as particularidades que uma abordagem filosófica, por exemplo, almejaria. A este trabalho cabe a tentativa de descobrir uma relação empírica entre o tempo e o fazer artístico. Em todo acontecimento, há de fato o momento presente da efetuação, aquele em que o acontecimento se encarna em um estado de coisas, um indivíduo, uma pessoa, aquele que é designado quando se diz: pronto, chegou a hora; e o futuro e o passado do acontecimento só são julgados em função desse presente definitivo, do ponto de vista daquele que o encarna. Mas há, por outro lado, o futuro e o passado do acontecimento tomado em si, que esquiva todo presente porque está livre das limitações de um estado de coisas, sendo impessoal e pré-individual, neutro, nem geral nem particular, eventum tantum [...]. (DELEUZE, 1969, apud SILVA, L. T., 2007, p. 13, grifo do autor)
Enquanto memória, o tempo está mais intimamente ligado ao corpo e às questões que se relacionam ao mesmo. Neste âmbito, algo já foi conhecido. Na abordagem sobre o corpo vimos que a relação que ele estabelece com o espaço se dá por meio das suas próprias percepções sobre este espaço. Percepções são, no entanto, a memória do corpo, questão temporal que lida com
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o passado presente. Tempo-memória nada mais é senão o tempo vivido no passado que reativamos através do que chamamos percepção, enquanto o tempo presente é vivido. Para a arte e para o fazer artístico, no entanto, interessa também o tempo enquanto evento, aquele que diz respeito apenas ao seu poder de ser instante, fagulha. Vale lembrar que, ao falarmos em tempo-memória e tempo-evento, não significa que estas sejam coisas separadas. Na verdade, elas estão intimamente ligadas e acabam sendo uma só. Esta é apenas uma forma didática para melhor compreender o assunto. Evento, acontecimento, momento, instante, ocasião e situação serão, então, os motes da escrita que segue. Cada um desses nomes pode tomar diferentes sentidos dependendo do discurso e do discursador, mas é fato que sempre serão referência a uma mesma matriz. Evento, acontecimento, momento, instante, ocasião, situação, todos são relativos ao tempo, mais especificamente a uma fagulha de tempo, dada num intervalo de espaço e quase sempre marcada pela ação de um corpo. Na visão arquitetônica de Letícia Silva (2007), a necessidade de espacializar um desejo3 é a grande impulsionadora do que ela chama de acontecimento urbano, que pode ser entendido também como o evento relativo à urbe. Neste caso, o evento refere-se às apropriações urbanas de caráter efêmero, que surgem como tentativa de “reinventar e de infringir as regras ditadas também pela arquitetura e pelo urbanismo” (SILVA, L. T., 2007, p. 6). Com um enfoque bastante social, Silva aponta os manifestantes, os vendedores ambulantes, os moradores de rua, os catadores de material reciclável, os artistas e performáticos, cada um à sua maneira, como os agentes e atores principais desses acontecimentos urbanos. As apropriações urbanas têm se manifestado de forma cada vez mais efêmera, nos mostrando que o tempo precisa ser incorporado de outra forma no pensamento da construção dos espaços. (SILVA, L. T., 2007, p. 7)
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“[...] os cenários da cidade se transformam a cada novo desejo que precisa ser espacializado [...]” (SILVA, L. T., 2007, p. 7)
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Talvez, o que precisamos é levar em consideração a atual dinâmica das cidades e das pessoas que nelas habitam, situar a arquitetura e o urbanismo com o tempo em que vivemos, com a velocidade dos acontecimentos, com as novas relações afetivas, com os novos desejos e necessidades humanas. (SILVA, L. T., 2007, p. 8)
Teorizando o acontecimento em Deleuze e Foucault, Silva também fala de acontecimento como aquilo que atribui sentido à “mistura dos corpos” (SILVA, L. T., 2007, p.15), sem estar reduzido à condição de um deles. Os corpos são os responsáveis pela produção do acontecimento, que à luz da efemeridade pode ser definido como “uma singularidade, ou um conjunto de singularidades” (SILVA, L. T., 2007, p. 16), com “alcances, amplitudes cronológicas e capacidades diferentes de produzir efeitos” (SILVA, L. T., 2007, p. 17). O jogo com Tempo nos remete à necessidade de se lançar no instante como única possibilidade de existência. O instante é o momento do jogo, é o lance daquele movimento, é o nu descendo a escada,4 multiplicado e multiplicador de estâncias do instante. (PIRES, 2007, p. 188)
Do ponto de vista da arte, no entanto, o evento é aquilo que determina o destino de cada obra. Isso se aplica tanto no domínio do fazer do artista como no domínio das intervenções do espectador nas obras abertas a esse formato de co-autoria. É a ordem temporal da noção de evento que faz, por exemplo, com que o Parangolé de Oiticica seja uma obra de mil e uma facetas. É a ordem temporal da noção de instante que concede às Máscaras Sensoriais de Clark o status de obra-experiência. Contudo, a arte, em seu amplo horizonte criativo, confia não só ao homem o papel de ser motivador dos eventos e instantes da feitura artística. Por vezes, até mesmo a natureza recebe essa função, de forma a determinar e agir sobre uma obra de maneira inusitada, tornando ainda mais imprevisíveis seus resultados.
