Bronwyn willians - Cabo Hatteras 01- Feitiço Branco

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F E I T IÇ O B R A N C O BRONWYN WILLIANS

Resumo Kinnahauk fitava incrédulo a criatura pálida e frágil deitada na areia. Então era aquela a virgem que o grande Espírito lhe prometera trazer do outro lado das águas? A marca feita a fogo na testa da moça branca confirmava a profecia. Temerosa, Bridget examinou o magnífico selvagem seminu que tinha diante de si. Com certeza ela estava longe das colônias inglesas e do fazendeiro com quem prometera se casar. Seria possível que tivesse escapado de morrer queimada como feiticeira na Inglaterra apenas para cair prisioneira de um índio de olhos dourados ? Fugir era o único pensamento claro na mente atordoada de Bridget enquanto Kinnahauk apertava os punhos com força e erguia os olhos para o céu que começava a escurecer. Só podia ser um castigo dos Deuses !! “PROJETO REVISORAS” CLÁSSICOS DA LITERATURA ROMANTICA Nº 26

Digitalização Joyce Revisão Nana


PRÓLOGO

Croatoan, 1667.

Para o leste, onde a Grande Água cumprimentava a praia, Kinnahauk sentava-se sozinho sobre uma duna alta, os olhos dourados focalizados atentamente num tempo que só ele teria o privilégio de ver. O sol desapareceu em sua grande casa, enquanto ele continuava a invocar os espíritos, para que lhe dessem a visão de sua idade viril. Logo a estrela da noite apareceria acima do ponto onde se chocavam as águas dos dois grandes rios, antes de correrem juntos para o mar, um pouco além de onde o rapazinho esperava. A noite era cheia de mistérios. Kinnahauk sabia que ela pertencia aos espíritos. O Velho Homem Vento movia-se entre o capim alto e o sussurro resultante fez com que ele pensasse nos ossos antigos de seus ancestrais, que ainda descansavam no Quiozon. Ele era forte para a idade e bem constituído, mas nem o bravo mais forte poderia impedir que a Sua voz subisse e o sol descesse no céu. Sua voz juvenil elevou-se e depois tornou a abaixar, cantando a grandeza dos Hatorask. Durante toda a noite ele cantou, a voz enrouquecendo mas nunca chegando a falhar. Exatamente quando os dedos do sol apareciam no horizonte, no terceiro dia, o Velho Homem Vento suspirou mais uma vez e seu hálito elevou-se como fumaça acima da Grande Água, fumaça que subiu devagarinho em direção ao lugar onde o jovem Kinnahauk esperava, com os olhos dourados arregalados de medo e fascinação. No meio da fumaça cinzenta, chamas poderosas brilharam subitamente, e a voz de Kishalamaquon falou: — Kinnahauk, filho de Paquiwok, sangue do poderoso Manteo, ouça as minhas palavras. Na época do ganso branco, chegará para você uma óquio, vinda de uma terra do outro lado das águas. Você reconhecerá essa mulher pela marca de fogo que ela terá na testa. Tome-a e espalhe sua semente nela. Desta união nascerá um quasis, que guiará o seu povo pelo caminho do sol poente. Eu falei, e assim será.


CAPÍTULO I

Inglaterra, 1681

Os trovões rugiam no céu, enquanto Bridget, apressada, cruzava a cerca em direção ao seu chalé. Ela franziu a testa, olhando as nuvens escuras. Promessas vazias. Segurando três ovos em seu avental, ela saltou o leito seco de um riacho, marcado pelos cascos do gado sedento. Se não tivesse tanta coisa a fazer, iria até a fonte de água para molhar os pés. Mas levara mais tempo do que esperava, aplicando o cataplasma ao pé inflamado de Sarah Humphrey. A velha cacarejava como uma galinha e era capaz de inventar um sem número de motivos para ter sua companhia. Tanto ela quanto sua mãe, Anne, tinham avisado a mulher para não andar descalça nos lugares onde os animais defecavam, mas Sarah estava ficando cada vez mais esquecida. Não que Bridget se importasse de parar na casa de Sarah por alguns instantes, quando ia alimentar os gatos e galinhas. Fizera isso todos os dias, durante a última semana, sempre levando comida e o cataplasma. Mas havia outros que precisavam de sua ajuda. Ela estava se aproximando do chalé de dois cômodos, que dividia com a mãe, quando ouviu as vozes. De início, pensou que fossem apenas os trovões que rugiam há tanto tempo, enquanto as plantações morriam de sede nos campos e as folhas tornavam-se marrons antes da hora. Mas o tom agudo de Dodie Crankshaw era mais parecido com os gritos de um galo do que com um trovão. — É ela, eu já disse! Vi tudo com esse zólho meu! Ela é uma bruxa, eu juro! O leite da vaca de John não secou? E a minha mãe não ficou manca? Bridget começou a correr, suando só de pensar em sua tímida mãe sozinha e incapaz de se defender da geniosa megera. Anne tivera, recentemente, uma infecção da garganta, que a privara da voz e, até o momento, o chá de casca de elmo pouco alívio lhe trouxera. A atmosfera estava se tornando mais opressiva, a cada momento. Nem o mais leve sopro de vento agitava as folhas murchas das árvores próximas. O céu acinzentado lançava uma luz fantasmagórica sobre o canteiro de ervas bem cuidado, que era o domínio de Bridget, e o ar pesado intensificava seu aroma pungente. Bridget deixou cair os ovos que carregava, sem pensar em suas cascas frágeis. A toda velocidade, passou pelo pé de malva rosa e dobrou o canto do minúsculo chalé. - Mãe? Cheguei! Vim... Não! Por favor, meu Deus, não! - Incapaz de acreditar no que estava vendo, ela correu para o bando que meio carregava, meio arrastava, a mulher muda e apavorada em direção à fonte de água. Agarrou a manga de um, depois de outro, alternando pedidos para que raciocinassem e gritos de socorro, até o grandalhão do filho de


Miller Godwin bater-lhe no lado da cabeça com o braço, jogando-a de encontro ao tronco de um enorme carvalho e tirando-lhe o fôlego. Caída de rosto sobre a grama pisoteada, lutando para recuperar o fôlego, ela ouviu o barulho da água e os gritos entusiasmados. Levantando-se com dificuldade, abriu caminho entre o bando, implorando incoerentemente: - Dodie, ouça... Miller Goswyn, por favor! Alguém, tire minha mãe da água! - Foi empurrada brutalmente para o chão, mas levantouse de novo, gritando o tempo todo: -Mol, foi a minha mãe que salvou sua fílhinha, quando a garganta dela fechou! Não se lembra mais?! Pelo amor de Deus, não façam isso! - Agarrou a manga da mulher, mas foi afastada com um tapa. -Por favor, por favor, ouçam! Qualquer dia desses vai chover ! Falta pouco! John, a sua vaca está muito velha... Não, por favor! Não façam isso! Ajudem a minha mãe! Pelo amor de Deus, alguém ajude a minha mãe! Me soltem! - Soluçando histericamente, Bridget chutou e unhou, mas o efeito foi o mesmo de um gatinho lutando contra uma matilha de cães selvagens. Não vinha mais nenhum som da água, e uma sensação horripilante envolveu-a. — Deus do céu, por que o senhor nos abandonou? — gritou, caindo de joelhos. Os murmúrios tinham começado semanas atrás. Ela notara os olhares de esguelha, quando passava pela vila, mas nunca sonhara que aquilo pudesse acontecer. Aquelas pessoas tinham conhecido seu avô, um homem bom e sábio. Seu pai fora um respeitado guardacaça, que morrera salvando a filha retardada de John, o ferreiro, de um laguinho congelado. Não havia uma família ali que sua mãe não tivesse abençoado com suas ervas medicamentosas, bondade e sabedoria, aceitando como pagamento palavras agradecidas, um saco de farinha, um ovo ou um pedaço de carne. Em choque, Bridget levantou-se, vacilante, e abriu caminho entre o bando irado, que circundava o reservatório de água. — Sangue da bruxa — alguém murmurou. — Vamô manda ela pra Newgate! Cega pelas lágrimas, ela tentou alcançar a água, apesar de saber que já era muito tarde. Se pelo menos a seca não tivesse sido tão implacável durante os últimos dois anos! Se pelo menos um raio não tivesse atingido o touro do fazendeiro Wedley, a semana passada e a voz de sua mãe não tivesse desaparecido, exatamente no dia seguinte... Bridget nem sentiu o murro que a jogou no chão. Quando voltou a si, estava sentada, em cima de um saco de farinha, amarrada como um animal a ser levado para a feira, dentro do moinho que era tocado pela água do reservatório. Com uma certeza cheia de desespero percebeu que sua mãe estava além de qualquer ajuda. Pura histeria fez com que seus lábios trêmulos se


distendesse, sem o arremedo de um sorriso, igual ao que vira muitas vezes nos mortos e que era causado pelo enrijecimento dos músculos. Em sua agonia, chegou a pensar que morrera e ainda não sabia disso. — É, ela ri agora, a filha da bruxa, mas num vai ri por muito tempo! — alguém gritou. Outras vozes elevaram-se, aprovando: — Minha mãe não era bruxa e vocês sabem disso muito bem! — Bridget protestou, aos gritos. Obviamente não estava morta, pois era sua própria voz que tinha ouvido, e seu coração que estava se quebrando. — Você, Dodie Crankshaw, sempre odiou minha mãe por ser o que era! O que você nunca conseguiu ser, com a sua língua maldosa e coração invejoso. Foi você quem jogou os sapos no nosso poço, para que ficássemos doentes. Eu sei que foi! E também sei que nem todo o bem, nem todo o mal, nem todo ouro do mundo vão fazer com que escape da maldade que fez hoje! Ah, como ela gostaria de ser uma bruxa! Se fosse, lançaria todos no inferno, pelo resto dos tempos, pelo que tinham feito a sua mãe. -Dona Anne afundou como uma pedra — um deles murmurou. — E todos sabem que uma bruxa pode se salvar se morrer afogada. — É e eu não pretendo ser enforcado em Tyburn por causa de uma bruxa. De imediato, Dodie interferiu. — Se Anne Abbott num era bruxa, então essa aqui deve sê. Senão, por que as plantação iam morrê e o leite das vaca secá? E quem foi que fez a raiva do demo caí no touro de Wedley? Num devêmo arrisca! — Vamos marcar a garota para prevenir os homens tementes a Deus do mal que ela esconde na alma! A idéia foi logo aceita. Bridget fechou os olhos com força, rezando para acordar daquele pesadelo horrível demais para ser real. Sem dúvida, as vozes que se elevavam também faziam parte de seu sonho. Foi a sensação de calor intenso que a levou a abrir os olhos e ver o ferro do ferreiro, de um vermelho brilhante, aproximando-se vagarosamente de seu rosto. Seu grito foi interrompido abruptamente, quando alguém, em pé atrás dela, agarrou-lhe os cabelos e puxou sua cabeça para trás, até quase quebrar-lhe o pescoço. Quando o ferro quente tocou sua pele, ela perdeu os sentidos. Um penico atingiu a lateral da carroça, e seu conteúdo escorreu pelas fendas da madeira. Bridget abriu as pálpebras e fitou, por entre os cabelos emaranhados, o rosto da loucura,


quando uma velha desdentada bateu-lhe de leve numa das faces, com garras amareladas pelo tempo e escurecidas pela sujeira. — Ôtra bem nascida que ando mal, queridinha? Cê vai precisá de alguém para controla os garanhão, sinão num dura uma semana. Maudie vai sê sua amiga, queridinha. Maudie vai toma conta do cê e cuidá dos negócio. A velha soltou um riso estranho e Bridget estremeceu. Com a mão, tirou uma placa de excremento humano do braço e sentiu o estômago revirar. — Num ligue pra essa veía louca. Ela vai vendê ocê por um pedaço de pão, até você tá tão marcada quanto ela — caçou uma mulher de rosto maldoso, cujas feições ainda mostravam sinais de uma antiga beleza. Ela estava sentada, encolhida, no centro da carroça, usando um vestido rasgado, mas que já fora de boa qualidade. — É, Sudie? E o que foi que sua majestade lhe deu desta vez por seus favores? Um balde de bosta de porco? — Cale a boca, sua... A carroça saltou sobre um monte de lixo, jogando suas ocupantes de encontro aos lados e causando uma fileira de palavrões, cada um pior que o outro. Bridget, com os cabelos emaranhados caídos sobre o rosto, olhava sem ver para a frente, ainda presa naquele horrível pesadelo. Desesperada, agarrava-se à dor que se irradiava da testa para o resto do corpo, concentrando-se nela como se pudesse protegê-la de uma dor maior ainda: a dor da lembrança. Mas não haveria tempo para lembranças e muito menos para lamentações. Tocadas pelos cômodos úmidos de Newgate como gado para o matadouro, Bridget e as outras foram conduzidas ao longo de uma comprida escada, perigosa devido ao inacreditável acúmulo de sujeira nos degraus. O ar estava tão viciado que ela foi obrigada a enfiar o avental na boca para não vomitar. No entanto, o mau cheiro não era o pior. Havia os sons. E mesmo esses eram apenas um prenúncio do que a esperava, quando o carcereiro se fosse, deixando o grupo de recém chegadas encolhido junto à porta de um cômodo cavernoso.À luz mortiça do local, figuras horrendas avançaram em direção às recém chegadas como uma parede viva e malcheirosa, algumas adulando, outras caçoando, e muitas gritando palavrões virulentos. — Será que estamos em Bedlam, o hospício? Pensei que íamos para Newgate, a prisão — ela murmurou. — O que elas querem de nós? A vagabunda no vestido rasgado, que se chamava Sudie Upston, não parecia abalada pelo ambiente horrendo.


-Que é que cê acha? — replicou, correndo o olhar depreciativo pela figura esbelta de Bridget até chegar à testa, que, muito inflamada, dava a impressão de estar com uma ferida purulenta. Voltando-se então para o aglomerado de gente, ergueu a voz aguda: — Pra trás, seus lixo, senão ainda vão dançá em Tyburn! Carcereiro! Chame o carcereiro, sua estúpida! - Por favor, moça — alguém murmurou. Com os olhos presos no rosto de expressão vaga da enorme criatura que avançava para ela arrastando os pés, Bridget mal ou viu a voz suave, a seu lado. Apavorada, encolheu-se atrás da estridente Sudie. — Por favor... — A mulher puxou a manga de Bridget, fazendo-a olhar para baixo. — A senhora é dona Bridget, não é? A que curou meu pai daquela doença na pele... — Cala a boca, sua velha fedorenta, que a menina é minha! - gritou a megera chamada Maudie, — Dona Meggy? É a senhora? Como foi que veio parar num lugar desse? Ignorando a cena degradante em volta de si, Bridget tentou enxergar sob as camadas de sujeira e rugas da mulher a seus pés. Já nem se lembrava mais da última vez que vira Meggy Fitzbugh. Então, para sua surpresa, a gentil amiga de outrora avançou para Sudie Upston e afastou, com um safanão, os dedos que se enterravam em seu braço. — Solte essa menina, sua vagabunda ou eu deixo Bilíy Bedlan pegar você! Sudie recuou com um olhar de medo para o gigante, que lhe ofereceu um sorriso desdentado e começou a avançar para ela, com as mãos enormes estendidas. Sudie correu para longe. — Manda ele embora — gritou, num tom agudo. — Olha, se ele encostá um dedo em mim, cê morre enforcada. Eu tenho amigos importante, eu juro!— Segurando as saias sujas, ela tornou a exigir a presença do carcereiro, aos berros. Com o grupo momentaneamente entretido por Sudie, Meggy levou Bridget para um canto onde estavam sentadas algumas mulheres idosas, de olhar vago, que falavam baixinho consigo mesmas. — Agora me conte como foi que veio parar aqui, criança. É claro que só pode ter sido por engano. — Ele não vai machucar Sudie? — Bridget perguntou, pois, mesmo não gostando da outra, não queria vê-la intencionalmente ferida.


— Billy? Não! Ele pode ser retardado, mas não faz mal a ninguém. É filho da minha falecida irmã e viveu comigo e meu marido até quebrar o pescoço da égua do Squire Jarrnan. Como não podíamos pagar o prejuízo, o Squire nos botou para fora das terras dele. Os olhos de Meggy encheram-se de lágrimas. Bridget olhou para o outro lado, esperando que ela se controlasse. Não havia nada que pudesse fazer, além de esperar e contemplar cenas mais tristes, assustadoras e degradantes do que tudo que já havia imaginado em seus piores pesadelos. A testa de Bridget latejava dolorosamente, mas mesmo assim ela temia a cicatrização, quando a marca se tornaria reconhecível. Com uma tira do avental amarrada em volta de cabeça, cobrindo parcialmente o rosto, ela passava todo o tempo possível junto às velhas, no canto. Nenhuma delas tinha roupas suficientes para se proteger do frio e da umidade, que pareciam maiores ainda devido à eterna penumbra do local. Também não havia comida, além dos pedaços embolorados de pão, jogados pelo carcereiro através das grades e pelos quais todos lutavam, como porcos esfomeados num chiqueiro. Era Billy que as alimentava, pois ninguém tinha coragem de se aproximar dele. Todos os dias ele oferecia a Bridget o maior pedaço, fitando-a com os olhos azuis brilhantes de adoração, e ela, por sua vez, dividia o pão com as outras. À medida que os dias se transformavam em semanas, e as semanas em meses, ela foi perdendo a noção de tempo e a esperança de sair viva de Newgate. Sem dinheiro não podia nem comprar a atenção de um carcereiro para perguntar a respeito de seu julgamento. Os carcereiros eram como abutres, tirando vantagem de tudo e todos, e ela sabia que, sem Billy, já teria passado de mão em mão, entre eles. Meggy ia ficando cada vez mais fraca, devido à falta de comida e ar fresco. Nem mesmo Billy podia arrumar o que a pobre mulher precisava. Sem suas ervas para dar alívio e fortalecer Meggy nos últimos dias, Bridget só podia segurá-la nos braços, cantando todas as melodias de que se lembrava, pois conhecera duas pessoas assim, em Little Wheddborough, e sabia que eram criaturas de Deus, com corpos de adultos, mas mentes de crianças. Mais de uma vez, foi a proximidade de Billy que a salvou de ser atacada por animais cheios de luxúria, que obrigavam as mulheres a se submeter a eles, sem ligar para o fato de estarem diante dos olhos de todos. Sudie logo havia melhorado sua situação, com uma palavra sussurrada no ouvido certo e alguns objetos imundos, porém finos, que possuía. No dia em que ela deixou a ala comum, Maudie dedicou-se contando a quem quisesse ouvir que Sudie Upston, apesar de se dizer da aristocracia, fora mandada para Newgate por roubar quatro guinéus de um freguês e vender a calça do homem a um camelo que passava, enquanto ele dormia, para que não pudesse perseguí-la. O cavalheiro, avidamente, dava mais importância à vingança do que a própria modéstia, pois, cobrindo-se com um xale, alcançara Sudie alguns quarteirões adiante, onde ela havia parado para se gabar a uma amiga. Estranhamente, Bridget sentiu falta da megera, depois que ela conseguira barganhar com o carcereiro por melhores acomodações. Afinal, Sudie fora um rosto familiar. Para seu alívio, Maudie se juntara a um grupo de velhos conhecidos e não mais a amolara, mas havia dias em que ela


achava que nunca mais ouvira seu nome pronunciado com amizade, pois Meggy já não conseguia mais falar e Billy nunca aprendera. Por seu cálculo, Bridget estava em Newgate esperando julgamento há quase quatro meses, no dia em que Meggy abriu os olhos e começou a remexer no carpete do vestido velho e manchado que usava. — Meu dinheiro — a mulher sussurrou em voz rouca. — Meu dinheiro é para Billy. Cuide dele, pois eu o amo como se fosse meu. — Seus olhos, muito fundos no rosto, tinham um brilho febril que se apagou antes que Bridget pudesse responder. Nessa altura já imune a choques, Bridget continuou a segurar o corpo frágil em seus braços, pois não sabia mais o que fazer. Billy, sentado, balançando o corpo para diante e para trás, esperava, ansioso, que ela continuasse com a Balada dos Três Corvos. A morte era uma ocorrência diária, na ala comum. Bridget sabia muito bem o que aconteceria no momento em que notassem o falecimento de Meggy, mas não conseguiu aceitar a ideia de ver a velha amiga despida do pouco que tinha, antes mesmo de seu corpo esfriar. — Billy, vá chamar o carcereiro — murmurou, afinal — Depressa, Billy. Bata na grade. Você é um bom menino e Meggy está precisando do carcereiro. Com toda gentileza possível, sem alertar os que a rodeavam, Bridget alisou os cabelos amarelados e fechou os olhos opacos, pela última vez. Então, deitando Meggy no próprio xale rasgado, estendeu os braços magros e abriu as mãos apertadas. Foi quando descobriu o dinheiro. Billy tinha herdado... Dois shillings. Lágrimas inundaram os olhos de Bridget, e um nó formou-se em sua garganta. Deslizando as moedas para dentro de seu corpete , ela deu vazão ao pranto. Não chorava desde aquele dia de primavera, quando o seu mundo terminara. E agora chorava por sua pobre mãe, por Meggy, Billy e todos os outros, inclusive ela mesma, que estavam condenados àquele inferno que era Newgate. O que aconteceu em seguida foi tão rápido que Bridget nunca soube, com certeza, como foi que começou. Ela ainda estava cega pelas lágrimas quando os dois carcereiros chegaram para recolher o corpo de Meggy. Sem entender, Billy bloqueou o caminho deles, grunhindo daquele modo inintelegível que usava, quando estava perturbado. — Não, Billy ela tem de ir — Bridget disse baixinho. Mas o bando de prisioneiros, sentindo a inquietude do rapaz e ansioso por uma distração, começou a gritar, encorajando os dois lados. Um dos carcereiros segurou os tornozelos de Meggy, enquanto o outro abria caminho até a porta. Com um grito agoniado, Biíly avançou para o homem que se atrevera a tocar em Meggy e ergueu-o no ar, jogando-o de encontro à parede. A multidão berrou, tomada pelo pavor mas também excitada. Agarrada às duas velhas mais perto dela, Bridget fitou Billy de olhos arregalados. Foi nesse momento que o carcereiro levantou o cassetete. Bridget gritou, houve o barulho horrível de algo sendo esmagado, e o pobre Billy caiu sobre o corpo de Meggy, banhando o rosto acinzentado da


mulher com seu próprio sangue. Bridget estava incrédula. Encolhida no canto, apertou a barra do avental de encontro à boca. Enquanto esperava que a morte a atingisse também, as velhas se afastaram, uma a uma, de olhos vazios, as vozes vacilantes passando a entoar as notas familiares de Os Três Corvos. Foi só quando notou o modo como dois dos homens mais agressivos a olhavam que Bridget voltou à realidade. Arrepiada de medo, levou a mão à cabeça, empurrando para trás o pano que a cobria. Se fosse necessário, usaria a marca na testa para se proteger, pois, sem Billy, não se passaria muito tempo antes que os homens resolvessem importuná-la. E, depois, o que aconteceria? Seria como tantas das mulheres ali aprisionadas, talvez para a vida inteira? Primeiro uma vítima, depois uma oportunista, usando o corpo para obter comida, um xale quente, uma noite livre dos horrores da ala comum? Ela não teria coragem de passar outra noite num lugar como aquele. Billy se fora. Os dois shillings de Meggy agora não lhe fariam nenhum bem. Mas para ela podiam significar a diferença entre a degradação final e manter a sanidade por mais alguns dias. Dois shillings não lhe comprariam a luz, o ar fresco e a privacidade encontrada na parte chamada Castelo, mas nas mãos certas, podiam lhe comprar uma semana num lugar mais saudável que aquele. A melhora mal valia os dois shillings, mas pelo menos era possível distinguir o dia da noite e não havia tanta gente. Uma das primeiras a dar as boas-vindas a Bridget foi sua velha conhecida, Sudie Upston. — Eu sabia que cê ia caí mais cedo ô mais tarde, srta. Água com Açúcar! — ela disse, curvando-se numa reverência zombeteira. — Quem levanto a sua saia? Seu amiguinho, aquele louco? E seu riso vulgar chamou a atenção de todos para elas. Bridget sentiu o rosto queimar de vergonha. Vagarosamente, ergueu a mão e tirou o trapo de sua testa, ouvindo, com um prazer malicioso, a exclamação abafada de Sudie. — Cê é uma bruxa?! -Eu levo a marca de uma — Bridget respondeu, calmamente. Não deixaria que gente como Sudie Upston a intimidasse. Comprara uma semana naquele lugar e, em homenagem a Meggy, não permitiria que ninguém estragasse seu descanso. — É. Mas eu também levo as marcas de Newgate e sô tão bem nascida quanto quarqué dama desse país. Cê tem o poder? - Sudie parecia mais fascinada que amedrontada, e Bridget deu lhe as costas, enojada. Havia pessoas capazes de barganhar com o próprio diabo, e passou-lhe pela cabeça que Sudie era uma dessas. Um dia antes de a semana terminar, o carcereiro abriu a pesada porta de ferro e entrou, acompanhado por um homem de olhos míopes, com ar de escriturário. Bridget se arrepiou, com medo de que eles tivessem vindo para levá-la de volta à ala comum.


— Tapa o nariz, senhô, que elas fede mais que carniça — o carcereiro avisou ao seu convidado. E, ameaçando as prisioneiras de arrancar a língua de cada uma delas, mandou que prestassem atenção ao que o homem ia dizer. Bridget, com um olhar opaco de fome, viu a inevitável troca de moedas acontecer entre os dois homens. Sua impressão era de que carcereiros e todos os que os trabalhavam em lugares degradantes eram pessoas riquíssimas, pois estavam sempre sendo pagos por um favor ou outro. O visitante abriu um papel e começou a ler, mas ela não ouviu nada. Só quando o silêncio caiu sobre o local sua apatia diminuiu o bastante para que prestasse atenção. "... e qualquer mulher solteira que quiser ir vai achar que alcançou o paraíso, pois se tiver modos educados e menos de cinquenta anos de idade, um homem honesto a comprará para esposa." O visitante, então, apresentou uma lista de nomes de fazendeiros que haviam pago a passagem para uma esposa e mandou que elas colocassem sua marca junto ao nome de sua escolha. Catorze mulheres se adiantaram. Bridget foi a quarta na fila, com Sudie dois lugares atrás. Ela sabia ler, pois sua mãe aprendera com o pai intelectual e depois a ensinara. Olhando a lista, achou que o nome Lavender se destacava dos outros, fazendo com que se lembrasse de tudo que era limpo, bom e bonito. David Lavender, fazendeiro de Albemarle, um lugar localizado numa parte das colônias recentemente batizado de Carolina, pagara cento e vinte libras de tabaco pela passagem de uma mulher sadia, no barco Andrew C. Mallinson. Com a primeira ponta da esperança que sentia em meses, Bridget assinou, cuidadosamente, seu nome junto ao dele.


CAPÍTULO II

As docas de Londres fervilhavam de atividade, pois havia muitos recém chegados e outros, de partida. Xingando com vontade, o carroceiro avançou devagarinho, dando a Bridget ampla oportunidade de examinar o navio que seria seu lar, durante mais de seis semanas. O Andrew C. Mallinson estava longe de ser o maior no porto, e mais longe ainda de ser o maior navio do porto, e mais longe ainda de ser o melhor. Mesmo assim, Bridget sentiu seu desânimo começar a desaparecer. Até o mau cheiro do local era bem-vindo depois do fedor de Newgate, pois significava vida. Entre o barulho e o corre-corre, o aroma rico de especiarias se misturava ao cheiro de peixe podre e ao eflúvio sempre presente do aglomerado humano. As docas de Londres tinham vida e fervilhavam de animação. Não pareciam, nem de longe, com seu canteiro de ervas cheirosas ou o quarto de trabalho de sua mãe, mas refletiam atividade, liberdade e esperança no futuro. — ...selvagens nus, que come carne de gente temente a Deus. — alguém sussurrou num tom bastante audível, na carroça. Bridget não deu atenção. Ouvira todos os rumores. Assim que se espalhara a notícia de que catorze prisioneiras seriam mandadas para a América, aparecera muita gente ansiosa para falar dos horrores que as esperavam no fim da viagem. — Ouvi dizer que muita gente paga em ouro, só para deitar uma vez com uma mulher. Lá, uma moça de boa aparência pode fazer fortuna! — Ou acabar com a garganta cortada. — Se cê fecha os olho, Tess, pode sê que consiga fazê fortuna — caçoou Sudie. Ouvindo a exclamação abafada da garotinha vesga, Bridget tomou-Ihe a mão e apertou-a com força. Conhecera Tess no dia em que saíra da ala comum e a tomara sob sua proteção. Ela era uma boa menina, se bem que muito feinha. Fora muito maltratada por alguém cujo nome não contava de jeito nenhum e aprisionada por roubar uma batata podre, para não morrer de fome. — A meiguice é uma fortuna, Tess. Seu fazendeiro ficará satisfeito com a barganha que fez — Bridget consolou-a. Se todos os fazendeiros eram realmente bons e honestos, ela tinha pena do que pagara a passagem de Sudie. Sem dúvida, a megera logo se apossaria de tudo o que ele tinha e o botaria no olho da rua. Sudie Upston era a única, entre elas, que levava algo que se podia chamar de bagagem. Bridget lamentava que seu prometido não tivesse pensado em lhe dar um manto qualquer, pois o tempo estava úmido e frio e tudo indicava que iria piorar. Mas ele a livrara de um


inferno em vida, e só por isso ela lhe devia mais do que poderia pagar um dia. Bridget esperava que ele ficasse contente com a barganha que fizera. Ela era trabalhadeira, e a mãe a ensinara bem. Sua saúde sempre fora boa, tinha as costas fortes, apesar de sua esbelteza. Quanto à marca em sua testa, com o tempo ficaria mais clara. Havia também poções que podiam ajudar a disfarçá-la, e ela podia arrumar os cabelos de modo a cobri-la. Talvez David até lhe desse um pente como presente de casamento. E ela? O que daria a ele? A amargura e a depressão dos meses anteriores começaram a voltar, e Bridget fez um esforço para não se deixar envolver por elas. Tinha muito a oferecer! Não fora cuidadosamente educada, apesar de ter nascido num simples chalé? Seu avô fora o mais novo dos cinco filhos de uma família muito boa, se bem que pobre. Ele não possuía nada, a não ser uma boa cabeça e um coração gentil, que transmitira à única filha, Anne. Anne, por sua vez, os passara à própria filha. Quantas mulheres de dezessete anos eram capazes de ler e fazer contas? Sim, ela se lembrou, e quantos bons fazendeiros precisavam de uma esposa capaz de ler o nome de todas as ervas e mais algumas palavras, além disso. David Lavender precisava de uma mulher forte e trabalhadeira, e fora por isso que pagara. Toda sua vida ela ouvira a mãe dizer que uma dívida era algo vergonhoso. Dever um favor em troca de outro, no entanto, não era uma desonra. Muitas vezes ela tomara conta dos animais de um vizinho, enquanto ele ia ao mercado, em troca do conserto de um portão ou algo semelhante. Mas dever dinheiro era vergonhoso. Uma dívida desse tipo tinha de ser paga, nem que levasse a vida inteira, e ela podia oferecer uma vida ao homem que comprara sua passagem para a liberdade. — Ei, vocês do MaIjnson! Onde eu deixo essa carga? —gritou uma voz rude, do alto da carroça. — Traga a bordo! Elas vão ficar entre o convés e o resto dos vermes. — Cês ouviram, madamas. Levantem a... — Tira essas mão suja de mim, seu rato nojento — Sudie rosnou, puxando as saias imundas para o lado, quando o carroceiro tentou fazer com que descessem mais depressa. As pernas de Bridget, enrijecidas pela imobilidade, quase se dobraram quando ela pisou nos degraus pouco firmes. Apertando o avental rasgado de encontro a si, como se fosse um xale, ela se apressou a seguir as outras, na prancha de embarque. Em torno, homens corriam de uma lado para o outro, jogando cestas a bordo do navio e xingando quem se intrometesse no caminho. Depois de meses na eterna penumbra de Newgate, o sol brilhante era de cegar. Os olhos dela lacrimejaram e o cheiro de peixe, conservado em sal, fez seu estômago roncar de fome. Quando Bridget chegou ao fim da prancha de embarque, um marinheiro fortão adiantou-se, bloqueando seu caminho. Tinha os olhos pequenos e injetados de sangue e a examinou de um jeito que lhe causou arrepios.


— Já viram o que temô aqui, minha gente? Meio magra mas acho que dá para dividir minha rede com ela. O marinheiro agarrou o braço de Bridget, no momento em que ela já ia caindo na água horrivelmente suja, lá embaixo. Ela procurou se libertar, mas não era páreo para aquela força bestial. Em desespero, enterrou as unhas na mão dele e chutou-o na canela. O marinheiro deu um grito, mas não a soltou. — Ai! Essa tem garra de gavião e casco de boi! Por perto, alguém riu. Um velho marinheiro, de cabelos grisalhos, calça de lona e camisa listrada, avançou para eles, de cara fechada. Vagamente, Bridget percebeu que os passageiros que ainda estavam no convés tinham parado para observar a cena. Por que um deles não a ajudava? — Por favor — pediu, retorcendo o corpo na tentativa de se livrar daquele selvagem. O hálito do sujeito revirava seu estômago, e ela olhou para o outro lado. O marinheiro, então, agarrou seu queixo, fazendo com que o encarasse novamente. — Vamo lá, belezinha! Me dá um beijo, que eu divido minha rede com você. Num dá pra fazê mais que isso, dá, minha gente? Um grito de aprovação partiu dos outros marinheiros. Bridget, o pânico transformando-se em fúria, desceu as unhas, sem piedade, por um dos lados do rosto odioso. A pele dura partiu-se, e ela sentiu o sangue quente molhar as pontas de seus dedos. O marinheiro soltou um urro de dor. Num movimento rápido, agarrou-a pelos cabelos e deu-lhe um safanão, voltando o rosto dela para cima. — Cê vai morre por isso, sua vagabunda! Ele a empurrou para longe, com toda violência, e ela recuou aos tropeções, agarrando o ar, na tentativa de se salvar. Sem fôlego devido ao impacto da queda, Bridget fitou seu agressor por entre os cabelos cor de mel, os olhos cinzentos arregalados de terror. A expressão do marinheiro mudou. Sua boca larga abriu-se, e os olhinhos quase saltaram das órbitas. — Uma bruxa! Ela é uma bruxa nojenta! — De uma palidez acinzentada, ele fez o sinal da cruz e apontou para a testa dela. — Olha a marca! Acima e abaixo deles, o barulho cessou subitamente. Até as gaivotas que voavam em círculos sobre o navio, gritando, se calaram.


