O singular e o múltiplo: experimentações com estampas padronadas

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O singular e o múltiplo: experimentações com estampas padronadas

Giovanna Estevam Saquietti Orientação Sara Goldchmit (tfg I) e Clice Mazzilli (tfg II)

Trabalho Final de Graduação Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Universidade de São Paulo janeiro 2015



Apresentação

O trabalho parte do desejo de investigação acerca dos processos criativos envolvendo a concepção de estampa padronada com impressão em tecido. Para isso, matrizes e estampas são as bases para o embate na construção da visualidade, com reprodução através da técnica do estêncil. A escolha por realizar um trabalho envolvendo a experimentação têm influências internas e externas à faculdade. Durante meu percurso na fauusp, duas disciplinas relacionadas à expressão por meio da linguagem visual tiveram um impacto grande em minha formação, por evidenciarem o embate entre projeto e prática experimental. A primeira foi a optativa aup343 - desenho gráfico experimental, ministrada pelo professor Vicente Gil. O privilegiamento de ferramentas não virtuais para o desenvolvimento de cartazes, como xerox, colagem com papéis coloridos e desenhos a mão, teve uma influência positiva no desenvolvimento do meu processo criativo. O conflito entre a ideia e a execução manual, com todos os erros, acertos, previsões e acasos, trazia reflexões a serem consideradas nos próximos estudos, criando a possibilidade de soluções que talvez ainda não estivessem no meu repertório. A segunda disciplina foi aup 347 - linguagem e

expressão, ministrada pelo professor Francisco Homem de Melo. A elaboração de projetos gráficos e execução com três técnicas de impressão (tipografia com tipos móveis, serigrafia e off-set) expuseram questões que surgiam a partir da compreensão das diferentes técnicas. A fatura dos trabalhos, nos seus aspectos físicos, “(...) inclui reflexões, escolhas e decisões que pressupõem uma série de etapas e operações nem sempre programadas previamente” (KATZ, 1982, p.3). A maior influência externa à faculdade foram as oficinas do Sesc Pompéia. Seguindo o projeto original de Lina Bo Bardi de conscientização do potencial criador e do fazer enquanto produção de conhecimento, o espaço das oficinas mantém diversos cursos relacionados aos ateliês de gravura, cerâmica, técnicas mistas,tecelagem e fotografia. Ligado ao ateliê de gravura, iniciei um curso com o tema “criação e produção de estampas para padronagem”, ministrada por Celso Lima. O curso propunha a criação de desenhos de estampa com o estudo de variadas formas de repetição e a impressão sobre superfície têxtil com estêncil. Inicialmente, não me era clara a relação entre o tema da estamparia e o campo de atuação da minha formação na graduação, fui guiada pela curiosidade. Porém, o contato

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com a história da estampa, seus designers e técnicas de impressão, além das questões específicas de projeto de estampas, tiveram uma importante repercussão sobre minha formação. Não só o projeto se constituía um momento de reflexão, mas a prática de impressão sobre tecido permitia novos entendimentos. No processo de experimentar, todos os tipos de erros são enfrentados, gerando a necessidade de outras tentativas e, assim, a abertura para novas descobertas (SALLES apud DERDYK, 2010, p.37). As percepções advindas dessa nova experiência me mostraram que havia muito a ser investigado na relação entre o pensar e o fazer, o que me levou a realizar um trabalho final de graduação ligado à experimentação com estampas padronadas e a investigação acerca das superfícies enquanto suporte de expressão. Do ponto de vista metodológico, o trabalho foi realizado através da simultaneidade das frentes teórica e prática, com metas e produtos cíclicos durante todo o período da pesquisa. Na tentativa de reforçar a ideia de que a metodologia na concepção e produção das estampas está no fluxo do próprio processo de criação, não foram estabelecidos passos rígidos a serem seguidos a priori, mas um caráter

dinâmico entre ler, fazer e pensar. Os procedimentos estabelecidos ao longo do trabalho consistiram no levantamento bibliográfico sobre história da estampa, design de superfície, reprodução gráfica analógica e nas relações envolvendo processos criativos; na coleta de estímulos de naturezas diversas, como imagens, textos, filmes, sensações, percepções, pensamentos, que pudessem atuar como gatilhos do processo de criação; nos experimentos visuais gráficos, tendo o desenho da estampa e sua repetição como pergunta a ser investigada na prática; na documentação dos experimentos realizados através de fotografias e depoimentos sobre motivações, ações e dificuldades do percurso criativo. Dessa forma, o presente trabalho pretende mostrar uma visão sobre o percurso de criação das estampas padronadas, com observações sobre a origem das imagens e informações técnicas, além de relacionar alguns aspectos históricos da estamparia e destacar seus principais criadores ao longo do século XX. Vale destacar que foi realizado um recorte para o levantamento bibliográfico sobre a vasta história das estampas. Estampas e padrões podem ser aplicados em diversos tipos de superfícies, por exemplo, o tecido, o papel e a cerâmica.


Para esse trabalho, privilegiou-se o estudo da estampa impressa sobre superfície têxtil como tema central. Ou seja, apesar de existirem algumas observações sobre outros tipos de superfícies ou mesmo outras maneiras de aplicar estampa sobre tecido, como a tecelagem, trata-se basicamente do tecido impresso. Além disso, procurou-se esclarecer as origens orientais dos processos de estamparias e o posterior desenvolvimento no ocidente. Ainda que tenha existido o esforço para o estudo da estamparia no Brasil, as dificuldades em se encontrar documentação e as incertezas em tratar de sua história não permitiram a elaboração de textos que apresentassem o assunto. Na parte prática, o processo de criação das imagens foi reorganizado para o relato nesse trabalho. São apresentadas de maneira mais aprofundada as estampas que foram entendidas dentro de um mesmo fio condutor. Além disso, apesar dos processos de criação de outras estampas terem sido iniciados, aqui são expostas apenas as estampas que tiveram seu projeto dado por completo e foram impressas em tecido. Atendendo a essas condições, são apresentadas seis estampas.

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As experimentações com estampas padronadas O processo

No trabalho, a experimentação se coloca como meio de aprofundar as relações entre o pensar e o fazer, com a reflexão sobre os processos criativos que envolvem o projeto de estampas padronadas com impressão em tecido. Não foram estabelecidas regras a priori para a criação de imagens e a experimentação com a repetição, mas foi realizado um recorte relativo à passagem dos padrões para algum suporte. O suporte escolhido foi o tecido lona crua 100% algodão. Entre as diversas maneiras de aplicar estampa sobre tecido1, foram adotadas técnicas em fio pintado manualmente. São variadas as motivações para trabalhar com técnicas artesanais em um momento em que já foram substituídas, em larga escala, pela fabricação digital. Devem-se, primeiramente, a um interesse pelas origens do processo de estamparia: conhecer como as peças eram feitas, a riqueza das matrizes, cores e composições. Por requisitarem estudos, improvisações e estarem baseadas no manuseio de materiais físicos, o conhecimento projetual dessas técnicas ajuda a criar um vocabulário visual e tátil de linhas, formas, texturas e cores. 1. em fio tramado (tecelagem), em fio tinto (produzida por corante) ou em fio pintado (produzida por tinta).

Não se trata de uma defesa da volta ao passado, mas reconhecer que no artesanal, no fazer manual, estão inseridos diversos valores, significados e conhecimentos relacionados a cultura material de quem o faz. Como coloca Aloísio Magalhães2,

Pode-se mesmo afirmar que, no processo de evolução de uma cultura, nada existe propriamente de “novo”. O “novo” é apenas uma forma transformada do passado, enriquecida na continuidade do processo, ou novamente revelada, de um repertório latente. Na verdade, os elementos são sempre os mesmos: apenas a visão pode ser enriquecida por novas incidências de luz nas diversas faces do mesmo cristal.

Por fim, relaciona-se à necessidade de reconciliar o pensar e o fazer, como maneira de questionar a estreiteza de visão e racionalidade extrema do mundo contemporâneo. Portanto, as experimentações em técnicas artesanais buscam ampliar minhas percepções e entendimentos. Inicialmente, a intenção era utilizar diferentes técnicas para impressão, como o estêncil e o block printing. Porém, durante o desenvolvimento do trabalho, a técnica majo2. In: LEITE, João de Souza (org.). A herança do olhar – o design de Aloísio Magalhães. Edição de arte de Felipe Taborda. Rio de Janeiro, Senac Rio, 2003.

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ritariamente utilizada foi o estêncil, devido à facilidade tanto de obtenção quanto de manuseio dos materiais, o que permitiu alguma agilidade a um processo que, por exigir a repetição, consome bastante tempo. No primeiro semestre de tfg, a produção prática esteve relacionada a dois cursos das ofcinas do Sesc Pompéia: “projeto e produção de estampas para padronagem”3, ministrada por Celso Lima, e “block printing”, ministrada por Celso Lima e Augusto Sampaio. Essa estratégia serviu tanto para garantir uma periodicidade na parte prática no momento de aprofundamento do tema, quanto para usufruir da orientação com os professores. O curso “projeto e produção de estampas padronadas” propunha a criação de desenhos de estampa com o estudo de rapport (direto, rotativo, alternado, espelhado e circular, com encaixe simples ou cicatriz) e a aplicação sobre superfície têxtil com estêncil. Durante as duas vezes em que participei do curso, ficou evidente que não só o projeto das estampas se constituía como momento de reflexão, mas a prática de impressão sobre tecido apontava novas questões e ampliava minhas percepções. O curso de block printing envolvia o domínio de uma técnica desconhecida por mim, mas que se tratava de um 3. Esse curso, realizado pela primeria vez no primeiro semestre de 2013, foi cursado novamente durante o tfg I.

processo milenar, originário da China, no século III. Para nos aproximarmos dessa técnica, a proposta consistia na escolha livre de um motivo a ser estampado, dando preferência a estampas de pelo menos duas cores. Escolhi uma estampa com certa complexidade no desenho, para criar condições em que fossem enfrentadas diversas dificuldades enquanto eu tivesse orientação dos professores, ficando assim mais segura no desenvolvimento de estampas futuras através dessa técnica. A estampa seria em três cores, sendo necessárias, portanto, três matrizes de madeira, uma para cada cor. O block printing utiliza ferramentas da xilogravura em madeira. Existe uma série de questões a serem trabalhadas na passagem do desenho no papel para a prática de esculpir a madeira, como linhas finas impressas, linhas finas vazias ou diferentes timbres dados pelas ferramentas. O manuseio da madeira é uma atividade encantadora, porém requer muita paciência, persistência e, portanto, tempo. O entendimento de como eu devia me portar diante do material e das ferramentas foi demorado. Em diversos momentos, eu tentava medir força com a madeira, goivas, facas e formão, o que resultava em erros na escavação do desenho e ferramentas danificadas. Além disso, por não


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Processo de impressão com matrizes de madeira. 1. decalque do desenho na madeira através da folha de papel carbono; 2. processo de esculpir a matriz com ferramentas da xilogravura; 3. profundamento de trechos com auxílio da tupia elétrica para ganho de tempo;

4. e 5. teste de impressão e verificação do abaulamento da matriz; 6. com a matriz corrigida, impressão com o auxílio de um martelo de borracha; 7. resultado de duas matrizes impressas (a terceira não chegou a ser escavada); 8. detalhe do tecido impresso e textura produzida pela técnica.