4 Aqui, Pires se refere a Nu Descendo a Escada n°2, obra de Duchamp, citada anteriormente neste trabalho.
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[F37] The Lightning Field | Walter de Maria
A obra permanente The Lightning Field (1977), de Walter de Maria, é um exemplo belíssimo da efemeridade do instante numa obra de arte. Dispondo 400 pára-raios em um grande platô no sul do estado do Novo México (EUA), de Maria territorializou um espaço através da visualização do campo elétrico que se constitui no instante de um relâmpago. Os pára-raios são capazes de captar o campo elétrico e criar uma tensão, que resulta na troca de raios de luz entre si. A obra torna visível o invisível e cria um território efêmero que existe em um intervalo cronológico determinado pela ação da natureza. A obra é um instante, uma faísca de tempo.
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[F38] [F39] [F40] [F41] The Lightning Field | Walter de Maria
Escapando do conceito de instante, mas ainda tendo a questão da efemeridade como agente primordial do processo de criação, o artista Artur Barrio também contribui para a apreciação do tempo na arte. Adotando sempre materiais de caráter efêmero, desde o início de sua carreira, na década de 1960, Barrio expressa sua crítica em relação aos suportes, materiais e formatos mercadológicos da arte tradicional. A escolha pelo perecível se traduz na obra de Barrio como o caminho para a transgressão do que é habitual na arte. Aqui, é a sucessão de eventos contínuos (ou o conjunto de singularidades) sobre a matéria que dita o tom das obras. Podemos dizer que é a própria deterioração da matéria escolhida, através da “ação do tempo”, que atribui inovação ao trabalho do artista. Em uma de suas obras mais conhecidas, Livro-Carne (1978-79), Barrio se vale dessa “ação do tempo”, em um trabalho que estabelece a dicotomia entre a imagem do livro como símbolo do conhecimento intelectual para as culturas ocidentais, e a proposição do conhecimento fenomenológico através da experiência corporal e tátil do espectador com as páginas feitas de carne, material perecível que se transforma e se deteriora ao longo da sua exposição ao público.
[F42] Livro-Carne | Artur Barrio
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[F43] [F44] [F45] [F46] [F47] Livro-Carne | Artur Barrio
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[F48] [F49] [F50] Minha Cabeça Está Vazia, Meus Olhos Estão Cheios | Artur Barrio
Indo quase sempre em sentido oposto aos padrões estéticos do senso comum, Barrio prefere criar o que chama de situações. São obras que não podem ser penduradas nas paredes dos museus ou armazenadas como acervo permanente simplesmente porque pertencem a um intervalo de tempo e têm prazos de validade determinados pela própria durabilidade da matéria. Assim, ele consegue renovar uma mesma obra por inúmeras vezes. Em Minha Cabeça Está Vazia, Meus Olhos Estão Cheios, obra exposta pela primeira vez em 1983, em Paris, o artista propõe o uso de materiais diferentes a cada experiência expositiva.
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[F51] [F52] [F53] Minha Cabeรงa Estรก Vazia, Meus Olhos Estรฃo Cheios | Artur Barrio
Com a ampulheta (na verdade, obra sem título), Laura Vinci ousou, na 3ª edição do Arte/Cidade (1997), construir uma obra para durar o exato tempo da exposição. Transgredindo a estrutura convencional do espaço e ocupando dois pavimentos, um aglomerado de areia escorregava do pavimento superior para o pavimento inferior através de um pequeno orifício na laje. O sutil fio de areia que caía, marcava o passar do tempo e se acumulava diante dos passantes, como um amontoado de instantes. Uma construção em ruínas é uma construção que não consegue estancar o tempo. A areia é tempo enquanto erosão e tempo enquanto ampulheta. (MAMMÌ, catálogo da exposição Arte/Cidade - A Cidade e Suas Histórias, 1997)
Assim, o conceito de tempo enquanto instante, evento, acontecimento, situação, aparece no espectro da arte em abordagens variadas. Como já foi dito, às categorias de corpo e movimento é intrínseca a idéia do tempo. O tempo do homem, que faz da ação possibilidade e do instante singularidade.
