Editora LaSalle ed ição 1 1 0 d e d e s e m b r o d e 2 0 18
DIVERSIDADE NAUM DEBATE EDUCAÇÃO: SOBRE DIREITOS HUMANOS, CULTURA E LINGUAGEM
A
MEDIAÇÃO DE CONFLITOS ESCOLARES:
f u n d a m e n t o s co m b a s e n a e d u ca çã o e m d i re i t o s h u m a n o s
O FETICHE DAS MERCADORIAS: FACE OCULTA DO CONTATO ENTRE ÍNDIOS E BRANCOS
LIBERDADE RELIGIOSA TAMBÉM SE APRENDE NA ESCOLA
E x p ed i e n t e RMD - REVISTA MUNDO SABER Revista constr uída para a cadeira de Editoração Gráfica, na qual contém matérias da revista virtual da Universidade LaSalle relevantes para a área da educação escolar, como diversidade, liberdade religiosa e soluções para conflitos escolares.
Logomarca/Capa
Giovane Patrício Machado
Fundadores
Érika Konrath Toldo Giovane Patrício Machado
Coordenador
Prof. Me. Cid Domingues D´Avila
Editor
Universidade LaSalle
E D ITORIAL Esta
revista é uma edição especial resultante de um trabalho desenvolvido na disciplina de Editoração Eletrônica, do curso Superior de Tecnologia em Design Gráfico, na Universidade LaSalle de Canoas. Trata-se de um Projeto Gráfico Editorial que concluiu o segundo semestre de 2018 e tem ênfase na apresentação gráfica de algumas pesquisas desenvolvidas nos Programas de Pós-graduação da Universidade, divulgadas pelos canais acadêmicos e que, na maior parte das vezes são apresentadas de forma convencional. O principal objetivo deste projeto é mostrar a possibilidade de apresentar trabalhos científicos em formatos variados, utilizando linguagens gráficas mais inovadoras e diferenciadas. A revista tem caráter experimental e acadêmico, mas foi realizada dentro dos parâmetros específicos do mercado e da indústria gráfica, de modo a permitir uma eventual publicação. Cada autor ou autora desenvolveu seu projeto de acordo com diretrizes estabelecidas no decorrer da disciplina e seguindo alguns critérios especificados na proposta do trabalho e na metodologia de projeto definida. Porém, a abordagem projetiva, os aspectos criativos e demais elementos gráfico-visuais foram exclusivamente 2
elaborados pelos autores e autoras do projeto. Como orientador e supervisor do trabalho, espero que todos possam ter um aproveitamento satisfatório das experiências compartilhadas e os leitores e leitoras possam desfrutar de uma agradável visita às páginas que seguem. Canoas, dezembro de 2018 Prof. Me. Cid Domingues D´Avila
Diagramação
Érika Konrath Toldo
Publicidade/Anuncios Érika Konrath Toldo
Pesquisa
Érika Konrath Toldo
Revisão/Finalização
Giovane Patrício Machado
SUM ÁRIO 10 de desembro de 2018 Canoas/RS edição 1
LIBERDADE RELIGIOSA TAMBÉM SE APRENDE NA ESCOLA
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O legal que normatiza e o real que invisibiliza
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A escola como promotora de uma cultura de paz e do exercício do respeito à diversidade religiosa
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D IVE RS I DAD E NA E D U CAÇÃO: U M D E BATE SO BR E D I R E I TOS H U M AN OS, CU LT U R A E LI NGUAGE M 10 Cultura e linguagem enquanto instrumentos de trabalho com a diversidade na educação
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M E D IAÇÃO D E CO N F LI TOS E SCO L AR E S: F U N DA M E NTOS COM BASE NA E D U CAÇÃO E M D I R E I TOS H U M AN OS 16
Marcos conceituais fundamentados na EDH a não violência na escola A EDH no processo de gestão/resolução de conflitos escolares
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O F E T I CH E DAS M E RCAD OR IA S: A FACE O CU LTA D O CO NTATO E NTR E Í N D I OS E BR AN COS 26
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LI BE RDADE RE LI GI OSA TA M BÉ M SE APRE NDE NA E SCOL A A falt a d e re speit o à divers i d a d e aum ent a dif i cul d a d e s d e ab ert ura p ara o di ál ogo, p ara o ent en dim ent o e p ara a a c eit a ç ã o d a s opini õe s divergent e s .
Em contrapartida, surge o vazio existencial, a busca por emoções fugazes e passageiras, que completam e não preenchem, a exemplo da necessidade do “ter” em detrimento do “ser” e tantas outras instabilidades que terminam por favorecer situações de angústia, de falta de paz, egoísmo desenfreado e desequilíbrio no convívio social, demonstrado através de situações de conflitos, violências, preconceitos, rótulos e estigmas com os diferentes, para todos aqueles que fogem do parâmetro de normalidade que a sociedade delimita e impõe. Reinaldo Farias Paiva de Lucena Ana Cristina de Almeida Cavalcante Bastos
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Vivemos nu ma sociedade contemporânea a ltamente secu lar i zada, globa l i zada, tecnológ ica e evolu ída que i nterl iga cada vez ma is pessoas, estados, pa íses e cont i nentes em d istâncias até então i n i mag i náveis, provocando t ransfor mações pol ít icas, econôm icas e socia is que geram d ispar idades e antagon ismos crescentes. O mu ndo t ransfor mado em “a ldeia globa l” é o mesmo espaço que a i nda promove u ma compet it iv idade exacerbada, desu man i zada e excludente, onde as pessoas são v istas mu itas vezes em seu aspecto f u nciona l, como produtoras e consu m idoras de bens de consu mo. Obser va-se que a pessoa hu mana cont i nua v ivendo u m processo de ant ítese per manente, evolu i ndo e reg red i ndo ao mesmo tempo. Enquanto se conecta com mu itas out ras pessoas em suas redes m id iát icas, também é capaz de se tornar cada vez ma is i nsensível a quem está ao seu lado, d iante do seu “próx i mo ma is próx i mo”. Esse i nd iv idua l ismo exacerbado, i nst igado até pela compet it iv idade que assola as reg ras dessa nova sociedade globa l i zada, da “selva de ped ra” em que se v ive, vem m i nando caracter íst icas essencia is como afet iv idade, socia l i zação, necessidade do out ro, sol idar iedade e tantas
L I B E R DA D E R E L I G I O S A TA M B É M S E A P R E N D E N A E S C O L A
out ras at it udes necessár ias para a const r ução de u ma cu lt u ra de paz, pautada no respeito e na conv ivência com a d iversidade, at ravés de u m bom relacionamento i nter pessoa l. A fa lta de respeito à d iversidade au menta d if icu ldades de aber t u ra para o d iá logo, para o entend i mento e para a aceitação das opi n iões d ivergentes.
d iscu rsos seg regacion istas até ent re os própr ios par t ícipes que professam u ma mesma fé ou d iante do choque ent re aqueles que estão em credos d iferentes chegando até mesmo a ser mot ivo de g uer ras, como a que acontece no conf l ito israelo-pa lest iano, ou tantos out ros espa l hados nas ma is d iversas áreas do planeta.
Em cont rapar t ida, su rge o vazio ex istencia l, a busca por emoções f ugazes e passagei ras, que não completam e não preenchem, a exemplo da necessidade do “ter” em det r i mento do “ser” e tantas out ras i nstabi l idades que ter m i nam por favorecer sit uações de ang úst ia, de fa lta de paz, egoísmo desenfreado e desequ i l í br io no conv ív io socia l, demonst rado at ravés de sit uações de conf l itos, v iolências, preconceitos, rót u los e est ig mas com os d iferentes, para todos aqueles que fogem do parâmet ro de nor ma l idade que a sociedade del i m ita e i mpõe.
As relações socia is fu ndamentadas por questões pol ít icas, socia is, econôm icas, cu lt u ra is e de et n ias, também se most ram osci lantes nas sit uações de exclusão e i nclusão no que d i z respeito às questões de ordem rel ig iosa, pelo fato da não aceitação e da fa lta de respeito com a d iversidade, fazendo com que pessoas ao professarem o seu credo rel ig ioso a i nda cont i nuem refém de preconceitos, estereót ipos e d iscr i m i nações.
A rel ig ião enquanto man ifestação de prát icas de l igação ao Sag rado e de cong regação de d iferentes pessoas que estão u n idas por pr i ncípios mora is e dout r i na is de suas ig rejas, dever ia prover u ma cu lt u ra de paz, fratern idade e equ idade. Mas obser vase que a i nda é recheada de
A escola enquanto i nst it u ição cu lt u ra l e elemento meio ent re fam í l ia e sociedade, responsável pela t ransm issão sistemát ica dos con heci mentos adqu i r idos pela hu man idade a i nda se mantém refém de processos de homogenei zação or iu ndos das classes dom i nante e por esta razão não v iabi l i za a d issem i nação de for ma equ itat iva da r iqueza da plu ra l idade cu lt u ra l e rel ig iosa ex istente. Dessa for ma, del i m ita
u m parâmet ro de nor ma l idade que tende a exclu i r, rot u lar, marg i na l i zar e i nv isibi l i zar os d iferentes sujeitos sociocu lt u ra is presentes em seu contexto que não se enquad ram nos cr itér ios ex ig idos pela sociedade que d ita as reg ras e nor mas a serem v ivenciadas. Um dos g randes desaf ios da escola na at ua l idade é de se t ransfor mar nu m espaço de const r ução de con heci mento sig n if icat ivo e prazeroso, ao passo que consiga promover u m desenvolv i mento i nteg ra l de seu a lu no enquanto ser cr ít ico e pensante, dotado de emoções e sent i mentos, capaz de v iver e desenvolver relações i nter pessoa is saudáveis com seus pares objet ivando a const r ução de u ma cu lt u ra de paz.
“Um dos grandes desaf ios da escola na atual idade é de se transfor mar num espaço de constr ução de conhecimento signif icativo e prazeroso”
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O legal que normatiza e o real que invisibiliza Por ma is que haja docu mentos nor teadores de âmbito i nternaciona l, rat if icados por todos os Estados-par te que se tornam seus sig natár ios, e, i ndependente das nações promu lgarem L eg islações específ icas que garantam os Di reitos Hu manos a exemplo do que acontece no Brasi l, que possu i u m vasto e denso cabeda l de marcos nor mat ivos, a i nda ex istem d ispar idades ent re o que está deter m i nado nos apor tes lega is e referencia is e naqu i lo que é v iv ido na prát ica pelos i nteg rantes dos vár ios espaços socia is enquanto sujeitos de d i reitos. Um dos docu mentos ma is i mpor tantes em âmbito i nternaciona l com v istas à preser vação e u n iversa l i zação da d ig n idade da pessoa hu mana na garant ia de seus d i reitos, dent re os qua is, a l iberdade rel ig iosa como u m dos d i reitos f u ndamenta is da hu man idade é Declaração Un iversa l dos Di reitos Hu manos ( DU DH ), datado de 1948. O seu A r t igo 18 af i r ma: Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento, consc iênc ia e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela obser vânc ia, isolada ou coletivamente, em público ou em par ticular. (ON U, 1948) A DU DH se tornou u m ícone para a for mu lação de novos docu mentos e dent re os qua is, o Pacto Internaciona l dos Di reitos Civ is e Pol ít icos aprovado no Brasi l por meio do Decreto L eg islat ivo nú mero 226, de 12 de dezembro de 1991 que é u m Tratado da Organ i zação das Nações Un idas (ON U ) sobre Di reitos Hu manos com força lega l que garante a l iberdade rel ig iosa ao af i r mar no A r t igo 18 que Toda 6
pessoa terá d i reito à l iberdade de pensamento, de consciência e de rel ig ião. Esses d i reitos i mpl icará a l iberdade de ter ou adotar u ma rel ig ião ou crença de sua escol ha e a l iberdade de professar sua rel ig ião ou crença, i nd iv idua l ou colet ivamente, tanto públ ica como pr ivadamente, por meio do cu lto, da celebração de r itos, de prát icas e do ensi no. ( BR A SI L , 1991).
“Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião” Out ro Tratado i nternaciona l i mpor tante é o Pacto Internaciona l dos Di reitos Econôm icos, Socia is e Cu lt u ra is (ON U, 1966), que também foi rat if icado pelo Brasi l at ravés do Decreto nº 591, de 6 de ju l ho de 1992 . Neste, o Brasi l enquanto sig natár io deste Pacto af i r ma a necessidade da educação ser u m veícu lo de capacitação de todas as pessoas no i nt u ito que estas possam par t icipar efet ivamente de u ma sociedade l ivre, de for ma a que se favoreça a compreensão, a tolerância e a am i zade ent re todos os povos de todas as nações e ent re todos os g r upos racia is, ét n icos ou rel ig iosos ex istentes no sent ido de que estes possam recon hecer a d iversidade hu mana e respeita-la como ta l. Este docu mento também propõe que se favoreça a promoção das at iv idades das Nações Un idas em prol da manutenção da paz. Em 25 de novembro de 1981, a ON U promu lga a Declaração para el i m i nação de todas as for mas de i ntolerância e d iscr i m i nação com base em rel ig ião ou conv icção objet ivando “promover e est i mu lar o respeito u n iversa l e efet ivo dos d i reitos hu manos e as l iberdades f u ndamenta is de todos, sem d ist i nção de raça, sexo, id ioma ou rel ig ião” (ON U, 1981). Esta Declaração garante que todas
as pessoas ten ham o d i reito preser vado de exercer suas crenças a for ma l i zar o d i reito à l iberdade rel ig iosa. Este docu mento propõe a adoção de med idas necessár ias para que se el i m i nem atos de i ntolerância, preconceito e rót u lo voltados à prevenção da d iscr i m i nação com base na rel ig ião ou conv icção. Essa Declaração novamente reaf i r ma e rat if ica o que já estava descr ito no Pacto Internaciona l sobre os Di reitos Civ is e Pol ít icos no tocante ao d i reito de l iberdade de pensamento, onde cada pessoa se si nta l ivre no exercício de sua consciência e de v ivenciar sua expressão rel ig iosa tanto em ambientes públ icos quanto nos pr ivados. Em 1992 , a ON U promu lga a Declaração Sobre os Di reitos das Pessoas Per tencentes a M i nor ias, Naciona is e Ét n icas, Rel ig iosas ou L i ng u íst icas objet ivando a promoção da ident idade rel ig iosa e a proteção dos d i reitos das pessoas per tencentes a g r upos m i nor itár ios a exercerem a l iberdade de pensamento, de consciência e de rel ig ião e de sem qua lquer d iscr i m i nação e em plena ig ua ldade com qua lquer out ra pessoa perante a L ei. Em 1995, a Organ i zação das Nações Un idas para a Educação, a Ciência e a Cu lt u ra ( U NESCO) promu lga a Declaração de Pr i ncípios sobre a Tolerância que no seu A r t igo 4, que t rata da educação, encont ra-se a citação: A educação para a tolerânc ia deve ser considerada comoimperativo pr ior itár io; por isso é necessár io promover métodos sistemáticos e rac ionais de ensino da tolerânc ia centrados nas fontes culturais, soc iais, econômicas, políticas e religiosas da intolerânc ia, que ex pressam as causas profundas da violênc ia e da exclusão. As políticas e programas de educação devem contr ibuir para
L I B E R DA D E R E L I G I O S A TA M B É M S E A P R E N D E N A E S C O L A
o desenvolvimento da compreensão, da solidar iedade e da tolerânc ia entre os indivíduos, entre os gr upos étnicos, soc iais, culturais, religiosos, linguísticos e as nações. ( BR A SI L , 1991, p. 48) Obser va-se que o exercício da tolerância per m ite a conv ivência pacíf ica com a d iversidade hu mana e que a tolerância rel ig iosa consiste no fato de se ter u ma at it ude de respeito d iante dos d iferentes credos rel ig iosos ex istentes a f i m de se ev itar a prol iferação da i ntolerância que gera sit uações de preconceito, estereót ipos, at it udes d iscr i m i natór ias e host i l idades para as d iferenças i nd iv idua is daqueles que per tencem às m i nor ias ou que possuem out ra
“A educação para a tolerância deve ser considerada como imperativo prioritário”
opção rel ig iosa. Em 2 de novembro de 2 0 01, por ocasião da 31ª sessão da Conferência Gera l da U NESCO, em Par is, é promu lgada a Declaração Un iversa l sobre a Diversidade Cu lt u ra l como pat r i môn io comu m da hu man idade e fator de desenvolv i mento e da sol idar iedade u n iversa l, t razendo em seu A r t igo 4 a defesa da d iversidade cu lt u ra l como u m i mperat ivo ét ico, i nseparável do respeito à d ig n idade hu mana, em par t icu lar os d i reitos das pessoas que per tencem a m i nor ias e os dos povos autóctones. Em 2 0 05, a U NESCO promu lgou a Convenção sobre a proteção e promoção da Diversidade das Expressões Cu lt u ra is que foi rat if icada pelo Brasi l por meio do Decreto L eg islat ivo 485/2 0 06. O A r t igo 10 que t rata da educação e conscient i zação públ ica, af i r ma que se deve “propiciar e desenvolver
a compreensão da i mpor tância da proteção e promoção da d iversidade das expressões cu lt u ra is, por i nter méd io, ent re out ros, de prog ramas de educação e ma ior sensibi l i zação do públ ico” ( U NESCO, 2 0 05). Todos esses docu mentos nor mat ivos e f i losóf icos ser vem como apor te referencia l para que cada nação possa rat if icar e se tornar sig natár ios desses marcos, bem como, desenvolver a par t i r de suas rea l idades específ icas, a i mplantação e i mplementação de pol ít icas públ icas voltadas a d iversidade, ao respeito à l iberdade rel ig iosa e ao desenvolv i mento de u ma la icidade responsável e consciente, de for ma a propiciar que cada cidadão em seu própr io pa ís, possa v iver a l iberdade de se optar ou não por u ma fé, u m seg mento rel ig ioso, tendo a ciência que serão t ratados ig ua l mente, com os mesmos d i reitos e deveres de professar ou não suas crenças e conv icções.
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A escola como promotora de uma cultura de paz e do exercício do respeito à diversidade religiosa Sabendo que a educação é a promotora rea l das mudanças est r ut u ra is de u ma sociedade ao formar os seus par t ícipes, cada pa ís deve organ izar seus Sistemas de Ensi no objet ivando repensar suas propostas cu rricu lares e i nvest i r na formação de seus professores para que estes obten ham con heci mento teórico metodológ ico que os prepare para o exercício de u ma docência isenta de preconceitos e ju ízos de va lores. Uma escola i nclusiva plu ra l, com cu rr ícu los aber tos à d iversidade sócia, econôm ica, cu lt u ra l e rel ig iosa, a l iado a professores capacitados para l idar com as d iferenças i nd iv idua is de seus a lu nos, torna-se o lócus apropriado para o desenvolv i mento de va lores ét icos capazes de desenvolver no a lu nado o respeito à d iversidade rel ig iosa e cu lt u ra l de seus pares. Const r u i r o cu rr ícu lo com base nessa tensão não é tarefa fáci l e i rá cer tamente requerer do professor nova post u ra, novos saberes, novos objet ivos, novos conteúdos, novas est ratég ias e novas formas de ava l iação. Será necessário que o docente se d ispon ha e se capacite a reformu lar o cu rr ícu lo e a prát ica docente com base nas perspect ivas, necessidades e ident idades de classes e g r upos suba ltern izados. ( MOR EIR A; CA NDAU, 20 03)
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Ao fa lar da i mpor tância da escola promover prát icas educat ivas pautadas na d iversidade cu lt u ra l, no cu rr ícu lo e no combate à d iscri m i nação no cot id iano escolar como forma de abri r
espaços para a d iversidade e cr uzamento de cu lt u ras, Morei ra e Candau (20 03) af i rmam que esta não é u ma tarefa fáci l e que não se pode pensar apenas na d iversidade e dei xar de se pensar nas questões de desig ua ldade. É o que Santos (20 03, p. 75) af i rma em sua pauta t ransident itária e t ranscu lt u ra l: “temos o d i reito de sermos ig ua is quando a d iferença nos i nferioriza a ser d iferentes quando a ig ua ldade nos descaracteriza”. Quando a escola, que em sua nat u reza deveria ser o espaço priv i leg iado para a va lorização da d iversidade, passa a desqua l if icar ou i nv isibi l izar determ i nada m i noria rel ig iosa, esta promove a permanência e a prol iferação de at it udes seg regat ivas e d iscri m i natórias
que vão a lém dos mu ros escolares e desag uam no seio de u ma sociedade que se torna conser vadora, resistente a mudanças e excludente. Por tanto, o desaf io consiste em fazer com que ocorram mudanças est r ut u ra is não somente no campo teórico, mas aci ma de t udo na prát ica escolar, pois como d iz Frei re: “A ref lexão cr ít ica sobre a prát ica se torna u ma ex igência da relação Teoria/Prát ica sem a qua l a teoria pode i r v i rando blábláblá e a prát ica, at iv ismo”. ( F R EIR E , 20 02 , p. 24). Em 1999 a U NESCO ed itou sob forma de l ivro, u m relatório ent reg ue pela Com issão Internaciona l sobre Educação para o sécu lo X X I i nt it u lado: “Educação: Um Tesou ro a Descobri r” que d iscorre no seu quarto
Os 4 Pi lares da educação: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a v iver com os outros e aprender a ser.
L I B E R DA D E R E L I G I O S A TA M B É M S E A P R E N D E N A E S C O L A
capít u lo, sobre os Quat ro Pi lares da Educação, propondo u ma educação voltada para os quat ro t ipos fu ndamenta is de aprend izagem: aprender a con hecer, aprender a fazer, aprender a v iver com os out ros e aprender a ser. No pri mei ro pi lar, aprender a con hecer ou aprender a aprender, consiste no desenvolv i mento de competências para exercitar pensamento, atenção e percepção de forma sig n if icat iva e prazerosa para cada vez ma is desenvolver o potencia l cog n it ivo que cada pessoa possu i. No seg u ndo pi lar, aprender a fazer, refere-se essencia l mente à formação técn icoprof issiona l do i nd iv íduo. Consiste essencia l mente em apl icar, na prát ica, os seus con heci mentos teóricos. É desenvolver a crit icidade,
criat iv idade e autonom ia, i ndo a lém do fazer i nst r u menta l e buscando o desenvolv i mento de competências que tornem a pessoa apta a enfrentar nu merosas sit uações e a possu i r caracter íst icas como l iderança, i n iciat iva, capacidade para t raba l har em equ ipe na gestão, resolução de conf l itos e comu n icação com os out ros. O tercei ro pi lar e o ma is desaf iador de todos, aprender a conv iver, est i mu la o saber conv iver com os out ros no respeito pelos va lores do plu ra l ismo, da compreensão mút ua e da paz. Consiste em aprender a v iver ju ntos objet ivando desenvolver projetos sol idários e cooperat ivos em busca de objet ivos comu ns, por meio da sol idariedade e da compreensão, em at it udes que gerem just iça, conf iança, sol idariedade, respeito e d iá logo. No quar to pi lar, aprender a ser, a educação deve preparar
a pessoa de forma i nteg ra l: espírito e cor po, i ntel igência, sensibi l idade, sent ido estét ico, responsabi l idade pessoa l e espi rit ua l idade para que sa iba ag i r em d iferentes sit uações e cond ições, por si mesmo. Passos (20 07, p. 109) af i rma que “o est udo das rel ig iões opor t u n iza o con heci mento do d iferente, resgatando os va lores e sugeri ndo o d iá logo como pauta reg u lar para v ida socia l”. Assi m, ao t raba l har todas essas competências t razendo o enfoque da d iversidade rel ig iosa, possibi l ita-se a d iscussão de u m tema a i nda tão conf l itante por fa lta de con heci mentos. Destar te favorece-se a const r ução de u m processo ensi no-aprend izagem ma is ampl iado, ao focar o exercício de relações i nter pessoa is ma is fr ut íferas e ma is aber tas ao respeito às d iversas expressões de rel ig iosidade ex istente.
D IVE RS I DADE NA E DUCAÇÃO: um debate sob re d i reitos humanos, cu ltu ra e l i ng uag em R e v i s t a M u n d o S a b e r - E d i ç ã o 1 - 1 0 d e d e s e m b r o d e 2 0 18
C ompre en di d a c om o c on stru ç ã o s oci al , cultural , hi st óri c a e políti c a d a s diferen ç a s , a divers i d a d e re ali za-s e em m ei o à s rel a çõe s d e pod er e a o cre s cim ent o d a s d e s i g u al d a d e s qu e s e a centu am em âmbit o n a ci on al . e int er n a ci on al . Os preceitos basilares que constituem a noção de Educação em Direitos Humanos (EDH) estão imbricados com a história de luta e resistência desencadeada por grupos sociais que buscaram – e ainda buscam – a afirmação de uma cultura cidadã dos direitos humanos. Assim, a EDH é fundada com o intuito de atingir ações coletivas em sociedade, em prol da democracia e contra a violência, a injustiça social, o preconceito e a discriminação.
O debate sobre a diversidade aqui levantado leva em consideração a sua inter-relação com alguns fatores, taiscomo: os desafios da articulação entre o conceito de igualdade e de identidade ou de reconhecimento da diferença no contexto educacional; a necessidade de uma educação que respeite os direitos humanos e que, através do reconhecimento das diferenças e também da afirmação do valor da igualdade, forme sujeitos de direitos em sua acepção de cidadania plena, ou seja, forme cidadãos e cidadãs que reconheçam-se como diferentes, respeitem tais diferenças e, sobretudo, unam-se para a luta em prol da democracia. Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo Talita Santana Maciel
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Fortes (2010) e Marinho (2012) afirmam que, em âmbito internacional, a perspectiva de uma educação para os direitos humanos nasce no contexto pós-Segunda Guerra Mundial, vinculada à proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada em 1948 pela Organização das Nações Unidas (ONU). No Brasil e em toda a América Latina, foi a partir da década de 1980 que as organizações e movimentos de direitos humanos ampliaram seu horizonte de atuação social, sem
D ive rsidade na educação: um deba te sob re d i rei tos humanos, cu l tu ra e l i nguagem
deixarem de se dedicar à proteção e defesa dos direitos humanos, bem como à denúncia de violações de direitos. A partir desse momento, questões relacionadas com os direitos sociais, econômicos e culturais passaram a ser enfatizadas juntamente com os tradicionais problemas civis e políticos, portanto, a educação em direitos humanos adquiriu especial relevância (CANDAU, 2007). A trajetória histórica da EDH no Brasil, marcada por desventuras e também por conquistas, é perpassada por inúmeros acontecimentos que têm possibilitado à sociedade brasileira experimentar e trazer à tona expressivas participações e mobilizações sociais. Podemos afirmar que as noções que sustentam a ideia de uma educação em/para os direitos humanos foram decisivas na história mundial e também na história brasileira, em especial no período da ditadura militar, por terem conseguido evidenciar a necessidade de busca pela concretização da cidadania nacional, estilhaçada pelo totalitarismo da época. De modo particular, tais noções se figuraram entre as décadas de 1960, 1970 e 1980 como instrumento de conhecimento de direitos para a formação de valores e atitudes (SILVA; TAVARES, 2011), por meio da luta social, em favor da diversidade, do respeito e vivência dos direitos humanos. Crítica ao modelo econômico neoliberal, a autora Sacavino (2000) propõe três elementos à educação em direitos humanos. O primeiro deles, a chamada “educação para o nunca mais”,
refere-se à necessidade do resgate histórico que culminou na Declaração Universal dos Direitos Humanos e em outras políticas públicas importantes. Refere-se também à necessidade de cultivar a memória ao invés do esquecimento quanto aos acontecimentos marcados por violações de direitos. O segundo elemento é o “desenvolvimento de metodologias voltadas à formação de sujeitos de direitos e atores sociais”, ação referente ao exercício da cidadania plena. O terceiro elemento, por sua vez, trata-se da “promoção do ‘empoderamento’”3, ou seja, o ato de possibilitar que os povos – principalmente os que historicamente tiveram menos voz na sociedade – sejam potencializados e passem a ser atores sociais. O “empoderamento” favorece a organização dos grupos sociais minoritários para que mantenham participação ativa na sociedade civil. Trilha na mesma direção a autora Candau (2005), acrescentando a “visão integral dos direitos” aos elementos anteriores. Carbonari (2011), em consonância com o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), entende a educação em direitos humanos como um processo multidimensional e sistemático. A característica “sistemático”, para o autor, refere-se à articulação de momentos, estratégias e dimensões. Já a multidimensionalidade diz respeito à complexidade do que almeja a educação em direitos humanos. Embora as declarações e os documentos elaborados ao longo
da história, que contemplam os direitos humanos representem ganhos significativos à sociedade, a concretização dos direitos humanos na prática não é um processo simples nem natural. Por isso, para que a educação favoreça a afirmação de uma cultura dos direitos humanos, bem como processos de democratização e justiça social, é preciso que as premissas da Declaração Universal dos Direitos Humanos sejam vivenciadas cotidianamente. É a partir de um movimento contínuo e gradativo que é possível que os educandos exerçam sua cidadania plena, carreguem princípios axiológicos inerentes à construção de uma sociedade justa e solidária e gozem, de fato, da sua dignidade humana. Outros(as) autores(as) também compartilham da mesma perspectiva, como Aquino e Araújo (2001), Horta (2000), Marinho (2012) e Sacavino (2000). De acordo com Viola, Barreira e Pires (2011), a educação em direitos humanos é a formação de uma cidadania ativa e crítica, que reconhece os(as) alunos(as) como sujeitos de direitos que constroem sua autonomia. Teixeira (2005), na mesma perspectiva, destaca que a educação em direitos humanos é entendida como uma educação para a democracia e trata-se de um processo que deve ser vivenciado de maneira que, em momento algum, o educando se esqueça de que é um cidadão. Deve contemplar a “formação intelectual” e a “informação, a educação moral” e a “educação do comportamento”, formando uma tríade que envolve tanto o conhecimento, 11
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quanto os aspectos político e axiológico. A autora Schilling (2005), também admite a educação em direitos humanos como essencial para a constr ução de uma cidadania democrática. Car valho (2004), além de dispor da mesma concepção, acrescenta que a educação deve ser fundada no respeito aos princípios fundamentais da dignidade humana. Enfim, a educação em direitos humanos, ao defender a dignidade humana levando em consideração a premissa da diversidade, entra na discussão sobre igualdade e diferença, relação esta analisada no próximo tópico. Reconhecer as diferenças supõe lutar contra todas as for mas de preconceito e discriminação, confor me Candau (2007). Segundo a autora, algumas posições defendem que a constr ução da democracia deve colocar a ênfase nas questões relativas à igualdade e, portanto, eliminar ou relativizar as diferenças. Outras, porém, defendem um multiculturalismo radical que exalta a diferença em detrimento da igualdade. Contudo, “[...] o problema não é afir mar um pólo e negar o outro, mas sim, ter mos uma visão dialética da relação entre igualdade e diferença.” (CANDAU, 2007, p. 400). É preciso que a questão da igualdade seja incluída em debates sobre a diversidade, da mesma for ma que a diversidade não pode estar ausente em discussões que abordem o tema da igualdade.