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regularizar as matrizes corretamente no início do processo, descobri no primeiro teste de impressão que muito do que eu havia escavado não estava sendo impresso devido ao abaulamento da madeira, o que significou mais tempo lixando e escavando as matrizes. No momento de impressão, se por um lado as matrizes preenchiam grandes áreas do tecido de uma vez, por outro exigiam muita força física para um resultado razoável. Isso era feito jogando o peso do meu corpo sobre a matriz e com o auxílio de um martelo de borracha. Foi um processo bastante cansativo, e me obrigou a rever constantemente minhas expectativas relativas ao resultado final, uma vez que essa técnica não gera uma impressão chapada como na técnica do estêncil, mas sim com muitas texturas. Outra dificuldade em relação ao estêncil é não ser possível visualizar o que está sendo impresso, dificultando o encaixe de matrizes em cores diferentes. Devido às dificuldades relatadas, conclui que essa não era a técnica viável para o desenvolvimento do trabalho no tempo que eu possuía. Minha disponibilidade não possibilitaria nem o aprofundamento da linguagem permitida pelos blocos de madeira e ferramentas da xilogravura, nem a criação e impressão de variadas estampas, o que era

a proposta inicial do trabalho. Dessa maneira, optei por criar estampas para impressão em estêncil, técnica mais simples e de rápida execução. Mas a experiência com o block printing me deixou um possível caminho a ser explorado futuramente, a sobreposição de cores no momento de impressão e as variações resultantes desse processo. A partir do término dos cursos, encontrei dificuldade em dar sequência à criação das estampas. Até então uma demanda externa determinava as possíveis trajetórias a serem desenvolvidas, agora eu precisava ditar o que e como iria produzir. Não sabia se deveria definir um tema geral para as estampas; se deveria encarar como uma série de exercícios que tratassem dos elementos da linguagem visual, como cor ou textura; ou mesmo se eu deveria criar as estampas livremente. Durante o período de férias, criei duas estampas a partir de influências visuais do meu cotidiano (Vias e Tubulações), porém ainda bastante confusa e não enxergando um sentido no que estava produzindo, acabei deixando-as de lado. Esse bloqueio em dar passos sozinha foi acentuado pela notícia da necessidade de mudança de orientadora durante o segundo semestre do trabalho. Passei semanas sem produção prática, apenas seguindo nos estudos teóricos.


Essa situação começou a se reverter no momento em que tive que olhar com atenção para tudo o que eu havia feito até então para apresentação da pré-banca de tfg II. Retomando minhas referências teóricas, revendo as referências visuais selecionadas desde o início do trabalho, relendo minhas anotações e encarando o que eu havia produzido até então, passei a enxergar um fio condutor que me era invisível até aquele momento.

Criar é, basicamente, formar. É poder dar uma forma a algo novo. Em qualquer que seja o campo de atividade, trata-se, nesse “novo”, de novas coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de compreender; e esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar. (OSTROWER, 1977, p. 9)

No processo de criação do desenho, percebi que minha afinidade maior eram as referências de imagens (fotografias, obras de arte) do espaço urbano, claramente influenciadas pela minha experiência visual cotidiana do entorno. Como colocou a orientadora Clice Mazzilli naquele

momento, explorar a repetição se mostrou “um caminho acertado para expressar a intensidade do meio urbano e das pessoas que nele circulam, além de ser uma linguagem recorrente na arquitetura”. Assim, a compreensão de um tema serviu de estímulo para deflagrar o processo de criação das imagens. Como coloca Fayga Ostrower (1977), toda criação é intuitiva, espontânea, mesmo a mais racional. Quanto maior a experiência do fazer, maior a capacidade de intuir.

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Os projetos das estampas seguiram processos de criação bastante similares. O estímulo para cada um se deu a partir de experiências do espaço urbano (construído ou não) e de minhas memórias. A observação das dinâmicas envolvidas na cidade e o desejo de usá-las como corpo de trabalho não buscou a reprodução da realidade, mas foi uma maneira de lidar com sua complexidade e intensidade. Com uma ideia em mente, eu buscava imagens de referência que me ajudassem a vencer a distância entre o imaginar e o fazer. Eu passava, então, aos esboços à mão que buscavam esclarecer minha intenção naquele desenho. Em alguns casos, todo o processo era feito manualmente, inclusive os ajustes necessários à repetição. Em outros, utilizava de ferramentas digitais para a finalização da imagem. A estamparia de tecidos pressupõe um projeto que envolve a investigação sobre a sintaxe da linguagem visual: a combinação de cores, o trabalho com grids, formas de repetição e encaixe que compõe uma representação visual que lida com a continuidade e o ritmo da superfície têxtil. O projeto de estampa padronada possui especificidades

que precisam ser atendidas para se alcançar uma composição bem-sucedida, sendo seu princípio a propagação de módulos. Nesse caso, a noção de repetição envolve a disposição de um módulo, na horizontal e na vertical, de forma contínua e com encaixes perfeitos. O sistema de repetição, conhecido como rapport, está baseado em um grid que relaciona a área do estampa (módulo) e o intervalo de repetição entre elas, gerando o padrão. A maneira pela qual se dá o rapport é parte integrante da criação da padronagem, pois variando a maneira de repetição, variados padrões são compostos, podendo resultar em composições totalmente diferentes em seu aspecto conceitual ou efeitos óticos (RÜTHSCHILLING, 2008). Da mesma forma, a variação de cores na estampa modifica o campo visual e pode revelar produtos passíveis de interpretações totalmente diversas. De maneira geral, a concepção das estampas é feita a partir de uma área pré-determinada4 e omitindo-se a questão da cor. Primeiramente, lida-se com as formas, suas relações e continuidades5 apenas em lápis. Com a imagem resolvida quanto aos seus encaixes, é feita a seleção de cor, que consiste em determinar a quantidade de cores da estampa e dividir o desenho conforme as áreas desti-

4. A dimensão mínima utilizada nas estampas desenvolvidas foi de 20 cm, para facilitar o processo de impressão a partir da técnica do estêncil.

5. Relacionadas aos encaixes entre módulos a partir do tipo de rapport previamente determinado.

Questões gerais sobre criação e impressão das estampas


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Estampa Bancos, realizada em 2013. Exemplo de um processo de criação realizado no curso “projeto e produção de estampas padronadas”. 1. imagem inicial em uma cor; 2. estudo de repetição feito sobre folha milimetrada; 3. vetorização da estampa com

ajustes de espaçamentosl; 4/5. seleção de cores (divisão de áreas a serem pintadas da mesma cor), a imagem 4 representa a impressão em preto e a imagem 5 representa a impressão em cinza; 6. lona 100% algodão impressa em duas cores com a técnica de estêncil.

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nadas a cada uma delas. Apenas após esse processo é que determina-se a paleta de cores, com estudos baseados em diferentes combinações e possibilidades. O projeto de estampa lida com questões funcionais e mercadológicas, como necessidade do cliente, tendência do mercado ou perfil do público consumidor. Mas no caso das estampas desenvolvidas ao longo do trabalho não foram colocadas questões funcionais a serem atendidas. Trata-se de experimentos gráficos que possuíram limitações no processo criativo derivadas apenas do processo de impressão escolhido, o estêncil. A técnica do estêncil já era utilizada em 300 a.C. pelos chineses e japoneses na aplicação de padrões em paredes, móveis e tecidos. Consistia em uma espécie de máscara de papel, pele ou tecido, tornada impermeável após o tratamento com gordura animal. O princípio básico é vedar os locais onde a tinta não deve atingir a superfície. Essa técnica, amplamente utilizada para impressão em tecido até o surgimento de máquinas a partir do século XVIII, ainda hoje se constitui enquanto processo de impressão em diversos grupos que seguem o princípio do “faça-você-mesmo” ou ateliês em busca de uma atividade comercial paralela ao grande mercado. A simplicidade

de materiais, seu fácil manuseio e baixo custo aliam-se a ampla gama de possibilidades criativas envolvendo a técnica. O estêncil produz áreas de cor. Algumas características das imagens produzidas são o alto contraste, com boa cobertura inclusive em grandes áreas chapadas, a capacidade de sobreposição de cores e a possibilidade de texturas. As limitações colocadas pela técnica se relacionam principalmente à habilidade manual na execução dos vazados e à resistência do acetato no momento de impressão, que pode arrebentar quando cortado em espessuras muito finas,. Sendo a técnica de impressão a principal limitante no trabalho, a criação das estampas foi direcionada para lidar com isso, principalmente na tentativa de evitar a necessidade de “pontes”. As “pontes” são necessárias para ligar partes soltas da imagem ao restante da matriz, como no caso da letra “A”. Tal recurso altera o resultado final da imagem impressa e, em alguns casos, foi necessário rever a composição inicial para chegar a uma solução satisfatória na impressão da estampa. Os materiais envolvidos na prática de impressão foram acetato transparente, estilete, tecido lona crua


Exemplo da necessidade de “pontes”. Concepção inicial da imagem não é possível de ser reproduzida através da técnica do estêncil.

Resultado da impressão com a técnica de estêncil se os contornos da imagem forem simplesmente recortados no acetato. Sua leitura é prejudicada.

Existem variadas possibilidades de “pontes” para garantir a leitura da imagem. Essa solução resulta em uma máscara mais difícil de ser impressa pela maleabilidade do acetato.

Outra possibilidade de “pontes”. Essa solução, além de gerar uma imagem final bastante diferente da anterior, garante uma impressão mais fácil pela resitência da máscara.