[F54] ampulheta | Laura Vinci
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[F55] ampulheta | Laura Vinci
[F56] Lug(AR) | Paulo Vivacqua | 2008
corpo, movimento, tempo e tecnologia Tendo abordado o corpo, o movimento e o tempo na arte, através, principalmente, de referências a obras de meados do século XX, consideramos necessária uma abordagem conclusiva sobre esse [lado a], que contemple os três temas à luz das tecnologias atuais, ou seja, no contexto da chamada arte digital. O que mudou em relação ao corpo, ao movimento e ao tempo com a utilização das novas tecnologias na arte? Qual é o papel do espectador ou receptor da arte nesse ambiente digitalizado? E quais são as novas demandas espaciais para essa arte? Na tentativa de esclarecer essas questões e com base nas colocações de Lucia Santaella em seu livro Culturas e Artes do Pós-Humano (2003), buscaremos elucidar, primeiramente, o cenário que antecedeu a era cultural vigente nesse início de século XXI, a Cibercultura, e, em seguida, os efeitos que essa transição gerou no âmbito da arte propriamente dita. Sem pretender abarcar a cultura em sua significância enquanto palavra, mas tentando apreendê-la em todo a sua esfera social, intelectual e artística, tomaremos as definições e classificações feitas por Santaella no intuito de formatar um panorama das progressões ocorridas ao longo do século XX. São quatro os princípios que governam a vida: ela tende a se expandir como um gás para ocupar todo o espaço disponível; ela se adapta às exigências do espaço que se tornou disponível; ela se desenvolve continuamente em níveis de maior complexidade; quanto mais complexo o nível de sua organização, mais rapidamente a vida cresce. Esses mesmos princípios se aplicam à cultura. (SANTAELLA, 2003, p. 29)
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Até meados do século XIX, a sociedade ocidental era marcada por dois eixos culturais: o da Cultura Erudita e o da Cultura Popular. Com o advento dos meios de reprodução técnico-industriais – jornal, fotografia, cinema – e, principalmente, com os meios eletrônicos de difusão – rádio e TV – instaurou-se a chamada Cultura das Massas, que, devido ao seu alto poder de alcance, passou a quebrar a polaridade entre as Culturas Erudita e Popular, englobando ambas. Ao longo de boa parte do século XX, foi crescente a dominação dos meios de comunicação em massa, na mesma proporção em que foi decrescente a disparidade entre o erudito e o popular. Todo esse crescimento culminou com a chegada das “tecnologias do disponível e do descartável” (SANTAELLA, 2003, p. 52): fotocopiadoras, videocassete, controle remoto e, logo depois, os CDs e a TV a cabo. Era a chegada da Cultura das Mídias e a inversão da lógica da Cultura das Massas, onde a produção era feita por poucos para atender a uma demanda de muitos. A dinâmica, agora, com a Cultura das Mídias, possibilitava a escolha por parte dos consumidores, ou seja, o consumo passou a ser muito mais personalizado, o que quebrou a inércia intelectual da massa que antes apenas recebia um apanhado de informações de forma unilateral. Podemos dizer que foi aí que o receptor deixou de ser meramente passivo e começou a exercer o seu poder da escolha, mesmo que ainda não pudesse, de fato, intervir e estabelecer um fluxo de informação no sentido oposto. Essa evolução, no entanto, não tardou a acontecer. Em questão de poucas décadas, foi possível ver sinais da instauração da Cultura Digital, marcada principalmente por uma convergência das mídias, em um verdadeiro processo de hibridação. Aqui, as redes de transmissão já começaram a permitir o sentido bilateral no fluxo de informações. Através do advento da informática, foi possível criar uma linguagem universal, à qual todo e qualquer tipo de informação pôde ser convertido. Com isso, a lógica da troca de informação foi imensamente facilitada, assim como a possibilidade da interação, que passou a ser uma verdade nessa nova dinâmica comunicacional.