— Dougal, que foi que cê fez, dessa vez? — Era o imediato, o homem grisalho que viera da proa. Ele examinou as marcas no rosto do marinheiro, com ar de menosprezo. — Parece que a moça num é a única marcada, aqui. -Eu num vô pro mar com uma sujeita dessas a bordo, Tooly. Ela é uma bruxa! — Com a manga imunda, Dougal enxugou o sangue dos arranhões. Tooly juntou as sobrancelhas grossas e grisalhas, numa expressão feroz. — Cê vai fazê o que eu mandá, senão começa a viagem amarrado no alto do mastro principal. Acabe de embarca as cestas, antes da maré virá. Anda! — Voltando-se para Bridget, o imediato procurou moderar seu ar amedrontador. — Vai pra baixo, mocinha, senão o capitão desce o chicote nas suas e nas minhas costas. Ele num é homem de muita paciência. Bridget, fraca devido aos meses de má alimentação, tentou ficar em pé nas tábuas estreitas que corriam ao longo do convés, mas teria caído se o velho marinheiro não tivesse se movido com rapidez. O braço passado em volta de sua cintura, ele a ajudou a descer para o apertado alojamento dos passageiros. Rostos espreitavam da penumbra, ao longo do caminho e vozes silenciavam quando eles se aproximavam. Os braços de Tooly eram da largura da coxa normal de um homem e davam a impressão de uma força tremenda. Um homem, mais corajoso que os outros, saiu das sombras para impedir a passagem dos dois. — Num queremo bruxa no meio da gente — declarou, apoiado por um coro de murmúrios. — Vai sê o nosso fim, se o Mallison levantá âncora com ela a bordo. Bridget aprendeu, então, que apesar de seu físico avantajado a verdadeira força de Tooly era outra. O imediato encarou o marinheiro por um longo momento, depois passou por ele como se ali não houvesse ninguém. — Ninguém vai te machucá, mocinha, eu prometo — Tooly disse baixinho, entregando-lhe o avental que caíra no convés, durante a cena com Dougal. — Seu lugar é aqui, junto do canhão. Pelo menos vai tê um pouco de ar fresco, apesar do frio que entra pela abertura. Mas ainda vai me agradecê. Sean Dooly, que era chamado de Tooly há tanto tempo que já aceitava esse apelido como nome, voltou por onde viera, jurando a si mesmo que acabaria com a vida de quem se atrevesse a encostar um dedo nela. Talvez aquilo fosse consequência de ter ficado no mar muito tempo, mas bastara um olhar para aquele rostinho apavorado, de grandes olhos cinzentos, para que amolecesse por inteiro. Seria difícil ela chegar a ver as colônias, com gente como Dougal por perto, mas ele faria o possível para que isso acontecesse. — Joga ela no mar, ela é maldita! — alguém gritou, atrás dele.


Tooly apertou os lábios e virou-se devagarinho, os olhos, parecendo os de um animal selvagem, enxergando muito bem na penumbra do local. — A maldição tá na sua cabeça, seu monte de lixo — disse baixinho. — Eu mando cês todos pro fundo do mar, seus fedorentos, se erguerem a vista pra ela! Tá entendido? Houve alguns murmúrios de descontentamento, mas ninguém teve coragem de protestar. Do canto mais distante do espaço apertado, Bridget observou seu salvador se afastar. Encolhendo-se o máximo possível, passou os braços em volta dos joelhos e olhou em torno, procurando ver o efeito exercido pelas palavras dele sobre os outros passageiros. Estava tão desanimada e assustada que quase desejou ter ido se encontrar com a mãe e Meggy. Estava exausta demais para continuar lutando. Sua esperança renascera dias e, antes que pudesse criar asas, havia se encolhido novamente em seu peito. Uma gota de suor desceu por entre seus seios. O calor era sufocante no convés inferior. Sua cabeça latejava e ela estava louca de sede. Física e emocionalmente arrasada, Bridget apoiou a cabeça nos joelhos e adormeceu. Como um pássaro liberto da gaiola, o Andrew C. Mallinson começou a navegar. Metros e metros de pesada lona enfurnaram-se ao vento quando ele partiu para Plymouth, a última parada antes de saírem para mar aberto. Bridget dormiu pesadamente, um sono entremeado de sonhos inquietantes. O rosto de um homem surgiu em sua mente, mas desapareceu antes que pudesse vê-lo com clareza. Restou-lhe apenas a imagem de um céu escuro, cheio de enormes pássaros brancos e dois olhos dourados, que tinham um estranho poder de atração. Se o céu escuro era passado, então os pássaros brancos representavam sua liberdade, as velas brancas enfurnadas lá em cima e que a levariam para longe dali. Mas os olhos dourados? Bridget franziu a testa, pensando no significado dos olhos. O sujeito que fora buscá-las em Newgate tinha falado em ouro, e uma das mulheres na carroça também. Mas que importância tinha aquilo? Sonhos eram apenas sonhos, e sonhar com ouro não queria dizer riqueza. Até o contrário, na realidade, pois dourada era a cor do tabaco que David pagara por sua passagem. Nunca alguém da família Bridget devera uma soma tão grande. Ela levaria a vida inteira para pagá-la. Empurrando os cabelos para o lado, Bridget sentou-se e olhou em volta. Devia haver mais de cem pessoas aglomeradas como porcos num espaço pouco maior que o de três carroças. Os outros passageiros, apesar disso, mantinham uma certa distância dela, provavelmente com medo de sua bruxaria. Ou das palavras de Tooly. Sudie estava perto, a pele pálida do rosto parecendo mais esticada do que nunca sobre as feições agudas. Obviamente o ar marinho não lhe fazia bem. Bridget sorriu, divertida, pela primeira vez em muitos dias. A vantagem de Sudie era ter um par de olhos escuros, que não perdiam nada, e um raciocínio rápido, que não desperdiçava oportunidades. Suas roupas, adquiridas por meios ilícitos, tinham sido boas, e ela as usava habilmente, como prova de sua origem abastada. Nos dias que se seguiram, não perdeu tempo em estabelecer uma hierarquia no convés de baixo. Os


passageiros pagantes, entre os quais ela se incluía, por razões das quais Bridget não fazia a menor ideia, estavam muito acima dos que iam cumprir pena de alguns anos nas colônias, e estes, muito acima dos prisioneiros comuns. Todos, eles olhavam de cima para Bridget. O mau tempo começou alguns dias depois de o navio deixar Plymouth. Com o ar cada vez mais fétido, devido aos vômitos constantes dos que enjoavam Bridget logo descobriu por que Tooly lhe dera o lugar junto ao canhão. Ela não demorou a se acostumar com o barulho das redes rangendo, das pessoas vomitando, dos gemidos, orações e referências ocasionais ao fato de terem uma bruxa a bordo. No convés, era melhor. Tooly arranjou-lhe um lugar longe do caminho dos outros, protegido por várias cestas de peixe salgado, que haviam subido depois do resto da carga ter sido acomodada. As cestas estavam amarradas aos mastros e davam a ela um cantinho particular. Bridget aprendeu a amar a violência do mar, os borrifos salgados e o ranger dos mastros, que suportavam uma verdadeira montanha de lonas úmidas. Mastros que tinham um diâmetro duas vezes maior que o de seu corpo, mas que pareciam a ponto de quebrar sob tanto peso. Ela ouvia pedaços das canções dos marinheiros, que trabalhavam duro, e de vez em quando boatos e histórias de aventuras que faziam sua pele se arrepiar. — É, os selvagens são um bando mau, memo. Cê ouviu faláa do homê que eles esfolaro vivo e depois tocaram fogo? Bridget estremeceu, contente por estar a caminho de um lugar mais civilizado. — Têm as faca mais afiada que já vi, e me contaram que eles cortam fora as bola de... Felizmente, um berro do imediato fez o narrador correr para o mastro, enquanto seu companheiro se dirigia a uma corda meio solta. Logo depois que o navio partira, Tooly cortara os cabelos de Bridget com uma faca, de modo que eles agora caíam numa franja macia sobre a testa, escondendo a marca vergonhosa. Ela ficara emocionada com a atitude dele, embora isso pouco a ajudasse, pois todos sabiam que a marca estava lá. O fato de terem permitido que deixasse Londres, em vez de a mandarem para a forca ou a fogueira, pouco dizia a favor de sua inocência, já que Sudie estava lá para falar de favores comprados e pagos. Um dia, quando descobriram que a comida de bordo estava estragada, Tooly teve de ir tirá-la apressadamente do convés de baixo e escondê-la no castelo de proa, entre toneladas de lonas cheirando a mofo, até o falatório cessar. Menos de uma semana depois, foi aberto um novo barril de água e descobriu-se que estava salobra. Todos os olhares se voltaram para Bridget, alguns acusadores, outros meramente curiosos. Provavelmente foi o fato de ela ter ficado tão doente quanto o resto com a carne rançosa, ter engasgado como os outros com a água e ter adquirido o hábito de bater com seus biscoitos na madeira antes de comê-los, para tirar os gorgulhos, que ajudou a salvá-la. Fosse qual fosse o motivo,


apesar dos esforços constantes de Sudie para prejudicá-la, muita gente deixou de manter Bridget a distância. Naturalmente, alguns, como a jovem Tess, nunca tinham feito isso. — Ela está com ciúme — declarou a mocinha. — Eu conheço esse tipo de gente. — Que bobagem, Tess! Eu não tenho nada de que possam ter ciúme. — Bridget sorriu achando a idéia altamente improvável. — Pode sê, por enquanto, mas Sudie ouviu um home que andô nas colônia, dois anos atrás: conta que o homê dela mora num lugar bem longe, cheio de selvagem assassino. — Hoje em dia não devem mais existir selvagens nas colônias, Tess. Com os olhos vesgos brilhando de ansiedade, a mocinha discordou. — Existe, sim, dona Bridget. Pelo menos, do lado de fora das cidade e aldeia eles existe. É uma gente má, com facas, marreta e o coração mais negro que alguém já viu! — Mas Albemarde... — Albemarde é um lugar bom, com um mercado e uma terra tão rica que nem precisa de adubo — disse Tess, com a autoridade de uma pessoa que tinha acesso a todos os boatos que circulavam pelo navio. — Se o fazendeiro é de Albemarde, a senhora não tem de se preocupa com nada, a não sê com a idéia de Sudie rouba o seu homê. Essa era a última das preocupações de Bridget. Ela assinara seu nome ao lado do de David Lavender, em vez de simplesmente colocar uma marca, como as outras mulheres tinham feito. O capitão tinha o documento, e os fazendeiros estariam lá para recebê-las, quando desembarcassem. A viagem estava quase no fim. Tinham passado pela pior das tempestades sem perder muita lona ou serem muito afastados de seu curso, embora Tooly tivesse dito qualquer coisa sobre um perigoso banco de areia, que se erguia do mar para barrar o caminho dos incautos, e pelo qual ainda teriam de cruzar. Mas não, seus dias de sorte afinal tinham chegado, Bridget disse a si mesma. Se ela conseguisse sobreviver à comida horrível de bordo por mais alguns dias, logo começaria sua nova vida.

CAPITULO III

Croatoan


Kinnahauk tomou consciência da presença de Lontra Cinzenta muito antes de sentir o leve toque na parte de trás de sua coxa. Ele ouvira os passos mansos e sentira o cheiro adocicado do óleo de rato almiscarado, que ela costumava esfregar na pele. Não ficou contente por têla ali. Havia procurado aquele lugar para ficar só. Nos velhos dias, nem o mais bravo guerreiro teria coragem de interromper a solidão de Kinnahauk, chefe do Povo Hatorask de Croatoan. Que uma mulher fizesse cócegas em sua coxa com um pedaço de grama, por baixo da parte traseira da tanga, mostrava o quanto o mundo havia mudado, desde a chegada dos olhos brancos. Seu povo já enchera duas cidades na ilha de Croatoan. Agora, mal podiam encher uma. Muitos entre seus irmãos Paspatank, Poteskeet e Yeopim usavam as roupas dos olhos brancos e copiavam os modos tolos deles. Seu povo não fazia isso, mas seu número vinha diminuindo constantemente, devido às doenças trazidas pelo homem branco. Dos que tinham escapado das doenças, muitos haviam ficado loucos devido à bebida chamada uísque, até Paquiwok proibir seu povo de se misturar com o homem branco. Paquiwok também deixara de dar as boas-vindas aos visitantes de olhos brancos nas praias de Croatoan, mas não a tempo de se salvar da doença fatal que eles traziam. Kinnahauk era muito jovem, nessa ocasião. A onda branca que acabara com seus melhores campos de caça no continente ainda não acontecera. Ao se tornar chefe, ele tentara fazer com que seu povo conservasse os velhos costumes, porém uma pessoa não pode nadar contra a maré para sempre. Nunca, desde que tinham vindo da Terra onde o Sol Dorme, no Tempo Antes dos Avós, para construir seus oukes nas areias de Croatoan, entre as duas águas, os Hatorask tinham sido tão ameaçados. Muitas vezes o Grande Espírito testara sua coragem, fazendo as águas invadirem a terra até só restarem descobertos os topos das colinas mais altas, no entanto eles não haviam fraquejado. Muitas vezes, Ele soprara com seu hálito frio as águas, fazendo com que endurecesse até um homem poder andar onde os peixes nadavam, e eles tinham sobrevivido. Ele mandara ventos fortes para derrubar o milho, chuvas para enterrá-lo no chão e areia para cobrir o lugar onde um dia estivera. Mesmo assim, seu povo não tinha morrido de fome, pois Ele mandara também os peixes do mar, os animais da floresta e os pássaros que enchiam o céu de tal maneira que muitas vezes era impossível ver o rosto do sol. Os olhos brancos tinham vindo depois, em suas canoas aladas, para tomar os peixes e os pássaros e com eles alimentar seu próprio povo. Tinham queimado até o chão os campos de caça, e construído muros em volta deles. Também tinham desenterrado as sementes escondidas para a próxima Lua de Plantio e assustado para longe os pássaros que haviam restado, com seus barulhentos paus de trovão. Kinnahauk desprezava os olhos brancos. A honra fizera com que seu povo viesse para aquele lugar, no Tempo Antes dos Avós, para esperar achegada dos homens do outro lado da Grande Água, mas a profecia dos antigos fora cumprida.


Enquanto Kinnahauk olhava para a terra do outro lado do Mar Interior, que os olhos brancos diziam ser deles, seu rosto nada traía seus pensamentos. Seus olhos dourados, olhos pálidos, que eram a herança que lhe deixara uma moça inglesa, cem anos atrás, brilharam ferozmente. Mas o brilho logo se extinguiu. Ele estava cheio de problemas. Muitos de seu povo viviam do outro lado do Mar Interior, em vilas espalhadas pelo continente. Durante muitos anos, tinham querido um werowance próprio. Todas as vezes que Kinnahauk se juntava aos outros chefes, no topo do conselho, um deles aparecia para lhe pedir que deixasse Croatoan a cada Lua da Canção e ficasse com os Hatorask do continente, até a Lua das Folhas Caídas. De novo Kinnahauk sentiu a carícia da haste de grama em sua perna nua e, com uma exclamação de aborrecimento, voltou a atenção para o outro problema que o vinha pressionando muito, ultimamente. Lontra Cinzenta era muito audaciosa, tinha modos que não ficavam bem numa garota daquela idade. Seu amigo Kokom teria as mãos cheias quando finalmente a levasse para a tenda dela. — Você nunca se cansa dessas brincadeiras infantis, Lontra Cinzenta? — As brincadeiras que quero fazer com você não são infantis, Kinnahauk. Doce Água já está perdendo a paciência com um filho que só olha para o mar e pensa nos cruéis olhos brancos, quando deveria estar fazendo muitos quasis fortes, para seguirem seus passos. Um dia nosso povo vai precisar de outro werowance para seu líder. Quando os olhos brancos forem embora, os Hatorask serão fortes, de novo. Os olhos brancos não iriam embora. Kinnahauk Hatorask sentia a verdade em seus ossos, mas deixou-se enganar por um momento. Fitando a mulher alta e bonita com ar severo, disse: — Você é quem devia estar fazendo bebês, mulher, pois não é mais criança. Logo seu cabelo ficará branco, e as costas, curvadas pelo peso dos anos. Quem aquecerá, então, o seu tapete de dormir, quando a Lua Fria se levantar por cima do seu ouke? Apoiando o corpo esbelto no tronco de uma árvore, Lontra Cinzenta sorriu com malícia, os olhos negros brilhando. — Talvez você se arraste até a minha pobre tenda, se seus ossos cansados deixarem, Kinnahauk. Afinal, se eu esperei muito, você também esperou comigo. — Com você, mulher, mas não por você. Você tem feito Kokom de bobo, todos esses anos. Já é tempo de pôr um fim à infelicidade dele. — Kokom é um tolo. Ele se considera o sonho das moças e quer ter todas. Não quero um tolo para companheiro. Kinnahauk sabe que eu seria melhor esposa para um chefe, do que qualquer das outras moças. E se quiser saber até que ponto eu seria melhor é só me levar


para o seu tapete de dormir, esta noite. — Ondulando os quadris com a intenção de excitálo, Lontra Cinzenta se afastou. Kinnahauk não conteve um suspiro. Ela tinha razão. Ele havia esperado muito e provavelmente esperaria mais. Procurara três visões, em sua vida, e recebera duas. Na primeira, vira o céu coberto pelas asas de muitos gansos selvagens brancos. Eles tinham seguido ao longo da praia e depois virado na direção do lugar onde o sol dormia. Sob o céu, a Grande Águia estava cheia de asas brancas, e estas também seguiam o caminho do sol. Dessa visão, ele havia tirado seu nome, Kinnahauk, conhecido pelo sinal do ganso selvagem branco. Fora seu próprio pai, Paquiwok, que gravara, à faca, o símbolo no alto de seu peito. Mas fora ele quem o pintara em seu primeiro escudo infantil e nos flancos do primeiro pónei que tivera. O sonho voltara muitas vezes, desde então, trazendo junto uma intensa sensação de tristeza, que ele ainda não conseguira entender. Mesmo assim, sabia que a visão era verdadeira, e que quando tivesse sabedoria suficiente o Grande Kishalamaquon abriria sua mente. A segunda visão era a que mais o preocupava, ultimamente, pois era um homem, e as necessidades de um homem são fortes. Sem dúvida, sua hora chegaria. Não era possível que estivesse condenado a arder para sempre, desperdiçando sua semente em solo estéril. Havia moças, tanto ali quanto entre seus amigos do outro lado do Mar Interior, que o recebiam de braços abertos em suas tendas e tapetes de dormir, pois ele mostrara, desde cedo, muita habilidade naquele jogo. Lontra Cinzenta também estava pronta a ir para sua tenda, mas algo, em seu íntimo, não aceitava que aquilo acontecesse. A Voz que Fala Silenciosamente sussurrara que eles eram muito iguais, de muitos modos, pois ambos eram audaciosos e de gênio forte, mas em outras coisas eles eram muito diferentes. Além disso, tinham a mesma idade e seu amigo Kokom há muito desejava Lontra Cinzenta para si. Em seu coração, Kinnahauk sabia que estava esperando por algo mais. Já poderia ter escolhido uma primeira esposa e tornado a espera mais confortável, mas não o fizera. Cada vez que as folhas caíam e os gritos dos gansos selvagens enchiam o céu, ele pensava na promessa ouvida tanto tempo atrás e sentia o sangue esquentar. Um dia, sua companheira viria ao seu encontro. Seria linda, essa mulher especial, de olhos escuros como o fruto do carvalho e cabelos brilhantes como as asas do melro. Havia muitas mulheres assim entre os Poteskeets e os Paspatanks, e uma viúva entre os Yeopim, que tinha dividido seus tapetes de dormir com ele, depois de muitos fogos de conselho. Mas sua oquio seria mais linda que qualquer uma delas. Ele pagaria o preço de noiva que o pai dela pedisse, e depois lhe ofereceria a prova de sua sinceridade: sua braçadeira a um broto da árvore yawaurra. Ele a levaria para o coração da floresta, bem no cume da Grande Serra, e lá ergueria para ela uma tenda de peles, que forraria com a pele macia de lobos vermelhos. Ele também lhe diria palavras doces, pois as mulheres cediam às palavras suaves


como cediam a um toque gentil. Muitas vezes ele provaria seu valor como homem, com o rugido da Grande Água e a canção do vento para encobrir os gritos de êxtase dela. Kinnahauk conhecia o próprio valor. Caçador poderoso, ele sabia como funcionava a mente de sua presa. Hábil entre os melhores pescadores, reconhecia, instintivamente, os melhores lugares para fazer seus diques. Como homem, era muito procurado pelas moças de muitas aldeias, pois conhecia bem os segredos de um corpo de mulher. Sua oquio seria invejada por muitas, pois não era ele o chefe de um grande povo, além de bravo guerreiro? Ela seria jovem, a moça que carregava sua marca, e sem conhecimento do que acontece entre um homem e uma mulher. Ele teria grande prazer em ensinar a ela como agradá-lo, enfeitandolhe os cabelos cor de meia-noite com botões cheirosos de flor e esfregando-lhe a pele morena com os melhores óleos, sempre dando uma atenção especial àquelas partes que fazem uma mulher se retorcer, em êxtase. Logo, ela estaria implorando a ele para que a tomasse e pusesse fim ao delicioso tormento. — Durma agora, minha prometida, pois é tarde — ele sussurraria, em sua primeira noite juntos. — Talvez eu a leve mais adiante nesse caminho, depois que tivermos descansado bem. Ele não seria dominado por seu ímpeto masculino, como tantos homens de sua idade eram. Desde o começo, mostraria a ela que tinha controle sobre o arco e a flecha e sobre si mesmo. Um bando de gansos selvagens brancos passou acima de sua cabeça, a caminho de Chicanacomick, do norte, e Kinnahauk respirou fundo. Aquele bravo caçador e poderoso werowance faria bem em deixar de desperdiçar tempo e sair atrás de carne para a tenda de sua mãe, pois todos os sinais eram de que o inverno seria severo. Eles precisavam se preparar bem para os meses que viriam, se não quisessem passar fome. Bridget acordou com um sol forte batendo em suas pálpebras, a água fria lambendo seus pés e a estranha sensação de estar sendo observada. Apertando os olhos com força, ela lutou para não recuperar a consciência, pois com isso viria a dor. Mas não era possível ignorar a dor incrível em todo seu corpo, nem a agonia que era respirar. Sua garganta parecia estar em fogo, e alguém apertara demais o corpete de seu vestido. Enquanto as ondas famintas lambiam suas pernas, ela se forçou a pensar na sequência de acontecimentos que a tinham trazido àquela praia. Lembrava-se de ter ouvido o grito do vigia de "Terra à vista!", depois que a tempestade repentina havia amainado, e de ter sido praticamente pisoteada por seus companheiros de viagem, que subiam correndo para olhar sua nova terra. Lembrava-se dos empurrões e puxões dos que ainda tinham força suficiente, dos gritos e palavrões dos que estavam enfraquecidos por semanas intermináveis de doença. Devido ao conselho de seu amigo Tooly, para que se mantivesse longe dos outros passageiros sempre que possível, ela ficara para trás. Só subira depois da excitação inicial


ter passado, caminhando cuidadosamente até a amurada, pois o mar ainda estava bravo e o convés, molhado e escorregadio. A tempestade surgira sem aviso, pegando a todos de surpresa. — Onde? — gritava uma voz, na multidão. — Não vejo nada, nesse mar infernal! — Lá adiante, aquela mancha escura, no horizonte. É Albemarle, graças a Deus! Estamos salvos. — É só outro daqueles maldito recife e banco de areia — resmungara o homem, menos otimista que os demais. — Me mostre uma torre de igreja, que eu mostro uma cidade, mas não um desses pedaços de alga. — Adam tá certo, é só ilusão. llusão criada por uma bruxa, pois o capitão num disse que a tempestade tinha tirado a gente do caminho certo? Bridget não ligara. Durante as últimas semanas tinha ouvido tantas ameaças e acusações que se acostumara. Quando desembarcasse em Albemarle, deixaria aquela gente horrível para trás, de uma vez por todas. Estava cansada de ser tratada como pária, sem ter culpa de nada. Tess e Tooly eram as únicas pessoas que valiam mais que um grão de sal naquele maldito navio. Encostando-se à amurada, ela protegera de olhos contra o sol do fim de outubro, que há pouco conseguira romper a barreira das nuvens. Uma nova terra. Uma nova vida, um novo lar. Até mesmo um novo nome. Bridget Lavender. Soava bem. Bridget virou a cabeça para o lado, abismada com a lembrança de ter realmente pensado essa tolice, quando estava encostada à amurada do navio. — Cuidado com os recifes! — o vigia gritara de seu ponto vantajoso, no alto do cordame, exatamente quando alguém dava um encontrão nela. Tudo parecia ter acontecido ao mesmo tempo: os gritos apavorados, quando os passageiros sentiram o fundo do navio bater; o barulho, quando o topo de um mastro quebrou, emaranhando velas e cordame ao cair e o aperto causado pelos corpos quentes e fedidos em volta dela. Algo a atingira com força, no meio das costas, e em seguida ela se vira voando, por cima da amurada. Os palavrões de Tooly encheram o ar, um instante antes da água se fechar sobre sua cabeça. — Guenta firme, menina! Agarre na beirada e num solte o barril. Ele vai levá você pra praia, se num perdê a cabeça. Algo caíra no mar, jogando água para os lados, e cegamente ela estendera os braços naquela direção. Sem saber como, conseguira agarrar o barril. Ele cheirava a peixe salgado, e vagamente ela percebera que era o sal que o fazia continuar à tona, apesar do peso de suas


roupas molhadas. Com toda a força que lhe restava, agarrara-se á ele. Engolindo metade do mar, enquanto uma onda atrás da outra a levava na direção da praia, finalmente foi jogada, mais morta do que viva, num banco de areia. Mais uma vez, Bridget foi tomada pela sensação de estar sendo observada. O navio tinha naufragado, então? Os outros haviam chegado à praia? Será que estavam planejando queimá-la como bruxa, já que não fizera o favor de morrer afogada? De qualquer maneira, estaria morta de frio ao anoitecer, se não arranjasse abrigo depressa. Algo tocou sua testa, empurrando seus cabelos para trás, e ela enrijeceu. Foi um toque tão leve que poderia até ter sido criado por sua imaginação. Mantendo os olhos fechados, resolveu fingir que estava inconsciente. Talvez assim seu atormentador achasse que estava morta e a deixasse em paz. — Ungh! O grunhido de incredulidade parecia vir de muito acima de sua cabeça. Cuidadosamente, pois a claridade do sol era muito forte, ela abriu um pouquinho dos olhos. A princípio, viu apenas uma sombra. Um dos marinheiros, talvez, procurando tirar vantagem da situação, mesmo correndo o risco de ser amaldiçoado por uma bruxa? Ergueu a mão para empurrá-lo e levou um choque ao perceber a lentidão com que seus membros obedeciam à ordem de sua mente. Com muito esforço conseguiu abrir o outro olho, pois suas pálpebras pareciam pregadas. Apesar de o sol brilhar com uma força que poucas vezes vira, estava a ponto de morrer de frio. Com os olhos ardendo devido ao sal, ela espiou por entre a cortina de cílios castanhos, endurecidos pela areia. A primeira coisa que chamou a atenção foi o brilho de metal. Uma lâmina de algum tipo e algo mais: uma fita de cobre, em volta de um braço nu. Ela piscou para clarear a visão, procurando dar sentido ao que via. Um joelho? Não era o primeiro joelho que via, mas nunca vira um como aquele. Surpreendentemente bem feito, ficava no meio de uma perna longa e musculosa, que brilhava como madeira polida, sob o sol impiedoso. Então seus sentidos clarearam e seu coração começou a bater forte. Deus do céu, caíra nas mãos de um daqueles selvagens sem Deus, que se divertiam torturando os cativos até a morte! Pela primeira vez, desde que vira a mãe ser assassinada diante dos próprios olhos, fragmentos de orações surgiram em sua mente. Seria possível que tivesse pensado em desistir? Nunca! Não enquanto tivesse forças para respirar e inteligência suficiente para pensar em um modo de escapar daquele selvagem nu. Fizera um longo caminho e surportara muitas coisas para ser derrotada exatamente no dia de sua libertação! Antes que ele pudesse cortar sua garganta com aquela lâmina ameaçadora, Bridget se sentou. Sua cabeça latejou de dor, mas ela ignorou-a. O aborígine se assustou com seu movimento súbito, pois recuou um passo; e ela tirou vantagem disso para rolar sobre os joelhos e mãos. Uma espuma branca girava em torno de suas mãos. Não era de admirar que estivesse a ponto de congelar. Continuava em parte dentro do mar e o vento, soprando sobre seu corpo molhado, era de deixá-la gelada até os ossos. O selvagem começou a rodeá-la como um cachorro do mato em volta de um bezerro ferido, o corpo alto e esbelto


brilhando ao sol. Contra a luz, ela não podia distinguir as feições dele, mas não tinha dúvidas de que eram ferozes com uma pintura horrorosa e dentes afiados para rasgar a carne dos inimigos. Ah, sim, ela ouvira as histórias, embora nunca sonhasse que um dia poderia ter a sua própria história para contar. Se conseguisse sobreviver para isso, é claro. Cautelosamente, Bridget fitou o selvagem. Com a mesma cautela, ele retribuiu o olhar. Kinnahauk estava atrás de um enorme gamo há horas, quando algo assustou sua presa. Espetando as orelhas no ar, a criatura ergueu a cabeça e olhou na direção da praia, antes de desaparecer, de um salto, em meio à densa floresta. Em vez de seguir o gamo, Kinnahauk voltou-se para a praia, curioso para saber o que havia assustado o animal. Seus próprios ouvidos, apesar de serem bem treinados, nada haviam percebido. Rapidamente, ele se moveu entre os cedros batidos pelo vento, que pontilhavam o terreno plano entre a Grande Serra e a linha de dunas que continham a Grande Água, pesquisando o horizonte com os atentos olhos dourados. Muito acima de sua cabeça, o grito lamentoso de um grande ganso selvagem ergueu-se, abafando a voz profunda do mar. Kinnahauk corria a passos longos e tranquilos, os mocassins de pele de urso protegendo-o das plantas espinhosas no chão. Saltou com facilidade o topo gramado de uma duna, os olhos ainda fixos na distância, e foi então que viu o navio inglês, com um dos mastros quebrados e as velas enfunadas pelo vento, contornando os perigosos bancos de areia. O bando de gansos selvagens, voando em formação, passou exatamente acima da cabeça, os gritos agudos ecoando em sua mente, enquanto ele contemplava, do alto da duna, o navio acidentado desaparecer no horizonte. Como em resposta a um chamado, veio a voz do passado: "Na época do ganso branco, chegará para você um oquio, vinda de uma terra do outro lado das águas. Você reconhecerá essa mulher pela marca de fogo que ela terá, na testa". Ela viera! Cheio de orgulho, ele traçou o contorno das cicatrizes, no alto de seu peito. Seus dentes fortes e brancos brilharam num sorriso raro, enquanto se preparava para ir ao encontro da companheira. De pé, no alto da duna, correu os olhos pela praia, pensando no que o esperava, e sentiu seu membro viril crescer e enrijecer. Seu garanhão, Tukkao, logo ficaria gordo e preguiçoso, pois Kinnahauk estaria cavalgando em outro lugar, durante as longas noites de inverno. Foi então que ele viu a forma escura, caída junto do mar. Rápido como o mergulho de uma gaivota, cobriu a distância até lá, diminuindo a velocidade somente ao se aproximar da coisa jogada na praia, pela maré. De imediato, seus ombros caíram e a excitação desapareceu. Mais uma vez interpretara mal os sinais, pois ali só havia uma pobre criatura afogada. Uma mulher. Uma mulher de olhos brancos. Ele pediria ao Grande Espírito para oferecer uma oração aos deuses dela, antes de enterrá-la, pois ela não tinha ninguém


para cantar sua Canção de Lamento. Kinnahauk inclinou-se para tirá-la da água, e ela rolou de costas, um braço pálido jogado sobre a cabeça. Ele franziu a testa e recuou um passo, exatamente quando um dedo brincalhão do vento levantava os cabelos do rosto dela. Seus olhos abriram-se desmesuradamente, incrédulos. A marca de fogo? Não! Não podia ser. Ela era inglesa, com a pele da cor de caranguejo cozido e pintada como ovo de carriça. E os cabelos dela mais pareciam a grama morta de inverno do que as asas brilhantes do melro. Alta e bonita? Ela não tinha carne suficiente nem para cobrir os malditos ossos. Na verdade, ele nunca vira uma criatura tão digna de pena. Sua oquio? Ele interpretara mal os sinais. Talvez até tivesse interpretado erroneamente sua visão, anos atrás. Em sua ansiedade juvenil, devia ter confundido o grito de uma ave com a voz do Grande Kishalamaqúon. No entanto, a marca na testa da mulher era a sua. Usando a ponta da faca, ele levantou os cabelos cor de grama seca, enquanto ela o fitava, aterrorizada. Com toda atenção, estudou a marca, depois tocou a cicatriz em seu próprio peito. Ambas eram o símbolo do ganso branco selvagem. Eram igualzinhas. A mulher de olhos brancos carregava a marca feminina; Kinnahauk, a marca masculina. Obviamente, tinham sido feitas para se completar, como a mulher fora feita para completar o homem. Apertando os punhos com toda força, ele ergueu os olhos para o céu, que começava a escurecer. Como poderia uma criatura daquelas ser a mãe de seus filhos? Sua semente provavelmente nem viria à tona, por uma mulher como ela.