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Desta for ma, “temos o direito a ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracte-
riza.” (SANTOS, 2006, p. 316). Não é conveniente opor igualdade à diferença, principalmente no que diz respeito à EDH: No mesmo sentido, Albuquerque (2011) alerta que o conceito de igualdade perante a lei, embora seja um protocolo de suma importância em nosso contexto atual, nem sempre foi sinônimo de sociedade democrática e igualitária. Assim, os direitos humanos precisam ser compreendidos como um meio de abertura de espaço para explicitar o olhar e materializar a palavra de quem sempre foi silenciado. Nas palavras do autor :
De fato, a igualdade não está oposta à diferença e sim, à desigualdade. Diferença não se opõe à igualdade e sim à padronização, à produção em série, a tudo o “mesmo”, à “mesmice”. O que estamos querendo trabalhar é, ao mesmo tempo, negar a padronização e lutar contra todas as formas de desigualdade presentes na nossa sociedade. Nem padronização nem desigualdade. E sim, lutar pela igualdade e pelo reconhecimento das diferenças. A igualdade que queremos constr uir, assume a promoção dos direitos básicos de todas as pessoas. No entanto, esses todos não são padronizados, não são os “mesmos”. Têm que ter as suas diferenças reconhecidas como elementos de constr ução da igualdade. (CANDAU, 2007, p. 400).
No entendimento de Fernandes e Montrone (2009), na busca por uma sociedade que respeite a diversidade e a dignidade humana, precisamos uns dos outros. Precisamos nos aceitar como diferentes: tolerar, além de ser mos solidários, porque só assim nos responsabilizaremos pelos direitos negados aos outros e lutaremos por maior justiça social. A transfor mação de nossa sociedade em outra menos injusta e mais democrática, para as autoras, depende de nossa participação, busca, abertura, engajamento e atuação social, para que nos tornemos cada vez mais experientes e coerentes, a fim de transformar a realidade em que vivemos.
[...] pensar os direitos humanos implica ter presente o outro, na sua singularidade, na sua diferença, em ter mos de reciprocidade. Significa apropriar-se de um conjunto de infor mações no qual a crítica é método que per mite identificar vozes: hegemônicas, progressistas, subalter nas, marginalizadas, conformistas, transfor madoras, contraditórias, desviantes, silenciosas, silenciadas, polêmicas (ALBUQUERQUE, 2011, p. 99).
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Cultura e linguagem enquanto instrumentos de trabalho com a diversidade na educação A
educação em direitos humanos, ao constituir-se como campo de pesquisa e categoria de análise teórica, desenvolveu premissas bem articuladas, como a for mação para a cidadania, a valorização da diversidade, a defesa da dignidade humana, dentre outras. Além disso, podemos obser var avanços no que diz respeito a políticas públicas4 sobre a EDH. No entanto, assim como estabelecido nas Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (DNEDH), cabe a cada instituição escolar inserir nos cur rículos da Educação Básica os conhecimentos concernentes à EDH, respeitando o princípio da transversalidade. Isso
significa que cada instituição escolar precisa encontrar estratégias de for mação que contemplem os direitos humanos. Neste texto, selecionamos a cultura e a linguagem como uns dos instr umentos que podem ser utilizados no exercício dos direitos humanos na escola, com foco no trabalho com a diversidade. Akkari (2010), ao analisar a temática da diversidade cultural na escola, constatou que há países que optaram pelo ter mo multicultural e outros optaram por utilizar o ter mo educação intercultural. O primeiro ter mo se refere à focalização na necessidade do reconhecimento e a valorização das diferentes culturas, enquanto o segundo
ter mo evidencia as interações, as trocas e as constr uções originadas dos contatos entre as culturas. Dito isto, se constata que tanto a abordagem multicultural quanto a intercultural sinalizam avanços consideráveis no que se refere ao exercício de considerar a importância da diversidade cultural na educação, no entanto, ambas apresentam limitações conceituais. Então, Akkari (2010) discute a noção de “transculturalidade em educação”, um conceito que sugere a superação das fronteiras culturais no sentido de que sejam der r ubadas as bar reiras que impedem um relacionamento saudável e autenticamente humano entre as pessoas, e no sentido de que não haja discriminação, tampouco juízo de valor interposto à diversidade cultural.
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Em outras palavras, uma educação “transcultural” se funda numa respeitosa fusão das igualdades e preser vação das diferenças, de for ma que indivíduos conscientes do seu “ser”, da sua história e das suas origens sejam capazes de encontrar os pontos de convergência com o outro para se expressarem livremente em seus espaços de convívio, a fim de superar eventuais
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adversidades provindas das diferenças e lutar por objetivos comuns (no sentido socioeconômico), atitude que requer contínua prática de ação dialógica aliada à análise crítica de si mesmo (individual e coletivamente), requisitos fundamentais para expressar as fraquezas e as virtudes de nossa humanidade. O de Paulo
pensamento Freire aponta
contribuições políticopedagógicas que podem inspirar uma prática educativa da “transculturalidade”. Para Freire (1980, p. 38), cultura Destaca-se a importância das relações entre os conhecimentos vivenciados por diferentes culturas, reconhecendo e legitimando os saberes de gr upos historicamente subalternizados. Não concebemos aqui o conceito “cultura” como
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er udição, reduzida à cultura culta e letrada, e sim em seu sentido mais amplo, de caráter antropológico, ou seja, cultura como criação humana que é ao mesmo tempo produto e produtora do ser humano em seus diferentes contextos. Desta maneira, as diversidades constatadas entre as inúmeras expressões culturais não passam de uma multiplicidade de experiências configuradas sociogeograficamente, as quais revelam algumas características da própria complexidade humana que se efetiva na história. Recor remos ao conceito de linguagem teorizado por Lev Semionovitch Vigotski para tratar desse elemento enquanto um dos instr umentos de trabalho com a diversidade na educação. Considerada por Vigotski (2001) o principal instr umento de mediação cultural do pensamento no processo de desenvolvimento do psiquismo humano, a linguagem é também um signo mediador fundamental para a constituição das funções psicológicas superiores5. Ela é essencial ao processo de transmissão do conhecimento às novas gerações; essencial aos elos de ligação entre o sujeito, os objetos e outros homens; e é essencial também na reelaboração da realidade e no desenvolvimento de capacidades humanas (MEIRA, 2007). Nas palavras de Vigotski (1984, p. 31), Portanto, a linguagem não é apenas instr umento de comunicação do pensamento, mas sim a expressão mais direta da consciência. A apreensão da linguagem per mite que processos mais
elementares tornem-se mais complexos e per mite também
A capacitação especificamente humana para a linguagem habilita as crianças a providenciarem instr umentos auxiliares na solução de tarefas difíceis, a superarem a ação impulsiva, a planejarem a solução para um problema antes de sua execução e a controlarem seu próprio compor tamento. Signos e palavras constituem para as crianças primeiro e acima de tudo, um meio de contato social com outras pessoas. As funções cognitivas e comunicativas da linguagem tor namse então, a base de uma for ma nova e superior de atividade nas crianças, distinguindo-as dos animais. que a consciência, em sua totalidade, seja refletida nas “palavras”, considerada na fala como uma unidade da consciência. A linguagem
não é um mero instr umento do pensamento, tampouco simplesmente o veículo do pensamento, da mesma for ma que o pensamento não é mero conteúdo interno da linguagem. Ambos os processos só existem como funções complexas culturalmente for madas, à medida que se superam na direção da constr ução de um processo unitário e dialético da consciência humana. Feitas tais considerações, é possível verificar que a linguagem está no cerne do controle do comportamento, além de ser um instr umento de mediação do pensamento. Assim, os educadores podem (e devem) possibilitar aos educandos – através da linguagem – o diálogo reflexivo acerca da diversidade humana, respeitando a relação dialética entre igualdade e diferença nos ter mos aqui discutidos. Enquanto parte constitutiva da consciência humana, a linguagem é capaz de transfor mar conceitos6, cor roborando com o processo de desconstr ução daqueles conceitos que levam à discriminação.
Fonte: Secretaria de Políticas para as Mulheres – Janeiro de 2010
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M ed i ação de con f l i tos esco l a res: funda mentos com base na ed ucação em d i reitos humanos C ontribui ç õe s d a e du c a ç ã o em direit os hum an os n o enfret am ent o à vi ol ênci a”, re ali za d o em e s c ol a s d e Per n ambu c o / Bra s il , entre 2 0 14 e 2 0 15 .
A A perspectiva a partir da qual a escola lida com os conflitos é deter minante na construção de um ambiente escolar democrático, como também, ao contrário, pode ser decisiva na abertura a r ecor r entes manifestações de violência. Certamente, a definição de conflito que mais se apr oxima da r ealidade educacional dir ecionase ao fato de alguns sujeitos optar em pela unidade, com tudo igual, e outr os buscar em a diversidade, com a afir mação e o r econhecimento das difer entes identidades. Aida Maria Monteiro Silva Celma Tavares Fernando da Silva Cardoso
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discussão sobre ações que possam instr umentalizar uma política educacional que tenha como eixo norteador a educação para a cidadania e o respeito integral aos direitos humanos (DH) tem sido um dos grandes desafios da escola contemporânea. Especialmente, no que concerne à constr ução de uma cultura de valorização da diversidade e da diferença, que conduza à gestão positiva de conflitos e à prevenção da violência.
Med iação de con f l i tos esco l a res: fundamentos com base na educação em d i rei tos humanos
Nesse sentido, este artigo se propõe a apresentar algumas premissas teóricas e metodológicas for muladas ao longo da pesquisa de Mestrado, que desenvolvi no âmbito do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da Universidade Federal de Pernambuco, e, aqui, ampliadas, sobre as contribuições da Educação em Direitos Humanos na concepção e instr umentalização da mediação de conflitos e no e nfretamento à violência escolar. Assim, o estudo assinala para os seguintes aspectos em torno dos fundamentos da gestão de conflitos na escola referenciados na EDH: 1. Reflexões sobre conflito, conflitualidade e diferença nos espaços escolares; 2. Os marcos conceituais fornecidos pela EDH sobre a não violência na escola; 3. Proposição de estratégias que valorizem a gestão/resolução de conflitos escolares com base na EDH. Os conceitos apresentados são resultado das for-
mulações constr uídas ao longo da pesquisa empírica1 realizada em Comitês de Mediação de Conflitos Escolares (CMCE) existentes em escolas públicas2 da cidade de Car uar u, estado de Pernambuco, Brasil. Nessa perspectiva, apresenta-se alguns fundamentos oriundos da EDH à mediação de situações de conflito em âmbito escolar. Para tanto, refletese sobre algumas premissas que consideramos peças-chave neste processo. Objetiva-se com a apresentação desta pesquisa contribuir com o processo de reflexão acerca da for mulação de políticas de gestão/resolução de conflitos escolares, tendo como fundamento as matrizes da EDH. A perspectiva a partir da qual a escola lida com os conflitos é deter minante na constr ução de um ambiente escolar democrático, como também, ao contrário, pode ser decisiva na abertura a recor rentes manifestações de
violência. Certamente, a definição de conflito que mais se aproxima da realidade educacional direciona-se ao fato de alguns sujeitos optarem pela unidade, com tudo igual, e outros buscarem a diversidade, com a afir mação e o reconhecimento das diferentes identidades. De modo semelhante ao conflito vivido no contexto social, as discordâncias em ambiente escolar também se dão a partir de questões ligadas a relações de poder assimétricas, disputas instituídas na negação deste espaço enquanto democrático e fundado no diálogo. Estes são fatores que têm trazido “la percepición de fracasso en las actuales for mas de convivencia” no ambiente escolar (TORREMORELL, 2004, p. 4). Do mesmo modo, a compreensão que predomina no imaginário escolar concebe as conflitualidades3 enquanto
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hierarquização e desvalorização do outro4. A apreensão acerca do conflito escolar está circunscrita naquilo que denominamos de “conflitualidade opressora” (CARDOSO, 2015), ou seja, na ideia de fracasso das possibilidades de diálogo e convivência a partir das diferenças. As conflitualidades, em sua perspectiva opressora, incidem em uma dupla perspectiva: ora como reprodução de um autoritarismo, ora como transferência de uma nor ma ou valor social violento, dificilmente como possibilidade de diálogo. Certamente, esta é a grande marca dos conflitos escolares, a negação da palavra como elemento de convergência nas relações humanas. Logo, as disputas ocorridas na escola são sintomas e/ou produtos de um conjunto de diversidades silenciadas – seja no próprio espaço ou fora dele, que ter minam por se transfor marem em opressões. Nessa perspectiva, a oportunidade de aprendizagem e socialização dos(as) que compõem este espaço, a partir de uma cultura dialógica, é subjugada pela inclinação opressora que marca as divergências ocorridas na escola. É a partir de um pensamento de intolerância e de austeridade, associado a um clima pouco receptivo à diferença e ao diálogo, que o conflito escolar assume umaperspectiva antidemocrática e opressora.