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Neste contexto, vale lembrar que quando falamos de eras culturais e quando classificamos uma ou outra era não nos referimos à substituição de uma era cultural por outra. A lógica que rege o processo de evolução cultural é cumulativa e não substitutiva. Dito isso, compreendemos com mais clareza que a Cultura Oral, a Cultura Escrita, a Cultura Impressa, assim como a Cultura das Massas e a Cultura das Mídias não deixaram de existir no momento de transição entre uma era e outra. Ao contrário, cada era cultural tem dado conta de abarcar todas as eras culturais anteriores, de modo que a Cibercultura, vigente na contemporaneidade, é a coexistência de todas as outras eras culturais. Continuamos a conviver em grupos de discussão presenciais, as formas antigas de escrita ainda alimentam o imaginário dos artistas e designers, continuamos a freqüentar salas de concerto e a visitar museus, os circos ainda se instalam nos arredores das grandes e pequenas cidades, as camadas populares continuam a tomar conta das praças públicas. (SANTAELLA, 2003, p. 78)
O que difere a Cultura Digital das outras eras culturais é a inserção das dinâmicas virtuais no mundo presencial, o que, por um lado, permite a sintonia entre elas e as sensibilidades humanas mas, por outro, transforma e reconfigura os conceitos de espaço, tempo e materialidade. No mundo contemporâneo das redes, nos acostumamos, por exemplo, a ter os limites espaciais do nosso inconsciente em constante ampliação. Nos acostumamos ainda a estabelecer um contato de maneira instantânea com cada um ou com todos que se encontram dentro dos limites desse nosso crescente e rizomático ambiente. Com essas afirmações já podemos até arriscar algumas respostas para os questionamentos propostos no início deste capítulo. Ou, minimamente, já podemos afirmar que corpo, movimento e tempo certamente já não são os mesmos com esse advento tecnológico. Segundo Santaella, do ponto de vista semiótico, a cultura, por si só, configura -se como uma mediação da vida humana. A própria inteligência humana e
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tudo que ela usa para aprimorar as condições de convívio social são mediações da vida humana. No entanto, o descomedido aumento do número de camadas dessa mediação acabou por conformar uma das grandes mudanças provocadas pelas novas tecnologias. As interfaces maquínicas têm sido tão constantes no cotidiano da vida humana que poucas são as relações corpo-corpo ou corpo-mundo que acontecem sem a mediação de instrumentos tecnológicos. Nesse modelo de configuração das relações sociais a questão da alteridade acabou se tornando mais complexa. Na verdade, o outro em si, enquanto sujeito, se tornou muito mais complexo. O sujeito não está mais localizado em um tempo/espaço estáveis, em um ponto de vista fixo a partir do qual calcula racionalmente suas opções. Ao contrário, ele está multiplicado em bancos de dados, dispersado entre mensagens eletrônicas, descontextualizado e reidentificado em comerciais de TV, dissolvido e rematerializado continuamente em algum ponto na incessante transmissão e recepção eletrônica de símbolos. (SANTAELLA, 2003, p. 214)
Da mesma forma que o sujeito, o próprio espaço sofreu modificações. Os limites espaciais se fluidificaram. Na verdade, eles se tornaram infinitos e acabaram por abrir a cena a um nomadismo nunca visto antes: o nomadismo estático. Nunca foi tão fácil estar em algum lugar ou em todos os lugares simultaneamente, ao passo que nunca foi tão obsoleta e prescindível a noção de movimento, enquanto princípio básico da atuação do corpo no espaço. O movimento da contemporaneidade é muito mais um movimento intelectual que corporal. É muito mais um movimento da consciência que se vê apta a interferir nos fluxos informacionais e instaurar o sentido bilateral no processo comunicacional. Diante desta conjuntura cultural, citando Santaella, podemos dizer que “os artistas tomam a si a tarefa de reconfigurar a sensibilidade humana” (SANTAELLA, 2003, p. 210). Também frente a essa conjuntura, começamos a adentrar
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o universo da arte digital. A arte digital não só faz parte, como pode ser considerada a exacerbação do processo de hibridação das artes, através do qual diferentes linguagens e meios se mesclam e se combinam formando um verdadeiro emaranhado de sistemas de signos. Exceto as artes que já são híbridas por si só, como o teatro, por exemplo, podemos considerar como hibridação primeira aquela que se deu no âmbito das imagens, quando o surgimento da fotografia passou a influenciar diretamente a construção pictórica da pintura, ao passo que também importava suas características. Foi a partir daí que os artistas passaram a se valer da sobreposição dos meios e linguagens. Um pouco mais tarde, foram as instalações as responsáveis pela continuidade desse processo, através da justaposição de objetos, imagens e sons num espaço único que criava uma nova ordem sensorial. Com Duchamp, os objetos industrializados passaram a assumir outros significados ao serem deslocados do seu contexto funcional original. Assim como a palavra, que assume diversos sentidos quando deslocada para diferentes conceitos, os ready mades de Duchamp foram nada mais que objetos deslocados que desafiavam a sua própria natureza sígnica. Mas ainda não foi com as instalações que a arte híbrida conheceu o seu apogeu. Façanhas ainda maiores só foram permitidas a partir do hibridismo digital, que se materializou graças à convergência das mídias e possibilitou que os artistas levassem ao extremo os conceitos da incompletude e da interatividade. Nesse âmbito da arte digital, não se pode deixar de falar do artista sul-coreano Nam June Paik, considerado o “pai” da videoarte, que usava as tecnologias visuais para trabalhar a imagem e seus signos. Tendo participado do grupo Fluxus no início dos anos 1960, Paik agregou uma série de valores artísticos que possibilitaram a confluência das artes visuais, música, literatura e performance em seus trabalhos. Em sua primeira mostra, chamada Exposition of Music-Electronic Television (1963), ele expôs diversos televisores e usou ímãs para distorcer suas imagens. Essa e muitas outras exposições fizeram de Paik um dos artistas mais conceituados nessa área. Boa parte dos seus trabalhos
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foi desenvolvida em parceria com a violoncelista clássica Charlotte Moorman. Em TV Cello (1971), Paik e Moorman fizeram uma instalação com televisores empilhados de forma que eles compusessem uma forma semelhante à de um violoncelo. Com o caráter performático, a obra funcionava quando a própria artista impunha o arco sobre as cordas do violoncelo, o que ocorria simultaneamente à transmissão de imagens de violoncelistas tocando nas telas. A importância desse artista está no pioneirismo do uso da tecnologia televisiva para traduzir um trabalho híbrido. Está aí a grande contribuição do trabalho de Paik para a arte digital: a manifestação da possibilidade de unir categorias artísticas diversas através dos aparatos tecnológicos.