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100% algodão, lápis carvão, tinta serigráfica à base d’água para tecido (nas cores branca, preta, amarelo, vermelho, magenta e azul, as variações se deram a partir de misturas) e rolo de espuma. Para a impressão através da técnica do estêncil, o processo se inicia com a desengomagem do tecido, através de sua submersão em água quente por algumas horas. Com o tecido seco e passado a ferro, é necessária a marcação6 do grid de acordo com cada rapport. Já com a máscara de acetato recortada manualmente com estilete a partir da arte final da estampa, inicia-se o processo de entintagem. O estêncil é posicionado no grid marcado no tecido; a tinta7 atinge a superfície através de um rolo de espuma penetrando nas áreas não vedadas pela máscara. Após o preenchimento da área, a máscara de estêncil é retirada e colocada na posição seguinte para impressão. Esse processo se repete até que toda a extensão do tecido, na vertical e na horizontal, seja preenchida. Caso a estampa possua mais de uma cor, esse procedimento se repete de acordo com o número de máscaras necessárias. O domínio das cores é algo que ocorre apenas através da prática, experimentando diferentes misturas e compo-

sições. Nem sempre uma combinação de cores imaginada atinge o resultado esperado na impressão da padronagem, como ocorreu em algumas experimentações ao longo do trabalho. Apesar da interação das cores ser um pressuposto no momento da sua escolha, a confrontação entre as mesmas é acentuada pela repetição. Além disso, a cor da tinta fresca recém-misturada e a cor da tinta seca sobre o tecido são sensivelmente diferentes, criando mais uma variável a ser considerada.

6. Com lápis carvão, marcam-se os vértices do grid com pontos. Se as marcas foram sutis, saem após a lavagem do tecido.

7. É preciso quantidade suficiente da mistura de tinta para impressão de toda extensão de tecido, dificilmente chega-se a mesma cor em misturas diferentes.




Amostra do tecido lona crua 100% algodão com as tintas “puras” e suas interações, utilizadas no desenvolvimento das estampas.


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Estampa 1 - Burle Marx

A estampa Burle Marx foi realizada no curso “criaçao e produção de estampas para padronagem”, dentro da proposta de desenvolver um camuflado ambiental. Na pesquisa de referências, diversos projetos de paisagismo do Burle Marx me vieram à mente. A mensagem do artista gira em torno da cor, do ritmo e da forma, de suas possíveis ordenações, repetições, aproximações e contrastes. Sua obra se constitui, portanto, enquanto vasta referência visual, podendo ser utilizada como um corpo gráfico para originar produtos de outras naturezas. Após realizar estudos rápidos no computador com alguns desenhos de Burle Marx selecionados na internet, decidi usar como base o projeto para o banco safra, atraída pelas formas e, principalmente, pelas cores. Por se tratar do exercício de camuflado, tentei transformar essa referência e projetar de acordo com as questões envolvidas em um padrão com rapport circular. Apesar de ter obtido um resultado interessante, a estampa final não pode ser considerada um camuflado, já que é possível identificar rapidamente sua área e grid. Minha reação inicial ao interferir na imagem foi criar

uma estampa composta pela imagem de referência rotacionada quatro vezes em sequência. Realizei estudos de transformação daquelas imagens, com a intenção de criar formas parecidas, mas não idênticas umas as outras. Conectei áreas de cor, criando variadas figuras abstratas. No momento da passagem da desenho para o acetato, foram necessários outros ajustes para manter a integridade do molde, através da criação de “pontes” que não permitiriam que partes do desenho se soltessem do restante. Dessa forma, incorporei as “pontes” à composição. Inicialmente, a estampa foi pensada em quatro cores, porém no processo de impressão, eliminei uma delas por considerar que o resultado naquele momento já continha informações suficientes. Assim, apenas três matrizes foram impressas. A escolha das cores foi baseada no desenho original, mas com alterações no momento de mistura das cores. A principal foi trocar o preto por um marrom escuro, na tentativa de deixar o conjunto mais leve.

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Estampa Burle Marx Área: 25x25 cm Rapport: circular, repetição direta Número de cores impressas: três

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Processo de criação da estampa. 1. imagem de referência, projeto paisagístico para o banco safra, de Burle Marx; 2. transformação da imagem inicial através de sua rotação em sequência; 3. conexão de áreas de cor, criando variadas figuras abstratas;

4/5. lógica envolvida no projeto para rapport cirular. Com a área do quadrado preenchida pelo desenho, recorta-se um círculo tangente ao quadrado, eliminando o restante da imagem. Os círculos são repetidos lado a lado, formando a área complementar destacada em

vermelho. Então, realiza-se o desenho da área complementar, garantindo seu perfeito encaixe e transferindo-a para o restante da imagem; 6. adequamento da imagem para impressão através da técnica de estêncil, eliminando-se a necessidade de “pontes”.


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Primeira matriz da estampa. À esquerda, em sua forma singular; à direita, multiplicada.


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Segunda matriz da estampa. À esquerda, em sua forma singular; à direita, multiplicada.


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Terceira matriz da estampa. À esquerda, em sua forma singular; à direita, multiplicada.


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Estampa 2 - Metrópole

A criação da estampa Metrópole também partiu do exercício de desenvolvimento de um camuflado ambiental no curso “criação e produção de estampas para padronagem”. Imaginando ambientes que poderiam se tornar estampas interessantes, pensei sobre o ambiente urbano em que vivo, a possibilidade de encontrar a beleza onde ela não parece estar. Consequentemente, me veio a imagem do centro de São Paulo visto do alto, um emaranhado de edifícios que parece não seguir nenhuma lógica em seu intrincado crescimento. Simplificando as formas construídas, transformando-as em sólidos geométricos e os organizando de maneira livre, em qualquer sentido, cheguei à ideia de camuflado de uma metrópole. Um emaranhado de sólidos que se sobrepõe, como se chocassem-se uns com os outros. Uma construção labiríntica que pode crescer infinitamente. Primeiramente, desenhei a lápis os sólidos. Somente após todos os ajustes necessários para rapport circular próprio para o camuflado, fiz a seleção de cores da imagem. A estampa foi pensada em quatro cores, uma gradação do branco ao cinza chumbo. Considerando o branco como a

cor do tecido, restavam três cores para serem impressas através de máscaras de estêncil. A escolha por variados tons de uma mesma cor teve o intuito de intensificar a sensação de “confusão” do desenho através de efeito ótico. A seleção de quais áreas do desenho pertenceriam a cada cor seguiu a mesma lógica para todos os sólidos. A partir do topo branco, as faces à esquerda são em cinza claro, as faces à direita em cinza médio, e os vazios entre os sólidos em cinza chumbo. Mesmo prevendo uma ligeira sobreposição das máscaras para evitar o aparecimento de filetes brancos entre formas, isso ainda ocorreu. Além disso, em diversos pontos do padrão, percebe-se que o encontro entre estampas não é perfeito. Porém, acredito que esses “erros” não comprometem o resultado geral do padrão. E acabam se tornando vestígios interessantes da técnica utilizada, o que expõe o fazer manual daquele produto.

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Estampa Metrópole Área: 30x30 cm Rapport: circular, repetição direta Número de cores impressas: três

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Processo de criação da estampa. 1. a partir da ideia inicial, foram selecionadas imagens que auxiliassem no processo criativo; 2. lógica envolvida no projeto para rapport cirular, com destaque em vermelho da área complementar a ser redesenhada;

3. finalização dos ajustes necessários ao encaixe, imagem pronta para a seleção de cores; 4. etapa de seleção de cores, que consiste na divisão de áreas respectivas a cada cor; 5. arte final da estampa;

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Primeira matriz da estampa. À esquerda, em sua forma singular; à direita, multiplicada.


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Segunda matriz da estampa. À esquerda, em sua forma singular; à direita, multiplicada.


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Terceira matriz da estampa, em sua forma singular.


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Estampa 3 - Vias

O ritmo envolvido no movimento paralelo dos diferentes tipos de transportes é algo que sempre atraiu minha atenção ao cruzar as pontes sobre o Rio Pinheiros, vendo o fluxo da marginal. Com essa imagem em mente, passei a utilizar papel milimetrado para estudar diferentes proporções de retângulos que representassem os quatro tipos de transporte, a bicicleta, o automóvel, o ônibus e o trem. Após definir essas relações, passei a testar diferentes ritmos e posições dos elementos. Para verificar como a imagem se comportaria com a repetição, utilizei de um programa vetorial que pudesse facilitar esses estudos. Ao repetir o módulo, senti a necessidade de simplificação da imagem, eliminando alguns elementos. Em um primeiro momento, pensei o padrão com rapport direto (sem deslocamentos), uma vez que o módulo em si já possuía movimento e ritmo próprios. Posteriormente, considerei que seria interessante amplificar essa sensação realizando o deslocamento vertical na repetição. Inicialmente, imaginava as vias de tráfego em preto e

as calçadas na cor do tecido, portanto, as cores primárias estariam sobre o preto. Procurei dividir as áreas de cor de maneira a equilibrar a composição, para nenhum elemento se sobressair mais do que o outro. Para os elementos que, pela forma ou quantidade, chamariam mais atenção, destinei a cor azul por contrastar menos com o preto. Os elementos em menor quantidade, a cor amarela por ser a mais contrastante com o preto. O vermelho foi destinado ao restante dos elementos. Ao produzir as máscaras de estêncil, notei que para o molde da cor preta seriam necessárias “pontes”. Na tentativa de evita-las, fiz um teste utilizando tecido de tule para segurar os pedaços do acetato, com a ideia de que a tinta seria capaz de cobrir as marcas da trama do tule. Isso ocorreu em partes com o teste de impressão, mas além de não atingir uma qualidade satisfatória pela dificuldade em deixar a cor preta bem impressa, passei a achar a estampa muito pesada. Então, inverti as áreas de cor entre o preto e o fundo, o que resolveu tanto o problema da necessidade de “pontes”, quanto deu uma maior leveza ao desenho. Para mais um teste entre a interação das cores, estampei o tecido trocando o preto por cinza. Com essa alteração, o padrão perdeu um pouco a vivacidade.

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Estampa Vias Ă rea: 20x30 cm Rapport: alternado, com deslocamento vertical NĂşmero de cores impressas: quatro

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7 Na página ao lado, etapas de criação da estampa. 1. a partir da ideia inicial, foi selecionada uma imagem de referência; 2. representação do rapport alternado; 3. estampa inicial, com necessidade de “pontes” para impressão em estêncil; 4. tentativa de evitar as “pontes” através de teste com tecido tule; 5. resultado da impressão com tule, a textura do tecido ficou marcada na impressão; 6. reformulação da estampa a partir do teste prático, para evitar as “pontes” e deixar o tecido mais leve; 7-12. imagens das impressões.

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Quatro matrizes da estampa, cada uma em sua forma singular.


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Três matrizes multiplicadas no processo de impressão.

Teste de mudança de interação das cores ao substituir o preto pelo cinza.