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Esta discussão ajuda a projetar algumas outras premissas. Sobretudo, os significados apresentados anterior mente sobre a conceituação do conflito escolar convergem para a necessidade de a escola e aqueles(as)
a escola enquanto espaço de sociabilidade, precisa constr uir práticas mediativas de for ma a considerar que está em jogo a tomada de consciência de uma posição positiva das relações que a compõem perceberem-na na convergência entre a diversidade e as diferenças, ideia denominada de “conflitualidade dialógica” (CARDOSO, 2015). A perspectiva dialógica do conflito surge como uma abordagem e/ou possibilidade de resolução criativa dessas questões, uma via transfor mativa e emancipatória a nível intelectual, pessoal e social. Nesse sentido, a escola enquanto espaço de sociabilidade, precisa constr uir práticas mediativas de for ma a considerar que, no processo de convivência educacional, está em jogo a tomada de consciência de uma posição positiva das relações, e, a gestão de conflitos, precisa ser integrada a partir de práticas e de canais dialógicos como for ma de a escola contribuir ra que “se desar rolle la comunicación, y se establezca una for ma de percibir y manejar los problemas de la vida cotidiana y escolar” (CAMPOS, 2010, p. 16). Em uma concepção negociada, o conflito traduz a possibilidade de mudanças. É a partir de discordâncias que surgem outras perspectivas à convivên-
cia na escola – e também fora dela. A busca pela solução dos conflitos não pode significar na planificação de ideias, na negação do espaço ocupado pelo outro, ou mesmo no seu silenciamento. Com base na premissa que denominamos de “dialogicidade”, os conflitos escolares podem – e devem – incidir na diminuição das hostilidades, na presença constante das ideias de negociação e respeito. Porquanto, a mudança de atitudes frente às divergências deve ser alimentada por uma percepção responsiva e crítica em relação às conflitualidades e a possível for ma de como mediá-las/tratá-las. Igualmente, a dialogicidade presente na ocor rência dos conflitos escolares pode ser alcançada pelo reconhecimento das diferenças e da diversidade que compõem este espaço. Em se tratando do conflito escolar, o trabalho de um discurso que inclua o outro, suas necessidades e suas opiniões, leva à transcendência da situação de disputa por poder – noção já denominada de conflitualidade
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dialógica – alcançando-se aspectos ligados à prevenção de situações violentas.
Marcos conceituais fundamentados na EDH a não violência na escola
Os contornos da ideia denominada de conflitualidade dialógica estão na capacidade desenvolvida pela e na escola em empoderar os sujeitos para a constr ução de uma cultura do diálogo. Não se trata de negar o conflito, mas de fazer com que a dinâmica escolar convirja para práticas de relações democráticas, no reconhecimento do outro e para o respeito à diversidade humana.
A
Em suma, a perspectiva de uma conflitualidade dialógica reside no reconhecimento/ afir mação das diferenças, na promoção do diálogo e do encontro com o outro enquanto elementos agenciadores de uma atitude positiva sobre e frente às situações de conflito na escola.
Aprender a conviver com a conf litualidade e com o outro são princípios presentes naquilo que denominamos de bases dialógicas da EDH
ressignificação dos conflitos escolares pode contribuir para um ambiente escolar democrático e cidadão. A partir dessa ideia, a promoção de circunstâncias dialógicas rompe com a verticalidade, as imposições, o silêncio e o mutismo. A incorporação de um habitus humanista, freireano e mediativo, na escola, har moniza as relações humanas, coopta tendências participativas de/para a manutenção de um ambiente pacífico e não rivalista. Nesse cenário, a própria noção multidimensional assumida pela EDH perfaz a ideia do que denominamos como sendo o seu fundamento dialógico, ou seja, trata-se da potencialidade deste campo em interligar processos de ensino e aprendizagem àqueles inerentes a convivência escolar, com base nas noções de diversidade e cidadania. Aprender a lidar com o conflito significa direcionar os eixos for mativos à convivência com o outro.
Este é um dos marcos iniciais que se destaca nesse processo. Pois, um contexto de não violência é resultado de práticas que exercitem a capacidade de interação constr utiva, plural e democrática, e, especialmente, cidadãs. É a partir dessas premissas que situamos o que pensamos ser uma pedagogia do conflito. Esta ideia surge enquanto um conjunto de ações – educacionais, institucionais e políticas – per manentes, voltadas à compreensão, à intervenção e à gestão positiva dos conflitos. Diversamente dos métodos tradicionais, busca-se em princípios dos DH trabalhar uma prática transfor mativa de conflitos. Concebe-se as contribuições da EDH a não violência na escola enquanto um processo imbricado com a mudança de paradigmas atitudinais. Esta pedagogia fundamenta-se nos preceitos da problematização do cotidiano (FREIRE, 1995) como forma de desconstr uir dicotomias, preconceitos e violências. É referenciado nesta dimensão que se aponta outro marco deste processo: o de que as aprendizagens ética, política e social em DH, quando assumidas de for ma interdependente, podem constr uir um senso crítico mediador da convivência escolar. Assim, o desenvolvimento dos princípios da EDH como possibilidades a não violência na escola, traduzem as relações humanas baseadas em princípios ligados aos atos de perceber, entender, reconhecer e de estar com e na diferença, próximo ao outro. 19
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Um dos marcos conceituais que se considera ter grande destaque neste processo de ressignificação dos conflitos escolares, fundamentados na EDH, consiste na ideia de transversalizar saberes e valores como via a educar para a não violência e para os DH. A instr umentalização integrada de diferentes áreas do conhecimento, conteúdos e valores presentes, por exemplo, no projeto político-pedagógico e no cur rículo, culmina em um compromisso com as relações interpessoais e sociais fundamentadas em diretrizes advindas de documentos norteadores – o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH) (BRASIL, 2003), por exemplo. As ideias apresentadas sobre as bases dialógicas da educação em direitos humanos têm fun-
damento em um pensamento anterior, o qual denominamos, nesta pesquisa, de pedagogia dialógica. Cidadania e democracia na escola (SILVA, 2000) e sobre práticas transfor mativas de conflitos (DUDOUET; SCHMELZLE, 2010). A lógica consiste em um pensar educacional voltado a desenvolver nos processos de gestão dos conflitos e de prevenção à violência escolar, fundamentos advindos dos direitos humanos. Trata-se do estabelecimento sistemático e intencional de valores e bases oriundas da educação em direitos humanos em todos os espaços e processos de aprendizagem e de convivência na escola; desde as atividades de gestão endógena até as ações de relacionamento com a co-
munidade escolar. A EDH, quando considerada pelas políticas de gestão de conflitos escolares, apresenta elementos à inter venção de forma ativa, mais do que reativa, transpondo o senso comum de que a escola é um espaço linear e homogêneo. Assim, escola precisa exercitar modelos positivos de identificação e de gestão de conflitos, possibilitando a aproximação com o plural, o diverso e com o diferente. A institucionalização de um projeto pedagógico trabalhado com base na pedagogia dialógica aperfeiçoa os processos de ensino-aprendizagem, os torna mais democráticos, favorece e potencializa interações educacionais às relações humanas.
A lógica consiste em um pensar educacional voltado a desenvolver nos processos de gestão dos conf litos e de prevenção à violência escolar, fundamentos advindos dos direitos humanos.
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A EDH no processo de gestão/resolução de conflitos escolares A
gestão das conflitualidades contemporâneas não se dissocia da afir mação de direitos humanos. É imprescindível considerar que o convívio escolar e a criação de alicerces para relações mais democráticas é resultado da receptiva à ética nas relações humanas. Estes preceitos podem ser fortemente trabalhados pela mediação de conflitos escolares e pela educação em direitos humanos. O conceito que apontamos sobre o que vem a ser a prática da mediação de conflitos escolares, com fundamento na educação em direitos humanos, assume este processo para além de uma perspectiva jurídica, policialesca ou de controle como vias à gestão/resolução do conflito. Em outras palavras, a mediação de conflitos escolares, fundada nos preceitos da EDH, deve consistir em um processo que identifica a potencialidade democrática dos conflitos e os ressignifica a partir do reconhecimento da diversidade e das diferenças envolvidas nas
situações. Nesse sentido, gerir e transfor mar ordens conflitivas, baseadas em preceitos ligados aos direitos humanos, prescinde da compreensão de que a escola educa para o exercício da democracia quando administra conflitos. O Esta técnica de gestão de conflitos é, antes de tudo, a for mação de sujeitos e de uma cultura pedagógica de não desconsideração da coletividade e do outro, significa o desenvolvimento de habilidades que giram em torno da capacidade de convívio, de socialização e de responsabilização com a relação estabelecida.
processo de for mação identitária entre uma pessoa e o outro, e para com o espaço em que vivem, é resultado da atuação pedagógica da escola no reposicionamento de interesses, da participação, das liberdades e da responsabilidade que mediam as interações no ambiente escolar. Não se trata de negar a per manente mudança – e os conflitos – existentes nesse espaço, mas sim de promover processos de identificação baseados em uma for mação ética, fundada nos direitos humanos e em estratégias pedagógicas de gestão/resolução de
conflitos. A prática da mediação de conflitos escolares necessita dialogar com as bases de uma escola popular (FREIRE, 1995), surgida e direcionada à for mação de sujeitos e à produção de espaços também democráticos. Tomamos a ideia de que trabalhar um modelo desejável de relações políticas na sociedade é, ao mesmo tempo, prevenir uma lógica violenta na escola e fora dela. Assim, a ideia constr uída sobre a gestão de conflitos escolares, fundamentada na EDH, influencia sentidos e atitudes democráticas no espaço escolar. Uma proposta de gestão e/ou resolução de conflitos na escola, tendo como base os preceitos da EDH, pode contribuir com: • Uma cultura comunicativa entre os atores que compõem a escola, for mando valores para o exercício das liberdades nas relações; • A constr ução de práticas de reconhecimento como marcos à superação de pensamentos e de desigualdade na escola; • O surgimento de um sentimento de pertencimento que repercute na promoção do di21
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álogo de for ma per manente, constr uindo-se a diversidade a partir do reconhecimento das diferenças; O maior objetivo da mediação de conflitos escolares, fundada na EDH, corresponde à busca por integrar a estr utura escolar no objetivo comum de fomentar espaços de participação/interação e, assim, prevenir e/ou resolver conflitos cotidianos (HEREDIA, 2010). Afinal, as práticas cidadãs reinscrevem o sujeito frente às relações – humanas – na escola. Ao lado dos demais aspectos debatidos até aqui, a ideia de empatia (reconhecimento do outro), trabalhada a partir da mediação de conflitos escolares, alcança as dimensões subjetivas do sujeito e o modo como se coloca em relação aos demais. Para além do reconhecimento do outro, a empatia relaciona-se com um conjunto de emoções e sentimentos que podem contribuir para uma visão positiva acerca das conflitualidades. Este tecido de relações empáticas, proporcionado pela
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mediação de conflitos, fir ma-se a partir de uma cultura que, ao passo que cuida, previne, transfor ma e educa para a não adversidade. A abordagem, desde a ideia de empatia, reforça uma aprendizagem transfor mativo-compositiva, reconhecedora e ampliadora de habilidades e de aprendizagens relacionais. Transfor mar o conflito em oportunidade significa conduzir os processos de ensino, aprendizagem e convivência à distribuição de forças e de interesses, em busca de objetivos comuns. O contexto escolar quando mediado por fundamentos dos direitos humanos – como a democracia – converge para o ensino e para a for mação humana dos(as) alunos(as), conduz à responsabilidade, o que perpassa uma educação transfor mativa de conflitos e/ou nela culmina. A mediação de conflitos escolares pensada na perspectiva dos DH articula o conhecimento e a gestão/resolução de controvérsias a partir do desenvolvimento de ações educativas de transfor mação das disputas por
poder. Possibilita o exercício da cidadania. Surge enquanto processo voltado à ética da liberdade e do cuidado nas relações escolares. Assim, deseja-se dar ênfase à consideração de alguns pontos-chave na for mulação de uma proposta de gestão de conflitos em ambiente escolar. A possível caracterização de um quadro que esclareça a instr umentalidade e os elementos de uma proposta política de gestão de conflitos escolares trabalha alguns pontos centrais. Mencionar-se-á alguns gr upos de questões que podem ser levados em consideração: 1º Gr upo de Questões: Identificação e conhecimento de questões prévias que compõem o contexto escolar e que são essenciais à implementação de políticas de gestão de conflitos. Este gr upo de questões relaciona-se com elementos que dizem respeito ao conhecimento da realidade global em que se dará a intervenção. Questões relativas ao conhecimento das origens dos choques de interesse, ao delineamento da política de convivência, à análise da estr utura conflitiva e aos canais de diálogo na escola. Sobre o primeiro gr upo proposto, pode-se pôr em questão: Como aspectos pessoais e sociais vêm influenciando a lógica conflitiva no espaço escolar? E as relações estabelecidas entre o(a) aluno(a) e sua família, também guardam relação com a caracterização desse problema? Na hipótese de que o conflito também seja influenciado
Med iação de con f l i tos esco l a res: fundamentos com base na educação em d i rei tos humanos
por esses fatores, a escola tem contribuído para superá-los? Essas são questões que perpassam a leitura introdutória da implantação de uma política de gestão de conflitos escolares. Em outras palavras, a análise do quadro escolar de conflitos necessita buscar perceber como as relações entre aluno(a)/sociedade, aluno(a)/ família e aluno(a)/ escola vêm desenhando as relações entre esses sujeitos no espaço escolar. As políticas de gestão de conflitos escolares necessitam desenvolver um tríplice olhar sobre o conflito escolar, levando-se em consideração suas origens: • Institucionais: o conflito – e depois a violência – são derivados da própria estr utura das instituições de ensino; • Familiares: tensões e hostilidades que repercutem no desgaste e desar monia das relações na escola;
• Sociais: obstáculos – reais e imaginários – relacionados ao modo de estar e de ser para com e no mundo; Apontamos: o uso da mediação como instr umento à resolução de conflitos escolares e à for mação do(a) mediador(a), com ênfase no respeito à diversidade e a cidadania. 2º Gr upo de Questões: Este segundo gr upo de questões que propomos serem debatidas/obser vadas no processo de implantação de uma política de gestão de conflitos escolares trata sobre a especificação e a qualificação do processo, as estratégias e os mecanismos que podem instr umentalizar a mediação de conflitos no ambiente escolar. Complementar a etapa de apreensão global dos principais conflitos que existem na esco-
la, a fase de decisão quanto ao momento de uso da mediação significa, na dinâmica da política de gestão de conflitos, em questionarse: A mediação poderá ser utilizada apenas em emergências ou quando a possibilidade de conflito e/ou violência existe? Que tipos de conflito serão objeto da mediação? Consistirá em uma prática obrigatória ou espontânea? Pode-se pensar esse eixo de argumentos a partir das seguintes características da política de gestão de conflitos escolares: • Obrigatória: Torna o conflito uma questão de disciplinamento, colaborando com rotinas mecânicas de resolução das controvérsias que não contribuem com a for mação de uma cultura de mediação; • Espontânea: A escola possibilitará oportunidades de gestão e resolução de conflitos, baseadas em estratégias sistemáticas
Fonte: Publicado em 15 de setembro de 2009 na Revista Educação Pública. 23
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e transversais;
jeto político pedagógico (PPP).