[F57] Music Eletronic Television | Nam June Paik
Outra grande questão da arte digital (ou ciberarte) é ainda a sua “capacidade de gerar sentidos voláteis e polissêmicos que envolvem a participação ativa do usuário” (SANTAELLA, 2003, p. 146). Muitas obras de arte digital podem ser vistas como uma verdadeira extensão dos sentidos humanos, onde o artista faz uso de máquinas “cerebrais” capazes de processar informações e executar ações. Dialogando com os sentidos humanos, a tecnologia digital torna possíveis os delírios criativos do artista, que muitas vezes têm como cerne o próprio questionamento que envolve as transformações pelas quais a mente, o corpo, as sensibilidades e a consciência do ser humano vêm passando a partir das suas simbioses com as tecnologias.
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[F58] TV Cello | Nam June Paik e Charlotte Moorman
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Não raro, obras ciberartísticas vêm trazer à tona a problemática ser humano versus tecnologia. Dentre os propositores desse tipo de arte está Stelarc, artista performático australiano que desenvolve os seus trabalhos segundo a máxima the body is obsolete. Em um dos seus trabalhos, Third Hand (data desconhecida), Stelarc implantou em seu próprio corpo um terceiro braço, mecânico, com movimentos independentes que eram ativados pelos seus músculos do abdômen e da perna. O artista tentou transgredir os limites biológicos do próprio corpo, por achar que a natureza humana já não dava conta da complexidade da vida contemporânea. Para Stelarc, o desempenho do corpo biológico é demasiadamente limitado para a quantidade, qualidade e velocidade das informações a que é submetido nos tempos atuais e, por isso, está fadado ao desuso. O hibridismo homem-máquina da Third Hand de Stelarc foi uma tentativa de garantir ao organismo biológico a sua funcionalidade, através de uma nova concepção de corpo e movimento. Outra chave da ciberarte está no seu conceito de interatividade. A partir de comandos do espectador, receptor ou participador, a obra de arte digital é capaz de responder e se transfigurar, reorganizando mídias e materiais oriundos de tempos e lugares diversos. A função de construtor da obra é estendida das mãos e do intelecto do artista para o poder do espectador. Sabemos que, de certa forma, essa interatividade não é tão nova assim. Podemos dizer que alguns artistas chegaram a prever essa tendência nas artes, propondo obras que preconizavam a participação do espectador. As obras de Hélio Oiticica e Lygia Clark citadas anteriormente neste trabalho são ótimos exemplos dessa antecipação, pois são nitidamente concebidas com o foco no corpo do espectador, ao contrário da maioria das obras vistas na época, quando os artistas ainda estavam preocupados em centrar suas produções no próprio corpo. Ou seja, com Oiticica e Clark, a interatividade já começava a aparecer enquanto conceito chave do fazer artístico. Os Bichos (1960 a 1964), de Lygia Clark, são trabalhos que merecem ser lembrados. Foram obras que muito se basearam no conceito da interatividade e da incompletude, pois pressupunham a participação do espectador num
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[F59] Third Hand | Stelarc
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[F60] [F61] Bichos | Lygia Clark
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processo criativo inacabado, capaz de obter variados fins. A obra poderia ser modificada tantas fossem as vezes que os participadores quisessem. O que difere, hoje, essa interatividade da interatividade digital, é que essa última tem um alcance incalculável, visto que o alcance da rede é de uma infinitude inimaginável. Na mostra Emoção Art.ficial 2 (Itaú Cultural, 2004), a artista brasileira Giselle Beiguelman exibiu o seu trabalho Esc for Escape. Partindo do princípio de que o erro é o mínimo denominador comum da digitalização do cotidiano, a artista propôs que usuários da rede participassem da obra enviando pela internet, por SMS ou gravados em vídeo, depoimentos sobre mensagens de erro. O público poderia participar através do envio de seus depoimentos ou de suas piores mensagens de erro já recebidas, poderia assistir ao documentário exibido no Itaú Cultural com a compilação de parte do material coletado, ou poderia ainda acompanhar o trabalho através dos painéis eletrônicos na cidade, que exibiam algumas dessas mensagens nos intervalos de suas programações publicitárias. Além desse infinito alcance da rede, outra característica da interatividade depois da digitalização é que o espectador não precisa necessariamente ter a intenção de interagir, ou seja, a interação não depende sempre do movimento corporal ou intelectual consciente do espectador. A utilização de sensores tornou possível, na arte digital, a modificação da obra sem que o espectador tenha como objetivo a sua influência sobre ela.