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Estampa 4 - Tubulação

Ideia surgiu quando eu frequentava semanalmente o Sesc Pompéia e sempre me encantava com as tubulações aparentes pelo espaço. Imaginei que os desenhos que elas produzem, com variados pesos de linhas e texturas, poderiam render um padrão divertido. Busquei, então, outras imagens de referência que pudessem me auxiliar no processo de criação da estampa. Após alguns esboços no papel, conclui que o rapport alternado com deslocamento horizontal produziria jogos interessantes e que brincar com a sobreposição de cores no momento em que diferentes tubulações se cruzassem seria um detalhe a ser aproveitado. Passei a fazer estudos no computador de composições com linhas em diferentes sentidos e, assim como no caso da estampa Vias, senti a necessidade de simplificação do módulo ao multiplicá-lo. A imagem final para esse padrão foi produzida no computador, inclusive os ajustes necessários ao encaixe. Após a seleção de cores, imprimi a base que serviria de guia para recortar cada máscara. A escolha das cores manteve a relação existente de cores primárias, tanto para se assimilar com a referência inicial, quanto por considerar que

criaria um resultado com certa vitalidade. Provavelmente, a leitura da estampa seria significativamente alterada se fosse em tons de cinza, por exemplo. Estando as cores sobre fundo claro, destinei o amarelo às formas maiores e texturadas, por possuir menor contraste com a lona crua. Por considerar que o vermelho seria a cor que chamaria mais atenção naquela situação, destinei-a a menor área. A cor azul foi destinada, portanto, a maior área de impressão. Ao olhar a estampa de perto, é possível o surgimento de outras cores derivadas da sobreposição das primárias.

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Estampa Tubulações Área: 20x20 cm Rapport: alternado, com deslocamento horizontal Número de cores impressas: três

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Processo de criação da estampa. 1/2. imagens de referência; 3. representação do rapport alternado com deslocamento horizontal;

4. primeira possibilidade de desenho, onde percebi a necessidade de “limpar” a estampa, retirando informações;

5. estampa final;


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Primeira matriz da estampa. À esquerda, em sua forma singular; à direita, multiplicada.


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Segunda matriz da estampa. À esquerda, em sua forma singular; à direita, multiplicada.


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Terceira matriz da estampa. À esquerda, em sua forma singular; à direita, multiplicada.


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Estampa 5 - Noite

A ideia de utilizar o tema das luzes da cidade à noite surgiu no início do ano, quando fiz algumas anotações a respeito de intenções no desenho e possibilidade de cores. Porém, naquele momento não levei a ideia a diante. Meses mais tarde, ao me deparar com uma litografia de Renina Katz8 na biblioteca da fau, me encantei com sua representação da paisagem urbana noturna. Decidi retomar o tema pensado anteriormente, usando a litografia como referência principal. As cores utilizadas na litografia me interessaram em especial, principalmente pelo uso do marrom e do verde. Percebi que essas duas cores, poderiam ser fruto da sobreposição das cores que eu havia imaginado no princípio, o roxo e o azul, com o amarelo. Assim, retomei um caminho que havia vislumbrado anteriormente, de utilizar a sobreposição de cores como aspecto principal do projeto da estampa. Dentro da área delimitada para a estampa e já tendo definido que o padrão seria em rapport alternado com o deslocamento horizontal, desenhei diversas figuras planas que representariam os edifícios, com o cuidado de garantir 8. KATZ, Renina. Lugares: 13 litografias originais. Tese de doutorado - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1982.

sua continuidade no momento de multiplicação. Parti, então, à divisão das cores, tentando alcançar uma composição equilibrada e que, ao mesmo tempo, fosse viável para a impressão com estêncil em três máscaras9. Redesenhei a imagem pintada a lápis de cor em um programa vetorial no computador para facilitar o estudo seguinte, de aberturas das “janelas”. Inicialmente, desenhei esses elementos livremente, na sequência, mantive apenas os que seriam possíveis de serem executados sem o uso de “pontes”. Ao repetir o módulo, mais uma vez percebi a necessidade de tornar a imagem mais limpa, retirando alguns elementos. A partir da arte final feita no computador, recortei as três máscaras para o estêncil. Para iniciar o processo de impressão, realizei diversos testes de cor principalmente para a relação roxo/marrom, até perceber que para chegar próximo do marrom que eu imaginava, precisaria de um roxo com bastante magenta. Para essa estampa, avaliei que valeria a pena realizar experimentos de impressão de apenas duas matrizes e verificar os resultados, que me interessaram bastante.

9. Máscaras para o azul, roxo e amarelo. O verde se deu pela sobreposição do azul e do amarelo; o marrom, pela sobreposição do roxo e amarelo.

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Estampa Noite Área: 30x30 cm Rapport: alternado, com deslocamento horizontal Número de cores impressas: três

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3. vetorização da imagem, com estudo da “abertura” das janelas; 4. representação do rapport alternado com deslocamento horizontal;

5. resultado do padrão final.

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Processo de criação da estampa. 1. litografia de Renina Katz, utilizada como referência visual; 2.estudo de composição de cores;


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Estudo de sobreposição de cores. 6. primeiramente, foi realizado o teste com a mistura de vermelho e azul. A sobreposição do amarelo não

causou a influência desejada para a composição da estampa; 7. a segunda tentativa, relacionou o azul e o magenta. Por possuir grande

quantidadede azul, a sobreposição com o amarelo resultou em uma cor esverdeada; 8. teste com uma maior quantidade

de magenta, resultou em um marrom considerado razoável para a estampa; 9. teste com a predominância do magenta, gerou um tom de vermelho.


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Primeira matriz da estampa. À esquerda, em sua forma singular; à direita, multiplicada.


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Segunda matriz da estampa. À esquerda, em sua forma singular; à direita, multiplicada.


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Terceira matriz da estampa, em sua forma singular.


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ImpressĂŁo de duas das trĂŞs matrizes.


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ImpressĂŁo de duas das trĂŞs matrizes.


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ImpressĂŁo de duas das trĂŞs matrizes.


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Estampa 6 - Multidão

Analisando o que eu havia produzido até aquele momento, senti a necessidade de criar estampas com formas mais orgânicas. De maneira geral, as estampas eram geométricas em função dos temas relacionados à paisagem urbana. Nessa paisagem, o que é orgânico? As pessoas. Imaginando as situações que pudessem gerar estampas interessantes, pensei nas sombras humanas ocupando o espaço e no grande aglomerado de pessoas, próprio da metrópole. Selecionei imagens na internet sobre as duas possibilidades e me debrucei, primeiramente, sobre o tema da multidão. Para começar a entender as possibilidades daquele desenho, com papel manteiga sobre uma foto impressa, marquei de maneira livre as manchas de cor que mais se sobressaiam. A necessidade de delimitar uma área para o módulo desdobrou-se na determinação do tipo de rapport. Tendo em mente o camuflado de linhas retas e cores sóbrias da estampa Metrópole, pensei em fazer um contraponto com outro camuflado, que também abarcasse a ideia de uma grande cidade, mas que possuísse soluções gráficas diversas.

Dentro da área quadrada necessária ao camuflado, reorganizei o que eu havia desenhado e completei o restante da imagem, realizando os ajustes necessários para o rapport circular. Optei por fazer a estampa em duas cores impressas, relacionas a ideia de luz e sombra. A combinação de cores foi motivada pelo desejo de uma paleta mais quente em oposição à paleta neutra da estampa Metrópole. Assim, escolhi o vermelho e o marrom. Após a impressão da estampa nas cores iniciais, senti a necessidade de experimentar outras combinações para verificar se elas alterariam a leitura da imagem. A partir de um tom de amarelo, busquei fazer uma combinação complementar (amarelo e lilás) e uma combinação monocromática (amarelo e caramelo).

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Estampa Multidão Área: 20x20 cm Rapport: circular, repetição direta Número de cores impressas: duas

Processo de criação da estampa. 1. imagem de referência; 2. marcação das manchas de cor que que sobrassaíam; 3. inserção de uma segunda cor; 4. representação do rapport utilizado; 5. adequação da imagem à área quadrada, com os ajustes necessários ao encaixe; 6. imagem final.

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Primeira matriz da estampa. À esquerda, em sua forma singular; à direita, multiplicada.


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Segunda matriz da estampa. À esquerda, em sua forma singular; à direita, multiplicada.


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Tentativa de combinação complementar de cores.

Tentativa de combinação monocromática de cores.


Estampa: das origens à revolução industrial

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A necessidade de expressão acompanha o homem. O uso da estampa como elemento em ambientes, objetos, vestimentas e corpos constituiu, ao longo da história, um enorme acervo interpretativo que demonstra, em cada sociedade, um olhar sobre si mesma e sobre o que a cerca (LIMA, 2007)10. Dessa forma, enquanto coleta do mundo à sua volta, o desenho é um “meio de refletir sobre a relação do sujeito com o mundo”(SALLES apud DERDYK, 2010, p. 40). Desde os grafismos rupestres até os dias atuais, o homem criou um vasto repertório de desenhos e padronagens que explicita, além de um modo de ver o mundo, o encadeamento de um pensar. Estampas e padrões, apesar de por vezes colocados em segundo plano enquanto elementos de expressão, permeiam nossa história e cotidiano de diversas maneiras.