3º Gr upo de Questões: Aspectos relacionados ao aperfeiçoamento e à expansão dos objetivos de uma política de gestão de conflitos escolares.
A constr ução de alternativas à gestão/resolução das controvérsias, a partir do intercâmbio de ideias entre os desígnios buscados pelo PPP e aqueles dispostos no planejamento da política de gestão de conflitos, podem:
Trata-se do gr upo de questões a serem ponderadas na implantação/execução de uma política dessa natureza. Questões que se relacionam com a dinâmica da mediação escolar no cur rículo, nos projetos políticopedagógicos, na relação com atores sociais e com os mecanismos de sua avaliação. O aperfeiçoamento da política de gestão de conflitos está diretamente relacionado com o modo pelo qual o assunto é assumido dentro dos processos de for mação dos(as) alunos(as). Nesse caso, destacamse dois mecanismos base: o cur rículo e o pro-
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• Contribuir para um maior engajamento político e for macional de professores(as), gestores(as) e demais agentes escolares na política de gestão de conflitos; • Dar consonância às ações desenvolvidas em torno da mediação de conflitos escolares a partir de reforços cur riculares e culturais; • Convergir para trabalhar o conhecimento privilegiando o desenvolvimento da competên-
cia dialógica dos(as) educandos(as); Assim, as ideias apresentadas neste trabalho, mais que compor um roteiro a ser seguido, problematizam aspectos que podem ser considerados na busca por implementar e aperfeiçoar dada política de gestão/resolução de conflitos escolares, a partir de preceitos da EDH. A institucionalização da mediação escolar, na perspectiva da EDH, pode ser um importante instr umento para a consolidação de fundamentos político-democráticos na escola, de modo multidimensional, contribuindo para uma perspectiva integrada entre essa prática e a promoção dos DH nesse espaço.
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O fet i che da s me rcado r i a s: a face ocu lta do contato ent re í nd ios e b rancos a rel a ç ã o d os grupos in dí gen a s com os produt os in du stri ali za d os , di sponibili za d os pel os bran cos n o proce s s o d e cont at o int erét ni co .
Em contato há mu ito te m po com os val or es e pr odutos d a soc ied a d e mod e r na , a s popul a çõ es t r iba is se mod if ica ra m, ma s nã o num sent id o em inentemente ne gat iv o como se tem ia a pr inc í p io. Nã o d e i xa ra m d e conse r va r a natur eza d os seus pr essu postos t r iba is fund a menta is pel o fato d e incor pora r e m mu ito d a pr oduçã o e c ul t ura est ra nge ira s . José Sávi o L eopoldi
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A par t icipação das sociedades t riba is, quer nas econom ias naciona is, quer na econom ia globa l izada, tem-se tornado u m campo fér t i l para a pesqu isa ant ropológ ica em tempos recentes. Ao i nver ter u ma post u ra “pessi m ista” com relação à “sobrev ivência” das cu lt u ras i nd ígenas na modern idade, temse obser vado sua capacidade de absor ver, tanto va lores da cu lt u ra ma is abrangente, como produtos da produção materia l exterior, sem comprometer os fu ndamentos de sua cu lt u ra e sua ident idade. Se a pri mei ra onda de pessi m ismo, que se espra iou pelo campo ant ropológ ico na pri mei ra metade do sécu lo passado, d izia respeito à ameaça de ext i nção dos chamados povos pri m it ivos face ao rolo compressor das i mposições das sociedades civ i l izadas, a onda ma is recente do f i na l do sécu lo adm it ia a resistência dos i nd ígenas às pressões da modern idade, mas percebia-os como g r upos descaracterizados cu lt u ra l mente, prejud icados em sua ident idade e v ivendo com as sobras da produção i ndust ria l, como pobres u rbanos que se abastecem do
O fet iche das me rcado r ias: a face ocu lta do contato ent re í nd ios e b rancos
l i xo das classes ma is abastadas. Recentes t raba l hos, no entanto, most ram que com os i nd ígenas de várias par tes do mu ndo isso não acontece. O pessi m ismo com relação ao por v i r t riba l era fr uto da i lusão de u m i l i m itado poder capita l ista si ntet izada na expressão “só os conver t idos (ao capita l ismo) sobrev iverão”. Em contato há mu ito tempo com os va lores e produtos da sociedade moderna, as popu lações t riba is se mod if icaram, mas não nu m sent ido em i nentemente negat ivo como se tem ia a pri ncípio. Não dei xaram de conser var a nat u reza dos seus pressupostos t riba is fu ndamenta is pelo fato de i ncor porarem mu ito da produção e cu lt u ra est rangei ras. Conseg u i ram assi m i lar ta is itens projetando sobre eles a luz da sua própria cu lt u ra, isto é, fazendo deles u ma “leit u ra” adequada aos seus propósitos e i nteresses, ou seja, sem se subord i nar a eles de manei ra mecân ica, como seria o caso se dei xassem de oferecer qua lquer t ipo de resistência cu lt u ra l. A ideia, por tanto, que se fazia com a lg u ma frequência de que a cu lt u ra civ i l izada se i mporia a qua lquer preço sobre os g r upos t riba is, submet idos pela ut i l ização de bens i ndust ria l izados que passavam a const it u i r objetos de pri mei ra necessidade dos nat ivos, processo que i nd icava a óbv ia supremacia da produção i ndust ria l izada sobre as cu lt u ras t riba is, tem ca ído por terra. É o que most ra, por exemplo, Marsha l l Sah l i ns em O ‘pessi m ismo sent i menta l’ e a experiência et nog ráf ica: porque a cu lt u ra não é u m ‘objeto’ em v ia de ext i nção (1997 ), texto que ser v i rá de cont raponto às arg u mentações Con heci mento & Diversidade, Niterói, v. 10, n. 20, p. 169 –187,
jan./abr. 2018 172 desenvolv idas neste t raba l ho. De u m modo gera l, esse texto – com base em d iversas pesqu isas desenvolv idas em várias par tes do mu ndo –, most ra que as sociedades t riba is não só têm sobrev iv ido às i nju nções do mu ndo capita l ista com o qua l estão em permanente contato, mas também d i nam izado a lg u mas prát icas nat ivas exatamente pela i ncor poração de produtos i ndust ria l izados
O pessimismo com relação ao por v ir tr ibal era fr uto da i lusão de um i l imitado poder capital ista sintetizada na expressão “só os convertidos (ao capital ismo) sobrev iverão”. e mesmo de d i n hei ro, ou seja, papel moeda. Extensas redes de parentesco l igam i nd iv íduos que v ivem em cent ros u rbanos àqueles que permanecem nas a ldeias, redes por onde ci rcu lam tanto bens i ndust ria l izados quanto prát icas, compor tamentos e rit ua is que dão consistência a ta is redes e rev igoram as ident idades t riba is dos i nd iv íduos que estão afastados das suas comu n idades de origem. Estas, tendo em v ista as conexões mant idas com o mu ndo exterior desempen ham dois papéis i mpor tantes. Fu ncionando como base de em issão de itens e representações da cu lt u ra t riba l, elas mantêm seus “f i l hos ausentes” enredados na teia de sig n if icados que l hes dão sent ido e ident idade. Por out ro lado, red ist ribu i ndo aos que “f icaram em casa” os bens que
chegam do exterior capita l ista, a comu n idade se apropria deles, submetendo-os ao sistema de representação nat iva, ut i l izando-os de manei ra adequada à necessidade da v ida t riba l e negando qua lquer autonom ia “comprometedora” aos objetos i mpor tados, no sent ido de que pudessem “v iciar” de a lg u ma manei ra o ambiente comu n itário. Ta l quadro, por tanto, relat iv iza o poder do sistema capita l ista sobre as sociedades que, a lcançadas pela onda econôm ica globa l izada, mantêm seus modos de produção e cu lt u ra orig i na is, a i nda que mod if icados não por u ma subm issão i nexorável a ela, mas por força de u ma adesão posit iva a sua i nf luência, va le d izer, sem sacrif icar pressupostos fu ndamenta is da cu lt u ra e sociedade pri m it ivas. Esse desdobramento, seg u ramente, pode também se obser var ju nto aos g r upos t riba is do Brasi l que sobrev iveram ao “holocausto colon ia l” emba lado pelas g uerras et nocidas e pelos v ír us mor ta is que levaram doenças de exterm í n io a vários g r upos autóctones não i mu nes a eles. A g rande ma ioria dos g r upos se amoldou às i nju nções da econom ia i ndust ria l que, não raramente, teve u m papel norteador das adaptações nat ivas àquela econom ia. A questão da “sobrev ivência cu lt u ra l” de ta is g r upos face ao capita l ismo globa l izado, colocada nos moldes d iscut idos por Sah l i ns, parece fu ndamenta l mente d izer respeito aos g r upos que, mesmo tendo sofrido u m i mpacto for temente desag regador de seus pressupostos cu lt u ra is no i n ício do per íodo de contato cont i nuado com a cu lt u ra ocidenta l, puderam nu m seg u ndo momento refazer-se
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desse i mpacto e absor ver as i nf luências do modelo capita l ista de manei ra posit iva, isto é, at uando cu lt u ra l mente sobre va lores e itens comercia is i mpor tados no sent ido de adaptá-los às ci rcu nstâncias e necessidades de sua própria sociedade. Mas u ma obser vação se i mpõe com relação a essa questão: se parece fáci l atentar como ma is recentemente os g r upos i nd ígenas se apropriaram dos bens i ndust ria l izados, moldando-as aos seus cost u mes, hábitos e va lores Con heci mento & Diversidade, Niterói, v. 10, n. 20, p. 169 –187, jan./abr. 2018 173 t riba is, ta lvez seja bem ma is d ifíci l recuperar dados relat ivos a u ma fase i n icia l do contato – u m passado seg u ramente remoto na i mensa ma ioria dos casos – marcado por cont u rbações cu lt u ra is
nat ivas decorrentes do contato com os civ i l izados e suas i mposit ivas mercadorias. Podese, por tanto, fa lar, at ua l mente, em “ot i m ismo sent i menta l”, quando já se col heram dados suf icientes para mapear o quadro de “sobrev ivência” das cu lt u ras i nd ígenas, mesmo sem o reg ist ro de u m passado provavel mente t u rbu lento, referente às pri mei ras fases do contato com a sociedade, a cu lt u ra e a econom ia “civ i l izadas”. Ta lvez com base em aconteci mentos relat ivos a essas fases é que “acred itavase que a modern ização levaria o processo de decu lt u ração a u ma solução f i na l, v isto que os cost u mes t rad iciona is eram considerados como u m obstácu lo ao desenvolv i mento” (SA H L I NS, 1997, p. 51). Um paradoxo não dei xa de estar presente nessa l i n ha de ref lexão. Por u m lado, o
evolucion ismo ant ropológ ico most rara-se condescendente com as sociedades pri m it ivas no sent ido de que, embora est ivessem posicionadas em u m ba i xo deg rau na esca la evolut iva, t i n ham todas as capacidades para avançar em d i reção à civ i l ização, considerada o ápice do processo desenvolv i ment ista. Em termos teóricos, ta l ref lexão foi bem aceita – mesmo porque apontava para u ma ig ua ldade da espécie hu mana em termos de capacidade evolut iva, o que rompia com ideias preconceit uosas sobre popu lações nat u ra l mente l i m itadas em termos socia is e cu lt u ra is, como as que i mpreg naram as ideias racia is do sécu lo X I X. Na prát ica, porém, as ev idências que se seg u i ram ao contato das sociedades t riba is com as frentes de expansão do mu ndo
as sociedades tr ibais não só têm sobrev iv ido às injunções do mundo capital ista, mas também dinamizado algumas práticas nativas exatamente pela incor poração de produtos industr ial izados e até mesmo de dinheiro
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civ i l izado colocavam novas questões que a ant ropolog ia não estava preparada para considerar. Acontecia que, em vez dos g r upos i nd ígenas se benef iciarem do conv ív io com as sociedades avançadas para acelerar seu prog resso, o i mpacto do contato com a cu lt u ra ocidenta l, v ia de reg ra, teve para elas u m resu ltado bastante negat ivo dev ido a enfrentamentos bel icosos ou à aqu isição de doenças t ransm it idas pelos brancos, o que levou a u m processo de d izi mação dos nat ivos em elevadas proporções. O próprio Ma l i nowsk i vat icionou seu desapareci mento ao af i rmar que [...] o objeto de est udo [da et nolog ia] se d issolve com u ma rapidez i rremed iável. Justamente agora, quando os métodos e objet ivos da et nolog ia cient íf ica fu ndada no t raba l ho de campo começam a tomar forma, quando homens perfeitamente preparados para o t raba l ho começam a v iajar às terras selvagens e a est udar seus habitantes, estes vãose ext i ng u i ndo d iante de seus ol hos ( M A L I NOWSK I apud SA H L I NS, 1997, p. 50). Pode-se, pois, d iscern i r, completando o paradoxo aci ma referido, que se a civ i l ização seria a lcançada pelas popu lações nat ivas at ravés de u m lento processo de desenvolv i mento i nerente ao campo pri m it ivo, nem por isso seria benéf ico para elas u m contato em larga esca la com sociedades que Con heci mento & Diversidade, Niterói, v. 10, n. 20, p. 169 –187, jan./abr. 2018 174 já desfr utavam das benesses da civ i l ização, como se poderia i mag i nar a pri ncípio. Em out ras pa lavras, as sociedades
i nd ígenas, apesar de estarem seg u i ndo r u mo ao prog resso, não estavam preparadas para “quei mar etapas” do processo civ i l izatório pelo contato abr upto, denso e prolongado com as sociedades que já se colocavam no g rau ma is elevado desse processo. A descaracterização cu lt u ra l seria u m resu ltado i nev itável daquele contato, com a consequente perda da ident idade e dos va lores básicos que dão sent ido à própria v ida. A “solução f i na l”, aci ma mencionada, fel izmente não foi levada a termo, mas o preço pago pelas popu lações t riba is pelo contato, v ia de reg ra i mposto, mas também mu itas vezes buscado, com a cu lt u ra ocidenta l foi gera l mente bastante elevado. Só para mencionar u m caso, va le a pena atentar para o fato de que no Brasi l a popu lação i nd ígena, que foi est i mada ent re dois e quat ro m i l hões no sécu lo X V I, reduziu-se, em meados do sécu lo passado, a cerca de 20 0.0 0 0 nat ivos em todo o território naciona l, seg u ndo est i mat ivas de Darcy R ibei ro (1979).