Ultra-Nature, do artista mexicano Miguel Chevalier, exposta no Itaú Cultural na mostra Emoção Art.ficial 4 (2008), é um exemplo bem claro dessa arte amparada na tecnologia digital. A obra consistia em um jardim virtual onde as espécies vegetais existentes iam evoluindo de acordo com a interação do público, que provocava a polinização entre elas de forma inconsciente. O resultado dessa polinização e as novas florações que surgiam eram inesperadas tanto para o público como para o artista.
[F62] imagem de divulgação de Esc for Escape | Giselle Beiguelman
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88 a [F63] [F64] [F65] [F66] [F67] [F68] [F69] [F70] [F71] Ultra-Nature | Miguel Chevalier
Processo parecido ocorria em Canções Submersas (2008), de Vivian Caccuri, exposta também em Emoção Art.ficial 4. Neste caso, o movimento inconsciente que determinava a transformação da obra vinha dos peixes, mais especificamente de quatro carpas que nadavam em um aquário climatizado. Aqui, a tecnologia se fazia presente através de um software especial capaz de reconhecer o movimento dos peixes e modificar as faixas musicais dos tocadores de mp3 distribuídos ao público. Em conseqüência, era criada uma espécie de cacofonia no ambiente da obra, tornando coletiva a audição dos arquivos sonoros particulares. Em obras como essas e como outras, que podem ser experienciadas inclusive na web (o que prescinde o lócus expositivo), os resultados obtidos em suas durações são imprevisíveis. A interatividade presente nestes trabalhos de ciberarte se configura como conceito artístico que permite uma redefinição contínua da proposta criativa, em tempo e espaço indeterminados, por corpos e participadores diversos. O que podemos concluir, então, é que, assim como a arte em si alcançou o seu hibridismo máximo com a Cultura Digital, também o espaço, o corpo, o movimento e o tempo alcançaram os seus níveis máximos de hibridação e multiplicidade.5 Ao ponto em que já não se pode chegar a uma, duas, nem três definições do que seja o espaço, o corpo, o movimento ou o tempo da arte digital. Espaço, corpo, movimento e tempo podem adquirir infinitas facetas, basta que o artista as deseje.
[F72] Canções Submersas | Vivian Cacuri
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Quando falamos em níveis máximos consideramos, é claro, a evolução de que temos conhecimento até os dias de hoje.
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[F73] [F74] [F75] [F76] [F77] [F78] L.A.S.E.R. Tag | Graffiti Research Lab
L.A.S.E.R. Tag, do grupo nova-iorquino Graffiti Research Lab. Exibida nas ruas de São Paulo durante o FILE 2008 (Festival Internacional de Linguagem Eletrônica) se trata de uma caneta que, associada a um projetor de grande alcance, possibilita a grafitagem eletrônica de grandes edifícios em apenas alguns segundos. A grafitagem pode ser feita pelo próprio público e tem o caráter de uma intervenção efêmera na cidade já que dura apenas o tempo da projeção.
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[F79] Fiber Wave | Makoto Watanabe
Fiber Wave (1994), do arquiteto Makoto Watanabe. Postes de fibra ótica reproduziam a ação dos ventos em várias partes do mundo através da web. O movimento dos postes proporcionava uma experiência sensorial acerca de um espaço mental mais amplo, tornando possível se sentir numa verdadeira tempestade mesmo dentro do museu.