CAPÍTULO IV

A mente de Bridget trabalhava febrilmente. Atrapalhada pelo peso de suas roupas molhadas, ela não poderia fugir dele, mas não tinha a menor intenção de ficar parada onde estava, enquanto ele decidia que parte de seu corpo arrancar primeiro. Precisaria de toda sua força para se levantar, mas seu orgulho não permitiria que rastejasse como um cachorro na frente de qualquer homem, muito menos de um selvagem, será Deus? Já enfrentara a morte e até pior durante aquele ano, além de se sentir impotente para salvar a si mesma e


aos que amava. Tinha muito pouco a perder, no momento. Esse pensamento libertou-a. A dor em sua cabeça não era nada, e os temores que abalavam seu corpo, menos ainda. Ardendo com a febre da determinação, ela se levantou, sem ter noção de que balançava como um bambu fino ao vento. — Não tenho medo de você — declarou, achando que sua voz soava firme e corajosa, quando na Verdade não passava de um sussurro. — Sei de tudo que costumam fazer aos seus cativos. — Foi interrompida por uma tosse seca, mas prosseguiu assim que recuperou o fôlego. — Estou avisando: se encostar um dedo em mim, David Lavender vai caçar você como o animal que é, e aí... — Sehe! — rosnou o selvagem. Bridget gelou. — Não fale comigo nessa língua de selvagem! Não tenho a menor intenção de... Ela foi tomada por outro ataque de tosse e agarrou a garganta com as duas mãos, morrendo, de medo que todos os músculos se arrebentassem. — Calma, oquio. Você não sabe de nada. Não fale mais. - Bridget fitou-o, boquiaberta. Estava sonhando. Só podia estar, pois selvagens não falavam sua língua, muito menos com tanta arrogância, mantendo as cabeças erguidas com o mesmo orgulho de um lord. — Que lugar é este? Preciso ir a Albemarle, e o mais depressa possível! Ele despejou outra fileira de palavras naquela língua estranha, com a qual Bridget nunca vira nada parecido. Ela podia sentir a própria força fluindo para fora de seu corpo, mas aguentou firme, com medo de que, no momento em que se mostrasse vulnerável, ele avançaria como um animal feroz. Num certo ponto, abriu a boca para exigir que ele a levasse até David Lavender ou, pelo menos, lhe mostrasse o caminho, mas, antes que pudesse pronunciar uma palavra, ele estendeu a mão e tocou a marca em sua testa. — Oquio —, disse, mais uma vez. Assim, ela aprendeu sua primeira palavra na língua do selvagem. Oquio. Seria o mesmo que "bruxa"? Bridget engoliu em seco, imaginando o que os selvagens faziam com as bruxas. Não podia ser pior que o tratamento dado a elas em sua própria terra. E, se não queria saber qual era, o melhor era planejar logo sua fuga, pois o selvagem não tirava os enormes olhos dourados dela, pronto a atacar a qualquer momento. A cabeça jogada para trás, com um atrevimento que estava longe de sentir, ela deu um passo para trás. Primeiro um, depois outro, sem tirar os olhos dos dele. Seria fatal mostrar o menor sinal de medo ou fraqueza. Mais um passa para trás. O selvagem ainda não movera um único músculo e continuava com os olhos fixos em seu rosto. Que estranhos olhos ele tinha. Havia alguma coisa neles. Ela ergueu as saias


ensopadas, com um gesto impaciente. O vestido estava arruinado e os saiotes não pareciam muito melhor. Não era possível exibir um mínimo de dignidade e, pela primeira vez, em meses, isso assumia uma importância vital. Seus cabelos molhados estavam cheios de areia e pedaços de grama e seus sapatos e meias deviam ter ficado no mar. Talvez fosse melhor, mesmo, estar com uma aparência ruim. Algumas pessoas no navio tinham mencionado muitas coisas cruéis que os selvagens costumavam fazer com as mulheres que capturavam, antes de cozinhá-las vivas. Ela não tinha intenção de terminar servindo de divertimento ou festa para um selvagem nu, por mais alto e arrogante que ele fosse. Mais dois passos hesitantes afastaram Bridget um pouco mais do índio. Ela continuava a observá-lo cautelosamente, com medo de que, se desviasse os olhos por um instante, ele a atacasse. De repente, passou-lhe pela cabeça que ele não era tão odioso quanto pensara a princípio. Os dentes dele não tinham sido afiados e ele não usava um osso no nariz. Sem dúvida, as feições tinham uma força e simetria que ela vira poucas vezes entre os homens. As pernas pareciam troncos fortes de árvores novas, lisas e bem feitas e o corpo moreno parecia ser viril e limpo. Mais limpo que os corpos suados e fedidos que haviam viajado tão apertados no convés de baixo do Andrew C. Mallinson, Apesar de o inverno estar chegando, a única roupa que ele usava era um pequeno avental de couro, que lhe cobria as partes mais intimas, na frente e atrás. Surpresa, Bridget percebeu que estivera pensando nele como homem e não como um animal da floresta. Jogando os cabelos para trás, ela chegou à conclusão de que a causa só podia ser aquela dor de cabeça infernal. — Que estranho um animal parecer tão nobre, quando há homens que são verdadeiros demônios, capazes de tirar a vida de uma mulher inocente, alegando que é seu dever sagrado — Bridget murmurou, incrédula. O homem franziu a testa, como que tentando entender suas palavras roucas e ela meneou a cabeça. Seu olhar encontrou a pequena cicatriz no alto do peito dele. O formato lhe pareceu familiar, apesar de não conseguir se lembrar de já ter visto algo semelhante. Ela foi tomada por outro acesso de tosse e o selvagem estendeu as mãos, como se quisesse pegá-la. Bridget recuou depressa, quase perdendo o equilíbrio. Precisava dar um jeito para que ele fosse embora dali, pois jamais conseguiria vencê-lo, numa corrida. Mas como? Sua atenção voltou para os olhos dele. Eram da cor de um guinéu novo e brilhante, dourados como os olhos do falcão e com o mesmo tipo de luz, sempre mudando. O rosto também fazia com que se lembrasse de um falcão, com o nariz orgulhosamente aquilino e os planos angulosos das faces magras. No entanto, havia um ar gentil na boca finamente traçada. Na verdade, ele não parecia cruel, mas, para sua tristeza, Bridget aprendera que não se devia confiar em aparências. Numa subira inspiração, ela decidiu arriscar a modéstia em troca da vida.


-Desculpe, mas preciso de um momento de privacidade, atrás daquela colina, ali adiante. Se quiser esperar aqui, não vou demorar nada. -Sem desviar o olhar, ela recuou mais um passo. Depois, tomada de pânico, girou nos calcanhares e começou a correr. Não tinha coberto três metros quando tropeçou na barra desfeita do vestido. Movendo-se com uma velocidade assustadora, Kinnahauk segurou-a antes que caísse. E ignorou os punhos pequenos, que o atacavam, com a mesma facilidade com que ignorava os mosquitos que invadiam a ilha, quando o vento parava de soprar. Sua oquio! Ele podia ter levado uma mulher para a sua tenda, muitos invernos atrás. Podia ter levado três mulheres, no entanto havia esperado. Por aquilo! Dominado pela raiva e a decepção, ele a segurou com força, deixando os dedos se enterrarem nos braços magros. Só quando viu os olhos dela, embaçados pelo terror, foi tomado pela vergonha. Seria possível que não fosse melhor que um lobo faminto, para se atirar sobre um osso jogado na praia pela tempestade? Kinnahauk, werowance dos Hatorask de Croatoan, não era homem de assustar mocinhas indefesas, até o coração delas pararem de bater no peito. Com seu comportamento, ele envergonhava o sangue de seus ancestrais. Vagarosamente, ele a soltou, deixando os braços caírem ao longo do corpo. Mesmo assim ela continuou onde estava, como um pássaro preso pelo encanto de uma cobra. Deliberadamente, ele quebrou o encanto, virando a cabeça na direção dos bosques, de modo que seus olhares perdessem o contato. Mesmo sem se voltar, ele soube quando ela começou a correr. Percebeu cada passo que ela deu, enquanto corria desajeitadamente pela areia, em direção à duna mais alta. Ela deveria ter tomado o caminho entre as dunas, bem mais fácil, mas cega por seu medo tolo, não o vira, dirigindo-se à inclinação mais íngreme. Olhos brancos. Chegaria ele, um dia, a entender os modos dos olhos brancos?

Capítulo V

— Ho, waurraupa! Wintsohore! As palavras não fizeram sentido para Bridget, enquanto ela corria para as dunas. Só quando atingiu seu duvidoso santuário parou para olhar por cima do ombro, o coração batendo forte, os pulmões a ponto de estourar. Ele não fizera o menor esforço para segui-la mas ela não confiava nele, nem de longe. A lembrança daqueles estranhos olhos movendo-se por seu corpo, detendo-se na marca em sua testa, bastou para que sua pele, já arrepiada de


frio, se arrepiasse ainda mais. O que podia um selvagem saber de bruxas e marcas de bruxas? Ele que olhasse! Ele que a passasse de uma mão para a outra como um cachorrinho novo, que está sendo examinado para saber se é macho ou fêmea. Pelo menos ele não a chamaria de rebento de bruxa, como seu próprio povo fizera. Do que mesmo ele a chamara, naquela língua selvagem? Inverno qualquer coisa? Se isso queria dizer comida, ele teria de pegá-la, primeiro. Se conseguisse alcançar a floresta, poderia se esconder até ele cansar de procurar. Estranho que ele falasse sua língua, ela pensou, tropeçando ofegante na areia macia. Provavelmente frases que aprendera como um papagaio na convivência com pessoas da cidade, embora a voz dele tivesse uma ressonância que agradava aos ouvidos. Sua própria voz soara mais como o ranger de um moinho de vento, puxando água de um poço fundo. Pensando que o capim alto que crescia nas dunas a escondia, Bridget parou para recuperar o fôlego. Correu os olhos pela praia, de um lado para o outro, à procura de sinais do naufrágio ou outros sobreviventes, mas não viu nada a não ser a figura alta, parada junto à água, com a faca que usava à cintura refletindo os raios do sol poente. Se o Mallison havia mesmo afundado, outras pessoas deviam ter vindo dar à praia, trazidas pela mesma corrente que a trouxera. Talvez, se gritasse, alguém ouvisse e viesse em seu socorro. Em socorro de uma bruxa? Não era provável, ela pensou, com amargura. Se quisesse escapar da morte nas mãos dos selvagens, teria de escapar sozinha. A qualquer momento ele se cansaria daquele jogo de gato e rato. Ganhara alguma vantagem porque o pegara de surpresa, mas não poderia descansar enquanto não chegasse a uma cidade ou encontrasse um fazendeiro de passagem, que lhe desse uma carona em sua carroça. Se pelo menos ela não estivesse tão cansada e quente! Quente num momento e gelada no outro. Se o que estava sentindo era um exemplo do clima naquele lugar, na certa morreria antes de encontrar seu prometido. Sua cabeça estava a ponto de explodir e era impossível dizer o quanto ainda teria de viajar, antes de encontrar um lugar onde poderia fazer perguntas sobre o paradeiro de David Lavender. Nesse momento, o selvagem saiu atrás dela. Mais que depressa, Bridget ergueu as saias e correu para o bosque mais próximo. Que estranho, ela pensou. Apesar de sua cabeça parecer flutuar acima das árvores, seus pés se arrastavam, tropeçando em Iodos os tufos de grama. Ela não correra mais que alguns metros quando algo atingiu seu pé com uma dor tão intensa, fazendo-a cair de joelhos. Para seu horror, ela notou que estava rodeada por grandes folhas carnudas, cheias de espinhos longos e agudos. Gemendo, tentou tirar o que se enterrara na lateral de seu pé nu, mas só conseguiu que outro espetasse sua mão. O que podia fazer? Os espinhos estavam por toda parte, presos até suas saias. O de seu pé estava tão enterrado que temia não ter forças para removê-lo. Um rápido olhar mostrou-lhe que o selvagem se aproximou, num passo medido e apavorante. O demônio arrogante! Sabendo que ela estava presa nos espinhos, obviamente não via necessidade de se apressar. Com renovada determinação, Bridget puxou a planta maligna para longe de sua mão direita. O espinho ficou, e ela o retirou com os dentes, cuspindo-os no chão. Então, movendo-se com cuidado, arrastou-se em direção a uma


clareira, no meio das plantas espinhosas. Lá, removeu outro espinho da mão esquerda e vários das saias, fazendo o possível para não se espetar mais. Mesmo depois de retirados, eles deixavam uma dor ardida, como se tivessem veneno nas pontas. Seu pé doía abominavelmente. Nunca poderia correr nessas condições. Olhando por cima do ombro, cheia de nervosismo, ela viu que seu perseguidor estava cada vez mais perto, trilhando o perigoso caminho como se nada pudesse feri-lo. Com um extenso vocabulário aprendido nos últimos meses, ela xingou os ancestrais dele e jurou vingar-se dos descendentes, enquanto tentava desesperadamente arrancar o espinho enterrado em seu pé. Uma nuvem de mosquitos-pólvora desceu sobre Bridget. Ela espantou-os com a mão, impaciente, só então descobrindo que não eram mosquitos, mas manchas negras que dançavam diante de seus olhos. Estava com tanta fome! Talvez sua mãe cozinhasse os ovos que Sarah Humphrey lhe dera, assim que chegasse em casa. O único problema era que não conseguia se lembrar onde os deixara. Uma sombra caiu sobre a areia, onde ela estava sentada à moda índia, examinando o pé machucado de testa franzida. Assustada, ela ergueu o rosto afogueado, deixando o pé cair na areia com tanta força que não conteve um grito de dor. O selvagem ajoelhou-se a seu lado, e imediatamente sua cabeça clareou. — Vá embora daqui, seu desalmado! Me deixe em paz! — avisou, numa voz que não passava de um murmúrio. — Me dê o seu pé. — Segurando a faca pelo cabo, ele a tirou da faixa que trazia na cintura. Bridget se encolheu. — Prefiro ficar com ele, se não se incomoda, senhor. Com uma expressão de desgosto, o selvagem agarrou sua perna pelo tornozelo, puxando-a para cima do próprio joelho. Bridget estava paralisada pelo medo quando, repuxando os lábios para trás e mostrando os dentes muito brancos, ele levou seu pé à boca. Nesse momento, tudo que ela ouvira falar dos costumes horríveis dos selvagens lhe veio à mente. Deus do céu, será que ele pretendia mastigá-la como um cachorro mastigava um osso? Desesperada, chutou, acertando-o no queixo. Ele soltou um grunhido de surpresa e caiu para trás, mas endireitou-se facilmente, com apenas uma das mãos. Bridget, mesmo atrapalhada pelo vestido molhado e cheio de areia, aproveitou e chance, ainda que pequena. Tomando o cuidado de evitar as malditas plantas, rolou para longe dele e tentou se levantar. De imediato o selvagem saltou sobre ela, prendendo-a ao chão com o peso do corpo, o rosto de frente para seus pés e as pernas musculosas prendendo sua cabeça. A frieza da pele nua e seu cheiro adocicado afetaram-na estranhamente. Era algo completamente diferente de tudo que já experimentara antes. Então, uma coisa úmida e


quente deslizou pela parte lateral de seu pé e ela estremeceu, quase perdendo a consciência. Nova onda de terror assaltou-a e um estranho tremor apossou-se de seu corpo. Logo em seguida, uma dor aguda percorreu sua perna, do pé à virilha. Ele a mordera! O demônio a estava comendo viva! Começando pelo pé! Só quando girou o corpo, esmurrando tudo ao seu alcance, foi que Bridget percebeu que o selvagem não fizera nada além de arrancar o espinho de seu pé com os dentes. O peso em suas costas foi aliviado e mais uma vez ela tentou escapar, mas foi dominada por uma tremenda tontura. Antes que pudesse se recuperar, ele a ergueu nos braços e começou a caminhar em direção às colinas cobertas de árvores. Bridget experimentou mexer os dedos do pé. Ainda doía, mas não como antes. Ainda devia haver um punhado dos horrendos espinhos agarrados a sua roupa, só esperando uma chance para passar para a sua pele, mas por enquanto não havia nada que pudesse fazer a respeito. O selvagem era extraordinariamente forte e poderia quebrar os ossos com a maior facilidade, se o enraivecesse. Cedendo à exaustão, ela inalou o cheiro estranhamente agradável de fumaça de madeira e ervas que emanava da pele e dos brilhantes cabelos escuros do selvagem. Ele tinha um passo firme e igual e seu rosto batia ritmamente no peito dele. Assim que chegassem à floresta, aproveitaria para pular ao chão e tentar outra fuga. Por entre os olhos semicerrados, Bridget observou seu progresso, depois voltou a atenção para o modo como o peito masculino subia e descia, respirando, a cicatriz de forma estranha, como um M esparramado. Rapidamente ela virou a cabeça para o lado, o coração batendo forte, em resposta a uma nova onda de pavor. Foi quando sentiu outro cheiro, não tão agradável. Um cheiro familiar, de peixe velho e rançoso. Um cheiro que, pensando bem, vinha sentindo desde que chegara à praia. Obviamente, aquele lugar recendia a peixe velho e podre. Quando ela começava a se resignar a seu destino, o selvagem parou e colocou-a no chão. A areia ainda guardava um pouco de sol, mas nada comparável ao calor do corpo dele. Estremeceu, arrepiada de frio. Cheia de medo, voltou-se para estudá-lo, procurando adivinhar as intenções dele. Até aquele momento, o selvagem poderia tê-la matado uma dúzia de vezes, mas não o fizera. Seria possível que não quisesse lhe causar mal, que só estivesse pensando em levá-la até a cidade mais próxima? O rosto dele não mostrava zanga nem simpatia, nem mesmo curiosidade. — Para onde está me levando? Ignorando-a como se não entendesse suas palavras, o selvagem ajoelhou-se junto dela com uma graciosidade que teria causado inveja ao mais fino cortesão e levantou-lhe a saia. Agarrando, então, seu saiote com uma das mãos, ergueu a faca e começou a cortar os andrajosos babados.


— Pare com isso! O que pensa que está fazendo?! -Continuando a ignorá-la, ele agarrou suas pernas e puxou-as. Bridget caiu sentada e, assombrada, observou-o acabar de arrancar o babado mais limpo de seu saiote mais resistente e dividi-lo em duas porções iguais. Em seguida, ele envolveu com ele seus pés, amarrando-os com um forte nó. O selvagem se levantou, estendendo-lhe a mão. Por um momento interminável, ambos se fitaram. Nenhum deles falou. Ignorando a mão estendida em sua direção, Bridget cruzou os braços sobre o peito, procurando se aquecer. Estava decidida a não ser a primeira a desviar o olhar, embora precisasse de toda sua força só para manter a cabeça erguida. Que arrogante era ele, parado ali com aquele olhar ardente! O que estava esperando? Uma moeda? Uma quinquilharia qualquer? Sem aceitar ajuda, adiante, ela se levantou. Precisava achar uma hospedaria com urgência, pois estava fraca como um pintinho recém saído da casca. O que passaria, é claro, assim que tivesse uma refeição decente. Não sabia quanto tempo ficara na praia, mais morta do que viva, mas fora tempo suficiente para ficar com fome. Daria tudo por um bule de chá quente e uma das horríveis bolachas do navio, ou até mesmo um dos pães bolorentos de Newgate. Antes, no entanto, precisava fugir do selvagem. Baixando o olhar do rosto orgulhoso diante de si, Bridget fitou os sapatos que ele improvisara para ela. Selvagem ou não, ele lhe fizera um favor e ela lhe devia uma certa gratidão. — Obrigada por eles — disse, sem esperança de que o selvagem a entendesse. Ele provavelmente já repetira todas as palavras que sabia, mas mesmo assim precisava tentar. — Você foi muito gentil. Agora, se puder me fazer o favor de dizer para que lado fica Albemarle, vou começar minha caminhada. Ainda sem o menor sinal de expressão no rosto bonito, o selvagem levantou o braço e apontou para a parte mais densa da floresta, que seguia a linha da praia até onde ela podia ver. Não havia nada quebrando a parede de folhagem. Ainda assim, ela não tinha outra alternativa a não ser acreditar nele. Talvez, dentro da floresta, pudesse avistar a cidade ou uma estrada que tornasse sua caminhada mais fácil. — Muito obrigada — murmurou num tom rouco. Levantando então as saias acima dos tornozelos, começou a escalar a duna mais próxima, rumo a Albermarle. Kinnahauk observou o progresso difícil de Bridget, sem o menor sinal de emoção. Sua oquio. O que fizera para desagradar tanto o Grande Kishalamaquon, a ponto de Ele lhe mandar uma mulher como aquela como companheira? Ela possuía a força de um mosquito molhado, a sabedoria de um coelho e a voz de uma cabaça cheia de sementes ao ser chacoalhada.


— Albemarle! — exclamou, com desgosto. — Olhos brancos, com suas casas fedidas, corpos fedidos e modos sem honra! Ela que fosse para Albemarle, se era isso que queria. Que cruzasse as três serras, os dois grandes pocosins e o largo Mar interior. Ela que passasse pelas aldeias dos Roanoaks, além de Pasquinoc onde seu amigo TausWicce vivia, além das terras dos Paspatank e dos Yeopim, fazendo todo o caminho até Metockwen, onde os Moratocs e os Chowanocs se encontravam. Ele não mentira. A aldeia chamada Albemarle ficava mesmo na direção que mostrara. Sua oquio! Paugh! Seria preferível levar um enxame de abelhas para sua tenda. Havia horas em que a honra e o dever pesavam demais sobre seu coração, mas ele sabia que precisava seguí-la e providenciar para que nada de mau acontecesse a ela. Muitas luas tinham se passado desde que os Hatorask haviam dado as boas-vindas aos primeiros olho sbrancos a chegar às suas praias. O Grande Espírito dera a eles essa obrigação, no Tempo Antes dos Avós, e ainda não os libertara desse dever. Com os pés enrolados, Bridget podia se mover mais depressa. No entanto, a floresta que estava tão perto, ao começar sua caminhada, ia ficando cada vez mais distante. Já estava com a garganta ardendo e a respiração difícil, mas não podia parar, pois o danado do selvagem continuava a segui-la como se fosse sua sombra. Pisando na barra do vestido, ela tropeçou e quase caiu. Em um canto de sua mente, tomou consciência de que estava doente, com a febre subindo. Planos organizavam-se em seus pensamentos. Não seria páreo para o índio silencioso que a seguia, se ele a pegasse novamente mas estava escurecendo e a noite a ajudaria. Uma vez na floresta, poderia fugir dele. Depois, guiada pelas luzes da cidade, chegaria a Albemarle e encontraria David Lavender. Sua pele queimava; no entanto, ela estava gelada. Insetos horríveis voavam em torno de seu rosto e ela cambaleou, quase perdendo o equilíbrio. O que diria o sr. Lavender se pudesse ver sua prometida naquele momento. O que diria ele quando o Andrew C. Mallinson chegasse às docas sem ela? Ou o navio havia naufragado, perdendo todos os passageiros e a tripulação? Será que nunca mais veria Tess ou Tooly? Não fosse pela ação rápida de Tooly, ela mesma poderia estar agora flutuando entre os restos do navio, com peixes comendo seus dedos dos pés e das mãos. Lágrimas vieram-lhe aos olhos. Lágrimas de autopiedade, fraqueza e medo. Enxugou-as com a mão, Impaciente. Teria tempo de sobra para chorar quando voltasse à civilização. Pelo que sabia, a floresta escura, à sua frente, bem podia estar fervilhando de selvagens iguais ao que a seguia. Água, Ah, o que não daria por uma caneca de água fresca! Estava morrendo de sede! Dando um encontrão num cedro batido pelo vento, Bridget murmurou um pedido de desculpas. Nem olhou por cima do ombro, pois sabia que ele estaria lá, as pernas poderosas movendo-se sem cansar, a marca no peito. A marca no peito? Não, estava confusa. Era aquela febre infernal! A marca era em sua testa, não no peito dele. Pois não sonhava sempre com o que acontecera, não continuava vendo o ferro quente se aproximar para marcar sua pele quatro vezes, de modo a formar um W?


Uma águia pescadora circulou alto, no céu, as asas enormes abertas para aproveitar uma corrente de vento. Seu grito chegou aos ouvidos de Bridget com um som doce, como o pipilar de um pássaro recém nascido. Erguendo a cabeça para o céu, ela franziu a testa. — Eu estou lhe dizendo, não sou uma bruxa — explicou pacientemente, desejando que a águia parasse de observá-la com aqueles estranhos olhos dourados e fosse embora. Seu olhar caiu então sobre a figura alta que a seguia, os passos medidos acompanhando com facilidade seu lento progresso. — Por que você me atormenta assim? — perguntou baixinho, a garganta parecendo estar em carne viva. Se planejava matá-la, preferia que fosse logo, para acabar com tudo de uma vez. Estava tão cansada, tão cansada. Virando-se, ela continuou aos tropeções até chegar ao topo da colina, onde trepadeiras silvestres faziam o caminho ainda mais perigoso. O cheiro pungente de ar marinho e peixe estragado foi sendo substituído pelo doce aroma da floresta, e ela respirou fundo, inclinando o corpo para a frente e apoiando as mãos nas coxas, por um instante. Não tinha coragem de se deitar, por medo de não conseguir se levantar mais, mas gastou algum tempo colhendo um punhado de frutos pequenos, de casca grossa, de uma das trepadeiras. Comeu todos, saboreando seu gosto ligeiramente ácido, volta e meia se virando para olhar por cima do ombro, cheia de apreensão. Momentaneamente reanimada pelas frutinhas, ela foi tomada por uma nova onda de energia. Não vendo sinal de moradias, embrenhou-se mais na floresta, deixando atrás de si o brilho do sol poente. Era muito mais escuro, sob a proteção das árvores. De tempos em tempos ela parava e escutava, esperando ouvir, senão o som de vozes, pelo menos o latido amigável de um cachorro. Qualquer coisa seria bem-vinda. Qualquer sinal de que não estava sozinha naquele lugar estranho e assombroso. Decidiu, então, que continuaria andando até não poder mais distinguir uma árvore da outra. Só então se deitaria e descansaria até a manhã seguinte. Com a luz do dia, colheria outras frutinhas para seu desjejum e veria o que mais a floresta tinha para lhe oferecer. Talvez até encontrasse uma cerejeira ou um amieiro, de cuja casca poderia fazer chá. Depois de engolir tanta água do mar, sua garganta estava em péssimo estado. Não lhe passou pela cabeça que não tinha onde fazer o chá, nem como ferver a água. Empurrando para o lado alguns galhos, deu um passo para a frente, escorregando, de imediato, por um barranco coberto de folhas e agulhas secas de pinheiros. Com um grito baixo, ainda estendeu um braço tentando se agarrar em alguma coisa, mas só conseguiu bater numa árvore, machucando-se muito e nada fazendo para impedir sua descida até o fundo da ravina. Sem fôlego, ela fechou os olhos. Alguns momentos para se recuperar e depois continuaria até encontrar um lugar decente para passar a noite. Como era estranho sentir frio e calor ao mesmo tempo! Com um suspiro, virou-se de lado, saboreando a sensação de ter as folhas úmidas e frias sob o rosto quente. Todos os sons que tinham cessado abruptamente, quando despencara barranco abaixo, recomeçaram a sua volta. Folha contra folha, galhinhos arrebentando,


zumbido de insetos. Em alguma lugar, perto dali, um sapo coaxou e rompeu com um barulho a superfície da água. Kinnahauk fitou a mulher adormecida no chão, o rosto nada revelando de seus sentimentos. Ele a seguira, tomando o cuidado de não se aproximar demais para não assustá-la, pois vira muitos animais da floresta correrem cegamente até seus corações arrebentarem de tão assustados. Sua oquio! Poderia tê-la levado para a tal aldeia de olhos brancos se ela não estivesse tão doente a ponto de correr risco de vida, sem alguns cuidados. Se ele a levasse para sua aldeia, todos veriam a marca e ririam, pois conheciam bem seus sentimentos em relação aos olhos brancos. Fosse ela mais forte, poderia vendê-la ou trocá-la por milho para alimentar seu povo. Mas ela não passava de uma olhos brancos, fraca e estúpida. Mesmo assim, sendo um homem de honra, não poderia deixá-la no fundo daquele pocosin, para morrer sem que ninguém cantasse para ela. Ajoelhando-se, relutante, Kinnahauk tocou a testa da garota, traçando o desenho da marca que conhecia tão bem. Ela queimava. Ouvia gemer baixinho, inquieta sob o seu toque, mas fechou seu coração contra a piedade. Os ingleses não tinham tido pena de seu irmão mais novo. Em seu orgulho tolo de rapazinho, Chicktuck pegara uma das moedas de ouro que Kinnahauk e Kokom tinham encontrado, depois de uma tempestade violenta, que quebrara o casco de um navio inglês e o jogara na praia. Furando o metal, ele prendera a moeda em volta do pescoço, para impressionar uma determinada garota, mas antes que chegasse à aldeia dela fora atacado, assassinado e roubado por um grupo de caçadores olhos brancos, que jogaram seu corpo na água. Não, não foi a piedade mas a honra que fez Kinnahauk levantar a figura esbelta em seus braços. Ele franziu o nariz ào sentir o cheiro que ela emanava. Descobrira a origem daquele cheiro ao ver o barril que a levara até a praia, e agora sua própria pele cheirava a peixe podre, em todos os lugares em que havia encostado na dela. Movendo-se com facilidade na floresta, que tinha poucos segredos para ele, Kinnahauk levou a mulher para o abrigo de um enorme carvalho. Pisava firme, para avisar as cobras de boca branca e rabos chocalhantes de sua aproximação. Sob o carvalho, colocou-a no chão, afastando com a mãos os mosquitos que os tinham seguido. Um sorriso sem alegria surgiu em sua boca. A carne dela, tão macia, seria uma festa para tantos insetos, antes de o sol acordar. Mas pelo menos ela estaria a salvo de perigos maiores. E com a luz do dia poderia ficar ou ir embora que pouco lhe importava. Estava nas mãos do Grande Espírito. Levantando-se, Kinnahauk limpou as mãos num punhado de agulhas de pinheiro. Um suspiro de desgosto escapou de seus lábios. Sua oquio. A companheira virgem, que os deuses, tinham lhe mandado. Eles deviam estar rolando de rir, agora. Ele não passava de um pobre bravo Hatorask, chamado chefe por um povo cujo número fora decrescendo até serem menos que os cavalos que corriam pela ilha. Na verdade, um homem desses não merecia mais do que aquela coelhinha pintada. Ele tornou a fitar a mulher a seus pés, pois a


escuridão não era empecilho para olhos acostumados com a falta de luz. Ela era pequena, com ossos tão delicados quanto os de passarinho. E os cabelos cor de palha brilhavam com uma estranha beleza, bastante parecida com a do capim do inverno, sob a luz do luar. Semiajoelhado, ele estendeu a mão para tocar Bridget, mas logo a puxou de novo. Ficaria com ela naquela noite, para garantir que nada de mau lhe acontecesse. Quando o sol tornasse a se levantar por cima da água, teria tempo de sobra para pensar no que fazer com ela. De manhã, a febre de Bridget havia baixado, como costuma acontecer com as febres, mas ela estava fraca de fome e louca de sede. Vendo-se sozinha num lugar tão bem abrigado, agradeceu à providência, que a guiara até lá. Estava tão exausta na noite anterior que não se lembrara nem de fechar os olhos. Havia castanhas no chão, em volta dela, pequenas e brilhantes, ainda com suas capas protetoras. Ignorando-as, Bridget estendeu a mão para as bolotas que estavam mais perto, presas aos galhos baixos do enorme carvalho. Eram as mais doces e suculentas que já vira, e ela comeu até cansar, esperando que lhe dessem a força necessária para sair atrás de água. Sem isso, provavelmente morreria. Para seu espanto, havia água em toda a sua volta. Riachos que serpenteavam pelo pâniano. Água que, para sua tristeza, tinha um gosto ainda pior que o cheiro. Com medo de ficar mais doente do que já estava, ela umedeceu apenas a boca, molhou o rosto e o pescoço e partiu, mais uma vez. Devia haver água boa em algum ponto daquele lugar infernal, senão os selvagens não sobreviveriam. Kinnahauk não teve dificuldade em mante-la à vista, pois nem uma vez Bridget olhou para trás. Ele a observou mover-se em círculos, como um coelho enlouquecido pelo medo. Os panos que amarrara nos pés dela logo ficaram para trás, perdidos em meio à floresta, e ele se encolheu ao vê-la pisar em plantas venenosas e todo tipo de folhas espinhentas. Sem óleo para protegê-las dos insetos, ela já estava com enormes pápulas vermelhas no rosto e na garganta. Ela andava como se estivesse atordoada por uísque ou o suco de certas frutas. Por duas vezes ele a salvara da crueldade da cobra de boca branca, mas ela nem percebera sua presença. Uma mulher assim na certa morreria sem seus cuidados e por mais que lhe custasse admitir ela era sua responsabilidade. Kinnahauk conhecera muitas decepções em seus vinte e quatro invernos, mas nenhuma tão grande quanto aquela. Durante muitas luas sonhara com uma pele morena e macia, olhos escuros e cabelos cheirosos, tão lisos e negros quanto as asas de um corvo. E os deuses tinham lhe mandado aquilo! Pele sardenta, da cor de carne crua, cabelos como grama seca, olhos como uma tempestade de verão e um cheiro... Ele conhecera muitos ingleses, pois eram mais numerosos que as árvores da floresta, no continente. A não ser pelos caçadores de pele, que viviam mais como o homem vermelho do que o branco, poucos se mostravam amigáveis. Muitos eram como cães, nenhum era mais sábio. Na sua opinião, quando os homens brancos se encontravam, todos falavam mais do que era preciso, as línguas barulhentas como galhos de uma trepadeira seca. Ele nunca conhecera mulheres brancas, mas elas só podiam ser piores ainda.


Kinnahauk meneou a cabeça, desgostoso. Mesmo que conseguisse se deitar com uma mulher como aquela, teria de tampar os ouvidos com grãos de milho para não ficar louco com o barulho da língua dela. Não, ele a levaria para a aldeia e faria Kokom acompanhá-la a Albemarle. Depois, procuraria uma nova visão.