no Brasi l a popu lação indígena, que foi estimada entre dois e quatro mi l hões no sécu lo X V I, reduziu-se, em meados do sécu lo passado, a cerca de 2 0 0.0 0 0 nativos No Brasi l, como em out ras áreas geog ráf icas “conqu istadas” pela civ i l ização, os nat ivos não foram todos ext i ntos, mas não estavam completamente equ ivocados aqueles que tem iam pela sobrev ivência física das popu lações t riba is nu m mu ndo dom i nado pela cu lt u ra moderna, pela econom ia capita l ista e pela v iolência
– em todas as formas – que frequentemente engendram. Como também não estavam redondamente enganados os que optavam pela v isão ot i m ista da resistência i nd ígena face ao i mpacto resu ltante do contato com o mu ndo civ i l izado, já que a sobrev ivência das popu lações nat ivas quase sempre foi u m dado da h istória do contato bem como é u m dado da rea l idade at ua l. Considerandose a i nda o cont i ngente t riba l brasi lei ro, obser va-se que ao elevado n ível de decadência popu laciona l i nd ígena du rante os quat ro sécu los de contato com a sociedade ocidenta l seg u iu-se, a par t i r de meados do sécu lo X X , u m rev igoramento bastante consistente. Nossa experiência ent re os Iran xe de Mato Grosso – que est iveram à bei ra da ext i nção nas pri mei ras décadas do sécu lo passado, quando contavam apenas com poucas dezenas de i nd iv íduos – i lust ra, de manei ra exemplar, a retomada do cresci mento popu laciona l i nd ígena no Brasi l. Já no i n ício dos anos 60, houve u m reg ist ro de 52 í nd ios; enquanto que, na década seg u i nte, g raças ao i ncremento de casamentos i nter t riba is com várias out ras et n ias da reg ião, est i mu lados pelos m issionários que cont rolavam a reser va i nd ígena Iran xe, a popu lação da reser va at i ng ia 117 í nd ios. O rev igoramento popu laciona l pode a i nda ser ava l iado pelo fato de que quase a metade da popu lação era const it u ída por jovens menores de 14 anos e a taxa de nasci mentos cont i nuava elevada. Dent re as razões que cont ribu íram para essa rev i ravolta estat íst ica ent re os g r upos t riba is brasi lei ros, seg u ramente, se destacam a cessação das g uerras de conqu ista ou de subm issão
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sociocu lt u ra l – que já t i n ham at i ng ido seus objet ivos -, o f i m das lutas promov idas pelos poderes estata is v isando ao cont role das áreas ocupadas ou exploradas pelos g r upos i nd ígenas, a absorção g radat iva Con heci mento & Diversidade, Niterói, v. 10, n. 20, p. 169 –187, jan./abr. 2018 175 de va lores e produtos da sociedade naciona l, que em vez de submeter as cu lt u ras i nd ígenas aos d itames dos itens econôm icos e cu lt u ra is “civ i l izados” fu nd i ram-se aos sistemas de sig n if icação nat ivos i mplementando mudanças socia is que mu itas vezes deram novo “ân i mo” àquelas cu lt u ras em sua prog ressiva i mersão na econom ia naciona l e no capita l ismo globa l izado. Do relatório que apresentamos sobre os Iran xe em 1983, após t raba l ho de campo rea l izado em sua reser va, destacamos o seg u i nte t recho onde se ressa ltam a lg u mas consequências do contato com a sociedade naciona l: Apesar de est i mu lados pelos m issionários a reav ivar a lg u ns aspectos básicos de sua cu lt u ra e
sociedade, mesmo os í nd ios ma is vel hos não vêem já nen hu ma razão para isso. Seg u ndo os próprios Iran xe, agora é tarde dema is para retomar os padrões i nd ígenas já abandonados, mesmo porque eles são prat icamente descon hecidos das novas gerações. E estas, dadas as cond ições at ua is do g r upo i nd ígena, não se sentem est i mu ladas a aprender a v iver seg u ndo t rad ições cu lt u ra is de seus antepassados. A g rande ma ioria dos Iran xe, i nclu ídos os í nd ios ma is vel hos, deseja, antes, mel hor aparel har-se para enfrentar os problemas adv i ndos do contato com o mu ndo dos brancos, especia l mente as necessidades econôm icas dos bens i ndust ria l izados já i ncor porados à sua v ida cot id iana. Em out ras pa lavras, os Iran xe não desejam rever ter a l i n ha acu lt u rat iva nem desacelerar o rit mo da acu lt u ração. Ao cont rário, af i rmam que precisam dom i nar a cu lt u ra e o con heci mento do homem branco para poder relacionarse com ele cada vez ma is em pé de ig ua ldade. Assi m, o que resta na sociedade Iran xe at ua l de i nt ri nsecamente
t rad iciona l parece condenado ao esqueci mento. É o caso da l í ng ua, da música e de u m jogo de bola prat icado com a cabeça. Esses elementos são basicamente relacionados às gerações ma is ant igas, de modo que não são, ou são mu ito pouco, compar t i l hados pelos ma is jovens. Não há, por exemplo, u ma só criança ou adolescente nas a ldeias Iran xe que sa iba fa lar a l í ng ua i nd ígena ou que se si nta est i mu lado a aprendê-la ( L EOPOL DI, 1983, p. 4 -5). Esse exemplo, pautado no conv ív io com os Iran xe, seg u ramente pode ser obser vado em vários out ros g r upamentos i nd ígenas, seja no Brasi l, seja com popu lações i nd ígenas de out ros pa íses, par t icu larmente aquelas que t iveram sua popu lação mu ito reduzida e se tornaram ma is v u l neráveis às i nju nções decorrentes do contato com a sociedade naciona l. Embora não ten hamos acompan hado o quadro de variação demog ráf ica dos cont i ngentes t riba is de out ras áreas geog ráf icas, acred itamos que a recuperação, o rev igoramento da popu lação nat iva, após u m per íodo de
É tarde demais para retomar os padrões indígenas já abandonados, mesmo porque eles são praticamente desconhecidos das novas gerações
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redução popu laciona l em face de lutas que sempre i mpreg naram o contato i nterét n ico ent re í nd ios e brancos, ten ha processado de manei ra semel hante Con heci mento & Diversidade, Niterói, v. 10, n. 20, p. 169 –187, jan./abr. 2018 176 ao que ocorreu no Brasi l, pelo menos quando o território i nd ígena passou ao cont role dos estados modernos e das econom ias capita l istas. No Brasi l de hoje, a popu lação i nd ígena se d ist ribu i por duas categorias, em fu nção a i nda da sit uação de contato com a sociedade naciona l. Por u m lado, há os í nd ios a ldeados, ou seja, os que v ivem em áreas i nd ígenas, cuja popu lação foi recentemente est i mada em 325.652 ( BORGES, 20 03, p. 139), o que aponta para u m cresci mento ext remamente modesto da colet iv idade nat iva em a ldeias. Por out ro lado, nota-se u ma nova categoria assi m i lada aos censos at ua is em que se reg ist ram os i nd ígenas que v ivem nas áreas u rbanas. Com base em dados da F U NA I e do Museu do Índ io do R io de Janei ro, a popu lação i nd ígena at ua l, i nclu i ndo os chamados í nd ios u rbanos, foi ca lcu lada em 701.472 , ou seja, u ma expressiva colet iv idade que aponta para u m consistente au mento do nú mero de í nd ios brasi lei ros (ibidem). Ta l cenário most ra, por tanto, que o cont i ngente i nd ígena u rbano já supera em ma is de 10% aquele que permanece nas a ldeias. O que se depreende de ta l quadro, a lém do cresci mento expressivo da popu lação i nd ígena – 350% em cerca de meio sécu lo -, é a g rande m ig ração dos i nd ígenas das suas comu n idades de origem para as áreas u rbanas em busca de novas opor t u n idades
de t raba l ho, o que resu lta em necessária e g radat iva contam i nação dos va lores t riba is orig i na is por modos de ver, sent i r, pensar – va le d izer, por u ma v isão de mu ndo –, e de consu m i r, cada vez ma is a l icerçados em padrões da cu lt u ra naciona l. Pois u m quadro que compreende tanto nat ivos u rban izados como também aqueles que permanecem nas reg iões de origem, a i nda que i nf luenciados pelas cond ições socia is e econôm icas pós-contado, é t ratado por Sah l i ns a par t i r de u m enfoque que, apesar de seu a ler ta em sent ido cont rário, soa mesmo como u ma espécie de “ot i m ismo sent i menta l”. Isto porque reú ne i nformações que dão consistência a u ma abordagem das cu lt u ras i nd ígenas que se most ram não só resistentes às i mposições da econom ia capita l ista, como também criat ivas em termos da ut i l ização posit iva que fazem dos itens econôm icos i mpor tados, dando-l hes frequentemente uso ma is adequado sob o ponto de v ista nat ivo. Assi m, ao resist i r à i nf luência da i negavel mente ma is poderosa sociedade e cu lt u ra ocidenta is, reforçam sua cu lt u ra e ident idade t riba is. A questão, por tanto, que se coloca, retornando i nda ao texto de Saha l i ns, é: se as cu lt u ras i nd ígenas modernas conseg u i ram “bl i ndar-se” cont ra o sistema capita l ista, a ponto não só de conv iver com ele em cond ições “harmôn icas”, ou seja, de nãosubord i nação sociocu lt u ra l, como também se “ut i l izar” dele para i mplementar as próprias cond ições i nternas dos seus contextos cu lt u ra is, porque isso não pôde ter acontecido no passado quando as sociedades ocidenta is ent raram em contato
com o “mu ndo pri m it ivo”? As pesqu isas sobre os g r upos t riba is da at ua l idade em sua relação com o mu ndo capita l ista na l i n ha do “ot i m ismo sent i menta l” dei xam ev identes, por u m lado, a criat iv idade, a i mprov isação i ntel igente e, porque não, a força da cu lt u ra i nd ígena para resist i r à ameaça de u ma descaracterização rad ica l Con heci mento & Diversidade, Niterói, v. 10, n. 20, p. 169 –187, jan./abr. 2018 177 que a econom ia e a cu lt u ra civ i l izadas tenderiam a l hes i mpor. Por out ro lado, mu itas dessas pesqu isas, ao foca l izarem apenas o tempo at ua l, ou recente, das relações ent re nat ivos e civ i l izados, não só dei xam de se referi r ao preço elevado que frequentemente as cu lt u ras i nd ígenas pagaram pelo contato com os ocidenta is, como também de elaborar ma is profu ndamente a i nf luência que a h istória i n icia l do contato necessariamente tem nos desdobramentos que se estendem até o presente. A i nda que os aconteci mentos passados possam não ser completamente esquecidos mu itas vezes eles parecem ter sido encapsu lados nu m tempo sem conexão com a rea l idade at ua l, apesar de que não se neg ue sua ex istência. Obser ve-se a seg u i nte consideração de Saha l i ns: [...] estamos fa lando apenas dos sobrev iventes. Os sobrev iventes const it uem apenas u ma m i noria daquelas ordens sociocu lt u ra is ex istentes, d igamos, no sécu lo X V. O que se seg ue, por tanto, não deve ser tomado como um ot i m ismo sent i menta l, que ig noraria a agon ia de povos i ntei ros, causada pela doença, v iolência, escrav idão, expu lsão do território
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O contingente indígena urbano já supera em mais de 10% aquele que per manece nas aldeias.