Nos critérios muitas vezes rígidos que norteiam a crítica classificatória da arte, a estamparia sempre esteve marginal e quase sempre banida como elemento central de expressão, quando muito aceita como coadjuvante. No entanto desde os murais e ourivesaria egípcias até os mosaicos e afrescos romanos, a padronagem em

10. Desenho de estamparia, 22/10/2007, in: http://celsolima.zip.net

rapport sempre esteve presente como importante veículo gráfico. Durante a Idade Média, malvista pela ascendente Sé romana, a estampa é considerada exotismo oriental, impregnada de paganismo, e portanto condenada pela Igreja. Na arte asiática, porém, estão presentes os motivos de estamparia, desde a estatuária e arquitetura hindus, nos belíssimos padrões dos kimonos das gravuras japonesas e na rica azulejaria islâmica. Com o início da Renascença o ocidente redescobre cores e estampas, mas é a tapeçaria e o bordado que texturam e vestem a obra renascentista. O assunto é extenso e permeia todos os movimentos e intenções das artes seculares, mas a estamparia propriamente dita tem seu lugar de destaque na arte ocidental nos dois últimos séculos. (LIMA, 2009)11

Na passagem, fica evidente que diferentes superfícies são suportes para a estampa, sendo que a leitura dessas superfícies apresentam características particulares. No caso dos têxteis, se por um lado passam informações determinadas através de uma seleção particular de infinitas possibilidades oferecidas por fibras, cores e estampas; por outro lado, sua decodificação depende

11. Estampa na arte ou arte na estampa?, 08/10/2009, in: http://celsolima.zip.net


de um ponto de vista, é influenciada pelo íntimo de cada pessoa. Portanto, a recepção das informações contidas em um tecido, além de se basear no repertório individual a respeito da cultura visual de cada um, também considera o conhecimento de texturas, sons, cheiros e aparências. É, portanto, subjetiva e frequentemente inconsciente. O pensamento sobre a superfície enquanto elemento de projeto do design tem relação direta com a evolução do conhecimento relacionado aos suportes têxteis, principalmente em como organizar padrões e texturas. Os tecidos são, portanto, exemplares da cultura material e visual de cada sociedade, oferecem informações sobre a variada gama de desenvolvimentos, envolvendo não apenas tecnologia, agricultura e comércio, mas também ritual, homenagem, linguagem, arte e identidade pessoal. Além de terem ou executarem funções práticas, os tecidos possuem uma forte carga simbólica, as maneiras pelas quais são usados e reusados adicionam mais camadas de significados (SCHOESER, 2003). A história dos têxteis é extensa, muitos materiais, técnicas e formas usados nos tempos antigos permanecem em uso até hoje. Como coloca Schoeser, os têxteis contém todo tipo de informação: alianças são expressas, promessas

são feitas, memórias são preservadas, novas ideias são propostas. Dessa forma, as características dos têxteis enquanto objeto funcional e enquanto parte da expressão humana, os tornam indicadores dos mecanismos culturais de nossas sociedades e merecem um olhar mais atento. No caminho percorrido pela espécie humana, diversos fatores influenciaram a capacidade de nos organizarmos em comunidade e sobrevivermos. Por exemplo, o desenvolvimento pensado de tecnologias (ferramentas), a capacidade de comunicar-se através de sons produzidos ou a capacidade de preservar conhecimentos e experiências através da escrita (MEGGS, 2009). Também em função da sobrevivência surgiu a tecelagem, a partir da trama de galhos e folhas o homem encontrou uma forma de proteger seu corpo e resguardar seus abrigos. Na manipulação das fibras com os dedos teve início a cestaria e, de sua evolução, os primeiros tecidos foram desenvolvidos. Pesquisas arqueológicas comprovam a existência de fios, tecidos e ferramentas de tecer em habitações humanas primitivas. A partir de oito mil anos atrás, o homem passou a cultivar fibras têxteis e produzir tecidos em suas cores naturais. As primeiras fibras foram o linho e o algodão no

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campo vegetal, e a lã e a seda no campo animal. Alguns séculos se passaram até o homem aplicar os corantes de origem animal, vegetal e mineral para tingimento de fios e tecidos.

Provavelmente um dos primeiros vestígios do tecido indiano tingido com índigo, remonta ao século XV. Fonte: Victoria and Albert Museum.

Muito antes de surgirem os tecidos, os homens já pintavam seus corpos com pigmentos minerais – este foi o primeiro adorno pessoal. Além de realçar a beleza, essa pintura servia para distinguir a classe social e lhes assegurava proteção mágica. Para executá-las, valiam-se de dedos, de palitos ou de espátulas. Do corpo, a pintura passou para o couro e, depois, para o tecido. (PEZZOLO, 2007, p.183)

Ao longo da história, os padrões desenvolvidos foram aplicados sobre tecido através de variadas técnicas de estamparia em fio tinto (produzida por corante), em fio pintado (produzida por tinta), ou como fio tramado resultante de processos de tecelagem e malharia. O Oriente foi o berço da tinturaria, estamparia e impressão. Diferentes povos desenvolveram técnicas de estampar por reserva em fio tinto (tecidos com costuras, amarras e máscaras, mergulhados em banhos de tinturas), como badhnu (Índia), adire (África), shibori (Japão), e batik tulis javanês (Indonésia). Segundo Pezzolo (2007), a criação de estampas sobre tecido teve início na Índia, pela técnica de tintura à reserva sobre seda, também conhecida como batik e utilizada até


hoje. Essa técnica consiste em proteger, com cera ou argila, partes das fibras do tecido para não deixa-las expostas à tintura, criando assim desenhos. Diferentes banhos de tintura resultam em diferentes seguimentos de cores. Da Índia, a técnica se expandiu para a Indonésia, a Tailândia, o Siri Lanka e depois para o oeste. Seu centro difusor na Europa foi Amsterdã, Holanda. Já o primórdio da estampa impressa a partir de matrizes se deu, provavelmente, com o uso da mão ou conchas molhadas em pigmentos e estampados em tecidos. Em sequência, o homem criou carimbos de argila, pedra e madeira. O início da utilização de matrizes para impressão ocorreu na China no século III dC, existindo teorias diversas

Exemplo de chop, tradicional carimbo chinês.

se a impressão em relevo evoluiu de carimbos de pedras com caracteres caligráficos (chops) ou do decalque à tinta de inscrições entalhadas em pedra.

Exatamente quem inventou a impressão a relevo e quando e onde ela começou continuam a ser um mistério. A trajetória é marcada por relíquias não datadas: tecidos impressos, imagens estênceis e milhares de impressões carimbadas da figura de Buda. (MEGGS, 2009, p.57)

Segundo Meggs (2009), a técnica já estava bem resolvida quando foi produzida a mais antiga impressão em relevo sobre papel datável, por cerca de 770 dC. Em uma folha de papel fino, era feita caligrafia e desenhos usando pincel e tinta. Um bloco de madeira liso era umedecido com uma pasta ou goma e o papel colocado em cima. Quando a madeira estivesse seca, retirava-se o papel, e uma frágil marca da imagem, agora invertida, permanecia sobre a superfície do bloco, como um decalque. O bloco de madeira era entalhado, deixando a imagem tingida em alto-relevo. Então, a superfície era entintada, um papel era colocado sobre ela e esfregado, transferindo a tinta para a página.

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Pezzolo (2007) afirma que tal técnica de impressão por blocos de madeira era utilizada para a estampagem de tecidos tanto na China quanto na Índia. Outra técnica milenar de impressão a partir de matrizes é o estêncil, que posteriormente deu origem à serigrafia. A técnica do estêncil já era utilizada em 300 a.C. pelos chineses e japoneses na aplicação de padrões em paredes, móveis e tecidos. Tratava-se de uma espécie de máscara feita de papel, pele ou tecido tratada com gordura para se tornar impermeável. Assim, a máscara vedava os locais onde a tinta não deveria aderir à superfície. Junto com o bloco de madeira, o estêncil foi utilizado por séculos para imprimir desenhos em tecidos, até o surgimento de máquinas no século XVIII. Pode-se afirmar que a Índia foi responsável pela disseminação de tecidos coloridos pelo mundo através do comércio com outros povos, que já ocorria em 2600 aC, quando trocava tecidos de algodão por lãs da Mesopotâmia. O tecido de algodão foi “da Índia para o Oriente Médio; depois, para o Egito; em seguida, para a África, a Macedônia, a Grécia, Roma e o sul da Europa” (PEZZOLO, 2007, p.26). Até então, a fibra têxtil mais comum no continente europeu era a lã.

Tecido indiano de algodão estampado, feito para o mercado britânico, na passagem para o século XVIII. Fonte: Victoria and Albert Museum.


Os tecidos da Índia sempre chamaram atenção por suas cores e pela variedade de influências, de motivos sensuais de personagens hindus, aos motivos geométricos e caligráficos em regiões com forte presença do islamismo. Outra influência foi o contato com os europeus, pois os motivos indianos passaram a ser compostos por flores ou cenas iconográficas ocidentais para melhor comercialização. Além do algodão, a seda teve papel importante de relação entre povos. A China, que já conhecia a seda há 4 mil anos, passou a criar o bicho-da-seda em locais fechados e alimentados com folhas de amoreiras há 3 mil anos. Durante vários séculos os chineses mantiveram o controle sobre a sericultura, e a seda fiada e sem tratamento, mas de grande valor, chegava à Europa pela Turquia, através de caravanas mercantes. A Rota da Seda, com cerca de 7000 km de extensão, além das trocas comercias, foi importante na difusão cultural, de técnicas, ideias e valores, ao cruzar China, Índia, Afeganistão, Paquistão, Iraque, Irã, Síria, Turquia e Egito até a península itálica. Apesar da sericultura e tecelagem da seda terem sido levadas pelos mouros para a Espanha e a Sicília, no século VIII, só a partir do século XII uma produção relevante teve início. As cidades de Luca, Florença e Veneza, na Itália,

tornaram-se grandes centros de tecelagem da seda. Na mesma época, também se iniciou a produção dos primeiros tecidos de algodão em Veneza, em seguida se difundindo para o restante da Itália e Alemanha.

O padrão em seda, aparentemente contínuo, foi produzido no século XIV, provavelmente no sudoeste da Espanha. Fonte: Victoria and Albert Museum.

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Com o desenvolvimento da sericultura no Ocidente, a tecelagem prosperou, a arte da tapeçaria foi enriquecida e o bordado tornou-se requinte entre os soberanos. Foram várias técnicas usadas, muitas delas vindas da Pérsia (atual Irã) ou da própria China. (PEZZOLO, 2007, p.88)

A influência oriental sobre a Europa foi decisiva para importantes avanços da civilização, sendo esses relacionados às técnicas criadas há séculos pelos asiáticos e desenvolvidas, posteriormente, pelos europeus. O contato iniciado pelas Cruzadas, por exemplo, apresentou o papel e os blocos de madeira usados para impressão aos europeus. Provas circunstanciais sugerem que, como o papel, a impressão em relevo a partir de moldes de madeira também se difundiu para o Ocidente a partir da China. Por volta do início do século XIV, desenhos figurativos estavam sendo estampados em tecidos na Europa. (MEGGS, 2009, p.91)

Esse contato ajudou a compor as condições propícias para ser criada, no século XV, a tipografia com tipos móveis.