CAPÍTULO VI

A cabeça da Bridget caiu para a frente. Fazia horas que não via seu perseguidor. Ou seriam dias? Ela tremia de frio e queimava, ao mesmo tempo. Se não fosse pelo selvagem que a seguia com tanta determinação, mostrando-se cada vez que ela pensava em se deitar para descansar um pouco, já teria desistido. Tudo que lhe restava no mundo eram David Lavender e a chance de recomeçar, e não abandonaria sua última esperança com tanta facilidade. Assim, continuou dizendo a si mesma que Albemarle não podia estar longe. As árvores já estavam começando a ficar mais esparsas. Quando atingisse o topo da colina, na certa veria a cidade. Agarrando os tentáculos pendentes de uma trepadeira áspera, peluda, ela praticamente, se arrastou durante os últimos passos da caminhada, os pulmões se alargando e quase explodindo com o esforço final. Os mosquitos de sempre se concentraram diante de seus olhos e ela os afastou com a mão. Não havia nenhuma clareira, nem mesmo sinal de uma estrada. Com um soluço ela se voltou, vislumbrando um brilho de cobre escondendo-se entre as sombras. — Seu selvagem maldito! — gritou, frustrada. — Se está esperando que eu morra, vai ter de esperar muito tempo! Eu vou viver, nem que seja por desaforo a você! Desafiante, ela começou a erguer o punho fechado, mas parou para apertar as têmporas doloridas. Se pelo menos pudesse se deitar e descansar um instante! Recostando-se no tronco de um carvalho, ela fechou os olhos. Seria só por alguns momentos. Assim que se recuperasse, continuaria a viagem. Na pequena clareira onde os gamos costumavam passar a noite, Kinnahauk agachou-se e fitou a mulher que dormia. Ela precisava de seus cuidados, no entanto tivera medo dele, quando a encontrara na praia. Olhara para a sua faca como se esperasse que ele fosse tirar-lhe a pele para fazer um tapete de dormir. Como se a pele fina e pintada de uma criatura daquelas pudesse ter algum valor! A honra não lhe deixava escolha. Ele a levaria para a tenda de sua mãe. Doce Água ainda chorava pelo filho assassinado pelos cachorros dos ingleses, mas aquela pintadinha não podia ser culpada de nada. Como também não era culpada de ter a pele feia e os olhos da cor de nuvens de chuva. Desde a chegada dos primeiros olhos brancos, muitos de seus irmãos tinham nascido com a pele pálida e olhos azuis ou cinzentos, mas nem por isso deixavam de ser homens


honrados. Desde que a garota tinha acordado e começado a caminhar, naquela manhã, ele havia dirigido os passos dela, guiando-a em direção à sua aldeia e protegendo-a dos perigos que se apresentavam, enquanto esperava a Voz que Fala Silenciosamente se manifestar. E a Voz falara. Ele não devia perder tempo em levá-la para a tenda de sua mãe, onde ela seria tratada para recuperar as forças que lhe permitiriam fazer a viagem para além de Roanoak e Paquinock, para a aldeia dos olhos brancos. Mas antes de empestiar a tenda de sua mãe com a pequena e fedorenta olhos brancos, ele lhe daria um banho, para tirar o cheiro de peixe estragado daquela pele pálida. Um de seus lugares favoritos para isso não estava longe. O sol já devia, inclusive, ter removido o frio da água. Ele a conduziria até lá e, enquanto se lavava, prepararia comida, pois não queria vê-la desmaiar de fome, antes mesmo de chegarem à sua aldeia. Afinal de contas, ela era a sua oquio. Mesmo sendo fraca, tola e terrivelmente feia, uma grande decepção para ele, depois de todos aqueles anos esperando pela mulher especial que viria do outro lado das águas, não podia negar que ela exibia a sua marca, igual a sua, para fazer o que quisesse. Podia mandá-la embora. Ou então tomá-Ia como segunda esposa, para ajudar com o trabalho. Ou talvez oferecê-la a um dos velhos da aldeia, que precisavam de uma mulher para cozinhar e aquecer seus tapetes de dormir. Kinnahauk lembrou-se, de repente, que a marca nem sempre ora visível, sob os cabelos dela. Se ninguém pudesse ver, melhor para ele. Sua mãe saberia... E Soconme, pois o feiticeiro sabia tudo. De qualquer maneira, o conhecimento ficaria dentro da tenda de sua mãe. Se todos vissem a marca que ela tinha, Kokon nunca pararia de rir. E Lontra Cinzenta dobraria os esforços para assegurar um lugar em sua tenda e tapete de dormir, o que ele ainda não queria. Enquanto Bridget dormia, Kinnahauk juntou frutinhas, castanhas, talos de grama e a suculenta pêra espinhosa. Esta, ele descascou e cortou em pedaços pequenos, que depositou ao lado dela, sobre um leque de palmeira. Cortando outro leque, ele afundou o centro da folha e trançou as pontas para formar uma espécie de copo, que encheu com a água de um poço artesiano que fluía ali perto, desde o Tempo Antes dos Avós. A água não era doce, mas não faria mal a ela. Deixando tudo ao lado da mulher adormecida, ele se afastou, ergueu o rosto para o céu e soltou o grito melancólico do grande ganso branco. Bridget acordou, sobressaltada, e sentou-se, a mente repassando o passado, até chegar ao presente. Perdera muito tempo; precisava se apressar. Sem ânimo, ela começou a se levantar, e no esforço derrubou a água, que caiu sobre a comida, varrendo-a da folha em forma de leque para o solo arenoso. Mas Bridget nem viu isso, examinando a floresta atrás de um sinal do animal que a acordara com seu grito. A princípio, seus olhos enevoados pela febre passaram por ele sem vê-lo, mas depois voltaram, instintivamente. Seu coração se apertou. Recostado no tronco enodoado de uma árvore, os braços fortes cruzados diante do peito, estava o selvagem. Pela primeira vez, aquele rosto pétreo expressava os pensamentos dele claramente, e não eram agradáveis. Kinnahauk apertou os lábios para impedir que as


palavras saíssem aos borbotões. Não podia amaldiçoar um pardal por não ser um gavião, uma toupeira por não ser um gamo. Ela não passava de um coelhinho tolo que corria em círculos, indo aos tropeções de uma trepadeira com folhas venenosas para outra, cheia de espinhos. Lontra Cinzenta teria aceitado seu presente, comendo metade, guardando o resto para outra hora e depois, com esperteza, pedindo mais a ele. Seu pobre coelhinho, porém, não era tão esperto quanto Lontra. Mesmo assim, enfrentara-o bravamente declarando que não o temia, apesar de o medo escurecer-lhe os olhos como as sombras da noite, e o ameaçara com uma coisa chamada David Lavender, antes de fugir. Alem disso, desprezara os frutos do yaupon, que só serviam para os pássaros, e se serviu de suculentas castanhas, escolhendo sabiamente as que estavam a ponto de cair em vez das que já estavam no chão, cheias de pequenos vermes. Ao passar por um pé de framboesa, ela também não pegara algumas folhas para esfregar nos braços, corno se soubesse de suas propriedades calmantes? Como podia ser assim? Como podia alguém ser tão ignorante e, ao mesmo tempo, tão sábia? Virando-se, Bridget recomeçou a caminhar. Água. Com grande esforço, conseguiu fixar a mente em sua meta mais urgente, esquecendo-se de sua persistente sombra. Com uma determinação incrível, avançou aos tropeções pela floresta, levantandose sempre que caía. Quando chegou a um pequeno poço de água amarronzada, o suficiente para exibir um fundo de areias brancas, ajoelhou-se e cheirou com medo de acreditar que fosse água doce. Depois voltou a cheirar mais uma vez, com a ponta do nariz tocando a superfície imóvel. Só então, avidamente, começou a beber. Quando terminou, ficou em pé e pôs-se a tirar o vestido. Observando de uma distância segura, Kinnahauk sentiu algo agitar em seu íntimo. A mulher de olhos brancos era mais formosa do que pensara, concluiu, com uma pontinha de orgulho. Ele seria capaz de viajar durante muitas luas e muitos sóis sem se cansar, mas nunca imaginara que aquela criatura pequena e fraca pudesse resistir tanto. Sua oquio escondia bem a própria força, pois não parecia ter condições nem de resistir ao vento da noite. No entanto, cada vez que caíra, ela tornava a se levantar. Os deuses dela na certa a tinham guiado até aquele poço, mas mesmo fraca como estava ela percebera que a água era boa. Isso lhe deu um prazer que ele não tentou entender. Em Croatoan havia poços de água salgada e de água fresca e, às vezes, nem os peixes eram capazes de distinguir entre eles. Sua pequena oquio não era tão estúpida quanto parecia. Cheio de curiosidade, do alto dá colina, Kinnahauk observou-a tirar as roupas horríveis e entrar, cautelosamente, na água rasa. A pele das costas de sua oquio era tão pálida quanto a lua de inverno, a não ser pelas manchas vermelhas nas nádegas e nas coxas, onde os insetos tinham feito uma verdadeira festa. Havia também arranhados longos e vermelhos, onde a pele fora rasgada por espinhos, e uma mancha escura num dos braços. Os pés pequenos estavam sujos demais para serem vistos com clareza, mas ele sabia que deviam estar muito machucados. Ela continuou de costas para ele, mas, ao entrar mais na água, girou os ombros, deixando visível o lado de um


dos seios. Kinnahauk olhou com indisfarçado interesse. Ela era sua, não era? Mesmo que não a quisesse. Apesar da magreza, possuía mais curvas do que imaginara. Os seios pequenos eram firmes e os quadris, arredondados; a cintura poderia facilmente ser contornada por suas mãos. Nas partes em que fora tocada pelo sol, ela era da cor de caranguejo assado sobre uma camada de brasas. E essas partes já estavam começando a soltar a pele, como uma cobra. No resto do corpo, sua oquio tinha as mesmas manchas marrons que ele notara em outros olhos brancos. Os cabelos cor de grama seca estavam colados à cabeça dela, cheios de folhas, gravetos e teias das aranhas que ali se enroscaram em sua caminhada desajeitada. Kinnahauk continuou a observar, os lábios curvados numa rara exibição de sentimentos, enquanto Bridget permanecia na parte mais rasa do poço, com medo de avançar. Será que ela não queria perder o cheiro rançoso que tinha? Por acaso achava que aquele fedor manteria afastados os insetos e vermes da floresta? Se fosse assim, ele já estaria morto há muito tempo, pois desde o nascimento, sua pele vinha sendo lubrificada com o óleo claro do urso negro, que não tinha o menor cheiro. Agora, sua pele era lisa e macia como a do mais belo animal, e ele não sentia o frio ou a irritante picada dos insetos. Bali! A inglesa não tinha futuro naquela terra, pois não seria capaz de aprender a viver em harmonia com a natureza. Assim que ela estivesse em condições de viajar, ele a mandaria para aldeia dos olhos brancos e sairia a procura de uma mulher de seu próprio povo, boa e forte. No entanto, apesar desse desprezo, o membro de Kinnahauk começou a se agitar. Irritado, ele deu as costas ao poço. Há muitas luas não tinha o prazer de partilhar seu corpo com uma mulher. E depois de se livrar daquela carga indesejada, provavelmente não esperaria muito tempo antes de arranjar uma companheira. Não era bom para um homem guardar sua semente quando havia mulheres que o acolheriam com alegria em seus tapetes de dormir. Ouvindo um splash atrás de si, Kinnahauk recostou-se no tronco inclinado de uma árvore, forçando-se a pensar no enorme gamo que escapara de sua flecha e no celeiro que precisava construir, antes da Lua Fria. Mas esses pensamentos não se fixaram em sua mente, pois o corpo falava muito alto. Ele se censurou, dizendo a si mesmo que não era mais jovenzinho para ser levado pelos impulsos físicos. Se não era capaz de comandar nem seu próprio corpo, como podia querer comandar seu povo? Sem reparar na brisa fria que alvoroçava o topo das árvores, Bridget baixou o corpo no poço, jogando a cabeça para trás até a água cobrir tudo, menos seu rosto. A dor em suas têmporas diminuiu, e, sem a menor lógica, ela sentiu a esperança renascer. Agora que comera e encontrara água para beber, na certa recuperaria as forças. Mas comera, mesmo? Não sentia mais dor no estômago, por isso devia tê-lo enchido com alguma coisa. Se o zumbido dentro de sua cabeça cessasse por algum tempo, não se esqueceria de tudo com tanta rapidez. Se não tivesse medo de piorar sua febre, Bridget teria lavado o vestido. A luz do sol estava mais fraca, o que significava que o dia estava chegando ao fim. Se não alcançasse Albemarle antes da noite cair, teria de dormir com o vestido molhado. O que não sei ia nada bom. Precisava de calor e descanso, um caldo forte feito com ervas que, pelo que sabia, podiam


nem existir naquela terra. Uma linda garça branca pousou junto ao poço, mas alçou vôo assim que a viu. Bridget sentou-se, notando a beleza do ambiente pela primeira vez, desde que pisara naquela terra estranha. Apesar do aspecto selvagem, havia ali um encanto que a fascinou. Um peixe pequeno, de aparência familiar, passou a toda velocidade perto dela, seguido por uma criatura desajeitada, que se infiltrava no fundo do poço. Gorazes eram encontrados em muitos poços de água fresca, na Inglaterra, mas os caranguejos azuis só eram vistos em águas salgadas. Que terra estranha era aquela, onde nem as criaturas de Deus sabiam o que deviam fazer? Gorazes convivendo com caranguejos azuis, selvagens convivendo com gente civilizada, da cidade... Com os pés, ela se pôs a traçar desenhos no fundo do poço. Um barulho na água chamou sua atenção, e seu olhar procurou a margem mais próxima. Havia rãs nos poços de Little Wedborough, mas a cabeça magra e grande movendo-se em sua direção, com um enorme polegar, não pertencia a nenhuma rã. Nem o sinuoso corpo que vinha atrás! Saindo da água, Bridget agarrou suas roupas e afastou-se depressa do poço. Seu corpo estava estranhamente pesado, depois da leveza dada pela água, mas ela não notou. Como também não notou o cheiro de peixe, estragado que a envolveu novamente, quando começou a subir, apressada, a colina mais perto. Ouvindo o barulho de galhos quebrando atrás de si, Kinnahauk girou nos calcanhares. E gemeu quando todo seu controle mental se desfez. Por que ela não se cobria com os trapos malcheirosos que tinha nas mãos? Será que não sabia que não ficava bem uma moça se exibir daquele modo? Apesar de ter a sua marca, ele ainda não a reclamara como sua. Nenhum preço de noiva fora pedido ou pago. Assim, ela não deveria se mostrar daquele modo. Lontra Cinzenta era mais atrevida que todas as mulheres e muitos homens de sua aldeia, e até ela hesitaria em se apresentar daquele modo, diante de seu chefe. Então, vendo o rosto corado e os olhos brilhantes da inglesa, Kinnahauk percebeu que Bridget não sabia que ele estava ali. Ele não fizera o menor esforço para se esconder; era tão treinado em se mover silenciosamente pela floresta, misturando-se com as sombras, que ela não podia ver o que tinha diante dos próprios olhos. Sem mover um músculo, ele observou-a a empurrar os fios de cabelos molhados para trás, revelando claramente a marca que tinha na testa, apesar da luz cada vez mais fraca. Devagar, o medo foi desaparecendo dos olhos dela. Olhos castanhos, que ele já vira escurecer de medo, como a fúria dos deuses da tempestade, e clarear como o luar que batia na água, quando ela não sabia que estava sendo observada. Os lábios de sua oquio que eram cheios e bem feitos, estavam secos devido à febre. Ele pensou no óleo que sua mãe passaria neles, para aliviar a secura, e sua mão enrijeceu, apertando os dedos de encontro à sua coxa. Vendo-a em pé na colina, a meio caminho de onde ele esperava, com o sol batendo de lado no corpo esbelto, Kinnahauk foi obrigado a reconhecer, ainda que de má vontade, que os quadris dela talvez fossem largos o bastante para conter um pequeno bravo. Talvez até para dar à luz um filho seu. E os seios também pareciam cheios o


suficiente para serem sugados por um bebê ou por um companheiro. Tinham os bicos do mesmo tom das flores cor de rosa que enfeitavam os pocosins, em vez de marrom escuros. Era a primeira vez que via seios desse tipo. Kinnahauk disse a si mesmo que ela não era tão feia assim, afinal de contas. Um inglês talvez até a achasse aceitável como companheira. Nesse momento seus olhos se arregalaram, pois tinham encontrado outra parte do corpo dela que era diferente de tudo que já havia imaginado. O povo de sua tribo mantinha o corpo escrupulosamente livre em pêlos, a não ser nos locais cobertos pela parte de trás de uma túnica. Ele, muitas vezes, lamentava que fosse assim, pois havia lugares, no corpo de um homem, onde os pelos cresciam mais rápido do que tinha tempo de remover. Além disso, o processo não era agradável, mesmo quando era ajudado por uma das índias da tribo. Sua oquio não era depilada. O pequeno tufo do pelo dourado no lugar onde as coxas esbeltas se uniam foi, para sua surpresa, uma visão que excitou-o de um modo que os corpos macios e anelados das moças de Pastlmik e Roanoak nunca tinham feito. Inconscientemente, sua oquio desceu para reajustar a única roupa que usava, enquanto observava Bridget se secar com as roupas imundas, antes de recolocá-las. De que lhe valera o banho? Ela continuava a cheirar tão mal quanto antes. Jamais poderia levá-la para sua aldeia naquelas condições, pois ela seria uma afronta aos sentimentos de sua mãe. Doce Água, como todos em sua aldeia, era muito limpa, banhando-se frequentemente, em todas as estações, e usando ervas cheirosas sob o tapete de dormir. As tendas de seu povo eram varridas diariamente e reconstruídas depois de cada tempestade, ao contrário das caixas pequenas e malcheirosas que os ingleses construíam para si e onde todo tipo de sujeira se juntava. Kinnahauk suspirou, resignado. Precisava lavar sua oquio e destruir os trapos que ela usava, antes que se sujasse novamente com o óleo fedido agarrado a eles. Depois que ela se cobriu, ele deu um passo para a frente, não contendo a tristeza ao ver o medo ressurgir nos olhos dela. Por um momento, achou que ela ia tentar fugir, mas a coitada limitou-se a suspirar e esfregar os olhos com as mãos, como se eles a incomodassem. — Sente-se. Você precisa descansar, agora. Quando a encontrara na praia, ele a chamara de yauta wunneau, caranguejo vermelho, por causa da cor da pele. Mas a cor yauta havia desaparecido, e a pele dela ficara mais como o couro da corça pintada branca, tão rara. — Vou levar você para a minha aldeia — Kinnahauk continuou. Bridget fitou-o, temerosa. Será que ele era dono de alguma mágica, para aparecer daquele jeito do nada? Se ele pretendesse lhe causar mal, certamente já teria feito isso antes. Agora, ela estava doente, com febre, fraca devido à falta de comida e exausta de tanto lutar contra as horríveis criaturas que habitavam aquela terra maravilhosa. Se pudesse colocar as mãos


em volta do pescoço daquele sujeito mentiroso, que fora à prisão falar da sorte que tinha por poderem ir para a América, com certeza o mataria! — Estamos perto da cidade, então?—Bridget perguntou, com medo de se permitir ter esperanças novamente. Kinnahauk ignorou a pergunta. — Descanse. Nada de mau pode lhe acontecer neste lugar. Bridget não precisou de mais encorajamento, pois com a caída da noite, sua febre subira. Por um longo momento, eles se fitaram, e ela foi a primeira a ceder e desviar o olhar. Com passos vacilantes, dirigiu-se a um lugar bem acima do poço e adormeceu assim que encostou a cabeça no chão. A lua ainda não tinha aparecido quando Kinnahauk voltou. Ele parou junto à figura esbelta e sentiu o coração amolecer, apesar de sua decisão de não se envolver. Queimando de febre, ela gemeu, agitada, mas não acordou. Pobre waurraupa wisto. Atormentada por sonhos em seu sono, perseguida por um cruel selvagem, quando acordada. Ele conhecia muito bem as mentiras que os olhos brancos contavam de seu povo, sobre matanças e torturas, incêndios e outros horrores. Eles eram chamados de selvagens de pele vermelha, no entanto sua pele não era tão vermelha quanto a da pobre inglesa, que se queimara ao sol. Selvagens? Ele vira mais selvageria entre os olhos brancos, que tinham uma cobiça incrível por ouro, terras e poder. Mas esses eram assuntos que não tinham a menor importância quando se tratava daquela mulher olhos brancos e um preocupado bravo Hatorask, chamado de werowance por seu povo. Com o rosto perdendo a impassividade, Kinnahauk estudou a mulher adormecida, relembrando a aparência dela com o sol tocando-lhe a nudez e iluminando o pequeno ninho dourado, no meio das coxas. Uma vez ele vira uma mulher não depilada de uma tribo inferior e não sentira o menor interesse por ela. Nunca, no entanto, vira algo como aquele ninho dourado. Ajoelhando-se, ele deixou de lado a pele de gamo que trouxera para cobri-la e pegou-lhe o pé. Como eram pálidas as pernas dela, e como estavam feios os arranhões causados pelos espinhos. Com o polegar e o indicador, ele deu a volta no tornozelo feminino. Ela era de uma constituição tão delicada, mesmo para uma mulher... Mais uma vez, em seu íntimo ele foi tomado por aquela estranha sensação. Mas logo suas narinas fremiram ao sentir o cheiro de peixe que subiu do corpo dela, com uma onda de calor. Será que a causa era mesmo aquela maldita roupa? Ele não demoraria a descobrir, pois quando chegassem ao poço perto de aldeia, pretendia dar-lhe um banho e depois cobri-la com a pele cheirosa que trouxera consigo. Se, depois disso, ela ainda quisesse ir para Albemalle, ele esqueceria sua visão porque ninguém merecia uma criatura daquelas.


CAPÍTULO VII

Sonhando com as entranhas geladas de Newgayte, Bridget não tinha consciência dos olhos que a fitavam. E não percebeu quando braços delicados a ergueram e carregaram por um trilha estreita, que subia a colina, passava ao lado de um largo pocosin e seguia em meio a um grupo de carvalhos tão grandes que seriam necessários cinco homens, de braços abertos, para dar a volta ao tronco da árvore maior. Fiapos de musgo claro desciam de cipós grossos, que se misturavam com os cipós da árvore seguinte, tecendo uma teia que sombreava a areia branca, como urna enorme renda prateada. Kinnahauk caminhava rapidamente, mas com passos suaves para não machucar a mulher que dormia em seus braços. Ele sentia a febre que a queimava, e isso fazia sua consciência doer. Devia tê-la levado para a tenda de sua mãe assim que a descobrira na praia, pois mesmo então ela já estava com febre. -David — ouviu a murmurar, os lábios ressecados movendo-se de encontro ao seu peito de um modo que o abalou estranhamente. Era óbvio que a mente dela estava divagando. Talvez fosse errado de sua parte tirar dela aquele cheiro horrível, antes de levá-la para a sua aldeia. O orgulho era uma boa coisa, pois sem ele um homem não era nada, mas orgulho demais podia levar a atitudes tolas e perigosas. Ela estava dormindo, e o sono curava. Ele a lavaria rapidamente, à luz da lua, em água aindas quentes do sol. Doce Água faria o mesmo, resfriando-lhe o corpo para que pudesse aceitar as poções do velho Soconrne, que seria chamado para aplicar seus remédios curadores. Não seria ele, Kinnahauk, que ofenderia as tendas de sua mãe, depositando aquele fiapo fedido de mulher imundo à tenda dela. Quando se aproximava de seu destino, Bridget acordou. Percebendo que estava sendo transportada, ela começou, de imediato, a lutar. — Onde fica a cidade? Não estou vendo casas. Nem gente. Para onde está me levando? — Fique quieta, sua tola! Não vou lhe fazer mal. Kinnahauk, cuja grande paciência atraíra o caranguejo azul para suas mãos e os pequenos tentilhões amarelos para seus ombros, quase se viu sem essa virtude. Tremendamente irritado, segurou com mais força as pernas de Bridget. Com certeza não fizera nada tão ruim a ponto de merecer tal destino! O Ganso Branco Kinnahauk, filho de Paquiwok, neto de Wahkonda, sangue do poderoso Manteo, estava sendo testado novamente para provar que era digno de liderar seu povo. Com a Voz que Fala Silenciosamente, ele pediu sabedoria para sobrepujar aquele teste tão difícil.


— Fique quieta. Levante o seu rosto para o vento e sinta o cheiro das fogueiras, queimando baixinho. Agora, os velhos devem estar sentados ao ar livre, enquanto as crianças, em volta, imploram para ficar acordadas um pouco mais e ouvir sua histórias. As mulheres devem estar guardando a comida que sobrou do dia e aprontando as tendas para dormir. Não ouve as vozes deles? Não sente sua proximidade? - Ouvindo essas palavras ela ficou quieta e ele completou a caminhada até a pequena clareira escondida, a pouca distância de seu próprio povo. Sua oquio já poderia estar sob os cuidados de Doce Água e do velho Soconme se não tivesse sido tão tola. Kinnahauk sabia que a doença fora a causa de a moça vagar aos tropeções, mas, mesmo assim, se ela não tivesse sido tão boba aponto de se assustar com sombras, poderia estar agora dormindo, em paz, no ouke de sua mãe. Ao chegar à clareira, ele colocou sua carga no chão e recuou um passo, esperando para ver se ela tentaria escapar. Vacilante, Bridget olhou em torno de si, como que esperando encontrar alguém da sua raça. À luz prateada da lua, seus ombros caíram e uma expressão tristonha surgiu em seu rosto. — Você vai me matar agora e jogar o meu corpo no mar? — perguntou num sussurro rouco, demonstrando mais curiosidade do que medo. Um pássaro noturno piou baixinho, em uma árvore próxima, enquanto pequenos ruídos traíam a passagem de guaxinins e gambás, que se moviam quando o sol dormia e dormiam quando o sol estava em sua grande casa. Kinnahauk apelou para a pouca paciência que ainda lhe restava. — Mulher, antes de sujar a lâmina da faca que me deu meu pai, o grande werowance Paquiwok, eu teria de tirar o cheiro de peixe podre do seu corpo feio e pintado! Você ofende minhas narinas e meus olhos. Nem o pior dos meus guerreiros haveria de querer usar o seu cabelo sem cor no cabo da lança! Com os braços soltos ao longo do corpo, Bridget contemplou a figura altiva, diante de si. Quase... Quase... Chegara a confiar nele, mas mesmo com a cabeça latejando a ponto de não conseguir mais pensar direito não havia como se enganar com o que ele dissera. O selvagem a desprezava. E, como não dera a ele razões para isso, a marca em sua testa não parecia assustá-lo, só podia concluir que o sujeito não gostava de mulheres inglesas. Os dois continuaram a se fitar. Kinnahauk começou a se arrepender de ter dado rédeas soltas à língua, pois isso normalmente não era de seu feitio. Aquela criaturinha irritante parecia decidida a testá-lo de modo que nem o maldoso Core era capaz de inventar. Em seus trapos sujos, com a cabeça jogada para trás, ela o fitava como se o desafiasse a lhe causar mal. Ele sabia, pelo modo como vacilava, que ela devia estar com os músculos clamando, mas mesmo assim não cedia. Ah, por que ele fora sair à procura do que tinha assustado o grande gamo? O couro do animal teria dado uma boa coberta e sua mãe poderia, naquele mesmo momento, estar preparando a carne para a secagem. Para Kinnahauk, a alegria sempre estivera na caçada e não na matança. Quando garoto, ele aprendera a transferir a mente


para o corpo de sua presa, o que lhe trouxera muito sucesso como atirador e pescador. No entanto, com isso ele experimentara também o medo da caça. Cada vez que matava, seu estômago se revoltava, enquanto seu coração se entristecia. Agora os enormes olhos cinzentos continuavam a fitá-lo, à esgueira. Poucas mulheres eram capazes de encarar um bravo de maneira tão atrevida, pois elas eram tímidas por natureza. Aquela, no entanto, parecia não saber o significado dessa palavra! Suas roupas feias estavam rasgadas até a cintura e duras da lama de muitos pocosins. Onde os insetos haviam picado, seu rosto estava inchado e cheio de manchas vermelhas, e o nariz estava pintado de marrom. A não ser pela cor pálida, seus cabelos pareciam um ninho de esquilo. Kinnahauk sabia que era difícil olhar nos olhos dos pele pálida e adivinhar o que ia em seus corações. No entanto, sentia que aquela moça não estava, deliberadamente, escondendo seus pensamentos dele, nem rindo do que ela considerava ignorância e selvageria. Afinal, ele não aguentou mais esperar. — Mulher, você está queimando de febre. Precisa se lavar, senão as feridas em sua pele vão piorar. Além disso, seu cheiro seria capaz de espantar a caça da floresta, fazendo meu povo morrer à míngua. A água deste lugar não serve para beber, mas dá para um banho. Vá! Já esperei demais. Kinnahauk levou a mão à faixa que tinha na cintura. Pensando que ele procurava a faca, Bridget se encolheu, mas não tentou escapar. — Se é a minha vida que quer, pode me matar. Não tenho forças para impedir isso, mas não vou me lavar para tornar a minha sorte mais agradável para um selvagem. Um brilho de zanga surgiu nos olhos dele. Por um instante, ela chegou a achar que ia apanhar, ali mesmo. Mas ele limitou-se a erguer os olhos para a lua e murmurar qualquer coisa numa língua incompreensível. Cansada demais para continuar a desafiar o selvagem, Bridget, suspirou. Levando então a mão ao decote do vestido, virou-se para onde a água brilhava como prata, entre as árvores ao longo da praia. Talvez um banho frio aliviasse o sofrimento de seu corpo febril. — Lá, não, tolinha. Venha que eu lhe mostro. Impaciente, ele a guiou pela curta distância que separava a praia de um terreno baixo, onde havia um pequeno lago, cujo fundo arenoso brilhava palidamente à luz do luar. — A água captura o calor do sol e conserva-o por algum tempo. Se você se lavar depressa, não vai sentir frio. Girando nos calcanhares, Kinnahauk deixou-a sozinha para que pudesse atender às necessidades do próprio corpo sem se sentir embaraçada. Os ingleses tinham menos recato que seu povo, pois estavam sempre se gabando de fatos nos quais os Hatorask nunca


tocavam, mas tinham alguns costumes estranhos. Ele esperou na praia, prestando atenção aos sons que lhe diriam que ela havia entrado na água. Num dado momento, ergueu os olhos para o céu, examinando as nuvens que cobriam o rosto da lua. O sinal do peixe cavala. Na manhã seguinte, antes que o sol atingisse sua grande casa, as chuvas frias começariam. Não muito longe dali, Bridget abaixou se devagarinho na água, adorando sua frieza. Depois de o choque inicial passar, ela relaxou, apoiando a cabeça numa raiz, junto à margem, e deixando os pés flutuarem. A água tinha uma certa quantidade de sal, mas mesmo assim aliviava o desconforto de sua pele. Um pedaço do sabão de sua mãe, feito de sebo, cinza de madeira e ervas, seria muito bem vindo, Bridget pensou, permitindo que as pálpebras se fechassem. Inalando profundamente, quase chegou a sentir o cheiro dele. Pelo menos, havia parado de sentir o cheiro de peixe podre. — Ainda não acabou? Assustada, Bridget abriu os olhos e viu dois troncos escuros de árvore, um de cada lado de sua cabeça. Piscou, e os dois troncos se transformaram em duas pernas de extraordinária retidão e comprimento. Ergueu os olhos, mas o selvagem ajoelhou-se para segurar sua cabeça entre as mãos, afundando-a na água três vezes antes de permitir que voltasse, tossindo e se debatendo, à superfície. Ela achou que sua cabeça ia explodir. Fechando os olhos contra a dor que latejava em suas têmporas, sentiu que ele a largava. — Não tive tempo de procurar raízes próprias para esfregar o corpo, mas areia limpa também serve. Com essas palavras, ele despejou um punhado de areia molhada sobre a cabeça dela e começou a esfregar. Bridget gritou, arranhando sua garganta dolorida. A dor de cabeça não era nada comparada à agonia de aguentar os dedos dele entre as mechas emaranhadas de seus cabelos, cobrindo cada centímetro de seu couro cabeludo. Ela acabou com o repertório de palavrões aprendidos a bordo, depois foi tomada por um acesso de tosse, mas nem assim ele parou. Não contente de torturar sua pobre cabeça até ela ter a certeza de estar careca ele voltou a atenção para seu corpo, começando pelo pescoço. — Assim que eu achar um jeito — Bridget jurou, cheia de ferocidade —, vou enfiar gravetos de madeira debaixo das suas unhas e tocar fogo neles! Depois, vou arrancar a pele de seu corpo, como a pele de um pêssego, e dar para as formigas comerem! Aí... - Mais uma vez ela se pôs a tossir, até só lhe restarem forças para reclinar a cabeça no braço com que ele a segurava, enquanto esfregava suas costas com a mão cheia de areia. — Shiii... Quieta! Só estou lhe fazendo um favor — Kinnahauk murmurou. — Quer que um gambá no cio venha fungar nas suas costas? Ou é o fedido do gambá que pretende atrair? Mesmo vendo que o selvagem caçoava dela, Bridget sentiu sua agressividade diminuir. Sua


cabeça doía tanto que mal conseguia pensar, quanto mais analisar as palavras dele, mas sentiu que ele não pretendia lhe fazer mal. — Estou doente — disse, com toda a dignidade que conseguiu reunir. Sentada no fundo do pequeno lago, com a água batendo na cintura, sujeita às atenções rudes de um selvagem nu e tendo como única possessão um vestido rasgado e sujo, essa dignidade não era muita. O selvagem fazia melhor figura do que ela, com os cabelos quase negros trançados e enfeitados com penas de todas as cores do arco-íris. A pele dele tinha um brilho que refletia limpeza e boa saúde, e o hálito, quando ele se inclinara sobre sua cabeça, atingira-a com o cheiro doce da grama silvestre. Depois de esfregar as costas de Bridget até quase machucar-lhe a pele, Kinnahauk virou-a em seus braços e pegou outro punhado de areia, despejando-o sobre os seios dela. Ao sentir a mão dele em seu seio, ela gritou num tom rouco, começando a se debater. — Quieta, sua tola, senão vai espantar até as gaivotas dos ninhos. Mesmo enquanto falava, Kinnahauk sentiu seu corpo responder ao contato daquela mulherzinha escorregadia. Ao ver que teria de entrar na água para esfregá-la, ele havia tirado a tanga. Afinal, como poderia imaginar que sua parte masculina daria sinal de vida por uma criatura tão feiosa? — Pare com isso, seu selvagem horroroso, senão eu... — Bridget terminou com uma das incompreensíveis ameaças de Tooly, que sempre davam ótimo resultado com os marinheiros: — Senão eu furo suas nozes com o ferrão de um peixe-espada! A reação do selvagem foi a última que esperava. Ele riu, jogando a cabeça para trás, e ela o fitou, atônita, certa de que só podia ter sucumbido ao delírio. — Até os coelhos têm dentes — Kinnahauk comentou, ainda rindo. — Não pretendo lhe fazer mal, pequenina. Vamos andar mais depressa. Minha mãe espera na ouke, e ela tomará conta de você até seu corpo esfriar e a garganta parar de arder. Bridget ficou ainda mais confusa com esta referência à mãe dele. A lembrança de sua própria mãe ainda lhe causava uma dor terrível, mas não podia negar que sentia um certo consolo com a idéia de ser cuidada pela mãe de alguém. Era o que as mães melhor faziam, embora jamais pudesse imaginar que um homem daqueles tivesse nascido de uma mulher, como os mortais civilizados. — O que é isso? Esse negócio, onde ela está esperando?