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t rad iciona l e out ras m isérias que a “civ i l ização” ocidenta l d issem i nou pelo planeta. Tratase aqu i, ao cont rário, de u ma ref lexão sobre a complex idade desses sofri mentos, sobret udo no caso daquelas sociedades que souberam ext ra i r, de u ma sor te madrasta, suas presentes cond ições de ex istência (SA H L I NS, 1997, p. 53). Os terr íveis tempos do per íodo i n icia l do contado podem não dei xar de ser lembrados, pelo menos teoricamente, mas f icaram como lembranças e reg ist ros de u m per íodo ext remamente cont u rbado em que, a lém das v iolências que l hes eram per pet radas, as t ribos i nd ígenas não sabiam l idar com as nov idades da econom ia e da cu lt u ra ocidenta is e t ratavam todos os est rangei ros como i n i m igos, com os qua is, ev identemente, a ú n ica relação possível era a g uerrei ra. At ua l mente, ol ha-se para a relação ent re popu lações i nd ígenas e ocidenta is, apesar de af i rmações cont rárias, com um verdadei ro “ot i m ismo sent i menta l” que parece
perceber o passado como desv i ncu lado do presente, sem as marcas do f lagelo que açoitaram, às vezes rad ica l mente, a cu lt u ra orig i na l nat iva. É como se os “bons selvagens” do passado, generosos, i ngênuos, sem ma ldade – qua l idades que teriam favorecido a exploração e v iolência de que foram v ít i mas da civ i l ização ocidental – dessem lugar aos “bons selvagens” da modern idade, que planejam u ma resistência cu lt u ra l em moldes criat ivos, respeitosos de seus fu ndamentos e ident idade cu lt u ra is, com sagacidade suf iciente para “absor ver” da econom ia moderna aqu i lo que é benéf ico para sua cu lt u ra, de modo a promover u ma verdadei ra “t riba l ização” do capita l ismo. Ta lvez, então, a pa lavra “sobrev ivência” com
as tr ibos indígenas não sabiam l idar com as nov idades da economia e da cu ltura ocidentais e tratavam todos os estrangeiros como inimigos
que se tem referido aos g r upos t riba is “resistentes” a u ma subm issão, para não d izer “dependência”, da econom ia moderna devesse ser subst it u ída por “super v ivência”, que expressaria ma is Con heci mento & Diversidade, Niterói, v. 10, n. 20, p. 169 –187, jan./abr. 2018 178 adequadamente o cont role pelos i nd ígenas das ameaças capita l istas que nu m passado, remoto ou não, chegaram a ameaçar sua ex istência física ou cu lt u ra l. Nossa proposta não é negar essa, d igamos, “v itória defensiva”, ou “acomodação posit iva” que as sociedades i nd ígenas experi mentaram e vêm experi mentando face ao capita l ismo naciona l ou globa l, mas buscar relat iv izar suas conqu istas consubstanciadas no “ot i m ismo cu lt u ra l” propa lado por setores da moderna ant ropolog ia. Assi m, ev idenciar íamos a i nexorabi l idade das marcas do passado conf l it uoso no per íodo pós-contato, sempre com desvantagens t riba is, na h istória i nd ígena que devem cont i nuar contam i nando as relações ent re as cu lt u ras nat ivas e o mu ndo socia l e econôm ico reg ido pela econom ia capita l ista. Um cont i ngente i nd ígena brasi lei ro que sofreu rad ica l mente as ag r u ras de u ma sit uação de contato com a sociedade naciona l foi a t ribo dos Mu ndu r uku, t ribo g uerrei ra da reg ião amazôn ica que se dobrou às relações pacíf icas com as forças colon ia is largamente mot ivada pela aqu isição de produtos i ndust ria l izados colocadas ao seu a lcance como elemento pacif icador ent re eles e a popu lação colon ia l da A mazôn ia, representada pelo exército, que se encarregava
O fet iche das me rcado r ias: a face ocu lta do contato ent re í nd ios e b rancos
de submeter as t ribos que se opu n ham a u ma relação de subm issão à sociedade naciona l. Os Mu ndu r uku sempre foram apontados como a g rande t ribo g uerrei ra da A mazôn ia, desde que su rg i ram na h istória da reg ião na seg u nda metade do sécu lo X V I I I. As not ícias que envolv iam esses í nd ios, v ia de reg ra, d iziam respeito aos seus ataques às popu lações lusobrasi lei ras que se f i xavam às margens dos rios das reg iões percorridas pelos g r upos de g uerrei ros, notadamente a Mu ndu r ucân ia – território l i m itado ao nor te pelo rio A mazonas, ao su l pelo Ju r uena, a leste pelo Tapajós e a oeste pelo rio Madei ra. Mas suas exped ições de g uerra exced iam largamente esses l i m ites, u lt rapassando a leste o rio X i ng u e chegando mesmo às prox i m idades de Belém do Pará. O objet ivo era per pet rar u ma série de ataques tanto a out ras t ribos i nd ígenas quanto às comu n idades nãoí nd ias do va le amazôn ico. Frequentemente as exped ições g uerrei ras se mant i n ham à caça de i n i m igos de out ras et n ias du rante vários meses, per íodo que pod ia chegar a u m ano e meio. Essa ded icação à at iv idade bel icosa ev idencia a i mpor tância da g uerra para a sociedade Mu ndu r uku. Um mot ivo para a i ncomu m bel icosidade dos Mu ndu r uku não é de fáci l d iscern i mento, mas u m ponto sobre o qua l convergem as i nformações e ev idências é a caça a cabeças hu manas, que se revest iam do ma is a lto sig n if icado naquela sociedade. Seg u ndo A i res de Casa l (1976), os Mu ndu r uku eram chamados pelos i nd ígenas de out ras t ribos de pa iqu icé, que sig n if icava “cor ta-cabeça”, prát ica essa de que não se tem
not ícia em qua lquer out ra t ribo i nd ígena do Brasi l. Todos os i n i m igos homens adu ltos eram mor tos, enquanto as mu l heres e crianças eram levadas para as a ldeias Mu ndu r uku; aquelas ma is tarde se casavam com homens deste g r upo, enquanto estas eram adotadas e t ratadas como crianças comu ns. As cabeças dos homens Con heci mento & Diversidade, Niterói, v. 10, n. 20, p. 169 –187, jan./abr. 2018 179
Atual mente, ol ha-se para a relação entre popu lações indígenas e ocidentais, com um verdadeiro “otimismo sentimental” que parece perceber o passado como desv incu lado do presente, sem as marcas do f lagelo que açoitaram a cu ltura or iginal nativa. eram decepadas, depois preparadas por u m processo que f icou con hecido como mu m if icação e mant idas como t roféus de i nest i mável va l ia para os Mu ndu r uku. A cabeça i n i m iga mu m if icada si mbol izava o feito máx i mo a que qua lquer homem pod ia aspi rar, o que resu ltava em org u l ho ext remado e respeito – provavel mente também i nveja – dos seus pares. O dono da cabeça – exuberante em prest íg io e glória – conduzia-a frequentemente i mplantada nu ma estaca e se tornava o elemento cent ra l de u ma série de fest iv idades e ceri môn ias celebrantes da cabeça-t roféu, que se estend ia por t rês estações chuvosas após a g uerra em que hav ia sido conqu istada. Os í nd ios Mu ndu r uku apareceram nos reg ist ros h istóricos por volta de
1770, quando f izeram u ma série de devastadores ataques aos povoados loca l izados à bei ra do rio Tapajós. Nessa época, o território da Mu ndu r ucân ia já era objeto de exploração de colonos luso-brasi lei ros e a lg u mas a ldeias m issionárias já hav iam sido estabelecidas pelos padres jesu ítas. O i n ício da u lt i ma década do sécu lo X V I I I, em face de ataques cada vez ma is constantes e ousados, bem como à i nseg u rança que se ia estabelecendo nos povoados da vasta reg ião assolada pelos Mu ndu r uku, presenciou u m mov i mento prog ressivo das t ropas colon ia is para dar combate aos g uerrei ros i nd ígenas. Em 1794, u ma força com cerca de 50 0 soldados chegou a ser formada em Santarém para perseg u i r e atacar os Mu ndu r uku até as a ldeias do A ltoTapajós. Mas a exped ição foi suspensa dev ido à not ícia de que u m acordo de paz hav ia sido estabelecido ent re os í nd ios Mu ndu r uku que habitavam a reg ião do rio Madei ra e os colonos da capitan ia do R io Neg ro. Três í nd ios que hav iam sido aprisionados em combate foram – por est ratég ia de m i l itares e pol ít icos da sede da capitan ia do Grão-Pará – bem t ratados pelos seus captores e em seg u ida l iber tados, levando presentes para parentes e l íderes da sua a ldeia. At ra ídos, então, pela posse de bens (roupas, facas, machados, m içangas e os ma is variados utensí l ios) que a econom ia i nd ígena não produzia, bem como pela possibi l idade de u m relacionamento pacíf ico com os colonos, g r upos de Mu ndu r uku se d i rig i ram à Barra do R io Neg ro ( hoje cidade de Manaus), sede da capitan ia, estabelecendo a lg u mas a ldeias ent re aquela cidade e o
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povoado de Ser pa, tendo sido bem recebidos pela popu lação não-i nd ígena a l iv iada do temor que l he causava a con hecida bel icosidade dos Mu ndu r uku. Já em 1817, A i res de Casa l reg ist rava que quase todos os g r upos Mu ndu r uku estavam a l iados aos por t ug ueses e a lg u ns já conver t idos à fé cristã. Mas cont i nuavam u ma i mplacável perseg u ição a out ros g r upos i nd ígenas. A desu man idade das hordas Mu ndu r ucanas que a i nda vag ueiam pelos matos, porquanto não dão quar tel a sexo, nem a idade, tem obrigado g rande par te das out ras nações a refug iar-se ju nto das povoações dos cristãos, onde à sua sombra e de paz v ivem seg u ros daquele desa l mado i n i m igo (CA SA L , 1976, p. 237 ). Con heci mento & Diversidade, Niterói, v. 10, n. 20, p. 169 –187, jan./abr. 2018 180 As g uerras i nter t riba is benef iciavam também os por t ug ueses, que v iam com bons ol hos o enfraqueci mento da resistência i nd ígena ao seu dom í n io, favorecendo – at ravés de u ma espécie de escrav idão d issi mu lada – u ma ut i l ização cada vez ma ior da mão-deobra i nd ígena nas v i las dos colon izadores. O est í mu lo ao ân i mo bel icoso dos Mu ndu r uku cont i nuou rendendo fr utos aos colon izadores que sabiam t i rar par t ido dele. João Barbosa Rodrig ues, que v isitou a reg ião do Tapajós em 1872 i nteg rando com issão cient íf ica organ izada pelo governo i mperia l, reg ist rou que ela hav ia sido anteriormente habitada por vários g r upos i nd ígenas hoje ext i ntos, como os Tapajós, Apanuariás, A manajás, Mari x itás, Apicu ricus, Moqu i riás, A njuariás, Jararéuaras, Apecu rias,
Canecu riás, Mot uari, Uar upás, Periqu itos e Suari ranas. Em seu relato sobre a ocupação i nd ígena da reg ião, Barbosa Rodrig ues destacou que a lém do desapareci mento dos í nd ios Tapajós, atacados por i nfecções provavel mente resu ltantes do contato com os nãoí nd ios, os dema is g r upos “fug i ram para out ros pontos da prov í ncia” ou “foram exterm i nados pelos Mut i r ucus, hoje Mu ndu r ucus”. Darcy R ibei ro também destacou a a l iança g uerrei ra ent re os Mu ndu r uku e as forças governamenta is ao obser var que Dev ido à g rande combat iv idade desses í nd ios, eles foram recr utados pelos brancos para fazer face a t ribos host is. Com isso, os Mu ndu r ukú conseg u i ram manter, por um longo per íodo, cer ta i nteg ridade e autonom ia t riba l e o poder pol ít ico dos seus chefes a lcançado pelo relevante papel que exerciam na g uerra. Assi m, os padrões g uerrei ros passaram a ser desempen hados tanto pelas ant igas mot ivações t riba is, como por razões mercenárias ( R I BEIRO, 1979, p. 40). Mas a autonom ia cu lt u ra l dos Mu ndu r uku não du rou mu ito tempo depois que os dema is g r upos i nd ígenas amazôn icos i nsubm issos ao poder colon ia l foram exterm i nados ou acabaram rendendo-se à paz com os colonos. L i m itados às i nju nções i mpostas pelo dom í n io colon ia l às reg iões antes dom i nadas por eles, o que sig n if icava o f i m das lutas cont ra as t ribos i nd ígenas até então autônomas, os Mu ndu r uku perderam u m tanto abr uptamente o objet ivo para o qua l sempre v iveram – a g uerra e a capt u ra de cabeças dos i n i m igos. Por out ro lado,
já hav iam assi m i lado à sua econom ia os objetos até então obt idos por ser v iços prestados à popu lação reg iona l at ravés de u m i ncipiente comércio de produtos f loresta is e de ataques, at uando como mercenários, aos g r upos que resist iam à dom i nação colon ia l. Em menos de u m sécu lo, os Mu ndu r uku t iveram que se adaptar a u ma v ida completamente nova, cada vez ma is afastada dos padrões cu lt u ra is e mot ivações t rad iciona is e cada vez ma is dependente da econom ia loca l, em face da necessidade de obter os produtos da econom ia brasi lei ra dos qua is não pod iam ma is abri r mão e que eram i nacessíveis ao seu modo de produção t riba l. A h istória do contato ent re os Mu ndu r uku e os reg iona is amazôn icos Con heci mento & Diversidade, Niterói, v. 10, n. 20, p. 169 –187, jan./abr. 2018 181 atesta de forma emblemát ica o fato de que a forma econôm ica do contato é u m fator determ i nante no processo de acu lt u ração. Nesse caso, a celu l la mater da forma econôm ica foi o i nteresse dos í nd ios na obtenção de produtos i ndust ria l izados e a “t roca orig i na l” desse processo foi consubstanciada pela ofer ta de mão-de-obra g uerrei ra nat iva que se colocou a ser v iço do exército colon ia l. Com a prog ressiva redução desse “mercado de g uerra” em face da capit u lação sucessiva das t ribos autônomas da A mazôn ia, os Mu nku r uku se engajaram na econom ia ext rat iva de produtos f loresta is – g uaraná, óleo de copa í ba, fr utos si lvest res etc. – para dar cont i nu idade ao processo de t roca com os reg iona is e a obtenção das suas cobiçadas mercadorias.