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[lista de fotografias] Capa [lado a] 4-Track Super-8 | Cine Falcatrua Fonte: arquivo pessoal. Capa [lado b] 4-Track Super-8 | Cine Falcatrua Fonte: arquivo pessoal. [F01] [F02] [F03] [F04] mesa interativa | Museu da Língua Portuguesa Fonte: arquivo pessoal. [F05] Catálogos | Valeska Soares Fonte: arquivo pessoal. [F06] Fonte | Marcel Duchamp Fonte: MINK, Janis. Duchamp. Köln: Taschen, 2006. [F07] Nu Descendo a Escada n°2 | Marcel Duchamp Fonte: MINK, Janis. Duchamp. Köln: Taschen, 2006. [F08] Experiência N° 2 | Flávio de Carvalho Fonte: http://vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp256.asp [F09] A Line Made By Walking | Richard Long Fonte: http://www.flickr.com/photos/veure [F10] Spiral Jetty | Robert Smithson Fonte: http://www.panoramio.com/photo/6093908 [F11] Spiral Jetty | Robert Smithson Fonte: http://markworks.wordpress.com/2008/02/07/save-robert-smithsonsspiral-jetty-1970 [F12] [F13] Wrapped Walk Ways | Christo e Jeanne-Claude Fonte: http://flickr.com/photos/gargoylemt [F14] Leviathan Thot | Ernesto Neto Fonte: arquivo pessoal. [F15] [F16] [F17] Parangolé | Hélio Oiticica Fonte: JACQUES, Paola Berenstein. Estética da Ginga: a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001. [F18] Máscaras Sensoriais | Lygia Clark Fonte: http://flickr.com/photos/amanda_dafoe [F19] [F20] Divisor | Lygia Pape Fonte: PAPE, Lygia. Gávea de Tocaia. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. [F21] Descendo a Escada | Regina Silveira Fonte: arquivo pessoal. 93 a
[F22] [F23] [F24] [F25] [F26] [F27] [F28] [F29] Grupo de Dança Merce Cunningham Fonte: http://www.flickr.com/photos/mcdc [F30] Núcleo | Hélio Oiticica Fonte: http://www.tate.org.uk/modern/exhibitions/heliooiticica [F31] [F32] [F33] Penetrável | Hélio Oiticica Fonte: catálogo da exposição Hélio Oiticica: Penetráveis. Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, 2008. [F34] [F35] Tropicália | Hélio Oiticica Fonte: catálogo da exposição Hélio Oiticica: Penetráveis. Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, 2008. [F36] Exposição Desvios | Rochelle Costi Fonte: arquivo pessoal. [F37] [F38] [F39] [F40] [F41] The Lightning Field | Walter de Maria Fonte: http://flickr.com/photos/aur2899 [F42] [F43] [F44] [F45] [F46] [F47] Livro-Carne | Artur Barrio Fonte: http://www.muvi.advant.com.br/artistas/a/artur_barrio [F48] [F49] [F50] [F51] [F52] [F53] Minha Cabeça Está Vazia, Meus Olhos Estão Cheios | Artur barrio Fonte: http://www.muvi.advant.com.br/artistas/a/artur_barrio [F54] [F55] ampulheta | Laura Vinci Fonte: Arte/Cidade – A Cidade e Suas Histórias. São Paulo: Editora Marca D’Água,1997. [F56] Lug(AR) | Paulo Vivacqua Fonte: arquivo pessoal. [F57] Exposition of Music-Eletronic Television | Nam June Paik Fonte: http://www.paikstudios.com [F58] TV Cello | Nam June Paik e Charlotte Moorman Fonte: ATKINS, Robert. Art Speak: a guide to contemporary ideas, movement and buzzwords, 1945 to the present. 2 ed. New York; London; Paris: Abbeville Press, 1997. [F59] Third Hand | Stelarc Fonte: http://www.stelarc.va.com.au [F60] [F61] Bichos | Lygia Clark Fonte: http://flickr.com/photos/24349544@N04 [F62] imagem de divulgação de Esc for Escape | Giselle Beiguelman Fonte: http://desvirtual.com/escape [F63] [F64] [F65] [F66] [F67] [F68] [F69] [F70] [F71] Ultra-Nature | Miguel Chevalier Fonte: http://www.miguel-chevalier.com [F72] Canções Submersas | Vivian Cacuri Fonte: http://bravonline.abril.com.br/conteudo/bravoindica/bravoindica_290886. shtml 94 a