— Oukel É o que vocês, ingleses, chamam de casa. Mas é um pouco diferente. - Isso explicou alguma coisa, mas não tudo, e ela não estava em condições de insistir no assunto. Outra coisa, no entanto, a preocupava. -Como foi que você aprendeu a falar inglês? Por um momento, Bridget chegou a achar que não ia receber resposta. O que, no fundo, não tinha a menor importância. Se bem que fosse estranho um selvagem nu falar duas línguas (logo ela, uma mulher civilizada, que sabia ler e fazer contas). -Alguns dos meus ancestrais aprenderam a falar pôr meio de um livro. E se achavam muito importantes, por sua afinidade tom com os ingleses. - Mesmo fraca como estava, ela percebeu a amargura na voz dele. - Seria perigoso ignorar as marés, quando essas ondas se levantam mais alto, a cada lua. Ela tentou seguir a conversa dele, mas logo desistiu. Pelo jeito, ele poderia entender quando lhe pedisse para acompanhá-la a Albemarle, onde ficaria sob os cuidados de David Lavender. A esperança que tinha sido tantas vezes destruídas renasceu. Podia estar doente e fraca, mas estava viva. Era ou não era? E seu futuro dourado estava a apenas dois dias de viagem. — Do que vou chamar você? — ela perguntou, quando seu amigo selvagem ergueu-se da água. Com o luar refletindo em seu corpo úmido, ele caminhou até a margem do pequeno lago. Sem mostrar o menor embaraço, colocou a tanga. Não era essa sua intenção, mas Bridget não pôde deixar de fitá-lo. Nenhuma criatura que tivesse a maldade no coração podia ser tão linda! Ela sabia pouco sobre corpos masculinos, mas mesmo assim percebeu que aquele índio tinha uma figura mais bem formada que o mais belo dos homens de sua aldeia. — Kinnahauk — ele respondeu; numa voz que fez um arrepio percorrer o corpo de Bridget. — Eu me chamo Kinnahauk e sou conhecido pelo símbolo do Ganso Selvagem Branco.

CAPÍTULO VIII

Kinnahauk teve de mostrar a Bridget como prender a pele macia de corça em volta do corpo. Ela ficou horrorizada depois que ele terminou, cruzando a peça diante de seu corpo e amarrando as pontas atrás do pescoço. Estava seminua!


— Não posso ir para a cidade vestida assim! É... é vergonhoso! — Vergonhoso, Bridget? Mais vergonhoso seria ofender as narinas de todos que se aproximassem de você, não acha? Venha, vamos embora. Você está com febre e o ar da noite é frio. Como que em resposta, Bridget tornou a tossir. Sem esperar mais, Kinnahauk tomou-a nos braços e, a passos rápidos, envencilou por uma trilha que só ele tinha condições de ver. No entanto, por mais leve que fossem os passos dele, a cabeça de Bridget registrava todos os movimentos. Agarrada aos ombros dele, com a cabeça enterrada no peito masculino, ela rezou para que a caminhada logo terminasse. Se os habitantes da cidade estavam acostumados a ver os selvagens quase nus, talvez não ficassem muito horrorizados ao ver uma mulher branca coberta por um pedaço de couro, apenas. Um couro extremamente macio, tinha que reconhecer, e com um cheiro delicioso. Na verdade, agora que reparava, o cheiro de peixe podre não estava mais no próprio ar que respirava. Fora ela mesma que estivera cheirando tão mal? Depois do longo banho do dia anterior... Ou antes? Seria de admirar que não fosse a criatura mais nobre da face da Terra. A praia não passava de uma mancha no horizonte, quando sentira aquele empurrão nas costas e foi por cima da amurada do navio. Ah, se não tivessem lhe jogado o barril de peixe... -Ah, não! — Bridget gemeu baixinho, descobrindo, afinal, o mau cheiro que a seguira por dias. Devia ter ficado cheia de óleo de peixe, cujo fedor aumentava sob a ação dos raios de sol. Não era de espantar que ele tivesse achado seu cheiro ofensivo. Kinnahauk aproximouse cuidadosamente da aldeia, parando na saída do bosque. Em vez de virar-se na direção da ouke onde Doce Água vivia sozinha, foi para sua própria tenda, que ficava no alto de uma colina, separada das outras. Ainda não estava pronto para partilhar o que lhe acontecera com o resto da aldeia. Já seria difícil o bastante explicar a Doce Água e Soconme, pois o velho feiticeiro se divertiria muito falando a todos que quisessem ouvir da marca na testa de Bridget. Nem mesmo os mais sábios de seu povo eram perfeitos. O defeito de Soconme era a língua. Um defeito que, infelizmente, sua mãe também tinha. Um grupo de velhos ainda estava sentado do lado de fora das tendas conversando tranquilamente. De uma praia próxima veio a voz animada de Kokom, gabando-se de alguma coisa. A resposta áspera de Lontra Cinzenta foi abafada pelo riso de vários jovens, com a gargalhada de Senta Lá sobressaindo claramente. Movendo-se com o mesmo silêncio da escuridão, Kinnahauk aproximou-se de sua oke e levantou o pedaço de couro que cobria a abertura de entrada. Ali também havia a marca de sua família, a Grande Tartaruga, a marca de sua posição, que era composta de três penas com as pontas vermelhas, e a marca de seu nome. Baixando os olhos para a mulher adormecida em seus braços e que carregava a marca de seu nome, ele sentiu o coração se apertar. Colocando um dos joelhos em terra, segurou-a sobre o outro,


enquanto desenrolava seu tapete de dormir sobre uma camada de musgo e capim de praia, aromatizada com ervas cheirosas. Ela não acordou quando a deitou sobre o tapete, cobrindo-a com outra das muitas peles macias que sua mãe havia preparado. Inclinando-se sobre ela na escuridão, ele percebeu a dificuldade com que respirava e franziu a testa. Não poderia esperar até todos estarem dormindo, para chamar a mãe. Na verdade, já tinha esperado demais. Com gentileza, Kinnaliauk puxou os cabelos de Bridget para a frente, de modo a cobrir a marca que ela exibia na testa. — Descanse bastante, Coelhinha — sussurrou. No momento em que pôs os pés fora da tenda, uma sombra destacou-se das arvores próximas e foi se juntar a ele. Com um gesto provocativo, Lontra Cinzenta correu a ponta do indicador pelo braço dele. — Depois de uma caçada tão demorada, é bom ver que você não voltou de mãos vazias, Kinnahauk. Mas será que ossos tão finos vão conseguir satisfazer um homem faminto? — Como assim? — Eu vi você entrando sorrateiramente na aldeia, ó poderoso chefe. Diga-me, arranjou uma cativa? Pretende trocá-la por muito milho? Ou os Hatorask vão se juntar aos seus irmãos e lutar contra os mentirosos barriga de peixe? Já não cumprimos a profecia de nossos ancestrais? Afinal, somos chamados de covardes por todos que não têm nada de lutar! — Sehe! Você envergonha os ancestrais de que fala! Se não gosta de nossas atitudes, tem toda liberdade de ir embora. Vá buscar minha mãe. E não chame a aldeia inteira, senão vai sentir minha fúria na parte de seu corpo miserável que se senta! A moça Hatorask avançou um passo para se encostar em Kininiliauk, os olhos negros e caçoístas fixos nas feições rígidas dele. -Ah, que promessas doces você faz, meu valente chefe! Pena que não sejam a sério. -Vá! Não... Eu mesmo vou - mas a moça o deteve, segurando-o pelo braço. -Eu vou chamar Doce Água, mas você vai ficar me devendo um favor, Kinnahauk. Um favor que eu vou cobrar, não demora muito. Kinnahauk sentiu-se dividido, como se sentia muitas vezes com a moça que conhecia desde que eram crianças e engatinhavam pela praia, experimentando todas as conchas e pedaços de lontra trazidos pela maré. A ideia de deixar Bridget sozinha enquanto ia chamar a mãe não lhe agradava, principalmente por saber que Lontra Cinzenta ficaria.


-Não, eu vou. Mas não quero que entre em minha ouke, Lontra Cinzenta. Há muitas luas não convoco o conselho da tribo. Se desobedecer nisso, terá de se apresentar diante dos demais. A moça jogou a cabeça para trás, zangada. Podia provocar Kinnahauk, o homem, mas não tinha coragem de desobedecer a Kinnahauk, o chefe. Amando-o desde o décimo segundo inverno, ela muitas vezes achava difícil lembrar-se da alta posição que ele ocupava na tribo. Ressentida, ela o viu cruzar a areia iluminada pelo luar, em direção à tenda de Doce Água. Se pelo menos Kokom fosse mais parecido com Kinnahauk! As mães dos dois eram irmãs, por isso ambos tinham o mesmo tipo de corpo, com feições semelhantes, embora os olhos de Kokom fossem negros, como os seus. Além disso, Kinnahauk usava os cabelos trançados, com as pontas presas por tiras de couro macio, enquanto Kokom usava os dele soltos, caindo até os ombros. Kinnahauk era mais sério, principalmente desde a morte do pai, quando se tornara werowance. Havia nele uma profundidade de sentimentos que às vezes a assustava, mas ela sempre se sentira atraída pelo que não podia entender com facilidade. Kokom era como um laguinho raso, iluminado pelo sol. Podia tê-lo quando queria. Quando lhe agradava, permitia que ele partilhasse seu tapete de dormir, mas sempre fingia que era Kinnahauk que a acariciava, sussurrando em seus ouvidos e fazendo seu corpo alçar vôo com as águias. Ao virar as costas, Kinnahauk esqueceu-se de Lontra Cinzenta. Estava preocupado com o que diria a Doce Água para explicar a presença da mulher em sua ouke, pois, apesar da atitude pacífica de seu povo, seus sentimentos em relação aos olhos brancos eram bem conhecidos. Por que ele a levara para sua própria ouke, em vez de para a ouke da mãe? Até parecia que um espírito da noite guiara seus passos, desviando-o do caminho que pretendia seguir. Parando diante da pequena ouke onde Doce Água dormia, Kinnahauk respirou fundo e falou, num tom baixo: — Minha mãe, encontrei uma mulher inglesa que precisa dos seus cuidados. Posso entrar em sua tenda? Doce Água, viúva há muitos anos, não quisera outro marido depois da morte de seu querido Paquiwok. Quando seu filho Kinnahauk teve sua visão e conhecera a marca a ser tatuada em seu corpo e pintada em seu escudo de guerra, construíra a própria tenda, como convinha a um jovem guerreiro. Durante algum tempo ela partilhara sua tenda com o filho mais novo, Chicktuck, uma criança risonha, que adorava pregar peças. Logo depois, no entanto, Chicktuck também lhe fora tomado. Ela apareceu na abertura da tenda, uma mulher de quarenta e quatro invernos, mas de rosto sereno e sem rugas, apesar dos cabelos grisalhos.


— Você esteve fora bastante tempo, meu filho. Kinnahauk continuou do lado de fora da ouke, que fora construída com feixes de junco, temperados pelo sol e o ar marinho até sua cor se misturar com a cor dos enormes carvalhos do bosque. A cortesia não permitia que entrasse na tenda de outro sem ser convidado, pois, dentro, o pequeno espaço não dava privacidade. — A mulher inglesa foi jogada na praia pelas ondas, e eu a segui para assegurar que não se machucasse. Quando ficou fraca demais para continuar, eu a trouxe para você. Ela está em minha ouke. — Por que não a trouxe para cá, meu filho? Essa foi a primeira de muitas perguntas. Kinnahauk respondeu só as que achou necessário, enquanto sua mãe juntava as coisas de que ia precisar. Ele quase se arrependeu de não ter escondido sua pequena cativa no bosque, até ela sarar. Ou pelo menos até ter resolvido o quefazer com ela. Quando a marca fosse descoberta, haveria mais perguntas do que havia estrelas no céu. À moda de todas as mulheres, sua mãe falaria e as outras ouviriam. Em seguida, seria a vez delas de falarem. À maneira de todos os homens, os bravos e velhos ouviriam, ungindo que não. Eles também falariam. Nesse ponto, Soconme estaria entre ospiores. Movendo-se com uma graça extraordinária para uma mulher de sua idade e estatura, Doce Água seguiu à frente para a ouke do filho. Kinnahauk ia carregado de sacos de pele e bolsas, além de três jarros de barro e quase não conteve um gemido quando viu que Lontra Cinzenta e vários outros esperavam à sua porta. — Vão embora — disse com severidade. — Vamos precisar de silêncio. — Doce Água vai precisar de mim. Muitas vezes eu a ajudei a cuidar de crianças doentes. Talvez possa ajudar o seu pobre saco de ossos. Lontra Cinzenta pronunciou a última frase de modo que só Kinnahauk pudesse ouvir. Aborrecido, ele foi obrigado a reconhecer que ela dizia a verdade. Lontra Cinzenta ajudara mesmo sua mãe, inúmeras vezes, embora ele duvidasse que caridade humana fosse realmente o objetivo dela. Lontra Cinzenta teria entrado atrás de Doce Água, deixando Kinnahauk com sua carga para trás, se ele não a tivesse impedido. — Fique! — ordenou, com firmeza. — Ah! — a moça exclamou com irreverência, mostrando a Kinnahauk que ele tinha pouca chance de ser obedecido por um longo tempo. A primeira coisa que Doce Água fez foi reclamar.


— Depressa, acenda o fogo! Se quer que eu cuide dessa coitada, preciso enxergar. Além do mais, ela está tremendo de frio. Kinnahauk tentou se defender. — Mãe, ela estava queimando, quando eu a trouxe para cá! — Seu tolo, por que não a levou para mim, assim que a encontrou? A pobrezinha está sofrendo... E o estúpido do meu filho ainda desperdiçou tempo caçando, enquanto ela piorava. — Eu cacei antes de encontrá-la, mãe, não depois — ele explicou. Há vinte e quatro anos lidava com a língua cortante daquela mulher e sabia que aquilo não passava de defesa para um coração que amava sem reservas e sofria muito. Ajoelhando-se junto da moça adormecida, Doce Água afastou-lhe os cabelos para trás, testando o calor da pele. Só quando levantou a mão seus olhos caíram sobre a marca. Sua exclamação de surpresa foi audível. Fitou então a marca no peito do filho, antes de encarálo. — Achou que eu era cega, que não veria? Ou é você que não quer ver que essa mulher tem a sua marca? Ela enfrentou o olhar dele por um longo momento, antes de voltar a atenção para a figura inquieta, sobre o tapete de dormir. Mais uma vez, colocou a mão sobre a testa quente da estranha. — Ela está ardendo em febre, meu filho. Não fique aí em pé, me olhando como um tolo, quando ela precisa de tantos cuidados. Me dê minhas coisas. Depois, vá chamar Soconme. Não precisa voltar, pois não vou mais precisar de você esta noite. — Ela está muito doente, mãe? — Bastante, e graças a você — respondeu Doce Água, começando a espalhar uma substância grossa sobre a marca na testa de Bridget. — Você deveria ter me procurado logo. Agora, vá buscar Soconme! E traga água, pois temos de esfriar o corpo dela. — Mãe, eu... Kinnahauk interrompeu-se, decidindo não fazer confidências a Doce Água. Mais cedo ou mais tarde ela começaria a imaginar como a mulher de olhos-brancos viera a se vestir com uma das peles que havia preparado, e ele já ouvira perguntas demais por uma noite. — Casca de cerejeira e chorão, com talvez algumas folhas de...


Enquanto sua mãe escolhia entre as ervas medicamentosas, Kinnahauk começou a se afastar. Antes de sair, no entanto, ainda disse com ar de desafio: — Ela vai precisar de alguma coisa para os braços e as pernas, pois encostou na trepadeira venenosa. Talvez folhas de framboesas ou... — Meu filho anda estudando com Soconme? Kinnahauk decidiu se tornar um grande feiticeiro, em vez de um grande líder? Um grande líder que nem quer dar um filho a seu povo? Um grande caçador que nem traz nada para a panela? Vá! Faça o que mandei, antes que eu perca a paciência! Kinnahauk recuou para a abertura da tenda, interpretando as palavras de sua mãe exatamente como eram: um sinal de preocupação. Tinha demorado demais, pensou, olhando a figurinha sobre seu tapete de dormir. — Vou chamar Soconme. E vou lhe trazer peixe, pois ela não comeu nada. — Coelhos dão um caldo mais forte. — Ou esquilos — ele emendou, depressa. Já sabia que muitas luas se passariam antes que voltasse a caçar coelhos. -Aonde você vai, agora? — Lontra Cinzenta perguntou, no momento em que ele pôs os pés para fora da tenda. Quem é ela? — quis saber Kokom. -Vai ficar com ela como escrava, Kinnahauk? Ou vai vendê-la aos olhos brancos? — outro membro da aldeia falou. — Ela deve valer muito milho. Kinnahauk foi salvo de responder pela aproximação de um pequeno, com muitos xales de pele sobre os Ombros franzino. Num rosto tão enrugado pelos anos quanto um carvalho úmido pelas águas do mar, brilhavam dois olhos tão azuis quanto o céu, na época da colheita do milho. — Está precisando de mim, Kinnahauk? O rapaz não se admirou do velho feiticeiro saber. Na aldeia, pouca coisa escapava à atenção dele. — Soconme, minha mãe gostaria que você desse uma olhada na mulher que está doente e com febre, na minha ouke. Uma expressão divertida surgiu nos olhos do velho shaman. Kinnahauk não sabia a causa, mas mesmo assim sentiu-se embaraçado. Assim que o feiticeiro desapareceu em sua tenda, respirou fundo e estendeu o pote de barro para Lontra Cinzenta.


— Minha mãe precisa de água. Lontra Cinzenta empurrou o pote de volta. — Pois vá buscar você mesmo! Não é só para isso que você serve? Para fazer trabalho de mulher, enquanto nossos irmãos lutam contra a maré branca, que invade nossas praias? Apertando os dentes, Kinnahauk disse: — Kokom, se quer mesmo levar uma mulher para a sua ouke, é melhor pensar na filha de Yauta, Senta Lá, que é meiga de gênio e bonita de rosto. No entanto, se prefere levar uma cobra de boca branca para o seu tapete de dormir, recomendo Lontra Cinzenta, pelo veneno que tem. Seguido pelo riso de Kokom e as palavras de raiva de Lontra Cinzenta, Kinnahauk sumiu na escuridão, à procura do lugar onde a água boa brotava do solo. Mas voltou logo, descobrindo, aliviado, que não havia mais ninguém diante de sua tenda. Estavam todos dentro. — Vão embora! Você não são bem-vindos aqui — ele sibilou, quando Lontra Cinzenta lhe lançou um olhar de triunfo. Com água derramando pelas beiradas do pote, ele a empurrou na direção do sorridente Kokom. Doce Água ergueu os olhos de onde estava ajoelhada, fitando o filho com expressão severa. — Sehe! Você é pior que os pequenos esquilos, gritando e empurrando assim! Kokom, atice o fogo! Lontra Cinzenta, faça algo que preste! — Ela entregou à moça uma tigela com água e vários pedacinhos de pele de corça, bem macios. — A febre está subindo muito depressa. Temos de esfriar o corpo dela. Kinnahauk nunca se sentira tão inútil em toda sua vida. Todos tinham alguma coisa para fazer, exceto ele. E ele não queria Lontra Cinzenta tocando naquela mulher! Também não a queria em seu ouke, pois sabia muito bem que sua mãe a encorajava a pensar que um dia acabaria entrando ali como sua esposa. Lontra Cinzenta havia se vangloriado da intimidade que tinha com sua mãe insinuando que Doce Água ansiava pelos netos fortes que viriam de tal união. O velho Soconme murmurava encantamentos, enquanto preparava o fogo para receber suas oferendas. O cheiro dos frutos do cedro vermelho já se espalhava pela atmosfera fechada e enfumaçada. Logo o branco dos olhos da inglesa estaria tão rosado quanto o de qualquer pele vermelha. De muito alto, veio o grito de um bando de gansos brancos. Kinnahauk pensou que devia ser o riso de seus ancestrais, olhando para ele.Desanimado, viu Kokom sair em busca de mais água. Lontra Cizenta e Doce Água continuavam a banhar o corpo esbelto, acima e abaixo da roupa, enquanto Soconme, agora


usando todo seu traje de cerimônia, andava em torno do fogo, cantando encantamentos enquanto jogava um pó cinza nas chamas. O lugar estava superlotado. Não havia necessidade de todas aquelas pessoas estarem ali, Kinnahauk disse a si mesmo. Ele poderia ter ido buscar água. E ajudado com o banho. Uma onda de raiva começou a crescer em seu íntimo, enquanto observava Lontra Cinzenta bater os pedaços molhados de pele no rosto de sua oquio, sem ligar para a água que se acumulava nos cantos da boca e nos olhos dela. — Ei, você quer que ela morra afogada? — sussurrou com ferocidade, quando não aguentou mais. Dando um passo em frente, estendeu a mão para a tigela de água. Ele mesmo faria aquilo! Doce Água, que estava preparando uma mistura forte para baixar a febre e aliviar a congestão do peito da estranha, colocou-se na frente do filho. -Vá andar na praia, Kinnahauk — mandou, com um olhar que não era para ser desprezado. — Não precisamos de você aqui. Ajoelhada junto ao tapete de dormir, Lontra Cinzenta fitouo com malícia. -Kinnahauk teme por esta feia escrava branca. Deveria aprender a escolher suas cativas com mais cuidado. Da próxima vez que caçar, ó poderoso Kinnahauk, traga uma escrava que sirva o bastante para reconstruir minha ouke, pois o vento já está adiando jeito de entrar e meu tapete de dormir anda muito frio. Kinnahauk soltou uma palavra que nunca tinha usado diante de sua mãe, mas Doce Água limitou-se a sorrir e menear a cabeça, com ar sábio. — É melhor que seja um cativo, Kinnahauk — Lontra Cinzenta prosseguiu. — Um daqueles olhos brancos grandes e estúpidos, de costas bem largas. Os ossos desta tauhhe não têm mais forças que um weekwonne. — Erguendo um dos pulsos frágeis de Bridget, ela deixou que ele caísse. — Você que é um osso de cão, mulher! O weekwonne tem força suficiente para sustentar a sua ouke. E é sábio o bastante para se curvar diante do vento e não se quebrar. — Com a cabeça jogada para trás, ele fitava, zangado a moça Hatorask. — Melhor o weekwonne que cresce alto e forte do que a trepadeira venenosa, que agarra, prende e espalha sua seiva maldita sobre todos que dela se aproximam! Por razões só dela, Doce Água tinha coberto a marca de Bridget com um pedaço de pele, depois de passar a substância curativa. Uma coisa com a qual Kinnahauk se rejubilou, pois se Lontra Cinzenta visse a marca na certa seria ainda mais ferina.


— Crianças, crianças! — Doce Água murmurou. — Kokom, não vamos mais precisar de você, esta noite. Quando o rapaz se afastou, ela se ajoelhou e começou a tirar a pele que cobria o corpo de sua paciente. Kinnahauk não aguentou mais. Com um olhar zangado, agarrou Lontra Cinzenta pelos braços e afastou-a do tapete de dormir. — Nem de você! — falou. — Além disso, não fica bem que entre em minha ouke! Orgulhosamente, Lontra Cinzenta jogou a cabeça para trás. — Sua mãe me convidou para entrar. — E eu a convido para sair. — Quaukel — ela perguntou sem timidez, convidando-o a ir junto. — Vá embora, mulher, antes que eu perca a minha paciência! — Yaukke noppinjure — a moça provocou, balançando os quadris num gesto final de desdém, antes de desaparecer pela abertura da tenda. Kinnahauk enxugou a testa que ficara úmida de repente. Ele preferia ser chamado de capacho dos ingleses a aguentar uma mulher como aquela em sua ouke. Kokom que ficasse com ela! Ele escolheria sua primeira esposa entre os Roanoak, os Poteskeet ou os Paspatank, onde uma moça aprendia cedo a agradar seu homem, fazendo o que ele mandava depressa e em silêncio. Envergonhado por ter perdido o autocontrole, Kinnahauk procurou os olhos da mãe e viu que ela ria dele. O que não ajudou a melhorar sua disposição. — Lontra Cinzenta tem uma língua ferina — defendeu-se. Doce Água sorriu mais abertamente, exibindo dentes perfeitos a não ser por um, onde alojava o cachimbo para fumar, de vez em quando, com velhos amigos. — Eu sei, meu filho. A Lontra defende seu território com ferocidade, contra todos os inimigos. — Inimigos! Nós não somos inimigos. O problema é que nos conhecemos há muitos anos. — Ansioso, ele voltou os olhos para Bridget, que repousava mais tranquila agora, em meio ao vapor que enchia a tenda. — Eu sei, meu filho — Doce Água repetiu, revirando os olhos, divertida. — A mulher de olhos brancos não é uma inimiga. Ela nem consegue manter a cabeça erguida!


— Não, meu filho. — Mãe, eu só pedi a Lontra Cinzenta para sair porque não é bom ficarem tantas pessoas num lugar pequeno. A mulher não podia descansar, com o barulho de tantas línguas. — Eu sei, meu filho. Agora vá buscar meu tapete, que vou dormir aqui, esta noite. Se quiser, pode dormir na minha ouke. - Seu sorriso foi o de uma pessoa que o conhecia muito bem. Mas talvez você prefira dormir ao ar livre, para que o vento da noite possa esfriar a febre que tanto o perturba.

CAPÍTULO IX

Bridget acordou devagar, com medo de abrir os olhos e se ver seminua no meio da cidade de Albemarle, rodeada por estranhos apontando para a marca em sua testa. Uma ideia passageira, mas ainda assim muito vívida. Pelo menos sua cabeça não doía mais como se tivesse sete tipos de demônios dentro dela, lutando para sair. — Teetchewa yvaurepa. Ao ouvir essas estranhas palavras, ditas num tom gutural que mais parecia o grunhido de um porco que voz de gente, ela abriu os olhos de sopetão. Inclinada sobre seu corpo estava uma figura mais chocante que tudo que já havia imaginado, em seus dezoito anos de vida. Dava a impressão de erguer-se das nuvens de vapor perfumado que giravam em volta dela, uma criatura mais velha que o próprio tempo e mais feia que o pior pesadelo. — Yecauau te Kinnahauk. Uma única palavra destacou-se daquela algaravia: Kinnahauk! Não era o nome do homem que prometera levá-la para Albemarle e depois a trouxera para aquele lugar? — Onde está Kinnahauk? — perguntou. A aparição começou a cacarejar. E aproximou-se através da cortina de névoa rodopiante. Bridget encolheu-se, temendo pela própria vida. Seus dedos apertaram uma superfície que era estranha e macia, mas ela não se atreveu atirar os olhos da criatura para examinar o ambiente. — Não dê mais um passo! — ordenou, numa voz tão rouca que mal reconheceu


como a sua. Desconfiada, tentando freneticamente lembrar-se de como viera parar ali, Bridget examinou a figura. Um manto curto, enfeitado com toda sorte de símbolos, repousava sobre um corpo envelhecido, adornado da mesma forma. Ele parecia estar coberto de cicatrizes, e tatuagens e tinha a cabeça raspada, a não ser por uma pequena área no topo, da qual pendia uma longa pena tingida de azul, na ponta, e cheia de pintas amarelas, no resto. Em volta do pescoço enrugado ele ostentava vários colares, feitos do que pareciam ser dentes e pequenos ossos, com uma espécie de bolsa de pele presa à parte central. Bridget engoliu em seco, com o estômago revirando. Qual seria seu destino, tendo em vista aquilo? Seus dentes e ossos iriam se transformar em colar para enfeitar a feia carcaça de um selvagem sem Deus? A criatura inclinou-se mais para a frente e ela começou a tremer de pavor, o coração batendo na garganta. — Te reheshiwau? — ele falou, numa voz surpreendentemente forte para uma pessoa tão idosa. Atônita, Bridget fitou dois olhos tão azuis quanto o céu acima de Wicken Fen. — Por favor... o que fizeram com David Lavender? Onde estão os habitantes da cidade? Onde está Kinnahauk? — sussurrou. — Ne te reheshiwau. O velho continuou a soltar aqueles sons estranhos e Bridget se perguntou, desesperada, se não havia perdido a capacidade de ouvir, a sanidade... Ou ambos. As chamas do fogo subiram mais quando os dedos do vento as alcançaram, entrando pelas aberturas das paredes de pele. Em meio à mistura rodopiante de vapor e fumaça, ela viu o homem darlhes as costas e começar a preparar uma poção qualquer, enfiando os dedos nodosos numa tigela de terra atrás da outra. Seu coração quase parou. Ele estava pensando em envenenála! Apavorada, apertou os dentes até a cabeça começar a latejar de novo. Se ao menos conseguisse chamar a atenção de alguém... Kinnahauk? Ele já a traíra uma vez. Pois não a trouxera para aquele lugar, depois de prometer levá-la a Albemarle? Ou ele falara em uma aldeia, no caminho? Ah, Deus, como podia saber quantas aldeias e cidades havia naquela terra abençoada? Ainda assim, gostaria que ele voltasse. Ele a amedrontara, mas nunca a tratara sem bondade. A não ser que dá-la de presente àquela criatura demoníaca pudesse ser classificado de gesto de bondade. Uma corrente de ar frio percorreu o local, quando uma mulher pequena e gorducha entrou. Em seu desespero, Bridget voltou-se para ela. — Por favor, ajude-me! Em troca, faço tudo que quiser, pelo tempo que quiser. Sei cozinhar, lavar, escrever e contar, e tenho bons conhecimentos da arte de curar. Só não me coma, por favor! Não deixe esse velho estranho me envenenar... Por favor! — Sehe. Wintsohore woccanoocau — a mulher disse, gentilmente.


Bridget agarrou-se à única palavra familiar, a que Kinnahauk lhe repetira com maior frequência, e murmurou-a com ar interrogativo: — Sehe? A mulher sorriu abertamente, os olhos escuros quase desaparecendo entre as faces gorduchas. — Sehe. Quieta, filha dos ingleses. Você fala demais com uma garganta ruim. Fique quietinha e deixe Doce Água tratar de você. Mole de alívio, Bridget percebeu que sua anfitriã era capaz de falar e entender inglês. Em seguida, houve uma breve troca de palavras entre a mulher e o homem enrugado. Ela não entendeu nada, mas achou que discutiam seu destino. Ah, por que Kinnahauk a trouxera para aquele povo estranho? Ele prometera levá-la para David Lavender. Ele prometera! Não, ela pensou, franzindo a testa queimada de sol, Kinnahauk prometera levá-la para a mãe dele. Ah, era tão difícil lembrar! Por que estava tão confusa? A mulher chamada Doce Água aproximou-se com um líquido fumegante. Com receio de que aquilo pudesse deixá-la inconsciente, para que o velho tivesse condições de matá-la, Bridget cheirou-o, desconfiada. Hortelã. De uma variedade que ela não reconheceu. E os pedacinhos flutuando eram, sem dúvida, uma variedade de áster silvestre. Isso era tudo, ao que parecia. A mulher gorducha esperou pacientemente que Bridget terminasse o exame, o rosto redondo sem a menor expressão. — Bebe. Vai fazer você sarar — ela disse, afinal, com firmeza. Bridget bebeu cautelosamente, ainda sem saber se aquilo era para fazer com que ela se sentisse melhor ou ficasse com um gosto melhor. Chá de hortelã e áster. Serviria até estar em condições de preparar suas próprias poções. Sua cabeça já não doía tanto e o vapor aliviara sua tosse, mas ainda levaria algum tempo para recuperar as forças. Enquanto isso, tinha de aprender o máximo possível sobre aquela mulher aparentemente amigável para, mais tarde, poder fugir. Seguiu-se um período de tempo durante o qual, a cada dia que passava, Bridget ia se sentindo melhor. Estava muito magra e sua febre ainda voltava todas as tardes, mas sempre menos intensa que no dia anterior. Doce Água cuidava de Bridget como se a moça fosse sua filha. — Você é a mãe de Kinnahauk? — Bridget perguntou um dia, quando sua voz já havia voltado ao normal. A mulher sorriu, concordando vigorosamente com um gesto de cabeça. — Primeiro filho. Grande chefe. Bom caçador. Você gosta?