Com a disponibilidade de papel, a impressão em relevo com blocos de madeira e a demanda crescente por livros, a mecanização da produção por meios como o tipo móvel foi buscada por gráficos na Alemanha, Holanda, França e Itália. (...) O julgamento da história, porém é que Johan Gensfleich zur Laden zum Gutenberg (n. final do século XIV, m. 1468), da cidade de Mainz, Alemanha, reuniu pela primeira vez os complexos sistemas e subsistemas necessários para imprimir um livro tipográfico por volta de 1450. (MEGGS, 2009, p.95)

No mesmo período dessa enorme invenção no campo do design gráfico, teve início uma nova época na história têxtil, a descoberta do caminho marítimo para as Índias por Vasco da Gama em 1497. O tecido estampado com motivos exóticos e variadas cores, antes obtido por meio das trocas na Rota da Seda, passou a chegar à Europa através de navios e em grande quantidade. O trajeto pelo mar era mais rápido e permitia o transporte de cargas muito maiores. Junto aos tecidos, passaram a chegar enormes carregamentos de corantes, como o índigo extraído de diversas plantas com a coloração azul, rara na natureza. Para se ter uma ideia, em 1631, somente os holandeses desem-


barcaram em seu país 66 toneladas de índigo, correspondendo a 5 toneladas de ouro. As florestas da América do Sul, exploradas pelos portugueses, se mostraram bastantes rentáveis com a exportação de pau-brasil, de madeira amarela e do inseto cochonilla. Uma demanda crescente por tais produtos tanto das altas classes sociais europeias, que até então tinham o uso exclusivo, quanto do povo, incentivou as indústrias europeias a tentarem copiar os desejados têxteis. Buscava-se a mesma qualidade na tinturaria e o domínio das técnicas de impressão das estampas. A Itália já praticava a estampagem têxtil no século XVI por meio de madeira gravada. O método se espalhou a outros países, especialmente França e Inglaterra. O desenvolvimento da estamparia local não esfriou as relações comerciais entre Oriente e Ocidente, muito pelo contrário: elas se intensificaram no decorrer do século XVII, impulsionadas pelo crescente desejo do consumidor europeu em adquirir peças diferenciadas por motivos exóticos, beleza, leveza, variedade e vivacidade das cores e resistência à luz e às lavagens (PEZZOLO, 2007, p.185). A demanda por esses têxteis impulsionou a criação de manufaturas na Europa, mas essa nova produção não

conseguia concorrer com o produto importado, graças à habilidade indiana no uso de mordentes, substâncias que permitiam várias tonalidades de um único corante natural e fixavam as cores. Na tentativa de proteger suas indústrias da lã, seda e linho, diversos países proibiram o comércio, fabricação e uso de tecido de algodão pintado. A França fez a proibição em 1686, seguida da Inglaterra, Prússia e Espanha. Porém, a proibição despertava ainda mais a curiosidade, surgindo variadas manufaturas com novas técnicas de estamparia e aperfeiçoamento químico. O uso do algodão que, no século XVIII, ainda constituía um artigo de luxo devido ao seu preço, começou a se tornar mais acessível com a criação de novas máquinas no fim do século. Em 1794, o americano Eli Whitney inventou a máquina de descaroçar algodão. Na mesma época, os ingleses Arkwright e Cartwright inventaram, respectivamente, a máquina de fiar e o tear mecânico, contribuindo para um grande progresso na indústria têxtil de algodão, especialmente na Inglaterra. A produção, através da fiação mecanizada, de fios mais fortes e uniformes deu a resistência necessária para suportar as tensões da tecelagem mecânica acelerada, garantindo o aprimoramento dos tecidos de algodão.

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Junto à invenção de máquinas, os europeus realizavam diversas experiências em busca de cores. Os franceses, com o auxílio de emigrantes gregos, descobriram como produzir o famoso “vermelho turco” a partir da garança (espécie de erva), criando uma cor luminosa e resistente. Logo essa descoberta se difundiu para Holanda, Inglaterra, Alemanha e Suíça. Desde então, europeus encabeçaram a tecnologia de tinturaria com corantes vegetais e animais até o surgimento dos corantes sintéticos no século XIX, a revolução da tinturaria. O desenvolvimento de maquinários para estamparia acompanhou a mecanização do tear. Com uma grande quantidade de tecido sendo produzida, havia também a demanda pela estampa. Assim, diferentes países e regiões criaram formas mecanizadas de impressão que eram interpretações dos processos manuais de estamparia que já existiam. No final do século XVII, os holandeses se estabeleceram nas Índias Orientais, atual Indonésia. Encantados há séculos com o batik tulis javanês, não se contentaram apenas em comercializar os tecidos estampados a fio tinto, como os ingleses e portugueses. Eles se interessaram pelo processo de produção daquelas estampas, e durante o século XVIII estabelecem um envolvimento intenso com o 12. “Fancy-print”: o pano da África, 25/07/2013, in: http://celsolima.zip.net

batik com a ideia de possibilitar um incremento fabril para ampliar sua produção e comercialização na Europa. Em meados do século XVIII, montam as primeiras escolas de batik na Holanda, em Roterdã e Amsterdã, com um processo semi-frabil

de estampar os padrões com um cilindro metálico com desenhos cunhados por pinos, que aplicavam sobre o tecido a cera em fusão, sendo então submetido a apenas um tingimento, em indigo, já que a espessura da máscara de cera aplicada pelo cilindro sobre o tecido era muito fina, resistindo apenas a um banho de imersão. O resultado era um padrão monocromático em azul estampado nos dois lados do tecido, o “royal dutch wax”, produzido pela “Wax-print”, empresa holandesa posteriormente rebatizada como “Vlisco”. (LIMA, 2013)12

Inicialmente, os holandeses tentaram comercializar em sua colônia na atual Indonésia, mas os tecidos foram rejeitados pela população por serem considerados uma imitação ruim das estampas produzidas por eles através do autêntico batik tulis javanês. Então, passaram a exportá-los paras as colônias belgas, inglesas e alemãs na África.


O autêntico “royal dutch print” possuia um alto custo, já que se tratava de um processo semi-fabril, portanto ainda relativamente artesanal. A partir dos anos 40 ele começa então a ser produzido em impressão industrial a fio pintado em apenas um lado do tecido, e em policromia. (...) Com grande perspicacia comercial, as empresas inglesas e holandesas passam a reproduzir padronagens nativas africanas, principalmente das colônias da África Ocidental, e graças ao baixo custo da impressão industrial, inundam a região com seus padrões extravagantes e multicoloridos. (LIMA, 2013)

Em 1783, o escocês Thomas Bell produziu o cilindro de estampar. Essa criação foi inspirada pela cunha de madeira, que já continha o princípio de gravação, e o batik, com ideia da separação de cores. Assim, no cilindro de estampar, o desenho é gravado, cor a cor, em baixo-relevo em rolos de cobre ou de ferro recoberto de cobre e transferido sob pressão ao tecido. Com o passar do tempo e dominando melhor o material, surgiram gravações de desenhos menores e mais detalhados, como os feitos pela manufatura francesa Juoy-e-Josas em 1797.

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Exemplo de estampa da Vlisco.


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O método multiplicou por 25 o rendimento da impressão em relação à feita por blocos, além de permitir nitidez no desenho, simplicidade nos ajustes e, acima de tudo, maior desenvolvimento da produção. (PEZZOLO, 2007, p.191)

Com o desenvolvimento da indústria têxtil e o aprimoramento de técnicas, as dificuldades no manuseio de corantes naturais começaram a ser mais sentidas; a necessidade de processos especiais a cada corante utilizado, as reações diferentes às misturas e o tempo envolvido na obtenção das cores desejas não eram mais compatíveis com a produção têxtil na Revolução Industrial. Segundo Pezzolo (2007), o primeiro corante sintético foi descoberto por acaso, em 1856, pelo britânico William Henry Perkin que, ao tentar sintetizar um remédio contra a malária a partir do alcatrão de carvão, criou um corante púrpura, a malveína. Outros químicos começaram a buscar corantes sintéticos e a realizar experimentações, e na passagem para o século seguinte, já existiam mais de 2 mil cores sintetizadas. A industrialização no processo de produção de tecidos tornou mais comum a experiência pessoal de uma varie-

dade de tecidos. Segundo Schoeser (2003), desde aquele momento certos têxteis ganharam visibilidade ao questionarem conceitos estéticos aceitos, desafiarem atitudes sociais enraizadas, reexaminarem técnicas ou ao serem usados de maneira inesperada. Muitos desses confrontos refletem as questões levantadas pelos sucessivos movimentos ocidentais na arte, artesanato e design no século XX.

Exemplos de estampa criadas pela Jouy-en-Josas, no fim do século XVII. As imagens retratam o cotidiano e a técnica de impressão em cilindro de

cobre permitiu o maior detalhamento dos desenhos. Fonte: Victoria and Albert Museum.


A estampa no século XX

A partir do final do século XIX, o mundo ocidental ganha destaque no projeto e execução de estampas e padrões. Sob influência da Revolução Industrial, grupos e movimentos tiveram uma produção intelectual e prática que reverberou na estamparia. As contradições da sociedade industrial e da produção e consumo em massa criaram um cenário de intensa discussão, com o questionamento da inserção do homem e de seus processos criativos em um mundo mecanizado. O primeiro movimento com tais questionamentos surgiu na Grã-Bretanha, local da indústria têxtil mais poderosa, o Arts&Crafts. William Morris lançou as bases desse movimento que influenciou diversos artistas e grupos a tentarem tornar seus trabalhos relevantes para a vida das pessoas comuns. Eles viam o conceito do design como um meio apropriado para isso, mas encontraram grandes dificuldades para alcançar esse objetivo ao produzir de maneira artesanal em ateliês exclusivos. Assim, tirando algumas exceções, como a produção da União Soviética, os têxteis criados pelos principais grupos, designers e artistas entre as duas guerras mundiais só alcançaram uma minoria rica, o que frequentemente frustrou muitos deles.

A partir da década de 1940, na sequência da Segunda Guerra Mundial, um novo clima social e cultural encorajado por uma sociedade mais liberal e inclusiva permitiu que o trabalho de artistas e designers fosse integrado no cotidiano das pessoas através do design têxtil (RAYNER, CHAMBERLAIN, STAPLETON, 2013). A produção de estampas no século XX foi enorme e impressionante. Na impossibilidade de se tratar de maneira apropriadaos diversos momentos e designers, foram selecionados alguns dos principais nomes ligados à estamparia através de tecidos pintados.

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William Morris

William Morris foi poeta, novelista, tradutor e designer de estampas para tecidos e papéis de parede. Nascido em 1834 na Inglaterra, estudou arquitetura, arte e teologia em Oxford, onde conheceu crítico John Ruskin e, seus futuros colaboradores, Dante Gabriel Rossetti, Edward Burne-Jones, Ford Madox Brown e Philip Webb. O pensamento de Ruskin sobre a transformação da sociedade pela arte e um retorno às características medievais de artesania, fez surgir a Irmandade Pré-Rafaelita. Preconizava-se a técnica pura, sem artifícios nem seduções, como uma prática religiosa e, ao mesmo tempo, um retorno à condição social, ao ofício humilde, cuidadoso, moral e religiosamente saudável dos antigos artistas-artesãos. (...) É a partir desse momento que o protesto religioso contra o industrialismo e suas técnicas mecânicas, sua busca exclusiva do lucro, a exploração do homem pelo homem, se transforma numa postura política mais ou menos declaradamente socialista. (ARGAN, 2006, p. 31)

13. An englishman... William Morris, 25/03/2011, in: http://celsolima.zip.net

William Morris, “Cray”, impressão sobre algodão, 1885.