O fet iche das me rcado r ias: a face ocu lta do contato ent re í nd ios e b rancos
No i n ício do sécu lo X I X , esse processo foi acelerado pelo estabeleci mento dos i nd ígenas nos loca is habitados por caboclos nas bacias dos rios Madei ra e Tapajós. Esse contato ma is aprox i mado cont ribu iu para u m recr utamento cada vez ma is expressivo da mãode-obra nat iva para os ma is variados ser v iços, dada a escassez de t raba l hadores nãoi nd ígenas naquela reg ião. O processo acu lt u rat ivo que se v i n ha i mpondo à sociedade Mu ndu r uku se acelerou abr uptamente em meados do sécu lo X I X com a penet ração da econom ia da borracha nas áreas que t i n ham estado sob o dom í n io da t ribo. Com a elevada demanda do produto, os i nd ígenas v iam ma iores possibi l idades de adqu i ri r os produtos de que necessitavam – utensí l ios de meta l, os ma is variados ar t igos, i nclu i ndo armas de fogo – engajando-se na coleta da seri nga. No f i na l do sécu lo, fechava-se sobre os í nd ios o círcu lo formado pela econom ia ext rat iva da borracha e pela dependência dos produtos i ndust ria l izados a que se submet ia cada vez ma is v igorosamente a econom ia i nd ígena. Fig u ra cent ra l nesse processo foi a f ig u ra do pat rão, u m i nd iv íduo que obt i n ha o d i reito de propriedade de u ma área f loresta l, v isando à exploração da borracha, e que comandava o t raba l ho feito pelos í nd ios. Ele também se benef iciava de u m sistema de créd ito que v i ncu lava de manei ra i nescapável o í nd io seri ng uei ro a seu empregador que, na prát ica, ser v ia para “leg it i mar” as ma is terr íveis explorações. Não acost u mados às especif icidades do sistema capita l ista no que tang ia à relação ent re produtos e
va lores, os nat ivos se tornavam v ít i mas i ndefesas dos ma is exagerados roubos, fraudes e t rapaças. Não tendo a quem recorrer, já que a comu n idade t riba l ma is envolv ida pela d i nâm ica do contato se hav ia d ispersado exatamente para atender ao modo de produção ext rat iv ista da borracha, cujo t raba l ho era rea l izado de forma em i nentemente sol itária, os Mu ndu r uku se tornaram v ít i mas i ndefesas das espol iações protagon izadas pelos agentes da econom ia do látex. Frequentemente, a t i ran ia dos pat rões levou os Mu ndu r uku, tão tem idos anteriormente por sua ext remada bel icosidade, a u ma relação de t raba l ho que prat icamente pouco dev ia à escrav idão que, naquela época, a i nda submet ia o t raba l ho da popu lação neg ra no Brasi l. Mesmo as comu n idades a ldeadas nas áreas menos expostas ao contato sent i ram logo os efeitos da acu lt u ração que já hav ia mod if icado os Con heci mento & Diversidade, Niterói, v. 10, n. 20, p. 169 –187, jan./abr. 2018 182 g r upamentos que par t icipavam da econom ia reg iona l at ravés do ext rat iv ismo e se tornavam cada vez ma is dependentes das mercadorias i ndust ria l izadas. Naquelas comu n idades, os ma is jovens sa íam em busca do t raba l ho para os reg iona is, retornando com os objetos i mpor tados que se iam i mpondo ao modo de v ida t rad iciona l. A organ ização socia l das a ldeias já hav ia sido consideravel mente prejud icada pela cessação da g uerra cont ra out ras et n ias, at iv idade essa que const it u ía o ei xo em torno do qua l a ex istência Mu ndu r uku adqu i ria sent ido. Em consequência d isso, a est r ut u ra socia l se
v iu bastante afetada à med ida que papéis, stat us, relações, rit ua is, va lores e padrões de compor tamento si nton izados com a at iv idade g uerrei ra perderam o v í ncu lo com a rea l idade t riba l, agora moldada pela sit uação “pacíf ica” do contato e pelo poder da econom ia reg iona l. Isso fez com que l ideranças, g uerrei ros, anciãos dei xassem de const it u i r os elementos sig n if icat ivos da est r ut u ra socia l Mu ndu r uku, como acontecia anteriormente quando a g uerra e a posse das cabeças t roféus est r ut u ravam seus papéis socia is. É fáci l perceber como esse quadro de desmantelamento da cu lt u ra t rad iciona l i nd ígena comprometeu em larga med ida a própria ident idade sociocu lt u ra l da t ribo. No f i na l do sécu lo X I X , quase todos os nat ivos par t icipavam de relações comercia is com os brancos e aqueles que v iv iam na reg ião do ba i xo Tapajós já faziam par te da popu lação cabocla da A mazôn ia g raças ao processo de m iscigenação com os reg iona is. Como já sa l ientado, a perda do modelo ident if icador e i nteg rador baseado no saber t rad iciona l i nd ígena e no desempen ho dos papéis cent ra is da sociedade reg u lados pela at iv idade g uerrei ra causara aos í nd ios u ma espécie de “t rau mat ismo” sociocu lt u ra l. Acabaram, assi m, tornando-se presas fáceis dos pat rões, regatões e comerciantes de modo gera l, que const it u íam as v ias de acesso dos nat ivos aos bens i ndust ria l izados já i nteg rados à sua econom ia e à sua sociedade. At ua l mente, com u ma popu lação de cerca de 10.0 0 0 í nd ios, os Mu ndu r uku v ivem da ag ricu lt u ra, com o cu lt ivo de d iferentes t ipos de mand ioca,
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banana, batata, cana e cará, da caça, pesca e coleta de vários fr utos si lvest res. Com pequena exploração da borracha dev ido à ba i xa demanda do produto, t raba l ho em gari mpos de ou ro aber tos recentemente na reg ião, produção de fari n ha e coleta de castan ha, os í nd ios cont i nuam rea l izando o comércio com os reg iona is para a obtenção das mercadorias de que necessitam: i nst r u mentos e utensí l ios de meta l, sa l, açúcar, sabão, sandá l ias, roupas e vários out ros produtos de origem nãoi nd ígena. A organ ização socia l cont i nua obedecendo à d iv isão t rad iciona l da t ribo, repar t ida em metades exogâm icas, com cerca de 40 clãs que const it uem a base do sistema de parentesco. A descendência pat ri l i near conjugada com a reg ra de residência u x i ri loca l e o casamento preferencia l ent re pri mos cr uzados também const it uem padrões t rad iciona is em v igor. O papel dos idosos da t ribo tem sido rev igorado pelo recebi mento de benefícios socia is do I NSS, recuperando u m stat us i mpor tante, agora de provedor da fam í l ia. Mas a casa dos homens das a ldeias t rad iciona is, espaço antes de t udo si mbol izador Con heci mento & Diversidade, Niterói, v. 10, n. 20, p. 169 –187, jan./abr. 2018 183 da i mpor tância dos papéis mascu l i nos das comu n idades Mu ndu r uku, desapareceu, quer pelo abandono das a ldeias em t roca do estabeleci mento de núcleos popu laciona is à bei ra dos rios, quer pela cessação das at iv idades t rad iciona is que consubstanciavam o et hos mascu l i no da t ribo, com amplo destaque para a g uerra e a caça às cabeças. Vários rit ua is relacionados a estas at iv idades,
bem como à caça e à col heita também desapareceram ou foram reformu lados no sent ido de se adequarem aos novos tempos que a t ribo passou a v iver depois que se amoldou às ci rcu nstâncias que def i n i ram sua sit uação de “sobrev ivência” – que aqu i também sig n if ica “dependência” – em relação à cu lt u ra naciona l. A ma ioria dos í nd ios at ua l mente estabelecidos à bei ra do rio Tapajós é bi l í ng üe, mas em várias comu n idades sit uadas em loca is ma is próx i mos às áreas u rbanas da reg ião a l í ng ua i nd ígena ca iu em franco desuso, sendo o Por t ug uês fa lado quase que com exclusiv idade, par t icu larmente pelas crianças e pelos jovens í nd ios. O que esse tou r ma is do que reduzido pela h istória e cu lt u ra Mu ndu r uku dei xa ev idente é que a solução f i na l, já referida neste t raba l ho – que resu ltaria de u m processo de decu lt u ração rad ica l face à modern idade, em relação à qua l “os cost u mes t rad iciona is eram considerados como u m obstácu lo” – não se abateu sobre a t ribo. Como também não se verif icou o “pessi m ismo sent i menta l”, seg u ndo o qua l os “sobrev iventes i nd ígenas” do processo de encapsu lamento das cu lt u ras t riba is pela econom ia globa l izada perderiam, por força desse mesmo processo, suas caracter íst icas essencia is, o que sig n if icaria o f i m dessas mesmas cu lt u ras. As obser vações de Br u no Latou r colocam adequadamente os termos em que a questão da “sobrev ivência” das cu lt u ras dos povos i nd ígenas deve ser colocada, apesar de a lg u ns pequenos exageros: As cu lt u ras supostamente em desapareci mento estão, ao cont rário, mu ito presentes, at ivas, v ibrantes, i nvent ivas,
prol iferando em todas as d i reções, rei nventando seu passado, subver tendo seu próprio exot ismo, t ransformando a ant ropolog ia tão repud iada pela cr ít ica pósmoderna em a lgo favorável a elas, ‘reant ropolog izando’, se me perm item o termo, reg iões i ntei ras da Terra que se pensava fadadas à homogeneidade monótona de u m mercado globa l e de u m capita l ismo desterritoria l izado [...]. Essas cu lt u ras, tomadas de u m novo í mpeto, são for tes dema is para que nos demoremos sobre nossas i nfâm ias passadas ou nosso at ua l desa lento. O que se carece é de u ma ant ropolog ia d isposta a assu m i r seu form idável pat ri môn io e a levar ad iante mu itas e va l iosas i nt u ições ( L ATOUR apud SA H L I NS, 1997, p. 52). Obser vações como essas não devem, no entanto, levar à posição referida como “ot i m ismo sent i menta l”, que parece de manei ra gera l i mpreg nar o ar t igo de Sah l i ns, base de referência das nossas d iscussões, ao reg ist rar “o enriqueci mento da cu lt u ra t rad iciona l que a lg u mas vezes acompan ha Con heci mento & Diversidade, Niterói, v. 10, n. 20, p. 169 –187, jan./abr. 2018 184 a i nteg ração das sociedades i nd ígenas à econom ia globa l” ou ao se referi r a u ma “i ntensif icação cu lt u ra l” resu ltante do contado, associada a u ma “promoção expl ícita da cu lt u ra i nd ígena” a i nda que “ameaçada por u ma cond ição de dependência”. O fato é que a dependência econôm ica não necessariamente “dest rói” a cu lt u ra i nd ígena; antes, age no sent ido de tornar compat íveis seus va lores e padrões de
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compor tamento com aqueles da sociedade com a qua l estabelece u ma relação de dependência, obv iamente relat iva, em termos econôm icos. Mas ta l dependência não i mpl ica d izer que não cont i nuem i nd ígenas, que não se si ntam i nd ígenas ou que ten ham perd ido suas referências cu lt ura is específ icas. A questão da acu lt u ração i nd ígena na modern idade, i nfel izmente, tem-se assemel hado a u ma quedade-braço ent re defensores de posições opostas: ou os í nd ios estão decu lt u rados, são órf ãos cu lt u ra is sem referências socia is ou ident itárias, ou estão se sa i ndo gloriosamente v itoriosos na d isputa com a econom ia das sociedades modernas, “t riba l izando” o capita l ismo, no sent ido de submetêlo as i nju nções da sua cu lt u ra t rad iciona l, que teria resist ido bravamente a todas as t u rbu lências que resu ltaram do contato com a sociedade ocidenta l. Assi m, parece form idável a obser vação de
Sah l i ns de que “os t raba l hadores Tswana não se tornam fu nções v ivas de sua dependência materia l, porque englobam a dependência por seus próprios va lores e projetos, derivados de seu ser socia l enquanto Tswana” (SA H L I NS, 1997, p. 56). O mesmo acontece com a ma is do que óbv ia af i rmação de que [...] como as i mposições do i mperia l ismo não são de fato capazes de const it u i r u ma ex istência hu mana e como a consciência e a capacidade dos povos v it i mados de forjar sig n if icados permanece i ntacta, o i ndust ria l ismo colon ia l não conseg ue forçá-los a ‘i nterna l izar’ seus próprios pressupostos sobre a nat u reza hu mana. (SA H L I NS, 1997, p. 57 ) A post u ra ma is adequada é a que se sit ua ent re os dois ext remos marcados pelo “pessi m ismo” e pelo “ot i m ismo” sent i menta l, u ma espécie de “tercei ra v ia do contato”, bem expl icitada por Friedman: “A
frag mentação ét n ica e cu lt u ra l e a homogeneização modern ista não são dois arg u mentos, duas v isões opostas daqu i lo que está acontecendo hoje no mu ndo, mas si m duas tendências const it ut ivas da rea l idade globa l” (SA H L I NS, 1997, p. 58). Apesar de se posicionar aparentemente ma is em consonância com o “ot i m ismo sent i menta l”, Sah l i ns não dei xa de obser var que “em lugar de celebrar (ou lamentar) a mor te da ‘cu lt u ra’, por tanto, a ant ropolog ia deveria aproveitar a opor t u n idade para se renovar, descobri ndo padrões i néd itos da cu lt u ra hu mana” (ibidem). Recolocando o foco de nossas considerações sobre a sociedade Mu ndu r uku, vemos como ela – como acred itamos seja o caso de todas, ou pelo menos a g rande ma ioria das “cu lt u ras sobrev iventes” – const it u i u m caso adaptat ivo consubstanciado pela “tercei ra v ia” aci ma referida. Sobrev iveu às mod if icações rad ica is i mplementadas em sua cu lt u ra
“em lugar de celebrar (ou lamentar) a mor te da ‘cu ltura’, por tanto, a antropolog ia dever ia aproveitar a opor tun idade para se renovar, descobr indo pad rões inéd itos da cu ltura humana”
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e em sua Con heci mento & Diversidade, Niterói, v. 10, n. 20, p. 169 –187, jan./abr. 2018 185 sociedade por força do contato estabelecido e tornado permanente com a sociedade brasi lei ra. O ei xo em torno do qua l esse processo se desenvolveu foi a “descober ta” pelos i nd ígenas dos produtos i ndust ria l izados, o que desper tou neles u m poderoso desejo de desfr utar deles e de possu í-los. As conseqüências já foram assi na ladas: as relações de subord i nação com os reg iona is que l hes possibi l itavam o acesso às mercadorias i mpor tadas, o engajamento como mão-deobra barata nos ma is variados ser v iços d ispon ibi l izados pelas econom ias loca is, com par t icu lar destaque para a ext ração da borracha, bem como a absorção de va lores, padrões de compor tamento e l í ng ua prat icados pela popu lação reg iona l, a lém das óbv ias mudanças cu lt u ra is que t udo isso i mpl icou. Como resu ltado desse processo que já completou dois sécu los, os Mu ndu r uku não são, obv iamente, como eram seus antepassados – como nen hu ma geração de qua lquer povo e de qua lquer loca l idade é como foram seus antepassados. Nem por isso se sentem não-Mu ndu r uku ou menos Mu ndu r uku do que sent iam seus antepassados. Mas são “out ros”, são novos Mu ndu r uku, com h istórias passadas e padrões cu lt u ra is que dei xaram para t rás mu ito das t rad ições – agora em i nentemente par te da memória t riba l – dev ido a mod if icações engendradas para v iver em consonância com a sociedade moderna, cenário do qua l não há retorno. Não dei xam de ser “sobrev iventes” desse
embate cu lt u ra l, mas nem por isso em posição de “t riba l izar” a econom ia capita l ista como gostariam os “ot i m istas sent i menta is”. Nem sustentam o org u l ho, a a lt ivez e a soberba que pod iam ant igamente ex ibi r g raças a suas i nvejadas qua l idades g uerrei ras que i nfu nd iam permanente terror a qua isquer de seus i n i m igos. Pode-se mesmo adm it i r que, desde que perceberam sua cond ição de dependência da econom ia naciona l, sentemse i nferiorizados d iante da cu lt u ra naciona l e do seu poder consubstanciado na ordem econôm ica, materia l izado pela produção de mercadorias de que agora não ma is abrem mão. Cont i nuam Mu ndu r uku, adaptando-se cont i nuadamente aos tempos modernos e manterão – por u m per íodo que é i mpossível prever - sua cu lt u ra e ident idade t riba is, a i nda que estas se most rem cada vez ma is dependentes da econom ia capita l ista. Como também os í nd ios se most ram cada vez desejosos de adqu i ri r as mercadorias produzidas por ela e que agora fazem par te de sua rea l idade sociocu lt u ra l. Como asseverou mu ito adequadamente Wi l l ian Watson, Os efeitos do i ndust ria l ismo e do t raba l ho assa lariado sugerem que, no processo de mudança socia l, u ma sociedade tenderá sempre a se ajustar às novas cond ições at ravés das i nst it u ições socia is já ex istentes. Essas i nst it u ições sobrev iverão, mas com novos va lores, dent ro de u m novo sistema socia l. ( WATSON apud SA H L I NS, 1997, p. 54) As mercadorias i mpor tadas, os bens i ndust ria l izados, revelaram-se desde o i n ício u m poderoso fet iche na h istória
dos Mu ndu r uku, com preço bastante elevado – mu ito ma is em termos si mból icos do que do que em va lores do Con heci mento & Diversidade, Niterói, v. 10, n. 20, p. 169 –187, jan./abr. 2018 186 mercado reg iona l, apesar do exagero com que eram prat icados – dev ido às i nterferências que causaram na cu lt u ra t rad iciona l. Mas a opção – expressão que, no caso, não deve ser tomada l itera l mente – de cont i nuar nesse cam i n ho foi de i ntei ra responsabi l idade i nd ígena, a i nda que não se pudessem prever os fut u ros aconteci mentos. Hoje, os Mu ndu r uku v ivem a tensão de cont i nuar sendo í nd ios com u ma cu lt u ra cada vez ma is si nton izada com os tempos modernos e com o capita l ismo consum ista, portanto afastandose agora de manei ra acelerada dos seus va lores e modo de v ida t rad iciona is. Vivenciam, como não pod ia dei xar de ser, a lg u ns aspectos da cu lt u ra dos seus antepassados, mas vãose adaptando i nexoravel mente à modern idade, como adaptam a modern idade a seus fu ndamentos e padrões sociocu lt u ra is, sempre no sent ido de renovar a cu lt u ra e a sociedade Mu ndu r uku, t ri l hando a “tercei ra v ia” do cam i n ho da “sobrev ivência” e do processo acu lt u rat ivo. São mu ito d iferentes dos seus antepassados pautados pela cu lt u ra t rad iciona l, é verdade, mas d ispõem de elementos t riba is const it u i ntes o suf iciente para preser var o sent i mento de especif icidade, d ist i nção e pecu l iaridade que os d ist i ng uem de qua isquer out ras et n ias e l hes conferem u ma caracter íst ica e d iferenciada ident idade Mu ndu r uku.
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