— Onde está ele? Bridget fez esta pergunta com um ar despreocupado, que teria convencido poucas pessoas. À medida que suas forças voltavam, ela começara a se lembrar de alguns fatos intrigantes, acontecidos logo depois de ter chegado à praia e ter sido encontrada pelo homem que a seguira e trouxera para aquele lugar. Na época, ela se sentira apavorada. Já não sentia mais medo, mas, à medida que as lembranças voltavam, ia ficando mais e mais confusa. Chegara mesmo a ter cheiro de peixe podre? E Kinnahauk a tivera nua nos braços e lhe dera banho, ou tudo não passava de uma alucinação febril? -Kinnahauk foi a um conselho de nosso povo, perto de Dasomonquepoc. Muita preocupação para nosso povo que vive no continente. Muita confusão —Doce Água explicou, com ar triste. Então Kinnahauk a deixara ali e fora para outro lugar. Será que não o veria mais? Estranhamente, essa ideia a abalou. Nem mesmo o fato de saber que logo estaria em condições de continuar viagem para Albemarlie e David Lavender conseguiu animá-la e ela se entregou ao estranho sentimento, dormindo o dia inteiro e tendo sonhos perturbadores à noite. Afinal, a febre se foi e não voltou. Doce Água, apesar da bondade, era uma enfermeira severa e ela foi se fortalecendo com uma dieta de caldos grossos e gostosos, feitos de carne e raízes e temperados com cebola silvestre. Também foi-lhe oferecida uma pasta grossa, de milho fermentado, que ela recusou, mas os bolinhos feitos de milho moído e servidos com mel eram tão gostosos quanto os que sua mãe fazia. Durante alguns dias caiu uma chuvinha fria, mas assim que os ventos quentes recomeçaram a soprar, ela recebeu permissão para se sentar, durante algumas horas, ao sol. O velho Soconme, a criatura enrugada e de olhos azuis que a assustara tanto, quando o vira pela primeira vez, tornou-se uma visita frequente. Com ele aprendeu muito dos Hatorask e suas lendas, além de algumas palavras dessa língua. Sua impressão era de que ele era uma espécie de apotecário e bastante competente. Tiveram muitos argumentos sobre as vantagens de cascas sobre as raízes de diferentes plantas, elixires sobre poções e o mérito de uma poção em relação a outra, no tratamento de certas doenças. Logo estavam comparando experiências, como ela costumava fazer com a mãe, e nenhum dos dois notou a estranheza desse fato. Deitada em seu tapete de dormir, com uma extensão de areia muito branca separando-a de Doce Água, Bridget chegou à conclusão de que teria inúmeras lembranças de sua vida com os índios para contar a David Lavender, quando o encontrasse. A aldeia, embora diferente de tudo que já vira, não era sem atrativos, estando localizada numa colina arenosa, com vista para o grande rio ou mar. As casas, chamadas de ouke, eram pequenas, mas com um espaço interno surpreendentemente grande. Em vez de pedra ou sapé, eram construídas de casca de árvore, junco e esteiras de palha, cobertas com uma pele curtida no lado em que o vento soprava com mais força. Essas casas eram mantidas muito limpas, com o interior perfumado por uma planta nativa, que também afastava os piores insetos. Embora elas tivessem uma fogueira interna para aquecer e dar luz, a comida


era feita do lado de fora, onde tiras de carne secavam vagarosamente e peixes empalados eram assados, enxalando o mais delicioso dos aromas. O povo da aldeia de Kinnahauk era, de longe, o mais generoso que ela já vira, pois lhe ofereciam tudo que tinham, apesar de saberem que jamais poderia retribuir-lhes a gentileza. Graças a eles, ela agora usava um vestido encantador, feito de peles macias, mocassins e um xale de pele de gamo, extraordinariamente quente. A não ser por uma moça muito bonita, chamada Lontra Cinzenta, as pessoas ali eram simpáticas e atraentes. Eram todas altas, de corpo bem formado, a maioria com cabelos e olhos escuros, mas alguma com cabelos avermelhados e olhos azuis ou cinzentos. Só um selvagem tinha olhos daquele estranho tom dourado. O nome de Kinnahauk era mencionado com frequência, mas ela ainda não o revira e não tinha coragem de perguntar por ele. Afinal, se Doce Água quisesse que ela soubesse mais a respeito dele, teria lhe contado. Ainda assim, pensava mais nele do que nos outros. Bridget simpatizara especialmente com uma garota de sua idade, chamada Senta Lá. Como os demais ela falava usando uma mistura de inglês e Hatorask e tinha grande prazer em ensinar sua língua, embora geralmente as lições acabassem em acessos de riso, devido à pronúncia de Bridget. Havia, também, muito falatório entre elas. — Kinnahauk já ofereceu o preço de noiva a seu pai? Você ficou satisfeita? — Senta Lá perguntou uma vez, quando as duas debulhavam milho para se fazer o horrível pawcohkcora. Bridget, embora sem entender direito a pergunta, resolveu aproveitar para saber mais sobre o homem que a trouxera até ali e a deixara aos cuidados da mãe. Doce Água não perdera tempo em transferi-la para a própria tenda, depois daquela primeira noite, pois, como Bridget aprendera com a moça antipática chamada Lontra Cinzenta, não ficava bem uma mulher dormir na tenda do chefe, sem estarem comprometidos. — Que negócio é esse de preço de noiva, Senta Lá? Já ouvi muita gente falar nisso. A garota Hatorask lançou-lhe um olhar gozador. — É o que o seu pai exige, em pagamento por você. No começo, ninguém pensou que você valeria mais que algumas peles de verão, pois estava muito fraca e feia. Mas agora a sua pele está macia, os seus cabelos parecem o ouro do homem branco e Lontra Cinzenta está com medo de que Kinnahauk a ache atraente. Bridget fitou-a, boquiaberta. Depois de alguns segundos, no entanto, conseguiu se recuperar da surpresa. — Nunca ouvi uma coisa tão boba! Não tenho pai e, se tivesse, ele não me venderia para ninguém. Quanto a ser atraente para...


Atônita, ela meneou a cabeça. Aquela gente era estranha. Será que todos gostavam de pregar peças, como o rapaz chamado Kocom? Estava começando a achar que sim. — Kínnahauk levou você para a ouke dele — Senta Lá lembrou, com malícia. — Eu estava doente. Não queria dizer... Ele nunca... Nunca mais vi Kinnahauk, depois que ele me trouxe para cá. Pode dizer a Lontra Cinzenta que ela não tem motivos para ficar com medo. Kinnahauk prometeu me levar para Albemaile assim que.. — Por que você quer ir para esse lugar, Bridget? Tem um irmão lá? Vai ficar na tenda dele, até seu preço de noiva ser pago? — Eu não tenho irmão, Senta Lá. E não há nenhum preço de noiva a ser pago! Ou melhor — ela explicou pacientemente — havia um mas já foi pago por um homem chamado David Lavender. — Você quer ter dois maridos?! Senta Lá foi tomada por outro acesso de riso, enquanto Bridget meneava a cabeça, sem saber o que fazer para ela entender. — É uma boa idéia, Bridget que eu gostaria muito de seguir. Entre o meu povo, um homem pode ter duas mulheres: uma para o tapete de dormir e outra para ajudar a primeira com as crianças. A segunda esposa só dorme com o marido quando a primeira está na ouke das mulheres ou grande, com criança. Gosto mais do seu jeito. Eu escolheria Kofcom para me fazer rir, Kinnahauk para me proteger, Galho Torto para o meu tapete de dormir e... - rindo, Bridget meneou a cabeça. — Não foi isso que eu quis dizer e desconfio de que você sabe, Senta Lá. Está querendo é me amolar. — Estou falando a verdade, Bridget. Um bravo pode ter muitas yecauau... Muitas mulheres. Uma mulher pode dormir com muitos homens, antes de prometer lealdade ao escolhido. Quando a promessa é feita, o escolhido a leva para ouke, onde eles se deitam como yenxayhe... como irmão e irmã... Até o preço de noiva ser pago. Nessa altura, várias moças da aldeia tinham se aproximado e Bridget achou melhor deixar o assunto de lado. Muitas vezes as vira olhando para a marca em sua testa, semelhante à que vira no peito e na tenda de Kinnahauk. Não sabia ao certo, mas a semelhança parecia ter algum significado para os Hatorask.


— Kinnahauk não me quer para esposa — garantiu a todas, pois sabia que muitas estavam de olho no rapaz. — Só me trouxe para Doce Água porque teve a má sorte de me achar, depois que caí do navio, a caminho de Albemarle. Sua declaração despertou novo acesso de riso e ela suspirou, resignada. Aquelas moças eram como crianças, brincando. Ainda bem que suas caçoadas eram amigáveis e nem Lontra Cinzenta fora abertamente hostil. Enquanto voltava para a ouke de Doce Água, com sua cesta de milho, Bridget pôs-se a pensar no ano que passara e tudo o que lhe acontecera. Sua vida fora arruinada, a de sua mãe roubada, e tudo por pessoas que sempre tinham considerado amigas. Quanto ao que ainda viria... Ela não sabia para que tipo de homem se vendera. O nome dele lhe parecera doce e nobre, quando o vira escrito, mas a traição sempre vinha de onde menos se esperava. Assim como a amizade, reconheceu. Seria impossível esquecer a gentileza e cortesia daquelas pessoas, que a tinham acolhido e tratado até que recuperasse a saúde. Com algumas poucas exceções, todas eram bondosas e prontas a ajudar, e ela sentiria muita saudade quando fosse embora. Erguendo os olhos do chão, Bridget deparou com uma dessas exceções bloqueando seu caminho. Lontra Cinzenta, com um vestido e mocassins de pele de gamo, descorada até adquirir um tom creme, e com um lírio selvagem bordado no peito, encarou-a, as mãos na cintura. — Por que você tem a marca de Kinnahauk? Acha que vai conseguir que ele a escolha para esposa com isso? Ele nunca vai querer uma mulher como você. Não sabe que Kinnahauk detesta o seu povo? Seu povo matou o pai dele, com as doenças nojentas que trouxe. E o irmão dele, com sua ganância por ouro. Também roubaram nossas terras e escravizaram nossos irmãos, com aquele maldito uísque. Logo, virão para cá e vão nos jogar na água para viver com o yacunne, pois não teremos mais florestas onde caçar, nem terras para nossa aldeia. Você não é bem-vinda aqui, olhos brancos! Bridget recuou sob o ataque. — Eu não quero causar mal a vocês, Lontra Cinzenta. Não sei nada de uísque ou doenças. E menos ainda de ouro. Arriscou um sorriso, que logo morreu. Ela também ouvira falar das almas corajosas que tinham navegado para as colônias. Quem não ouvira? Eram homens e mulheres de bom caráter, fazendeiros na maioria, pessoas tementes a Deus que só queriam trabalhar e não tinham inclinação para brigar com ninguém, muito menos com pessoas tão boas e gentis quanto os Hatorask. Durante um longo tempo as duas mulheres se fitaram. Bridget aguentou sem baixar os olhos, porque não tinha feito nada de que pudesse se envergonhar. Se alguns ingleses haviam causado problemas, não podia ser culpada por isso. Afinal, Lontra Cinzenta deu de ombros. Estendendo uma das mãos para a cesta que Bridget carregava nos braços, serviu-se de um punhado de milho, que logo cuspiu no chão.


— Ah! Wintsohore eppesyau não sabe nem separar o milho verde do maduro! Bridget sabia que queria dizer wintsohore. A outra palavra... Desconfiou de que era melhor nem saber. — Alguns podem estar verdes, mas são para powcohiccora, e não para pão. O desprezo de Lontra Cinzenta estava expresso claramente em suas feições bonitas e nos olhos escuros e brilhantes. Talvez Senta Lá não estivesse brincando quando afirmara que a moça Hatorask estava com ciúme. Bridget fez outro esforço para tranquilizar a moça. —Eu não vim para cá por minha escolha, Lontra Cinzenta. Kinnahauk me trouxe, quando eu estava fraca demais para protestar. — Por que você tem a marca dele? — Essa marca não é a dele. Eu fui confundida com uma bruxa pela gente ignorante do meu povo. Foram eles que me marcaram. — O que é uma bruxa? Bridget transferiu o peso de um pé para o outro. Estava cansada e aquela discussão a aborrecia. No entanto, enquanto Lontra Cinzenta não mostrasse sinais de querer se tornar mais amigável, não lhe daria as costas. — Uma bruxa é... é parecida com o que vocês chamam de shaman. Só que um pouco diferente. Meu povo tem medo de bruxas. Ao contrário do seu povo, que tem muito respeito por uma shaman. — Mesmo assim, Kinnahauk levou você para a ouke dele. — E Doce Água me tirou de lá assim que pôde. Se você vê algo de mal nisso, fale com Kinnahauk. Ele vai poder lhe explicar por que fez isso. Eu não posso. — Kinnahauk logo vai me levar para a ouke dele, como primeira esposa. Se eu quiser, posso ter você como escrava! Bridget enrijeceu. — Acho que não vai ser possível — replicou, no tom mais altivo que pôde. — Assim que Kinnahauk voltar, vai me levar para Albemarle, onde devo me casar com um fazendeiro. Isso, acrescentou mentalmente, se ele não demorar tanto que o fazendeiro desista de esperar e encomende outra noiva. — David Lavender já pagou meu preço de noiva —


terminou. O que era mais, desconfiava, do que Kinnahauk fizera por aquela ciumenta garota! Outras moças se juntaram a elas, e Wattapi mostrou a Bridget uma plantinha. — Foi dessa flor que você falou, Bridget? Contente pela distração, Bridget examinou a planta. — Parece a mesma, mas sem o botão não posso ter certeza. No meu país, é cura certa para o inchaço que vem com o fluxo mensal da mulher. Lontra Cinzenta, que já levava à boca mais um punhado do milho de Bridget, parou. — É verdade, então? Você é mesmo uma waurraupa shaman, entre a sua gente? No murmúrio em volta de si, Bridget não distinguiu medo, apenas respeito. Seria possível que elas não soubessem das crueldades atribuídas às pessoas conhecidas como bruxas? Waurraupa shaman. Feiticeira branca. Soconme era chamado de shaman. Embora o considerasse meio farsante, com aquelas danças e cantos sem fim, Bridget era obrigada a reconhecer que ele tinha um grande conhecimento do uso de ervas para curar. — Fui chamada de bruxa, mas não passo de uma apotecária com experiência na arte de curar, como minha mãe, — Uma waurraupa shaman — murmurou Wattapi, com reverência. Ao que parecia, era facilmente impressionável. — Então foi por isso que Kinnahauk torceu o nariz para você, Lontra Cinzenta — declarou Senta Lá, com um sorriso caçoísta. Os olhos de Lontra Cinzenta faiscaram. Pela primeira vez, desde que estava ali, Bridget desejou que suas amigas não caçoassem tanto de tudo e de todos. Caminhando em silêncio, lado a lado, Bridget e Lontra Cinzenta dirigiram-se ao local onde se concentrava a maioria das tendas. As outras, rindo muito, logo voltaram a conversar em sua própria língua. Doce Água apareceu à porta de sua ouke, com um olhar severo no rosto redondo. — Venha, Bridgett. Está na hora de descansar seus ouvidos. Essas crianças barulhentas têm tanto juízo quanto um punhado de lama! — Doce Água, Bridget disse que o botão de ... — Doce Água, você sabia que... A mulher firmou as mãos nos quadris e fitou-as com ar de fingida zanga.


— Por acaso acham que eu não sei que Bridgetabbott é uma waurraupa shama! Não sou uma tola yicau. Pensa que não ouvi vocês falarem como gralhas, até meus ouvidos não aguentarem mais tanta bobagem? Não nasci yottoha. Vão ajudar suas mães no trabalho, tontaunettes, senão, quando a Lua Fria chegar, vão ter de esfregar os estômagos vazios e chorar até dormir! Mas ela falou sorrindo, e ninguém se ofendeu com as palavras ásperas, muito menos Bridget, que ainda se sentia fraca o bastante para precisar de descanso, depois da refeição do meio-dia. — De que coisa horrível você as chamou desta vez, Doce Água? — ela perguntou, com um riso cansado. — Tontas... Preguiçosas. Mas elas não são preguiçosas, são boas meninas. E logo darão boas esposas. Venha, minha filha, vamos preparar você para a volta de meu filho, que esteve em conselho com nossos irmãos, do outro lado do Mar Interior. Kinnahauk não vai gostar de encontrar sua oquio murcha como uma flor colhida. Prometi que faria você recuperar as forças, antes de sua volta. Forças! Bridget estava tão sem forças que permitiu que Doce Água a despisse como se fosse um bebê recém nascido. E estava estranhamente ofegante quando foi empurrada para o tapete e recebeu uma tigela de água perfumada com uma infusão de botões secos, um punhado de sabão feito da raiz áeyucca e um pente que fora habilmente esculpido num osso de peixe. Logo, lavada e seca, foi friccionada com um unguento temperado com ervas doces, que deixaram sua pele macia e brilhante. Seus cabelos, que tinha lavado no laguinho, no dia anterior, foram penteados e depois alisados com um pedaço de pele de gamo, que os fez cair em ondas brilhantes por seus ombros. Só então Doce Água deu-se por satisfeita. Com ar de mãe orgulhosa, ela deu várias voltas em torno de sua atônita hóspede, assentindo com a cabeça, ajeitando a franja para que caísse de outro modo e depois assentindo novamente. — Agora, vamos esperar — anunciou, afinal.


CAPÍTULO X

O sol estava se pondo e suas chamas começavam a tocar as águas quando Kinnahauk puxou a canoa para a margem, a alguma distância da aldeia. Por longos momentos ele ficou onde estava, descansando, com a cabeça inclinada, as costas curvadas e os braços soltos ao longo do corpo. Viera de muito longe, atravessando as águas, com a mente preocupada pelo que vira e ouvira. Agora precisava se recuperar antes de cumprimentar seu povo, pois estaria usando as três penas de águia, que eram um sinal de sua posição, e o escudo de guerra com sua marca, que sempre levava aos fogos de conselho. Porque os homens Hatorask eram tão poucos, Kinnahauk caçava e pescava com os outros, mas mesmo nessas situações era lembrado de suas responsabilidades, pois os olhos brancos vinham em busca de comida próximo às águas que rodeavam Croatoan. O gado deles vagava pela ilha próxima, separada da de seu povo por apenas um riacho, que se tornava mais raso a cada lua que passava. Logo, o gado invadiria Croatoan para pastar as folhas tenras das árvores da floresta, até que o gado faminto, começaria procurar os baixos, onde não havia grama nem para os cavalos. Muitas árvores cairiam para os brancos construírem as caixas feias, que chamavam de casas. Às vezes, quando ele não conseguia dormir à noite, corria com seu garanhão pela praia, deixando que o encanto do vento aliviasse sua mente e o corpo. Mas nem mesmo o veloz Tukkao podia fugir do futuro. Kinnahauk vinha de um grande conselho. Ouvira os mais velhos falarem dos Hatorask que haviam cruzado o Mar Interior, no Tempo dos Avós. Ouvira os mais velhos dos Roanoak, dos Yeopim, dos Poteskeets e dos Paspatank. Eles haviam falado de mudanças e dos problemas e doenças do espírito que tinham infectado muitos do seu povo. Ele não falara da mulher olhos brancos que estava entre os Hatorask. Mesmo que lhe tivessem dito que uma mulher com aquela marca se perdera e estava sendo procurada por sua gente, não teria agido de outro modo. Ainda não estava pronto a aceitá-la, mas também não podia deixar que partisse. No momento, no entanto, sua preocupação era se preparar para encontrar seu povo. Já sabiam que ele estava de volta e que logo se apresentaria. Mas primeiro precisava se banhar e renovar o espírito, pois haveria muita festa e muitas lendas seriam contadas. Seu corpo cheirava mal, devido à longa viagem através da água. Nos velhos dias, seu pai teria levado três canoas, com três bravos cada uma. Agora havia tão poucos homens para defender a aldeia que Kinnahauk decidira viajar sozinho, apesar de saber que dificilmente seriam atacados. Afinal, tinham pouquíssimos inimigos além dos olhos brancos e dos


renegados que haviam escutado histórias sobre a moeda de ouro que trouxera a morte de seu irmão, Chiektuck. Despindo-se, Kinnahauk mergulhou na água gelada do lago, liberando sua frustração numa experição longa e sibilante. Ah, como precisava daquele tempo para refrescar o corpo e descansar a mente! Nem todas suas preocupações tinham ficado para trás, no continente. Ele levaria o cheiro dos malditos olhosbrancos de sua pele. A própria terra estava começando a cheirar como as cidades deles. Eles tinham casas e cercas por todo lado. Não sabiam que a terra pertencia a todos os homens e cercavam trechos que chamavam de seus, afastando de lá todos os outros. Nos dias de seu pai, os céus ficavam escuros de pássaros. Agora, os céus ficavam escuros com a fumaça e o fogo das armas dos ingleses, assustando até os attere auhaun. As terras onde um dia seu povo caçara o gamo e o urso estavam agora plantadas e cercadas.Virando-se na água rasa, Kinnahauk flutuou com o rosto para baixo até a luz do sol poente pintar suas costas com a cor do fogo. À sua mente veio a lembrança de outra vez em que se banhara naquele lugar. A luz da lua havia iluminado a pequena clareira, enquanto ele sustentava nos braços a criatura feia e pálida que carregava sua marca. E seu corpo respondera a ela, mesmo enquanto sua mente a rejeitava. Fora bom ter ido embora, pois ela o fascinara de um modo que distraía demais seus pensamentos, Agora, mais preparado, não deixaria que ela afetasse sua mente até tomar uma decisão definitiva no que se referia aos dois. Apanhando dois punhados de areia, ele se esfregou da cabeça aos pés, gostando da sensação abrasiva, pois mesmo depois de tanto tempo a lembrança de dois seios pálidos, de pontas rosadas, e de uma penugem dourada fazia com que seu corpo traidor o atormentasse. Barulhentamente, ele enxaguou o corpo e saiu do lago. Muito sério, recolocou a tanga. Devia ter passado mais tempo nos tapetes de dormir das moças e menos em volta do fogo do conselho, ouvindo os amigos relatarem as queixas que tinham contra os ingleses. Os cães brancos haviam tomado muito de seu povo, deixando em troca apenas doenças e desolação. Os lábios de Kinnahauk se distenderam num sorriso frio. Compensaria essa desonestidade tomando algo que era deles. Não tinha motivos para devolver a mulher de cabelos amarelos, pois, se fosse ao contrário, eles não devolveriam uma cativa de seu povo. Cheio de amargura, ele pensou no tratamento que os ingleses, fazedores de uísque, tinham dado à filha de TausWicce. Ela fora usada até não ter mais forças para fazer o que lhe mandavam e, então, abandonada para morrer à míngua. Os brancos também tratavam mal as mulheres brancas que se deitavam com um de seu povo. Chamavam-nas de carne envenenada, dando-lhes menos valor que à wasíomug, a carne podre recusada até pelos abutres. Ele ficaria com a criaturinha que pertencia aos brancos. Talvez a usasse da maneira que desejasse, até se cansar dela. Então veria se os brancos ainda a queriam o bastante para implorar por ela. Sem dúvida fora esse o significado de sua visão, tanto tempo atrás. Uma moça viria para ele, do outro lado das águas. Nela, ele colocaria sua semente e depois


a mandaria de volta para o próprio povo, onde ela daria à luz seus filhos, que seriam punidos em represália por todas as crueldades do passado. Kinnahauk fixou as três penas em seus cabelos e deixou os ombros caírem. Ele era fraco. Não merecia ser chamado de werowance. Seria tão capaz de mandar seus filhos para pagar pelos pecados dos ancestrais olhos brancos quanto seria de cortar fora o próprio coração. Na tenda, onde estava à espera, Bridget ouviu a repentina agitação lá fora, seguida por um grito de alegria. Ela ficara tensa com a demora, e sua tensão se transformara em irritação. Pelo modo como gritavam o nome dele, qualquer um pensaria que era um rei, até mesmo uma divindade. Chefe, eles o chamavam. Werowance ou qualquer coisa assim, na língua deles. Muitas vezes usavam ambos os termos, juntando o inglês e o Hatorask, como se quisessem homenageálo em todas as línguas do mundo. Soconme lhe falara dos primeiros ingleses que tinham aparecido em seu meio, explicando que os Hatorask haviam sido mandados para Croatoan para tomar conta do povo do poderoso chefe Raleigh. Eles tinham ouvido as palavras do Grande Espírito e acolhido os olhos brancos. Por isso, muitos da tribo ainda falavam inglês do rei, os mais velhos mais que as crianças. Muitos também tinham olhos claros e cabelos avermelhados. No entanto, se era assim, por que Lontra Cinzenta dizia que eles desprezavam os ingleses? E, se todos a odiavam, por que a tratavam com tanta bondade?Mas não havia tempo para pensar, pois pelos sons que vinham do lado de fora da tenda de Doce Água, o maior herói de todos os tempos acabava de chegar. Talvez tivesse vindo andando sobre as águas, pensou com amargura. Se ele a tivesse levado para Albemarle, como pedira, poderia agora estar servindo a refeição noturna a seu marido, em sua própria casa, em vez de estar sentada numa tenda enfumaçada e cheia de correntes de vento num banco de areia esquecido por Deus, no meio de dois grandes mares! — Bridget, você não vem cumprimentar Kinnahauk, que acaba de chegar de um fogo de conselho com muitos grandes chefes? Ouvindo o chamado de Doce Água, Bridget suspirou; não sabia ao certo se preferia cumprimentar seu captor-salvador em particular ou enfrentá-lo com toda a aldeia olhando. No fundo, faria pouca diferença. Enchendo os pulmões de ar, ela saiu antes que Doce Água resolvesse entrar e arrastá-la para fora. Ele era ainda mais alto do que se lembrava, com três penas erguendo-se acima da faixa branca, que usava em volta dos cabelos bem trançados. Mais uma vez, ela foi surpreendida pela perfeição física de Kinnahauk. Ali estava um homem altivo, cuja pele brilhava como cobre recém polido, sob os últimos raios de sol. Bridget engoliu com grande dificuldade, pois sua boca ficara seca, de repente. A marca dele estava em toda parte, simbolizando o ganso selvagem branco num vôo no couro escuro do escudo que ele carregava num dos braços, no couro que cobria a entrada de sua tenda e no alto do peito largo. Era uma marca estranhamente fascinante, como se retivesse um


poder antigo, capaz de escravizar todos que se tornassem descuidados. Desviando o olhar da tatuagem no peito, Bridget ficou perturbada com o brilho frio dos estranhos olhos dourados. Tinha se esquecido do impacto de que eles eram capazes. — Bridgetabbott — Kinnahauk disse num tom grave, sem inflexão. — Hum... ah, Kinnahauk! Eu lhe dou as boas-vindas. Em nome de sua mãe, é Claro — ela acrescentou depressa, enquanto o sangue lhe subia ao rosto. Quem era para dar as boasvindas a um homem, na ouke da própria mãe dele? Ou melhor, casa. Droga, estava começando a falar como aqueles selvagens! O velho Soconme devia ter lhe lançado um encantamento qualquer com aqueles cantos, pós e poções? Em pé, a alguma distância das pessoas que tinham se reunido para dar as boas-vindas ao chefe, uma mulher observava em silêncio, os olhos queimando de ressentimento. Lontra Cinzenta voltou-se para Kokom, que nunca estava longe dela, apesar de estar sempre brincando com as outras moças. — Todas as olhos brancos são tão magras? Se são, não é de admirar que os ingleses estejam sempre de cara amarrada. — O que é isso, Lontra Cinzenta? Andou comendo alguma coisa amarga, que curvou a sua língua para o lado errado? — Os meus dedos é que vão se curvar em torno do seu pescoço de yauta — ela ameaçou, irritada. Em resposta, Kokom soltou o grito gorgolejante do peru selvagem, com o qual a moça o havia comparado. Depois de um instante, Lontra Cinzenta perguntou: — Como é que um homem pode achar bonita uma pele tão pálida? Parece a barriga de peixe. É como... — Como a carne doce e saborosa da fruta yonne — Kokom terminou. — Ah! É uma carne dura como pedra, coberta por uma camada fina de pele amarga! Kokom limitou-se a rir. Enquanto Lontra Cinzenta se afastava, soltou novamente o grito do peru selvagem, mas seus olhos, que seguiam a figura alta e bem feita, não estavam rindo. Kinnahauk voltara para o seu povo. Uma festa tinha sido preparada, assim que a canoa do chefe fora avistada. Peixes tinham sido envoltos em folhas de árvores e colocados sobre o fogo. Uma fileira de ostras e mariscos tinham sido espalhada em volta das margens de uma camada de brasas. As moças fizeram farinha de milho, com uma parte dos grãos reservados para o comércio com o continente, enquanto as mulheres mais velhas assavam as carnes,


que haviam temperado para suas próprias famílias. Os homens, tanto jovens quanto velhos, sentavam-se agora em torno de um enorme fogo central, falando de assuntos importantes. Seu chefe tinha voltado. Bridget recebeu a tarefa de tomar conta das crianças mais novas, enquanto as mães delas preparavam a comida. Havia um ar festivo por toda a aldeia. As crianças sentiam a excitação, e ela estava encontrando dificuldade em mantê-las junto de si. Afinal, chamando todas, pegou a mais nova no colo e começou a cantar a canção Os Três Corvos. Lembrou-se de Meggy Eitzhugh e do coitado do Billy, e seus olhos inesperadamente encheram-se de lágrimas. Piscando para afastá-las, continuou a cantar, a voz clara e meiga erguendo-se no ar frio do anoitecer. Depois, vieram as histórias, algumas que tinha ouvido no colo do avô, outras que ia inventando na hora. Logo todos, a não ser o bebê, que há muito havia adormecido em seus braços, estavam inclinados para a frente, ansiosos para saber mais das asas que capturavam o vento para mover a roda que moía o trigo e da raposa que vira o próprio reflexo na água do riacho e perdera a galinha que havia capturado para o jantar. Mais de uma vez ela levantou a cabeça e encontrou os olhos dourados fixos em seu rosto. Mesmo quando seus próprios olhos estavam nas crianças, tinha a impressão de senti-los tocando cada centímetro de seu corpo. Uma sensação que, sem dúvida, não correspondia à realidade. Kinnahauk mal trocara uma dúzia de palavras com ela, e todas na frente da aldeia reunida. Como podia agora imaginar que os olhos dele mandavam uma mensagem diferente, e destinada só a ela? A noite parecia não ter fim. Bridget e as outras mulheres serviram os homens primeiro, como era costume deles, mas depois Kinnahauk mandou que se sentassem e comessem junto, pois tinha muito a contar e não queria falar mais de uma vez. Até as crianças ficaram em silêncio sob o encanto da voz grave e melodiosa do jovem chefe, que soava como música enquanto ele relatava a visita que fizera aos Hatorask do continente, que tinham atravessado as águas muitas luas atrás, para se dedicar ao plantio. — O chefe da Inglaterra se chama Charles e deu nossas terras a alguns de seus irmãos favoritos, chamando-as de Carolina em sua própria honra. Ele ordenou a esses irmãos que construíssem cidades desde o Chesapeake até o lugar que os Waspaines chamaram de Flórida, desde a Grande Água que eles conhecem como Atlântico até o Mar do Oeste. Os homens chamados Whittie e Carteret, que vieram para o lugar chamado Colleton, no tempo em que meu pai era chefe, destruíram a terra e foram embora. O grande chefe olhos brancos, chamado Samuel Stephens, trouxe seus noppinjure para Roanoak até não haver mais comida para o gamo e lugares onde os pequenos animais pudessem se esconder dos inimigos. Mesmo agora, suas grandes canoas aladas continuam indo e vindo através das águas da baía de Roanoak, carregando mais ingleses para se espalharem por


nossas terras. Ninguém falou durante o relato. Os velhos assentiam, tragando profundamente a fumaça de seus cachimbos. Os jovens bravos, sentados estoicamente, não tiravam os olhos do rosto de seu líder. As mulheres se movimentavam, tirando esteiras com conchas e ossos de peixes, antes que as terríveis moscas negras comêlas. Em muitas aldeias, o chefe não falava diante das mulheres. Em Croatoan, havia tão poucas pessoas que todas tinham valor para Kinnahauk. Todas deviam saber das mudanças que estavam ocorrendo, pois um dia essas mudanças chegariam àquela ilha. Eles não podiam estar despreparados. Nos braços de Bridget, o bebê dormia tranquilamente. As outras crianças já tinham sido levadas para as respectivas tendas, pelas mães. Ouvindo o relato, ela permitiu que seus sentidos fossem dominados pelo homem que falava, com tanta impassividade, das injustiças cometidas por seu povo contra o dele. Seria verdade? Os ingleses tinham mesmo vindo àquela terra para roubá-la daquela gente? Ah, ela ouvira falar muito da grande terra nova, do outro lado do mar, com muitas riquezas e campos férteis para serem tomados. Se chegara a pensar a respeito, fora do ponto de vista dos que estavam tomando a terra, não dos que estavam ficando sem ela. O fogo havia diminuído e um vento frio começou a soprar, fazendo Bridget se arrepender de não ter trazido outra pele para cobrir os ombros. Kinnahauk e os outros bravos não davam mostra de sentir o frio. Kinnahauk continuou a falar, depois de aceitar com seriedade o cachimbo de um dos homens mais velhos, soprar a fumaça em quatro direções e passá-lo adiante. — Há um homem chamado Robert Holden, que foi indicado para tomar posse de todos os restos de naufrágio, âmbar cinzento e outros produtos do mar. Ele virá à nossa aldeia interrogar nosso povo sempre que houver rumor de um naufrágio ao longo desses bancos. — O olhar dele pousou em Bridget, parecendo demorar-se nos cabelos dela, agora tocados tanto pela luz da lua quanto pelo brilho do fogo que morria. — É bom saber que nenhum navio foi jogado em nossas praias, desde o tempo da grande tempestade. Tinha sido depois dessa tempestade que ele, Kokom e Chicktuck haviam encontrado a bolsa contendo quatro moedas de ouro, chamadas de guinéus pelos olhos brancos. — É bom, mesmo — acoaram vários dos mais velhos, gravemente. — É bom, mesmo — Kokom repetiu, baixinho.


As costas de Bridget doíam e seu braço parecia a ponto de quebrar. O filho de Muitos Dedos podia ter só sete meses, mas pesava mais que um garoto com o dobro dessa idade. Entre os Hatorask, as crianças pareciam pertencer a todos, comendo com a família que quisessem e sendo vigiadas pela aldeia inteira. Era como se as poucas crianças fossem um presente valioso, que devia ser partilhado em vez de conservado, egoisticamente, por apenas alguns. — Venha, você já ficou muito tempo no sereno, Bridgetabbott. Não quero que sua febre volte — disse Doce Água, aproximando-se por trás dela. — Dê me o bebê. Muitos Dedos vai precisar dele a seu lado esta noite, pois ainda é muito cedo para que leve outro homem para seu tapete. Bridget entregou o garoto adormecido, procurando com os olhos a mãe dele. Ultimamente, a viúva jovem e bonita vinha lançando olhares na direção de um dos bravos mais velhos, chamado Yenwetoa, também conhecido como Cara de Cavalo. Sem dúvida, o rosto dele tinha aquela forma longa e estreita dos cavalos que corriam livremente pela ilha. Ela esperava que ele tivesse também a força de um cavalo, pois precisaria dela para lidar com o pesado garotinho de Muitos Dedos. Dentro de momentos a clareira estava vazia, a não ser por Bridget e Kinnahauk. Ele se ergueu e deu a volta até onde ela estava, com os braços cruzados sobre o peito para se aquecer. Ela mudara muito, desde que a deixara sob os cuidados de Doce Água. Seus cabelos não tinham mais a cor da grama seca, e sim da flor amarela, que subia pelo tronco dos pinheiros mais altos. O rosto também estava mais claro e macio, com as bochechas coradas, da cor da malva florida. Os lábios pareciam mais cheios, suaves, de uma forma mais doce. E os olhos... Fitando-a nos olhos, Kinnahuak teve a impressão de que a areia se movia sob seus pés. Imediatamente, disse a si mesmo que era cansaço, pois acabava de voltar de uma longa viagem. Além disso, fumara o cachimbo e bebera suco fermentado de uva. Aquela mulher não significava nada para ele, embora carregasse sua marca. Os olhos dela eram claros demais. Deixavam-no pouco à vontade. Por que ela não escondia os pensamentos dele, como as outras da própria espécie? Será que não sabia que era perigoso uma moça olhar para um homem daquela maneira? -Doce Água cuidou bem de mim — Bridget disse, numa voz que não passava de um murmúrio. — E o velho Soconme? Andou aplicando sua magia de branca nele, para que agora só a chame de waurraupa shaman! Bridget desejou que ele se sentasse, pois parado diante dela, daquela maneira, fazia com que se lembrasse da primeira vez em que o vira. Pensara que ele fosse um bárbaro selvagem e temera pela própria vida. Seria possível que ele tivesse mudado tanto, desde então? Ou fora ela que mudara?