Partindo do pensamento de Ruskin, em contato com a Irmandade Pré-Rafaelita, partilhando das novas ideias de Marx e em choque com as contradições da sociedade industrial, William Morris lança as bases do movimento Arts&Crafts. O movimento defendia o artesanato como alternativa à mecanização e à produção em massa industrial. Nesse âmbito, surgiram diversas organizações e oficinas dedicadas à produção em escala artesanal ou semi-artesanal. Em 1861, Morris funda junto com Rossetti, Burne-Jones, Madox Beown e Philip Webb, a Morris, Marshall, Faulkner & Co, especializada em mobiliário e decoração (móveis, forrações, tapeçarias, pratarias, vidros, etc), empenhando um programa claro de produção, capaz de concorrer em longo prazo com as indústrias no plano da qualidade e dos preços (ARGAN, 2006, p. 182). Ali se produziu um enorme acervo de desenhos para tecidos e papéis de parede inspirados pelo desenho medieval, mas com influência gráfica moderna e temática da natureza com florais e pássaros (LIMA, 2011)13. As estampas criadas por Morris14, realizadas em grandes áreas, eram desenhos complexos e possuíam ricas estruturas de rapport. Para facilitar o processo de criação de estampas tão complexas, Morris utilizava o rapport 14. As criações de Morris são comercializadas pela Sanderson and Sons, a partir das matrizes da Morris and Company. Podem ser vistas em http://www.william-morris.co.uk

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William Morris, “Tulip and willow”, projeto com rapport de cicatriz (esquerda) e tecido impresso pela Morris, Marshall, Faulkner & Co, em 1873.


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de cicatriz, que consiste em, no momento de projeto, “recortar” as formas em duas extremidades do desenho (como cicatrizes) e criar as complementares que encaixam perfeitamente no momento da repetição. Na maioria das vezes, os tecidos eram impressos com a técnica de block printing.

(...) na segunda metade do século XIX o artista inglês William Morris recuperou o processo em qualidade artística com suas enormes matrizes em madeira gravada para impressão, até hoje memoráveis, produzindo com elas as padronagens que definiram toda a história do design da estamparia moderna, pela perfeição dos encaixes em cicatrizes, que resultavam em padrões de rapport continuo com belíssimas construções, verdadeiras catedrais gráficas. (LIMA, 2013)15

15. Block-printing,19/09/2013, in: http://celsolima.zip.net

Matriz de block printing, estampa de William Morris.


Wiener Werkstätte

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Já na passagem para o século XX e também sob influência do Arts&Crafts, a Wiener Werkstätte (Oficina Vienense) foi responsável por um dos grandes momentos do block printing em sua produção têxtil. A oficina estava inserida no turbilhão de novas ideias ligadas à Secessão de Viena, um dos grupos modernistas que assumiram o nome de Secessão, em alusão a uma postura de separação radical da tradição acadêmica.

(...) em 1892 funda-se a Secessão de Munique, tendo à frente Franz von Stuck; em 1893, a Secessão de Berlim, liderada por Max Liebermann; em 1897, a Secessão de Viena, que publica a revista Ver Sacrum e tem como líder Gustav Klimt. Assim se determina, paralela à corrente francesa ligada ao Impressionismo, uma cultura figurativa centro-européia (...). (ARGAN, 2006,p.212).

Influenciados pela Secessão e pelas ideias de William Morris, o arquiteto Josef Hoffmann e o designer Koloman Moser fundam, em 1903, a Wiener Werkstätte com o apoio financeiro do banqueiro Fritz Wärndorfer. Tratava-se de

Estampa “Santa Sofia”, de Josef Hoffmann, produzida pela Wiener Werkstätte em 1910.


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uma associação voltada para a execução cooperativa dos ofícios artísticos e artesanais, reunindo um grande número de mestres nas diversas oficinas; no seu auge, em 1909, contava com 37 mestres e 125 aprendizes executores.

O objetivo da Wiener era a produção de um novo design, uma usinagem modernizante do art-noveau, traduzido e amadurecido em formas geométricas, linhas retas, contornos arestados e planos definidos. As artes aplicadas e artesanais eram regidas por um projeto original, o “Gesamtkunstwerk”, a obra total, um ambiente criado e realizado em todos os aspectos, detalhadamente, do projeto arquitetônico ao menor acessório. (LIMA, 2013)16

A oficina têxtil da Wiener, composta por tecelagem, tinturaria e estamparia, se constituiu como um dos espaços mais ativos e produziu um gigantesco acervo de estampas. Os modernos desenhos de estampas eram projetados pelos designers visando uma produção limitada, valorizando a variedade de padrões. Muitos deles eram pensados especificamente para o processo de impressão em block printing sobre algodão, técnica utilizada na maior parte da estamparia da oficina. Ainda sobre algodão, a Wiener utilizava a 16. Wiener Werkstätte, 20/06/2013, in: http://celsolima.zip.net

técnica de estêncil, já a seda normalmente era pintada à mão. Com uma produção de alto custo, a Wiener faliu em 1913, sendo reerguida pelo banqueiro Otto Primavesi pouco antes da explosão da Primeira Guerra Mundial. No pós-guerra, devido à falta de matéria-prima e à deserção dos principais mestres, a produção se voltou para móveis e acessórios, marcada por um “retorno saudosista ao ornamento, já fortemente influenciado pelo art-deco” (LIMA, 2013). Assim, em 1925 suas ideias iniciais já eram irreconhecíveis, e em 1932 deixa de existir.

Logo da Wiener Werkstätte.


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Estampa ”Krieau”, de Wilhelm Jonasch, produzida pela Wiener Werkstätte em 1910.

Estampa “Wasserogel”, de Carl Otto, produzida pela Wiener Werkstätte em 1912.


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Raoul Dufy

Diversos artistas plásticos criaram estampas e padrões, como Matisse e Klimt. Entre eles, provavelmente o pintor fauvista Raoul Dufy possui a produção mais notável. Em 1909, Dufy passou a desenhar padrões para o estilista Paul Poiret. Naquele momento, havia um forte interesse pela arte primitiva e popular, qualidades presentes na obra de Dufy, o que atraiu Poiret. Assim, enquanto Dufy rompe a barreira existente até então entre arte e design, Poiret insere a estampa produzida industrialmente na alta costura. “Poiret foi o primeiro criador da alta costura a utilizar tecidos estampados por impressão, já que até então as estampas utilizadas nos atelies de moda burgueses eram produzidas por tramados e bordados” (LIMA, 2014)17. As realizações notáveis de Dufy no campo do design têxtil, com um desenho estilizado através de vigorosas linhas, a simplificação das imagens, a utilização de cores cores puras e a sobreposição de planos, influenciaram internacionalmente o trabalho de diversos artistas (RAYNER, CHAMBERLAIN, STAPLETON, 2012).

17. Raoul Dufy, 03/04/2014, in: http://celsolima.zip.net

Na imagem superiorà esquerda, capa de Paul Poiret,1911. Ao lado, estampa “Les conques”, de Raoul

Dufy, desenhada para Bianchini-Férier em 1925. E na imagem inferior, estampa Éléphants”, de 1920.


Estampa soviética

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A vanguarda russa do século XX foi capaz de influenciar o mundo inteiro com sua energia criativa. Ao aliar uma viva tendência modernista com a revolta de intelectuais contra o regime czarista, um tom de protesto foi assumido. De todas as correntes de vanguarda, animadas por propósitos revolucionários, a que se desenvolve na Rússia nos primeiros trinta anos do século como o Raísmo, o Suprematismo e o Construtivismo é a única a se inserir numa tensão e, a seguir, numa realidade revolucionária concreta, e a colocar explicitamente a função social da arte como uma questão política. (ARGAN, 2006, p.324)

O construtivismo, encabeçado por artistas como Aleksandr Ródchenko e El Lissitzky, foi a corrente que mais influenciou a produção soviética no campo da estamparia, tanto estética quanto politicamente. Durante o século XIX e início do século XX, a indústria têxtil russa foi forte. Naquele momento, os motivos das estampas eram inspirados pelos livros europeus de

Estampa de Varvara Stepanova para produção em massa, 1923.


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padrões. Os tecidos estampados, destinados a crescente classe média urbana, incluíam animais exóticos e temas históricos como a guerra de 1812. Apesar de algumas pequenas oficinas existirem, a grande produção têxtil acontecia em grandes fábricas nas cidades. A partir da Revolução Russa em 1917, todos os aspectos da vida pública e privada foram influenciados pela necessidade de construção de uma nova identidade soviética que auxiliasse na transformação de um país agrário de grandes disparidades em uma sociedade moderna e industrial que servisse a construção de um mundo socialista. Assim, os períodos de 1920 e 1930 foram de rápida industrialização, coletivização e revolução cultural na nascente União Soviética, liderada por Lênin. Segundo Kachurin (2006), um dos primeiros atos de Lênin foi nacionalizar todas as fábricas. Em junho de 1918, as maiores fábricas têxteis russas passaram a pertencer aos trabalhadores. Muitos artistas do construtivismo russo, como Varvara Stepanova e Liubov Popova, escolheram permanecer na União Soviética e trabalhar para o estado, o único patrono das artes e empregador. Com intenção de revitalizar o design têxtil, as designers foram trabalhar na primeira fábrica de algodão estampado de Moscou.

Sobre os artistas construtivistas, Argan coloca que

no plano da ação cultural-política, porém, querem demonstrar que, num sistema onde a indústria não está vinculada à superestrutura capitalista, não pode substituir nenhuma contradição entre a operação estética e a tecnologia industrial. As técnicas industriais não só abriram possibilidades ilimitadas à inventividade dos artistas, como também construíram o aparato funcional por meio do qual o impulso criativo da arte entrará no círculo da vida social e, reciprocamente, a sociedade estimulará a criatividade da produção. Assim, a arte industrial será a nova e verdadeira arte popular: não mais será a tímida expressão de uma classe culturalmente inferior, e sim o sinal da vitalidade interna de uma sociedade que se forma e se transforma numa condição de liberdade democrática. (ARGAN, 2006, p.329-330)

Controlando os estúdios de design, Stepanova e Popova passaram a criar estampas geométricas, por acreditarem que eram mais apropriadas a uma sociedade igualitária, já que esses desenhos não podiam ser associados a nenhuma classe em particular, ao invés dos anteriores florais base-


ados nos padrões europeus, então associados à burguesia pré-revolução. A liderança comunista dependia muito dos meios visuais para comunicar os novos princípios para a população analfabeta russa. Durante a guerra civil, havia a cobrança para que se projetassem meios de comunicar visualmente, como o cartaz “Holiday finery: Then and now” de Vladimir Kozlinsky, que poderia ser facilmente entendido (KACHURIN, 2006).