[F73] [F74] [F75] [F76] [F77] [F78] L.A.S.E. R. Tag | Graffiti Research Lab Fonte: http://bravonline.abril.ig.com.br/conteudo/multimidia/mat_mult_gal_ 293367.shtml [F79] Fiber Wave | Makoto Watanabe Fonte: GALOFARO, Luca. Artscapes: El arte como aproximación al paisaje con temporáneo. Barcelona: GG, 2003. [F80] [F81] mesa interativa | FILE 2008 (Eletronic Language International Festival) Fonte: Everson Cabideli. [F82] MAC | Oscar Niemeyer Fonte: arquivo pessoal. [F83] [F84] casa cortada | Gordon Matta-Clark Fonte: http://chungwoo.egloos.com/1673227 [F85] Memorial do Holocausto | Peter Eisenman Fonte: http://www.panoramio.com/photo/398082 [F86] Memorial do Holocausto | Peter Eisenman Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Memorial_do_Holocausto [F87] Memorial do Holocausto | Peter Eisenman Fonte: http://deputydog.wordpress.com/2007/10/05/berlins-holocaust-memorial [F88] [F89] [F90] Blur Building | Diller e Scofidio Fonte: HODGE, Brooke (Org). Skin + Bones. Los Angeles: Thames & Hudson. [F91] [F92] Pavilhão da Água Doce | NOX Fonte: http://flickr.com/photos/doctorcasino [F93] Museu Vale | obras de Dionísio Del Santo Fonte: arquivo pessoal. [F94] Galeria de Exposição do Louvre | Samuel Morse Fonte: http://faculty.washington.edu/dillon/Morse_Gallery [F95] Merzbau | Kurt Schwitters Fonte: OLIVEIRA, Nicolas de; OXLEY, Nicola; PETRY, Michael (Orgs.). Installation Art. Londres: Thames & Hudson, 1996. [F96] MASP | Lina Bo Bardi Fonte: http://www.flickr.com/photos/recordedbutterflies [F97] MASP | Lina Bo Bardi Fonte: OLIVEIRA, Olivia de. Lina Bo Bardi – Sutis Substâncias da Arquitetura. São Paulo: Romano Guerra Editora, 2006. [F98] MASP | Lina Bo Bardi Fonte: Instituto Lina Bo Bardi. Museu de Arte de São Paulo. São Paulo: Editorial Blau, 1997. [F99] Arte/Cidade II | Periscópio | Guto Lacaz Fonte: Arte/Cidade – A Cidade e Seus Fluxos. São Paulo: Editora Marca D’Água, 1994. [F100] Em Trâsito | concerto do grupo To Rococo Rot 95 a
Fonte: BRASIL, Daniela; LUCAS, Marta Galvão (Org). Em Trânsito. Lisboa: Goethe-Institut Lissabon, 2005. [F101] Em Trâsito | projeções de vídeo Fonte: BRASIL, Daniela; LUCAS, Marta Galvão (Org). Em Trânsito. Lisboa: Goethe-Institut Lissabon, 2005. [F102] Museu D’Orsay | adaptação de Renaud Bardon, Pierre Colboc e Jean-Paul Philippon Fonte: arquivo pessoal. [F103] museu do crescimento ilimitado | Le Corbusier Fonte: Revista Projeto n° 144 – Agosto, 1991. [F104] [F105] Guggenheim NY | Frank Lloyd Wright Fonte: http://flickr.com/photos/zenzott [F106] [F107] Centro Cultural Georges Pompidou | Renzo Piano e Richard Rogers Fonte: arquivo pessoal. [F108] Tate Modern | Herzog e de Meuron Fonte: http://universeofchi.com/blog/?p=8 [F109] Tate Modern | Herzog e de Meuron Fonte: JODIDIO, Philip. Architecture Now! V1. Köln: Taschen, 2001. [F110] [F111] Museu do Quai Branly | Jean Nouvel Fonte: arquivo pessoal. [F112] [F113] Museu Judaico de Berlim | Daniel Libeskind Fonte: http://www.daniel-libeskind.com/projects/show-all/jewish-museumberlin/ [F114] Museu Judaico de Berlim | Daniel Libeskind Fonte: LIBESKIND, Daniel. Jewish Museum Berlim. Berlim: Ruksaldruck, 2000. [F115] [F116] Inhotim Centro de Arte Contemporânea Fonte: arquivo pessoal. [F117] MuBE | Paulo Mendes da Rocha Fonte: http://www.flickr.com/photos/craice [F118] MuBE | Paulo Mendes da Rocha Fonte: ARTIGAS, Rosa (Org.). Paulo Mendes da Rocha - vol.1. São Paulo: Cosac Naify, 2000. [F119] Museu da Língua Portuguesa | direção de arte de Marcello Dantas Fonte: arquivo pessoal. [F120] [F121] [F122] [F123] exposição Le Mouvement des Images Fonte: arquivo pessoal. [F124] [F125] [F126] [F127] exposição Karim Rashid – arte e design num mundo global Fonte: arquivo pessoal. [F128] [F129] exposição Clarice Lispector - a hora da estrela Fonte: folder da exposição. Centro Cultural Banco do Brasil, 2008. 96 a
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