— Eu não tenho magia — disse baixinho, fitando os mocassins dele. — Você rouba a magia da lua, que faz seus cabelos brilharem como o interior de uma concha de mexilhão? Ou rouba do yoccoweeho, que perfuma o ar de forma tão doce? Quando ela não replicou, não podia replicar, pois ele a deixara sem fôlego, Kinnahauk continuou: — A marca de fogo está escondida de meus olhos pela faixa que você usa, mas eu sei que está aí. Está tentando negar a existência dela, Bridgetabbott? — Não faço idéia do que você está falando. Ela tocou a tira macia de pele branca, retirada da barriga de um coelho. Doce Água lhe dera a tira, mostrando-lhe como usá-la, quando os cabelos que Tooly cortara com a faca cresceram o suficiente para incomodar. — Tenho pensando em você, Bridgetabbott. Muitas vezes, quando devia estar ouvindo o relato dos problemas de meu povo e tentando resolvê-los, meus pensamentos dispersavam como um bando de auhaum, que vocês chamam de gansos. Como isso poderia acontecer, sem que você me lançasse um encantamento, antes da minha partida? Isso nunca me aconteceu, antes. E me deixa muito intrigado, pois não consigo explicar o motivo. Bridget nada disse. As palavras dele a tinham deixado mole e desorientada. Apertou os dedos nos braços, quando Kinnahauk inclinouse e a segurou pelos ombros, fazendo com que se levantasse. — Não quero me sentir assim, Bridgetabbott. Você é inimiga do meu povo. Só um homem fraco permite que o inimigo o distraia, e Kinnahauk não é um homem fraco. Ele tem de ser mais forte que dois homens, pois seu povo está dividido, mas todos precisam de um werowance. — Eu nunca fui sua inimiga, Kinnahauk. – Ignorando-a, o bravo continuou a falar: — Meu povo é chamado de covarde pelos próprios irmãos, que gostariam de lutar para expulsar os olhos brancos de nossas praias. Desde o Tempo dos Avós, meu povo tem dado as boas-vindas ao seu, neste lugar. Mas acabou. A visão acabou. Meus filhos não viverão no Tempo dos Avós. Viverão sob nuvens mais escuras. O sol não mais brilhará para o meu povo. Isso me foi dito pela Voz que Fala Silenciosamente. Presa ao encanto da voz e dos olhos dele, Bridget esqueceu-se de respirar. Quase podia ver as visões que ele citava, ouvir a voz que falava no coração dele.


— Tenho carregado esse peso, Bridgetabbott. Tenho sido chamado de cão amarelo por seus irmãos, que receberam uma visão diferente do Grande Kishalamaquon. Isso eu fiz para não desonrar meu pai e os espíritos de todos aqueles cujos ossos repousavam no Quiozon, antes de serem destruídos por seu povo. Mas uma coisa eu não vou fazer: não vou permitir que me enfraqueça com sua magia de mulher. Não vou ouvir suas palavras meigas, tocar sua pele macia ou pensar no tesouro dourado que você protege com as coxas. Essa é uma coisa que não vou fazer! Bridget podia sentir o calor do corpo dele e o cheiro de limpeza, misturado com fumaça de madeira, que vinha da pele cor de cobre. De repente, queria mais que tudo no mundo jogarse naqueles braços e vê-los se fecharem em torno de si, como tinham feito uma vez. Ela observou o bravo alto e forte desaparecer nas sombras, a cabeça com as três penas erguida altivamente. Ele não olhou para trás. Por que a frieza dele a feria tanto? Ele não significava nada para ela, não era mais que um estranho que a tratara com bondade. E se não queria levá-la a Albemarle, para encontrar David Lavender, o jeito era pedir a outro. Ainda assim, ela achou impossível tirar o jovem chefe da mente, enquanto voltava, a passos lentos, para a ouke que partilhava, com Doce Água.

CAPÍTULO XI

A fumaça de tabaco erguia-se sobre as cabeças grisalhas de Doce Água e Soconme, que conversavam sentados do lado de fora da ouke de Doce Água, aproveitando o primeiro dia quente, depois de vários dias de chuva e frio. — É, sangue velho corre frio — murmurou Soconme, ajeitando sobre os ombros magros um dos muitos xales que usava. — Mas o sangue novo corre quente — respondeu Doce Água, observando o filho de sua irmã fazer o cavalo dançar, para divertimento de Senta Lá, Wattapi e Bridget. — Kokom sabe muito bem que Lontra Cinzenta está vendo. Que diabo domina esse rapaz, para que provoque a moça desse jeito? — Um diabo que há muito já esqueci — filosofou o feiticeiro. Do outro lado da clareira, onde vários bravos construíam um depósito para grãos, Kinnahauk lançou um olhar zangado para as moças.


— Meu filho segue a jovem waurraupa shaman com olhos zangados — comentou Doce Água. — E a jovem waurraupa shaman segue seus filhos com olhos ansiosos, famintos. -A expressão de Doce Água tornou-se preocupada. — Ela não é como os outros de seu povo. Meu filho está cego pelo ódio que tem dos ingleses. — Ele está verde. Com o tempo, vai amadurecer. — Ah! Com o tempo, meus ossos é que vão amadurecer sob a areia. Quero ter um neto nos braços, antes que meu espírito alce vôo. — Tenha paciência, mulher. Antes que a canção da morte seja entoada sobre seus ossos, verá seus netos crescerem altos e fortes. Kinnahauk sente os ventos da mudança. Eles são como os ventos brancos de inverno, que mordem os dedos e mastigam os ossos até os fracos gritarem e os fortes sentirem dor. Ele quer preparar nosso povo para o futuro. — Os olhos de Kinnahauk não sorriem mais. — Os olhos de nosso jovem chefe veem mais que os da maioria. Veem que o sol se põe para nosso povo. Veem que o Grande Espírito está cansado de observar Seus filhos trilhando os velhos caminhos e quer mostrar novos caminhos para trilharmos. Isso cai como uma sombra sobre a alma de Kinnahauk, pois ele sabe que tem de nos guiar para um novo tipo de vida, para que possamos sobreviver. — Meu filho é muito orgulhoso. É duro para um homem como ele suportar o desprezo de seus irmãos, por algo que foi estabelecido no tempo antes dos Avós. Mesmo nossos amigos, os Yeopim, os Paspatank e os Poteskeet olham com pena para nós, devido aos nossos modos pacíficos. — Quando aquele caçador branco trouxe o corpo de seu filho mais novo para cá, no ano em que o milho falhou, todos ficaram tristes, mas Kinnahauk ficou mais. Ele ainda sofria com a morte do pai. Como líder de nosso povo e cabeça da família, ele achou que havia falhado. — É verdade — Doce Água exclamou, num tom triste. — Meu coração chorou por meus dois filhos, pois Kinnahauk chegou a se ferir seriamente para que seu sangue pudesse ser enterrado com o irmão. Depois que a canção da morte foi entoada, ele pegou a canoa e atravessou as águas. Pedi a Kokom que o seguisse, para protegê-lo, e muitas luas se passaram, enquanto meu filho caminhava com sua dor. Kokom contou que Kinnahauk não falava nem comia, que entrava desarmado nas aldeias dos olhos brancos, examinando as casas, as plantações e as crianças deles. No entando, apesar da Kokom ir atrás dele,


Kinnahauk não o via. Kokom disse que quando nosso grande amigo, TausWice, dos Poteskeet, convidou Kinnahauk para entrar na tenda dele, Kinnahauk passou por ele como um cego que não podia ouvir. - Soconme tirou outra baforada do reconfortante uncoone, que o homem branco chamava de tabaco. — Muitos pensamentos guerreiam na mente de um jovem bravo, que precisa ser forte por seu povo. Não é fácil aguentar firme como um carvalho e inclinar-se com um caniço. Não é fácil para os velhos, cuja energia se levanta devagar. Fica mais difícil para um bravo que ainda não completou vinte e cinco invernos. — O velho feiticeiro apertou os olhos com os dedos amarelados. — O osso de minha cabeça diz que os cavalos brancos cruzarão a água, antes de o sol despertar. — É uma pena. Quando o vento frio sopra da terra do sol adormecido, faz meus velhos ossos doerem, também. — Talvez precisemos da dor para saber que ainda estamos vivos, pois nossos corpos nos oferecem pouco prazer. O rosto da Doce Água suavizou-se, expressando simpatia. Ela também sabia o que era se sentir velha e só, embora não fosse tão velha quanto Soconme e não estivesse só. Tinha Kinnahauk e, agora, a moça olhos brancos para cuidar. — Meu tapete de dormir é grande, Soconme. — O seu coração é maior, Doce Água. Você é uma boa amiga. Eu tenho algo para liberar os demônios que me atormentam, mas prefiro guardar para quem tem uma dor maior que a minha. O remédio dos olhos brancos é forte e me resta pouco, pois já não é tão fácil fazer comércio através da água. Doce Água assentiu, envolvendo o cachimbo minúsculo com ambas as mãos. — Nos velhos tempos, meu pai só tinha de cruzar a água com cinco canoas cheias de ostra, para voltar com cinco canoas cheias de milho. Agora, o milho cresce atrás das cercas inglesas e os amigos que comercializavam conosco mal têm o bastante para encher as próprias barrigas. Não vou a uma festa no continente, desde que Kinnahauk perdeu os dentes pequenos. É, aconteceram muitas mudanças. Por que as coisas não podiam continuar como eram? Bridget estava aprendendo a montar à maneira Hatorask. Assobiando para chamar um dos velhos pôneis que vagavam pela mata, Kokom mandou que ela se sentasse sobre ele, com uma perna de cada lado do animal.


— Como é que eu posso me sentar com as pernas nuas pendendo de cada lado dele, Kokom? É vergonhoso! — Vergonhoso? Prefere ficar com as pernas esticadas para cima? — Não, seu palhaço! Prefiro ficar com ela decentemente cobertas. — Ah, ingleses, são criaturas estranhas. Cobrem corpos que seus deuses lhe deram, como se tivessem vergonha deles. Nós, Hatorask, não temos vergonha dos presentes de nosso Grande Espírito Kishalamaquon. — Erguendo os braços, ele girou devagarinho diante dela, o rosto bonito iluminado por um sorriso maroto. — Acha que eu poderia ter vergonha de um presente tão lindo? — Você devia é ter vergonha de não ter sido igualmente abençoado com o presente da humildade — Bridget rebateu. Sentada, pouco à vontade, sobre o lombo de sua montaria, ela agarrou a crina longa e espessa com ambas as mãos. Para seu horror, com o movimento a saia curta, de pele de gamo, subiu mais, deixando uma porção maior de suas coxas à mostra. — Bridget, não esconda o seu rosto nos cabelos de Yauta Yauncor! — gritou Senta Lá, que parecia guiar a própria montaria por meios misteriosos, conhecidos apenas por ela e o pônei. — E não se deite sobre ele como se o coitado fosse um tapete de dormir! — Tem certeza de que Vento Vermelho sabe que deve me carregar? — Bridget perguntou, amedrontada. — Acho que ele tentou morder meu pé, quando eu montei. Kokom saltou para o dorso de seu garanhão e fez o cavalo dançar em volta dela, jogando areia para o ar, com os cascos. — Ele só quer sentir o seu cheiro, para saber por quem vai ser guiado. — Meu cheiro é de cavalo suado — replicou Bridget, fazendo o possível para relaxar o aperto em volta dos pêlos escuros que caíam sobre a cabeça e o pescoço do animal. — E eu acho que ele já sabe qual de nós vai ser o guia! Sem querer, ela devia ter dado ao pônei um sinal qualquer, pois o animal saiu a galope, fazendo sua carga balançar de um lado para outro. Correndo atrás, Kokom agarrou Bridget antes que ela caísse. Senta Lá deteve o animal fujão com um único assobio e Bridget, ofegante, agarrou-se aos ombros de Kokom enquanto o chão passava, a toda velocidade, sob eles. Rindo gostosamente, ele parecia disposto a levá-la daquele modo até a aldeia. — Po-pode me pôr no chão em qualquer lu-lugar, Kokom. Eu vou para casa à pé.


Ainda rindo, Kokom meneou a cabeça. — Eu lhe prometi um passeio em um dos nossos cavalos e sou homem de palavra. Com Senta Lá seguindo em seu pônei e Vento Vermelho trotando docilmente atrás, eles entraram na aldeia. Como que temendo que Bridget saltasse ao chão no momento em que parassem, Kokom segurou-a com força pela cintura, os cabelos soltos misturando-se com os dela, quando o vento do noroeste os atingiu. Ele sorriu abertamente, os olhos negros brincalhões, quando ela se pôs a puxar a saia para baixo, tentando cobrir os joelhos. Junto à tenda de Doce Água, várias mulheres misturavam banha com framboesas secas. Perto, Lontra Cinzenta orientava três garotas mais novas na confecção de maços de junco para serem usados no novo depósito de cereais, que estava sendo construído sob as ordens de Kinnahauk. Todos se voltaram para olhar, quando Kokom deslizou de sua montaria e colocou Bridget no chão. Ela tremia tanto, como resultado daquela primeira lição, que mal podia parar em pé e agarrou-se aos braços dele, para não cair. Ciente da cara fechada de Lontra Cinzenta, Kokom passou o braço pela cintura de Bridget, murmurando algumas palavras de consolo ao ouvido dela. — Amanhã, nós tentamos de novo, minha amiga de cabelos claros. Bridget lançou-lhe um olhar zangado, ciente de que todos tinham presenciado sua chegada pouco digna. Muitos estavam sorrindo e alguns, rindo. No fim, um sorriso involuntário aflorou em seus lábios. — Pode ser que eu nem consiga me mexer amanhã, meu amigo de coração negro! — Você disse que conhecia cavalos. — E conheço. Ela não se deu ao trabalho de explicar que o único animal que já montara tinha sido um cavalo treinado para puxar carroças. Além disso, nem as damas que costumavam montar os belos cavalos de Squire Jarman seriam capazes de sonhar em montar com as pernas caídas de cada lado do animal. — Amanhã, então? — Kokom pressionou. Bridget passou a mão pelo traseiro, que tinha sido severamente castigado. — Amanhã — concordou, decidida a não se retirar em desgraça. — Kittapi. — O rapaz sorriu abertamente. —Amanhã.


De repente, dedos de ferro enterraram-se nos ombros de Bridget, fazendo com que ela se encolhesse de dor. — Se quer aprender a montar, Bridgetabbott, peça a uma das crianças para lhe ensinar. Kokom tem coisas mais importantes a fazer —Kinnahauk disse enquanto Kokom se afastava. — Se você não tirar garras dos meus ombros, sua grande ave de rapina, meus braços são capazes de cair! — Bridget sibilou. Ela não estava contente com o modo como seu coração batia, sempre que Kinnahauk andava por perto. Apesar de já ter deixado para trás sua crença de que os nativos eram todos selvagens sedentos de sangue, seria tolice achar que não eram muitíssimo diferentes dos ingleses. Aquela gente cultuava deuses cujos nomes não conseguia nem pronunciar. Quando à realeza, Kinnahauk, um homem que não usava nada a não ser um pedaço de couro para cobrir o corpo, era o Senhor de Croatoan e todos os Hatorask! Com ar envergonhado, Kinnahauk relaxou os dedos e friccionou o local machucado. — Eu fui brusco demais, Bridgetabbott. Não é sua culpa que Kokom tenha de fazer papel de tolo, com todas as mulheres que vê. Ele é um grande guerreiro, mas não é para você. Se quer mesmo aprender a montar, eu lhe ensino. — Eu sei montar! A raiva superou o embaraço de Bridget. Kokom só se mostrara bondoso. Ele a fizera rir, quando achava que nunca mais seria capaz disso, e agora aquela criatura mal humorada, de olhos dourados e maneiras bruscas, queria tirar-lhe até esse pequeno prazer. — É que seus cavalos não são como os de minha terra — continuou, mais enraivecida ainda. — E vocês não usam nada para ajudar a montar. Nem rédeas para dirigir! Faz algum tempo que não monto, mas logo vou me acostumar. Não preciso de que ninguém me ensine. — Não fale o que não é verdade. Não é vergonha aprender. — Ótimo! Assim, não ficarei envergonhada de permitir que David Lavender me ensine. Se deixar que Kokom me leve a Albemarle, não aborrecerei mais com "o que não é verdade"! Bridget ficara magoada com a acusação porque nunca mentira a ninguém. Kinnahauk deu a impressão de crescer diante de seus olhos, tornando-se mais parecido do que nunca com uma nuvem de tempestade. Agarrando-a pelos ombros, levou-a a entrada do bosque de carvalhos, que rodeava a aldeia. De lá, podiam ver a expansão ilimitada de água que batia na praia, jogando espuma para o ar.


— Dá para você ver como a água está brava, mulher? Quer que eu passe muitos dias e noites numa canoa pequena, cavalgando essas ondas para que você possa se deitar novamente nos braços do seu David Lavender? Ah! Você vai ficar aqui, até eu lhe dizer que pode ir. Não vou arriscar uma boa canoa e a vida de um dos meus irmãos para levar uma olhos brancos fraca e egoísta aonde ela quer — Kinnahauk falou! Bridget colocou outro pote de sementes de girassol no novo depósito. Elas seriam moídas para fazer pão e sopa, durante o inverno. De acordo com o velho Soconme, haveria muitos dias em que os caçadores não conseguiriam caçar, pois as chuvas cairiam com tanta força que seria impossível ver um palmo além do nariz. Também viriam dias em que as aves selvagens ficariam longe, nos recifes, fora do alcance dos arqueiros mais fortes. Durante três luas os peixes dormiriam no fundo do mar, ainda segundo Soconme, que começara a passar muito mais tempo com ela, desde que Kinnahauk a deixara de lado. Eles falavam de muitas coisas, e o feiticeiro lhe contara que, a menos que estivessem bem preparados, com muitos depósitos cheios, conheceriam a fome, antes que a Lua do Plantio voltasse. Mesmo com os depósitos cheios, ainda havia o risco de animais famintos e tempestades súbitas arruinarem o suprimento inesperadamente. Lontra Cinzenta estava agindo de uma maneira cada vez mais estranha. De vez em quando, parecia até amigável, embora sempre desse um jeito de causar a impressão de que estava rindo de um segredo malicioso, que só ela conhecia. Não era mais abertamente hostil, pelos menos quando estavam com os outros; mas mostrava uma frieza maior quando estavam sozinhas. Em todo caso, como Bridget sempre dizia a si mesma, mulheres eram sujeitas a estranhas mudanças de humor. Até ela andara estranha nos últimos tempos, tomada pela alegria e pelo desânimo, de acordo com as idas e vindas de um homem. Kinnahauk. Fechando o depósito com todo cuidado, Bridget olhou para os homens que construíram uma espécie de ceveiro, destinada a capturar os peixes que seriam defumados e secos para o inverno. Dois destacavam-se entre os outros, e um, entre todos. Kokom e Kinnahauk eram parecidos , mas sua respiração nunca se alterava quando Kokom chegava perto. Seu coração sempre batia tranquilamente, mesmo quando Kokom a segurava para colocá-la no pônei. Bridget vinha tirando muito prazer de seu pequeno ato de desafio. Aprendera a montar, quase desafiando Kinnahauk a protestar. Ele não dissera mais nada, mas ela sentira os olhos dele nela, todas as vezes que voltava com os outros e soltava seu pônei, para que o animal pudesse correr livre pela ilha. Às vezes, quando o trabalho do dia estava pronto, ela se juntava às moças que iam até a praia do outro lado da floresta, à procura de conchas para decoração e comércio. De vez em quando, paravam para observar os homens correndo a cavalo pelos trechos de areia descobertos pela maré vazante. À medida que os dias iam se tornando mais curtos, no entanto, começou a sobrar menos tempo para diversão. As mulheres tinham de defumar e secar a carne trazida pelos homens, além de raspar e curtir as peles na água escura de certas fontes, que nasciam em meio ao bosque de carvalhos. De


vez em quando, apareciam visitantes de outras tribos. Bridget aprendera a reconhecer as diferentes maneiras de eles se vestirem, mas embora estivesse aprendendo o dialeto Hatorask, não conseguia entender nada das outras línguas. Muitas vezes ela avistou velas que só podiam pertencer a navios de seu povo, mas eles sempre se desviavam, antes de chegar a Croatoan. Nada mais foi dito sobre sua ida a Albemarle e ela não tinha coragem de perguntar, pois o tempo mudara e os ventos sopravam constantemente da direção para onde teria de ir. Ho, Bridget — cumprimentou Soconme, do tapete colocado do lado de fora de sua tenda. — Ho, Soconme. A sua cabeça ainda dói? — A dor vem com os ventos. Não passa de outro mar onde é obrigada a navegar. Bridget sabia que poderia aliviar a dor de cabeça do feiticeiro, bem como a dor nas juntas nodosas, mas não se oferecia porque tinha medo de insultá-lo. As crenças dos Hatorask eram diferentes das suas. Podaria facilmente causar ofensa, sem nem saber disso. — Tomara que o calor do sol lhe traga alívio — disse, como ouvira Doce Água desejar, muitas vezes. Soconme observou a jovem waurraupa shaman caminhar para a ouke de sua amiga. Ele aprendera a gostar da inglesa, pois tinham muito em comum. Ambos haviam encontrado e vencido muitos inimigos. O que não era ruim, pois os inimigos não passavam de outra prova mandada pelo Grande Espírito. A pequena waurraupa shaman caminhava com altivez, embora muitas vezes exibisse uma grande tristeza no olhar. Já sofrera muito. Tivera uma grande perda. Mas não curvara a cabeça diante desses acontecimentos, tendo cruzado a grande Água na canoa de asas quebradas para encontrar Kinnahauk. Soconme olhava no coração de Lontra Cinzenta e encontrara muita força, mas também a frieza do inverno. Olhara no coração da waurraupa shaman e encontrara muita força, só que com o calor do verão. O jovem escolhera bem. A pequena waurraupa shaman temperaria a altivez do rapaz com o calor fértil do verão. Ela possuía a força do carriço, que se inclina com o vento e sobreviver. Ele possuía a força do carvalho, que suporta os ventos poderosos mas não é capaz de se inclinar. Ainda naquele momento, nuvens de tempestade agrupavam-se do outro lado do Mar Interior. A jovem waurraupa shaman seria testada novamente. Quando a tempestade chegasse, Kinnahauk não estaria lá para protegê-la com sua força.

CAPÍTULO XII


Albermarle Sudie apoiou os cotovelos sobre a mesa redonda e fitou o homem que acabava de matar. Sua saia, feita com o tecido comprado de um mercardor da Virgínia, pois ela se recusava a fiar e tecer, estava manchada pelo mesmo sangue que agora coagulava na parte de trás da cabeça do sem-vergonha. O maldito filho de uma cadela! Ela o avisara para deixá-la em paz quando a lua estava errada, mas ele, bêbado como sempre, havia ignorado suas palavras. Aquela manhã, depois de vomitar até ficar como corpo doído, ela compreendera. Ah, não era primeira vez que era pega! Se estivesse em Londres, encontraria mulheres dispostas a ajudá-la, poções que poderia tomar para se livrar da carga indesejada. Mas ali, naquele buraco fedorento, perdido no fim do mundo, não tinha ninguém a quem recorrer. Maldito cachorro bêbado! Ela fora tomada por um acesso de raiva, ainda dolorida das ânsias de vômito, e ele rira dela. Rira dela! Nesse ponto, gritando obscenidades num tom agudo, jogara nele uma tigela de ensopado frio. Mas quando erguera o pé para chutá-lo o maldito havia agarrado seu pé, puxando com tanta força que a mandara ao chão. Parando então diante de seu corpo caído, ele arrotara barulhentamente e ordenara que lhe preparasse o café da manhã. A simples ideia de comida lhe dera novas ânsias. E olhar para Albert Fickens deixara-a mais doente ainda. Depois de atingi-la com um pontapé meio fraco, o desgraçado caíra sobre uma cadeira, sorvendo outro gole gorgolejante da garrafa de uísque. Ela se agarrara à beira da mesa para se levantar, e quando seus dedos encontraram o cabo da pesada frigideira de ferro agira instintivamente. Não sabia quanto tempo ficara no mesmo lugar, olhando para ele, enquanto esperava o estômago se acalmar. Ele não era o primeiro a quem dava o que merecia. Nem seria o último, se os outros homens daquele lugar selvagem e desolado tinham alguma semelhança com ele. O cheiro forte de uísque misturou-se com o fedor de comida estragada e corpos não lavados. O uísque de milho que Albert fazia, atrás da cabana, estava escorrendo pelo chão, impregnando os tijolos manchados de gordura. Ao girar a frigideira no ar, ela atingira e quebrara a garrafa que ele tinha na mão. O mau cheiro fez seu estômago revirar, novamente. — Filho da p... — murmurou, num tom monótono.— Eu ti insino a coloca um garoto chorão na minha barriga! Sudie engoliu a saliva com gosto amargo, que tinha na boca. Estava encrencada de novo, mas isso não era novidade para uma mulher que nascera num prostíbulo da pior região de Londres. De um cavalheiro fino, que fora se divertir por lá vinte e seis anos atrás, ela herdara a inteligência que a ajudara a fugir, aos treze anos, e ir para uma casa onde só servia a nobreza, em vez de todo vagabundo e marinheiro doente que tivesse uma moeda para jogar em sua direção. Newgate não fora uma experiência nova para ela. Antes, já tinha visto o interior daquele lugar infernal, mais de uma vez. Com um shilling ou dois na mão, logo aprendera a conseguir sua transferência para o Castelo, pois a ala de maior prestígio da


infame prisão londrina era tão fina quanto qualquer clube de cavalheiros, no que dizia respeito a esse tipo de arranjo. Ao embarcar para a América, ela achara que se havia arrumado para sempre, e muito bem. Ia ser a esposa de um fino fazendeiro. A sra. Fickens, com macias camas de penas, criados e tudo o que quisesse, naquela terra sonho! No entanto, assim que pusera os olhos no homem que a esperava, no cais de Albemarle, compreendera logo que havia cometido um erro. Albert Fickens estava à parte dos outros. Ou talvez os outros tivessem se movido para o lado contrário de onde soprava o vento, pois, mesmo sem as moscas pousando em sua carcaça fedorenta, ele não oferecia um belo quadro. Naquele exato momento, Sudie resolvera tomar o nome de Bridget Abbott. Não tinha culpa de ter tropeçado e caído sobre aquela tola, no instante em que batiam no banco de areia. Se a maldita era mesmo uma bruxa, devia ter se salvado. Se não era, talvez tivesse criado asas e voado para longe. Sudie havia esperado até todas as outras terem reclamado a bagagem. A última fora a vesga da Tess, que se amarrara a um velho bode de barbas grisalhas, com um brilho malicioso no olhar. Ele viera de barco, fedendo a peixe e a tabaco, e a levara embora imediatamente, caminhando ao longo do cais. Tess com certeza não estava mais rindo, pois acabara com um pescador meio gaga, sem dinheiro até para alugar uma carruagem. Dois homens haviam ficado no cais: um, alto e claro, embora um pouco amarelado para o seu gosto, e o outro, aquele maldito a quem acabava de dar o que merecia. Fitando-os disfarçadamente, ela alisara uma dobra da saia, repetindo em pensamento o nome de Bridget Abbott para que ele saísse com naturalidade de sua boca. E já ia se adiantando pelas tábuas ásperas, ainda um pouco vacilante devido ao longo tempo passado no mar, quando o capitão cortara seu caminho. Aquele demônio de olhos frios, com as mãos cheias de papéis, olhara-a como se ela não passasse de um monte de carne bichada e dissera, apontando para o miserável do Fickens: — Aquele é o seu marido, dona. — E ainda acrescentara, correndo os dedos gorduchos pela lista de nomes. — Albert Fickens, comerciante. — Ah, mas eu sou... — O outro é o sr. Lavender, que veio pela coitadinha que caiu no mar. A essa altura, os dois homens convergiam para eles. David Lavender era alto e tinha uma aparência quase elegante numa roupa de lã negra, com os cabelos claros caindo sobre a testa pálida. Seus lábios finos não agradaram a Sudie, que sabia reconhecer um homem avarento, quando via um. Já Albert Fickens tinha o rosto vermelho, cabelos negros e oleosos e usava roupas que, se um dia tinham tido estilo e cor, há muito haviam perdido os dois. Sua expressão era a mesma que de um homem faminto, aproximando-se da mesa de um banquete. No dia em que havia colocado sua marca ao acaso, na prisão, Sudie jogara e perdera. O nome do homem que havia pago sua passagem fora lido em voz alta, mas ela


não prestara atenção. Liberdade era tudo o que queria. Liberdade e a chance de subir tão alto quanto sua inteligência a levasse. Pois bem, sua inteligência a levara para o topo de um monte de lixo. Agora, tinha de dar um jeito de sair dali antes que aqueles malditos selvagens aparecessem, trazendo milho roubado para trocar pelo uísque de Albert. Sudie era obrigada a reconhecer que Albert fazia um bom uísque e uma excelente cerveja doce, que produzia amassando talos de milho. Ele fora um bruto fedido e mau caráter, mas tinha de admitir que também havia sido um bom comerciante, trocando um pouco de álcool por todo o milho que os peles vermelhas eram capazes de trazer. Naturalmente, com isso o lugar estava sempre cheio deles, pois os desgraçados tinham um fraco tão grande pela bebida que roubavam milharais de brancos e vermelhos. O que compensava era o fato de praticamente caírem mortos, depois de beber, tornando-se presa fácil para os irados fazendeiros. Ah, como ela odiava aqueles selvagens! Se dependesse de sua vontade, todos seriam mortos. Até agora, ainda não descobrira quem odiava mais: se os selvagens ou aquele demônio com o qual se casara! Sudie ergueu-se com dificuldade da mesa, friccionando as costas, onde longas horas de um trabalho estafante haviam deixando uma dor permanente. Ainda não estava vencida. Não, enquanto tivesse aquele trunfo na manga. Mas primeiro tinha de encontrar o ouro que Albert escondia. Depois disso, era só incendiar o lugar. Qualquer um que encontrasse os restos do maldito na certa pensaria que um dos selvagens, cansado de ser enganado, resolvera despachá-lo desta para melhor, com um bom golpe na cabeça. Antes que a fumaça pudesse ser avistada da cidade, ela já estaria a uma boa distância dali. Levaria a carroça, alegando que Albert a mandara buscar suprimentos, e daria um jeito de ficar por lá até ele ser descoberto e a culpa de tudo jogada sobre os selvagens. Só então poderia descansar e aceitar o consolo devido a uma viúva recente. "Uma viúva com um moleque na barriga!", pensou Sudie, cheia de amargura. "O maldito touro no cio!" Ela já fora nocauteada antes e provavelmente seria de novo, mas sabia o bastante para tirar o máximo de vantagem do que lhe restara, o que era mais do que muita gente podia dizer. Precisaria de um protetor. Mulheres eram raras naquela terra, e muitos plantadores precisarem de alguém para tomar conta da casa. Havia David Lavender, por exemplo. Diziam que ele construíra uma casa para a noiva e desmaiara muitos acres de terra, onde seriam plantados milho e tabaco. Ao que parecia, era membro de uma família rica, que o mandara para as colônias, por um motivo desconhecido e que pagava para que ele ficasse longe da Inglaterra. Uma família que um dia poderia amolecer e permitir que ele voltasse para casa. Com a esposa, naturalmente. Ah, um homem como aquele realmente precisava de uma esposa para tomar conta da casa e dar ordens aos criados. O tempo que se passara não fora o suficiente para que pudesse mandar buscar outra noiva em Londres ou Plymouth. Sudie passou a mão calejada pelos cabelos sujos e começou a sorrir, os olhos escuros brilhando como há muito não brilhavam. O vestido de lã azul lhe caía muito bem. Com um banho, um pouco de pó de arroz no nariz e algumas gotas de perfume, ainda era capaz de chamar a atenção de um homem. Se agisse depressa, antes de sua barriga


começar a inchar, não via motivo para o pobre do sr. Lavender ficar sem uma esposa. Ela teria de falar com Bóris Hoag, o comerciante, pois Lavender na certa desconfiaria se fosse ter diretamente com ele. Também não podia se colocar à mercê da mulherada de boca mole que vivia nas casas espalhadas junto ao rio, porque nunca se dera ao trabalho de esconder o que pensava delas. Hoag era o único que podia introduzi-la na casa de Lavender, já que, como comerciante, dava-se com toda a cidade. Sudie logo o reconhecera como o tipo que melhor conhecia, um homem que conseguira sair das sarjetas de Londres graças à própria esperteza e falta de escrúpulos. A menos que tivesse perdido o jeito para a coisa, logo o teria a seus pés, gemendo e rastejando para que o aceitasse em sua cama. Naturalmente, quanto a isso não havia problema. Ele poderia tê-la. Por um preço, é claro. E o preço seria colocá-la junto a David Lavender, como uma pobre viúva muito necessitada de proteção, naquela terra hostil e selvagem. Rindo, Sudie caiu de joelhos e começou a procurar tábuas soltas no chão, onde Fickens poderia ter escondido sua herança.