Cartaz de Vladimir Kozlinsky, 1920-21.

O design têxtil, enquanto uma das ferramentas de construção gráfica dessa nova sociedade, foi aproveitado na luta de modernização do estado. Em 1928, um pequeno e influente grupo de artistas começou a promover o uso de desenhos temáticos sobre têxteis, representando a experiência da felicidade proletária em todas as fases de vida. Segundo Kachurin (2006), eles acreditavam que estampar motivos modernos, como tratores, ferrovias e maquinários, em roupas e tecidos para decoração teriam, não apenas um valor educacional por apresentar os objetivos do novo estado, mas também exerceriam a função de aumentar a consciência política dos indivíduos, tornando-os cidadãos ideais da União Soviética. Ao interiorizar as crenças comunistas, cada pessoa seria um suporte confiável das políticas estabelecidas pelo partido. Vestindo essas estampas, eles seriam potencialmente um outdoor das iniciativas revolucionárias do governo socialista. Entre o designers mais reconhecidos da estampa temática, estavam Marya Anufrieva e Sergei Burylin. A partir daí, além dos padrões geométricos e abstratos, estampas temáticas da glorificação da indústria, das atividades agrícolas e da juventude passaram a ser empregadas na construção da complexa padronagem soviética.

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O imaginário empregado foi imediatamente reconhecido pelo cidadão comum, imerso na linguagem visual soviética por mais de uma década. Havia um enorme debate sobre o design têxtil apropriado para a União Soviética, sendo tema de discussão em exposições e conferências. Lya Raiser foi uma das artistas que tomou uma posição extrema, defendendo que deveriam ser usados apenas simples slogans e iniciais para as estampas não caírem no erro de se tornarem um ornamento decorativo e, portanto, burguês. A foice e o martelo, por exemplo, adotados como símbolo da união soviética em 1928, apareciam ora como motivo principal, ora camuflado nos motivos geométricos. Como coloca Kachurin (2006), o fato do design têxtil ter sido um tema de debate durante esse período, revela a grande responsabilidade colocada nas imagens durante esse processo de intensa transformação social. Essa questão também fica clara com a criação da Vhutemas – Escola Superior de Arte e Técnica, no ano de 1920 em Moscou. Apesar do curto período de vida, 10 anos, a instituição estatal foi um centro para os movimentos artísticos da vanguarda russa. A escola era dividida entre a Faculdade de Artes, com os cursos de artes gráficas,

escultura e arquitetura, e a Faculdade de Indústria, com os cursos de impressão, têxtil, cerâmica, marcenaria e metal. Segundo Khan-Magomedov (1990), a faculdade têxtil era composta por três ateliês: ateliê de tecelagem, de impressão e de bordado. Julgado muito artesanal, o ateliê de bordado é extinto em meados da década de 20 e substituído pelo ateliê de aerografia, dirigido por L. Maiakovskaïa, a irmã do poeta. Como nas outras faculdades relacionadas à produção industrial, o objetivo do curso era formar artistas-tecnólogos. Isso era reforçado pelo fato do curso possuir professores dirigentes que também dirigiam fábricas têxteis, como era o caso de O. Grioune, L. Maiakovskaïa e de V. Stepanova. Formar artistas-tecnólogos implicava não somente que eles dominassem as tecnologias de impressão mecânicas e manuais, mas também que possuíssem capacidades artísticas suficientes para responderem a nova ordem social. No caso do design têxtil, os construtivistas acreditavam que deveria ser um processo único e contínuo, da tecelagem à elaboração da vestimenta. Conforme defendiam Stepanova e Popova, deveria ser estabelecido um elo entre o tecido, o motivo e a roupa, sendo o desenho indissociável as estrutura própria do tecido.


As estampas soviéticas, que inovaram no rapport, na paleta de cores e na reflexão sobre o design, constituindo uma enorme influência para o século XX, caíram no anonimato a partir da década de 30 por decisão de Stalin.

Estampas geométricas de Varvara Stepanova.

Em 1933 o Conselho Comissariado do Povo, por vontade de Stalin, decretou que era proibida a representação de bens e meios de produção, assim como de registros do cotidiano civil e sua utilização gráfica em têxteis, e toda a riqueza em design produzido durante mais de uma década retratando o exercício e construção de um novo mundo chegou ao fim. A estamparia soviética seria, a partir de então, anódina e anônima. (LIMA, 2012)18

As imposições da burocracia stalinista atinge todos os campos da produção soviética. Segundo Argan (2006), após Stalin subir ao poder, nega-se qualquer autonomia de pesquisa e de orientação à arte. A vanguarda é reprimida, enquanto a velha academia é revalorizada. Dessa forma, a arte da revolução deixa de existir para dar lugar a uma produção medíocre de temas impostos pelo Estado.

18. Estampas socialistas na utopia soviética, 05/01/2012, in: http://celsolima.zip.net

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As estampas temĂĄticas representavam um cotidiano de felicidade no mundo socialista e industrial.


Liberty of London

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A Liberty of London possui longa trajetória e é um nome consagrado na história da estamparia. Surgida na segunda metade do século XIX, foi o primeiro empreendimento a reconhecer a importância do designer no desenho de estampas, contratando diversos nomes reconhecidos a partir no início do século XX. Seu criador, Arthur Lasenby Liberty, funda sua primeira loja de tecidos e louças em 1874. Com seu sucesso e seguidas ampliações, a loja logo se tornou uma das mais luxuosas de Londres, possuindo grande coleção de tecidos e tapetes indianos, chineses e japoneses. Em 1884, a marca inicia uma produção própria de tecidos e, a partir do início do século XX, ganha destaque com os designers contratados (LIMA, 2013)19. Sob a etiqueta de “Young Liberty”, nomes importantes produziram para a marca, como Robert Stewart, Lucienne Day, Jacqueline Groag, Pat Albeck, Hilda Durkin, Martin Bradley, Sylvia Chalmers e Lana Mackinnon.

19. Liberty of London, 21/10/2013, in: http://celsolima.zip.net

Estampas produzidas sob o selo “Young Liberty”. Acima, tecido para decoração desenhado por Robert

Stewart, em 1954. Abaixo, estampa “Cockpit”, de Martin Bradley, produzida em 1957.


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Jacqueline Groag

Nascida em 1903, a designer tcheca colaborou para diversos grupos do design têxtil. Em 1928, inicia sua parceria com Wienner Werkstätte, onde já ficava explícita a influência moderna, principalmente de Wassily Kandinsky e Paul Klee. Em Paris, atua na moda desenhando estampas para estilistas como Coco Chanel e Paul Poiret. Muda-se para a Inglaterra em 1939, onde passa a expandir seu trabalho para variados tipos de superfícies, como tapeçaria, laminados, plaáticos e papéis de parede. Através de um desenho inovador, exerceu grande influência em diversos designers. Suas estampas, junto com criações de designers como Lucienne Day, Marian Mahler, Sylvia Chalmers, Henry Moore e Robert Stewart (com quem teve prolifica colaboração na Glasgow School of Art), mudaram todo o desenho de estampa no mundo, exercendo forte influância na padronagem norte-americana (...). (LIMA, 2012)20

20. Jacqueline Groag, 22/08/2012, in: http://celsolima.zip.net

Estampas de Jacqueline Groag, década de 50.


Lucienne Day

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Designer inglesa nascida em 1917, possuía forte influência das vanguardas modernas, principalmente de Wassily Kandinsky e Paul Klee, além do artista espanhol Joan Miró. Designer do pós-guerra, teve suas estampas produzidas em massam em tecidos, tapetes, papéis de parede e cerâmicas na Europa enos Estados Unidos. Segundo Jackson (2002), a guerra causou uma pausa tão tonga na produção, que o design de estampa recomeçou completamente no pós-guerra. As novas criações respondiam com entusiasmo a liberdade do momento, através de padrões dinâmicos e estimulantes inspirados pela arte, arquitetura e ciências. Em 2003, Lucienne Day disse em uma entrevista21 (...) fui muito interessada por pintura moderna, embora não quisesse ser pintora. Coloquei a inspiração da pintura em minhas estampas têxteis, em parte porque acho que fui sempre muito prática. E ainda sou. Eu queria que o trabalho que eu estava fazendo fosse visto e usado pelas pessoas. Tinham sido já tão privados de tudo durante a guerra.

21. A english woman...Lucienne Day, 25/06/2010, in: http://celsolima.zip.net

Padrões de Lucienne Day, no pós-guerra.



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Agradecimentos

Ao Celso Lima, pela generosidade em me apresentar um novo mundo e pela disponibilidade para as conversas frequentemente inquietantes. Ao Augusto Sampaio, por transmitir a calma necessária para o aprendizado com novos materiais e ferramentas e, sobretudo, me fazer lembrar que tudo tem seu tempo. À Sara Goldchmit, orientadora durante o tfg I, pela atenção e orientação fundamentais para o desenvolvimento do trabalho em um momento ainda de muitos receios e ansiedades. À Clice Mazzilli, orientadora durante o tfg II, por passar a tranquilidade necessária para a continuidade do trabalho, possibilitando que eu seguisse meu caminho. Ao Chico Homem de Melo, por todos os ensinamentos e pelo entusiasmado incentivo inicial que me fez persistir nesse trabalho. À equipe do Laboratório de Publicação e Produção Gráfica (LPG), que apesar do contato tardio, tanto colaboraram com minha formação. Aos demais professores que marcaram minha passagem pela fauusp.

Ao gfau, por todas as influências ao longo desses sete anos e, em especial, pelo esforço em manter a fau viva através de uma produção crítica. Aos amigos da faculdade, pelas conversas e parcerias que tanto colaboraram com minha formação e me fizeram crescer. Ao André, pelo incentivo e ajuda na a realização desse trabalho, pelo companherismo cotidiano e, principalmente, por compartilhar o desejo de uma vida sempre em movimento. À minha irmã, por todas as semelhanças e por todas as diferenças. À minha mãe, por se manter ao meu lado em cada novo projeto e momento da minha vida e, especialmente, pela força que possui, sempre um estímulo. Ao meu pai, com saudades.





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