CAPÍTULO XIII

Croatoan As rugas entre as sobrancelhas de Kinnahauk iam se aprofundando à medida que a Lua Fria se tornava mais gorda. Dois dos mais idosos da tribo morreram, deixando muita tristeza. Um rapazinho, pensando em provar a própria virilidade, entrou numa taverna e exigiu uísque. Levou uma surra tremenda e foi jogado num pântano, onde teria morrido se não fosse pela intervenção de um pescador branco, que o levou de volta a Croatoan. Kinnahauk recompensou o homem com um cesto de ostras e seis excelentes peles de gamo. Depois, perguntou ao rapazinho por que ele não havia tentado provar a própria virilidade à velha moda e foi informado de que aquilo era para os antigos. Graveto Torto foi passar uns tempos entre os Matchepungo, caçando e pescando, pois o pai de Senta Lá havia pedido cinco peles de urso pela única filha. Muitos Dedos levou Cara de Cavalo para sua tenda e Kinnahauk tinha motivos para acreditar que, na Lua do Grande Vento, os Hatorask seriam abençoados com a chegada de mais um pequeno bravo. Preocupado, Kinnahauk viu sua


oquio conquistar o coração de seu povo e ganhar, entre eles, um lugar para si. As crianças seguiam-na por toda parte, querendo ouvir histórias e canções e até Soconme sucumbira ao encanto dela. O velho shaman dizia que as mãos de Bridget eram capazes de afastar os demônios que martelavam no interior de sua cabeça, quando o vento úmido soprava e que ela conhecia muitas ervas estranhas e maravilhosas, das quais nem ele ouvira falar. Kinnahauk via o sol bater nos cabelos de Bridget, fazendo-os adquirir a cor do ouro dos brancos. E via também a faixa de pele branca, que ela usava em volta da cabeça, para cobrir a marca na testa. Por quê? Será que tinha vergonha de carregar a sua marca? Não era mais uma honra exibir a marca de um chefe? Ele observava os movimentos de Bridget, enquanto ela trabalhava, e o modo como os seios pequenos e arredondados pressionavam a pele macia do vestido, quando havia necessidade de gestos mais rápidos. Uma chama ardente nasceu em seu corpo, continuando a queimar não importava quantas horas ele passasse em conselho com seu povo ou galopando junto ao mar. Um dia, depois de um longo tempo nadando em águas frias, Kinnahauk pulou para o dorso de Tukkao e cavalgou até deixar a vila bem para trás. Estava descansando junto à baía de Chacandepeco quando Kokom aproximouse dele. — Eu não gostaria de ser a pessoa que põe essa expressão tempestuosa no seu rosto — comentou o jovem bravo, cruzando uma das pernas sobre o pescoço de seu cavalo e sorrindo para o primo e amigo. — Ho, Kokom. Não ouvi você chegar. — Fique contente por eu não ser um dos seus irmãos renegados, do outro lado da água. Eles bem que gostariam de pendurar seus cabelos feios na ponta da lança. — Kokom fitou o primo por um instante. — Mas o que é que o preocupa, meu amigo? O peixe que foi dormir e deixou nossas redes vazias? Ou é a tempestade que se aproxima? Meus ouvidos me dizem que os pássaros abandonaram este lugar e meus olhos contam que os deuses do vento estão afugentando do céu as pequeninas nuvens. — A voz da Grande Águia mudou. Ela agora fala dos ventos que virão e me diz para não temer esta tempestade. Os pássaros só entraram mais na floresta. Eles não nos abandonaram. A Voz que fala Silenciosamente me diz que as águas vão invadir a praia, mas não cobrirão a nossa ilha. — Então, por que não se alegra? — É de uma maré mais forte que tenho medo, uma maré que alcançará até mesmo as colinas mais altas. — Os ingleses — murmurou Kokom, fitando o outro lado da baía.


Os dois rapazes examinaram a praia que se estendia até onde os olhos podiam ver, do outro lado da baía de Chacandepeco, passando pela floresta de carvalhos de Pasquines e avançando até a ponta de terra que os ingleses chamavam de cabo Kendric. Uma vez, tudo aquilo fizera parte das terras dos Hatorask, e até mesmo a aldeia mais longínqua era chamada de Hatorask, em homenagem a esse povo. Depois, os ingleses vieram, primeiros com armas, em seguida com gado. Os Hatorask tinham ido para o sul, juntando-se aos irmãos que viviam num lugar perto de Chacandepeco, na própria aldeia onde o povo de Kinnahauk ainda morava, deixando para os olhos brancos, cujas canoas aladas chegavam em número cada vez maior, as terras que eram deles desde o começo dos tempos. — Os ingleses — Kinnahauk repetiu, gravemente. — A terra afunda sob o peso deles, e mesmo assim eles continuam a vir. Logo vamos ser jogados na Grande Água. Você não vai lutar, Kinnahauk? — Você sabe que não posso, meu amigo. No Tempo Antes dos Avós foi dito ao nosso povo, numa visão, para vir para este lugar e esperar a chegada dos homens do outro lado das águas. Nós obedecemos. Também nos foi dito que um pequeno grupo de olhos brancos viria ter às nossas praias, guiado por um homem de nossa própria raça. Isso aconteceu no tempo de Manteo, cuja mãe pertencia ao nosso povo. Nosso dever era acolher esses olhos brancos, pois eles representavam nosso caminho para o futuro. Isso, também, nós fizemos, como provam os que têm olhos cor do céu, entre nós. — E os que têm olhos amarelos — acrescentou Kokom, apesar de saber que o primo não gostava de exibir aquela prova de sua herança mista. — Acho que cumprimos tudo que a visão nos ordenou, Kinnahauk. Como também acho que o futuro chegou. Se não lutarmos, e logo, não haverá futuro para o nosso povo. Sentado, com as pernas cruzadas, sobre o lombo do primeiro animal que havia capturado e domado em sua vida, Kinnahauk estudou o homem que estava destinado a ser o chefe de sua gente, se ele morresse sem filhos. Entre seu povo, a chefia era herdada através da linha feminina, a menos que não houvesse filhas. Nem Doce Água nem a irmã tinham dado à luz uma filha, para escolher entre os bravos o mais indicado para liderar a tribo. Assim sendo, Kinnahauk se tornara o chefe. Agora, a não ser que ele levasse uma esposa para sua ouke e gerasse filhos ou filhas, com a sua morte Kokom herdaria a chefia. Se isso acontecesse, os velhos costumes chegariam ao fim. Kinnahauk sabia que o primo governaria de um modo diferente do seu. Sob aquela fachada despreocupada, o filho da irmã de sua mãe escondia sentimentos que surpreenderiam muita gente, caso chegasse à chefia. — Eu sinto pelos ingleses sujos o mesmo que você sente, meu amigo, mas sou o filho de Paquiwok, o neto de Wahkonda. Pela honra de meu povo, tenho de fazer valer a lei passada antes do começo dos tempos. E assim será.


— Então, as marés passarão por cima de nós — murmurou Kokom, sem mostrar emoção. — A terra não suporta as marés que a cobrem? No fim, quem é superior, a terra ou a maré? Quem veio primeiro, quando o Grande Kishalamaquon deu forma a uma bola de lama, cuspiu sobre ela e transmitiu-lhe a vida? — Kinnahauk tem aspirado aquele negócio fedido que o velho Soconme joga sobre as chamas sagradas. Sua alma ficou tão dura e seca quanto a carne deixada por muito tempo sobre o fogo. Eu lhe digo, Kinnahauk, que toda maré vazante retira as grandes canoas aladas do lugar que eles chamam de Porto James Towne. Elas vão carregadas de uncoone, que os brancos conhecem como tabaco. A maré enchente as traz de volta, cheias de armas, pólvora e mais ingleses. — É para outra maré que preciso me preparar, agora. Vamos para a aldeia, Kokom. Temos muita coisa a fazer, antes que o rosto cheio da lua faça as águas cobrirem as praias. Bridget não deu muita atenção às conversas sobre a tempestade, pois nunca vira o céu tão azul. As águas rasas perto da aldeia estavam calmas e até o mar, do outro lado da ilha, batia na areia com uma cadência firme e lenta. Só de vez em quando uma onda maior atingia a praia, explodindo com um estrondo semelhante à voz de um canhão. Se ela não temesse a ira de Kinnahauk, teria pedido a ele para aproveitar o bom tempo e levá-la a Albemarle, mas por motivos que não queria analisar preferira abandonar essa idéia. Rindo e gritando umas pelas outras, as mulheres e as crianças carregaram tudo que podia ser levado pelo vento ou pela maré, inclusive a comida, para o fundo da floresta, onde as árvores formavam uma espécie de abrigo, que lhes daria proteção. Lá, ainda em meio a muito riso e brincadeiras, ergueram rapidamente uma pequena aldeia de tendas pontudas, feitas de pau e couro. Os homens, em número bem menor que as mulheres, levaram as canoas para a parte mais alta da praia. Eles também exibiam um ar de excitamento que lembrou a Bridget a atmosfera dos dias de feira e mercado, em Little Weddborough. Muitas vezes, enquanto trabalhavam se preparando para a tempestade, Bridget passou por Kinnahauk. Seus olhares sempre se encontravam e custavam a se desviar. Só ele, entre os homens, parecia preocupado, e ela não pôde deixar de pensar no peso da responsabilidade suportada por um chefe. Não era de admirar que Kinnahauk não tivesse tempo para lhe dedicar. Na terceira vez em que eles passaram um pelo outro, Kinnahauk carregando um enorme maço de juncos e Bridget com os braços cheios das preciosas ervas de Soconme, ele parou diante dela, bloqueando-lhe o caminho. — Ho, Bridgetabbott. Você já fez demais. Não quero que fique fraca e com febre, de novo. Bridget jogou a cabeça para trás, o orgulho colorindo o rosto.


— Você já me chamou de coelho, magricela, muitas vezes, mas não sou tão fraca quanto pensa. Kinnahauk desviou o olhar. Nunca pensara que ela pudesse entender o que dizia. — Eu não... — Você me chamou de pintada, também. É uma pena que nem todos nós tenhamos sido abençoados com um couro escuro como o seu! Alguns têm de se contentar com uma pele menos dura, que se enche de sardas, no sol. — A Lua Fria rouba o poder do sol — ele murmurou, pensativo, pois a pele dela se tornara clara e macia, incentivando sua vontade de tocá-la. Um brilho divertido surgiu em seus olhos. —. Seu couro é tão macio e perfeito quanto a melhor pele, minha coelhinha. Vale muitos alqueires de milho, numa troca. Milho? Ele pretendia trocá-la por milho?! Bridget seguiu-o com o olhar enquanto ele se afastava, levando nas costas o dobro do peso suportado pelos outros bravos. Por que seu coração havia pulado como um passarinho ferido quando ele a fitara daquele modo? Kinnahauk nunca lhe mostrara nada além de uma certa bondade mesclada com um pouco de desdém, como se ela fosse a selvagem e ele, um poderoso nobre. Quando tudo que podia ser levado pelo vento ou pela água terminou de ser transferido para um lugar seguro, o céu já estava coberto de nuvens negras. O vento ganhou força e as ondas tornaram-se mais violentas, jogando água para o alto. — As gaivotas vão ficar sem comer, esta noite — comentou Soconme, da abertura de uma das tendas pontudas, que Bridget ajudara Doce Água a construir. As fogueiras não seriam acesas àquela noite, pois o vento estava tão forte que penetrava até mesmo entre as árvores e o fogo era um inimigo a ser temido. Duas mulheres tinham passado a manhã fazendo bolos de sementes de girassol e framboesas secas, que seriam comidos por todos, com carne fria. — Soconme, eu não entendo — disse Bridget, de repente. — Se há mesmo uma tempestade chegando, por que todos riem e falam como se isso fosse brincadeiras de criança? — Você preferia que eles chorassem? — Eu acho que eles deveriam estar preocupados. — Eles fizeram tudo o que um homem pode fazer, minha filha. Seu destino está nas mãos do Espírito do Vento. Chorar não vai mudar nada. Rir também não. Mas vá se juntar a eles,


waurraupa shaman, pois é bom rir quando o trabalho está feito. Quando o sol mostrar seu rosto de novo, vou fazer uma oração especial por seu filho. Seu filho?! O coitado devia estar com dor de cabeça, pois sem dúvida a confundira com Muitos Dedos, que lhe confidenciara, aquela manhã, que muitas luas se passariam antes que voltasse à tenda destinada ao confinamento mensal das mulheres, De testa franzida, Bridget foi perguntar a Doce Água se queria que fizesse mais alguma coisa. Todos estavam ocupados: as mulheres preparando as tendas para a noite, enquanto os homens comiam e falavam de outras tempestades. Kinnahauk estava sentado à parte dos outros. Mais de uma vez, Bridget sentiu seu olhar sobre ela. — Doce Água, quer que eu traga mais musgo para os tapetes de dormir? — Você não vai dormir em minha ouke esta noite, Bridgetabbott. Soconme vai sentir demais a tempestade nos ossos doentes e eu pretendo ajudá-lo.


— Mas eu... — Chegou a hora, minha filha. Uma semente plantada durante a tempestade cresce forte e ereta. Kinnahauk a levará para a ouke dele, esta noite. Bridget fitou-a, boquiaberta. - Doce Água fora sua amiga, assumira o lugar de sua própria mãe durante aqueles meses. Não devia ter entendido bem. — Você me olha de boca aberta como um cunshe recém tirado da água. Achou que meu filho se cansaria de esperar e iria para Lontra Cinzenta, se continuasse escondendo a marca em sua testa. Aquela moça é muito amarga. Além disso, você carrega a marca de Kinnahauk. Você deve ser a primeira esposa dele. Vá, agora. — Mas Lontra Cinzenta disse... Eu não poderia... — Vá — repetiu Doce Água, empurrando-a para a escuridão que reinava do lado de fora da tenda. Bridget apertou a pele macia de gamo de encontro ao corpo, esperando os olhos se acostumarem à escuridão. O vento soprava sem descanso, gemendo como uma alma agoniada. Ela mal conseguia distinguir as tendas que havia ajudado a erguer, ao abrigo da colina. Não havia uma única criatura viva à vista. Para onde tinham ido todos? Havia dúzias de pessoas trabalhando por ali quando entrara na tenda de Doce Água minutos atrás, pensando em escapar do vento. Agora, não havia ninguém e o barulho do vento encobria as vozes que poderiam tê-la tranquilizado. Era um pesadelo. A qualquer momento acordaria e puxaria as peles quentes de encontro ao corpo, acomodando-se melhor no tapete de dormir. No tapete de dormir! Onde esperavam que ela dormisse! E o que faria para se aquecer? Doce Água não podia querer, realmente, que entrasse na tenda de Kinnahauk e lhe pedisse para dormir lá. O que tinha feito de tão ruim assim para que seus amigos a colocassem naquela situação? Uma gota de água atravessou a copa das árvores, depois outra. Bridget virou-se na direção da tenda de Doce Água. Seu queixo tremia, e ela puxou a pele de gamo para a cabeça. — Venha, Bridgetabbott. Chegou a hora — disse Kinnahauk, baixinho. Bridget girou nos calcanhares, os olhos, já acostumados à escuridão, fixando-se no homem alto, diante dela. Chegou a hora. As mesmas palavras usadas por Doce Água, como se ela não tivesse nada a dizer sobre seu próprio destino. Bridget pensou nos olhares disfarçados e nos vários comentários que ouvira, antes de ter aprendido a esconder a marca em sua testa com a pele de coelho. Até Kinnahauk dissera alguma coisa a respeito, mas ela não prestara atenção.


— Não, Kinnahauk — respondeu decidida, os dentes batendo de frio. — Não chegou a hora de nada. Não sei o que vocês esperam de mim, mas não vou ser sacrificada num... Num rito pagão para aplacar os seus deuses da tempestade, não importa o que você diga! Isso já foi longe demais. Assim que a tempestade passar, quero que me leve até onde mora David Lavender. Apesar de sua aparência de coragem, Bridget sabia que teria pouca chance se os Hatorask se voltassem contra ela. No fundo, não acreditava que isso pudesse acontecer, mas onde estavam seus amigos, agora que precisava deles? Onde estava Senta Lá? E Kokom? Estava decidido. Assim que a tempestade acabasse, roubaria uma canoa e partiria. Pediria informações ao primeiro inglês que encontrasse. Fora o nome de David Lavender que lhe dera forças para continuar. Durante todos aqueles meses de degradação no navio, quando por pouco não morrera, agarrara-se ao nome dele como a um talismã. Não era só porque fora jogada numa praia esquecida por Deus e acolhida por aquele selvagem e seu povo que iria esquecer-se de David Lavender e entregar-se a um rito pagão qualquer. Doce Água até havia chegado ao cúmulo de mencionar uma espécie de união entre ela e Kinnahauk! Jamais poderia haver uma união entre ela e um homem que falava de primeira e segunda esposa. Era selvageria demais! Ignorando a súbita fraqueza que tomou conta de seu corpo, Bridget levantou a cabeça e declarou: — Pode exigir o que quiser, Kinnahauk, que eu não vou obedecer. Não sou uma das suas mulheres, que fazem olhos de peixe morto e se colocam no seu caminho, na esperança de receber um pouco de atenção. Os dentes brancos de Kinnahauk brilharam na escuridão. Pois ele que risse, o arrogante selvagem. Ela só lamentava que tivesse uma figura tão magnífica. Seria mais fácil lembrar-se da dívida de honra que tinha para com o homem que pagara sua passagem se aquela criatura, de olhos dourados e boca lindamente recurvada, não a olhasse de um modo que fazia sua garganta se apertar e os mamilos se enrijecerem.


CAPÍTULO XIV

Uma gota de chuva bateu na testa e escorreu para o olho de Bridget. Ela piscou, enquanto Kinnahauk continuava a fitá-la, em silêncio. O barulho do vento baixou para um sussurro e de uma tenda próxima veio o murmúrio de vozes sonolentas. Estavam todos dormindo? Ou só escondidos, esperando para ver e ela seguiria docilmente para a tenda daquele selvagem? A distância, Bridget ouviu o rugido do oceano chocando-se com a praia. Era um som frio e ameaçador, como se as águas estivessem a ponto de cruzar as colinas e os pântanos, à procura de seu pequeno refúgio. Outras gotas de chuva atingiram-na e ela estremeceu. Nunca se sentira tão sozinha, tão longe de tudo que lhe era querido e familiar. Uma vontade enorme de se aproximar, de encostar o rosto naquele peito largo e deixar que Kinnahauk a abraçasse e protegesse da tempestade e assolou-a. Mas não cedeu à fraqueza momentânea. — Venha, Bridgetabbott. Vamos conversar sobre isso. Não posso deixar você aqui na chuva, sabendo que ninguém a receberá em sua tenda. — Claro que eles me receberão — ela rebateu, de imediato. — Qualquer um deles me dará abrigo, se souberem que você quer... que você pretende... — Vá atrás deles, então. Peça a Senta Lá para recebê-la na tenda pequena, que partilhava com o pai, a mãe e os dois irmãos mais novos. Peça a Cara de Cavalo para ir dormir ao relento, enquanto você dorme com Muitos Dedos e o filho dela. - A chuva havia se tornado mais forte. Mesmo sob a proteção do manto de couro de gamo, o vestido e os mocassins de Bridget estavam ficando frios e molhados. Ela não possuía nada além dos trapos com que chegara à praia e que Kinnahauk havia trocado pela macia pele de corça. Com o coração apertado, Bridget reconheceu que não adiantaria pedir ajuda a seus novos amigos. Eles eram o povo de Kinnahauk, tinham sido amigos dele a vida inteira. Jamais iriam contra os desejos de seu chefe por causa de uma estranha. Olhos brancos. Era assim que eles chamavam seu povo. Peles pálidas fedorentos. Demônios ingleses. Claro que nunca tinham dito isso na sua frente, mas ela ouvira os bravos mais jovens conversando entre si. Eles temiam e desprezavam os ingleses que se haviam apoderado de sua terra. E se metade do que ficara sabendo era verdade não podia culpá-los. Antes de deixar a ilha, gostaria de falar com Soconme a respeito, pois doía-lhe pensar que sua gente fora menos honrada em seus acordos do que aqueles que um dia chamara de selvagens. Uma gota de água gelada escorreu por sua espinha, fazendo-a enrijecer o corpo. Fosse qual fosse a verdade do que acontecera antes, não se entregaria a um homem para pagar pelos


pecados de alguns bandidos desconhecidos, que podiam ou não ter maltratado parentes dele. Ah, se pelo menos ele não tivesse um ar tão... Se ele não fosse tão... — Estou cansado de esperar, mulher. Venha! — E eu estou cansada de receber ordens como se fosse uma criança desobediente! Já que você resolveu colocar meus amigos contra mim, vou fazer uma tenda com o meu manto. Um pouco de chuva não vai me matar. — Como quiser. Só não se esqueça de procurar um lugar onde as serpentes não vão. Em Croatoan, elas não dormem durante toda a Lua Fria, como acontece em outros lugares. Quando a água invade suas casas, elas procuram pontos mais altos. - Bridget lançou um olhar assustado em torno de si. — Ah, mas... — Venha, Bridgetabbott — Kinnahauk repetiu num tom suave, como se tivesse pena dela. — Tenho um tapete macio e peles quentes para cobrir você. Pode dormir sozinha, se quiser. Nunca possuí uma mulher que também não me desejasse. Mas agora venha, antes que acorde todos os meus ancestrais com essa bateção de dentes. Dizendo a si mesma que só ia porque tinha medo de serpentes, Bridget seguiu Kinnahauk. Além disso, o vento cortava como faca, a chuva estava a ponto de arrancar as folhas das árvores e não havia outro lugar onde pudesse se abrigar. A tenda de Kinnahauk não possuía um braseiro para aquecer o ambiente, mas fora erguida para resistir à tempestade. Suspirando, Bridget deixou-se cair sobre a macia pele de gamo que cobria a cama feita de musgo e grama seca. Pessoalmente, preferia as camas feitas com agulhas de pinheiro, por serem mais cheirosas, mas era obrigada a reconhecer que o musgo e a grama, depois de limpos dos bichinhos que costumavam infestá-los, davam um colchão bem mais macio. Kinnahauk estendeu-lhe um roupão grosso, feito de várias peles cuidadosamente escolhidas. — Tire essa roupa molhada e vista isto. — Minha roupa não está tão molhada assim — ela mentiu, apertando os dentes para impedir que batessem. Havia pouco espaço. Kinnahauk, em pé no meio da tenda, fazia com que se sentisse pequena e vulnerável. O fato de estar se transformando numa pedra de gelo também não ajudava, mas não pretendia tirar as roupas enquanto ele continuasse ali, acuando-a como uma enorme ave de rapina. Em sua mente, não tinha dúvidas de que ele podia ver na escuridão. — Já tirei a pele de muitos coelhos, Bridgetabbott. Um a mais não vai fazer diferença. Quer ajuda?


Tremendo incontrolavelmente, ela replicou: — O que eu quero é que você pare de me chamar desse jeito bobo! — Seu nome não é Bridgetabbott? — É, mas não como você diz —Bridget murmurou, fechando a pele sobre as roupas molhadas, o que não melhorou em nada sua situação. Delicadamente, Kinnahauk soltou o roupão de seus dedos rígidos de frio. — Eu quero honrar você chamando-a pelo nome, mas só consigo aborrecê-la. — Tirando o manto que cobria os ombros femininos, ele levou a mão à barra do vestido, que ficava bem abaixo dos joelhos de Bridget. — Afinal de contas, o que você quer que eu faça? — Quero que me deixe em paz! Você prometeu que eu podia dormir sozinha! — Mas você não está dormindo, agora. — Claro que não! Como posso, com você tentando tirar as minhas roupas? Eu sei o que pretende, Kinnahauk. Sua mãe me falou de plantar sementes durante a tempestade, de... De primeiras esposas e outras coisas assim. Mas eu não aprovo essas ideias pagãs! Kinnahauk tirou-lhe os mocassins ensopados e friccionou os pés delicados. Depois, subindo as mãos quentes pelas pernas de Bridget, segurou o vestido pela barra e empurrou-o para cima. Tremendo muito, agora não só de frio, ela tentou detê-lo, mas ele a ignorou como teria ignorado um inseto aborrecido. Obrigando-a a se levantar, terminou de tirar o vestido e jogou-o de lado. Bridget achou que seu coração ia saltar pela boca. Sentiu-se grata pela escuridão, embora duvidasse da proteção oferecida pela falta de luz. Antes que pudesse protestar, no entanto, foi envolvida pelo roupão quente e grosso. Puxando os joelhos de encontro ao corpo, procurou entender a estranha fraqueza que a assaltava, sempre que era tocada por ele. — Não há nenhuma desonra nisso — Kinnahauk disse repentinamente, os olhos muito brilhantes no rosto erguido com altivez. — Houve uma época em que os homens de minha aldeia tinham muitas esposas, que viviam juntas como se fossem irmãs. Éramos em maior número que as árvores da floresta. Vivíamos em paz, envelhecendo entre nossos netos e os filhos de nossos netos. Quando chegaram, os olhos-brancos nos chamaram de pagãos. E selvagens. Mas foram eles que nos ensinaram o significado dessas palavras. Apesar de já estar quente e não se sentir mais ameaçada, Bridget arrepiou-se, ouvindo a voz grave e sonora.


— Nós recebemos essa gente como irmãos, com os melhores presentes que tínhamos. Eles se voltaram para nossos irmãos Roanoaks, que também lhes deram presentes. Eles receberam sementes. E foram ensinados a caçar, pois não eram mais que fazendeiros. Também foram ensinados a pescar em nossas águas. — Kinnahauk fez uma ligeira pausa, depois continuou: — As sementes não foram plantadas. Nosso jeito de caçar e pescar era estranho a eles, embora eles afirmassem conhecer todas as coisas. Eles não quiseram aprender conosco, quando estávamos dispostos a ensiná-los. Procurando ouro, eles não pensaram em se preparar para o futuro. Desperdiçaram muito e exigiram mais. Na época em que o Deus da Chuva nos deu as costas, pouco milho restou entre nossos irmãos do outro lado do Mar interior. Quando a Lua Fria se aproximou, nosso povo estava faminto, mas mesmo assim abrimos nossos celeiros para aliviar a fome de nossos novos amigos. Mas eles não ficaram satisfeitos com isso. Avarentos, roubaram nossos depósitos de comida, destruindo o que não podiam carregar. Nossos irmãos, os Roanoaks, os Poteskeets, os Paspatanks e os Yeopim viram suas oukes serem queimadas, as mulheres e os filhos, assassinados. Nós somos chamados de selvagens, mas que homem de honra seria capaz de matar mulheres e crianças? Ouvindo a madeira que sustentava a tenda ranger sob a força do vento, Bridget estremeceu e apertou o roupão de encontro ao corpo. Estava confusa. Kinnahauk falava como se tudo aquilo tivesse acontecido no dia anterior, mas não podia ser assim. Os cidadãos respeitadores da lei, que habitavam aquela colônia, jamais permitiriam que tanta injustiça fosse feita. Do lado de fora, um galho foi ao chão. Disfarçadamente, Bridget chegou mais perto de Kinnahauk, que continuou a contar: — Nossa tristeza foi grande, pois aprendemos que aquela gente não falava com seus corações. Muito sangue foi derramado. Muitas mulheres choraram. Muitos grandes chefes e muitos bravos guerreiros, guiados por sua honra, foram se sentar em conselho com os líderes dos ingleses, mas o único resultado foi mais traição. O sangue do grande werowance Pemispan, dos Roanoaks, e o sangue do Granganameo, irmão dele, foram derramados, seus corpos desrespeitados por aqueles que usavam roupas finas e se chamavam de lords. Os líderes dos ingleses, Kinnahauk dissera. Os líderes do meu povo, pensou Bridget. Gostaria de acreditar que seu povo jamais poderia ser culpado de tanta crueldade, mas não conhecera ela mesma, nas mãos deles, assassinato, tortura e desgraça? O que Kinnahauk havia citado acontecera ontem ou cem anos atrás? O tempo, em si, parecia estranho e diferente naquela terra distante, varrida pelo vento, regida não pelos dias de uma semana ou as semanas de um ano, mas por marés e estações. Atraída pelo calor de Kinnahauk, Bridget havia se aproximado tanto que era capaz de sentir o cheiro do corpo dele, embora não pudesse enxergá-lo. E, vendo o modo como a pele que cobria a tenda


afundava entre os paus que a sustentavam, enquanto o vento rugia lá fora, não pôde deixar de sentir-se grata por essa proximidade. — É por isso que você despreza o meu povo, Kinnahauk? É por isso que sempre me odiou, até quando me tirou da água e me seguiu por toda a sua ilha? Por causa do que o meu povo fez com o seu? — Eu não te odeio, Bridgetabbot. Não posso, pois não cabe a mim odiar um presente do Grande Espírito. — Um presente do Grande Espírito?! Como assim? A surpresa dela foi tão genuína quanto o ar divertido de Kinnahauk. — Isso mesmo que você ouviu. — Mas é uma grande tolice! Desde o começo você me encarou como uma criatura digna de pena, jogada na praia por uma maré de má sorte! Se realmente me considerasse um presente do Grande Espírito, não me trataria com tanto desdém. — Aquecida, ela se sentia segura o bastante para provocá-lo um pouco. — E você não era uma criatura digna de pena, jogada na minha praia? — ele rebateu de imediato, com lógica irrefutável. — Já vi as gaivotas deixarem cair peixes que cheiravam melhor. Tendo apenas uma vaga lembrança do mau cheiro que havia dominado seus pesadelos, naquele primeiro dia, Bridget preferiu virar-se para o outro lado, aconchegando-se melhor ao roupão. O que não a impediu de ouvir o riso baixo de Kinnahauk. — Se o que você diz é verdade, por que se deu ao trabalho de me trazer para Doce Água? Poderia ter me deixado lá, para ser levada pela maré vazante. Eu nem teria notado nada. Sem perceber, Bridget prendeu a respiração, enquanto esperava pela resposta. Quando afinal a ouviu, foi tomada pela decepção. — Meu sangue está misturado com o sangue do seu povo, Bridgetabbott. Não posso odiar você, apesar de odiar o que o seu povo fez com o meu. Sou chamado de covarde por muitos, porque escolhi a paz. É mais que suficiente lutar contra as marés que cobrem nossa ilha e os ventos ferozes que sopram por dias a fio, sem parar. E mais que suficiente ver meu povo de barriga cheia, pois o milho não dá muito, na areia. Temos muitas bocas para alimentar, mas poucos caçadores. A voz grave e ressonante, formulando palavras familiares de um modo tão pouco familiar, acalmou os temores de Bridget. Ela já vira muitos lados


daquele homem completo, mas era a primeira vez que ele lhe falava assim. Uma porta fora aberta diante dela, atraindo-a cada vez mais, embora tivesse medo de entrar. — Eu lhe contei tudo isso para que não tenha medo de mim, Bridgetabbott. Por minha vontade, eu não derramaria o sangue de ninguém, mas meu povo ainda não se esqueceu de como lutar. Lutando, abrimos nosso caminho por muitas terras, no Tempo Antes dos Avós. Um dia, talvez tenhamos de abrir nosso caminho novamente, para voltarmos à terra do nosso começo. Até esse dia, só pintaremos nossos rostos quando nos sentirmos ameaçados, pois não queremos tomar, à força, o que pertence a outros. — Mas quem pode ameaçar vocês? Não há ninguém na ilha além do seu povo. — Logo o seu povo virá à nossa aldeia, Bridgetabbott, com armas e gado. Nossos bravos são poucos, e as armas dos olhos brancos são muitas. Quem cuidará de nossas mulheres e crianças, se nosso sangue tingir a areia? Quem trará comida e peles quentes, para suas oukes? Quando a maré inglesa vier, cobrirá até a colina mais alta. Para onde iremos, então, Bridgetabbott? Para o mar? De volta para a terra onde o sol dorme? Ainda agora, seu povo já se espalhava por essa terra. Teremos de voar com os gansos selvagens, como fazem os espíritos de nossos ancestrais, para voltar todos os anos, na época das folhas que caem? O que podia ela dizer? Bridget não sabia quem estava certo ou errado; só sabia que, naquele momento, daria tudo para ajudar o homem que tinha diante de si. Um homem preocupado, que tinha a responsabilidade de manter seu povo a salvo, apesar de todos os riscos. Na escuridão, estendeu a mão para ele, tocando-lhe apele nua com a ponta dos dedos. Pensando que tocava um braço, acariciou-o de leve, só então descobrindo que se tratava de um joelho. Tentou recuar, mas ele a impediu, cobrindo sua mão com a dele, muito maior e mais forte. — Não tenha medo, coelhinha. Não pretendo lhe fazer mal. — Tenho a impressão de que já ouvi você dizer isso, antes — ela retrucou, com um riso nervoso. — E por acaso eu já lhe fiz mal? — Se não contarmos o susto que me deu, quando o vi pela primeira vez, não. Pensei que você ia tirar minha pele e me comer viva. — Seu povo conta histórias de muita crueldade e nem todas são mentira. Tenho muitos irmãos que estão longe de ser pacíficos. — E vários dos seus bravos gostariam que você também fosse assim — Bridget arriscou.


Os rapazes da aldeia muitas vezes falavam com mais liberdade do que deveriam diante dela, pois tinham se acostumado a vê-la entre as mulheres e não lhe davam mais atenção. — É verdade. Mas chega de falar, Bridgetabbott. Meu corpo está cansado de construir tendas, e minha mente está cansada de perguntas que não têm resposta. É melhor dormirmos. — Você... Será que... — Bridget não sabia ao certo como formular a pergunta, e no fim acabou dizendo, de sopetão: — Onde você vai dormir? — Sozinho, Meu tapete e o roupão de pele de lobo são seus. - Cheia de culpa, Bridget pensou que na tenda mal havia lugar para um tapete de dormir, quanto mais para dois. — Você tem outro cobertor? — Você faz mais barulho que uma moringa seca, cheia de sementes— Kinnahauk resmungou. Pelo som, ela percebeu que ele havia se afastado, estando de frente para a abertura na tenda e de costas para o colchão de grama e musgo, sobre o qual jogara um cobertor de peles. Suspirando, Bridget se ajeitou no gostoso ninho, prendendo melhor o cobertor nas costas, onde uma rajada de vento conseguira atingir sua pele nua. A tenda impedia a entrada de chuva, mas o vento aumentara muito e parecia disposto a invadir tudo. O que, com uma força daquelas, não seria difícil. Apesar de seu corpo se alegrar com o descanso, seus olhos continuaram abertos, na escuridão. Kinnahauk não tinha nenhuma coberta. Os homens daquele lugar usavam pouca roupa e pareciam não sentir frio, mas mesmo assim ela não pôde deixar de imaginar como seria deitar-se diante de uma abertura mal fechada, sem nada além de uma tanga, um par de mocassins e uma espécie de capa curta, bastante fina. E o pior era que tudo estava ensopado de chuva. — Kinnahauk? — sussurrou. Ele resmungou qualquer coisa. — Kinnahauk, minha consciência não me deixa dormir. Por favor, venha para o tapete. Ele é grande o bastante para nós dois. Mal acabou de falar, Bridget arrependeu-se. E se ele interpretasse mal suas palavras? — Eu só queria... Olhe, pelo menos fique com o roupão de pele. Sentando-se, ela estendeu, relutante, o roupão para onde ele devia estar. De imediato o ar frio e úmido atingiu-a, fazendo com que se aconchegasse mais à coberta que lhe restara. — Se você ficar doente por dormir com roupas molhadas quem vai liderar seu povo? Não quero ter isso na minha consciência, Kinnahauk. — Fique com o roupão, mulher — Kinnahauk resmungou, jogando-se de volta para ela.


— Não vou permitir que se transforme num bloco de gelo, antes de cumprir sua promessa de me levar a Albemarle. Fique você com ele! — Ela tornou a jogar o roupão para ele. — Posso usar a pele de gamo. De repente, Bridget percebeu que não estava mais sozinha; Kinnahauk, ajoelhado a seu lado, segurou-a pelo ombro e forçou-a a se deitar no chão macio. — Vamos partilhar os dois. E quando minha mãe lhe perguntar, amanhã, se dormimos juntos, não terá de mentir. Estou cansado da amolação dela! Logo depois, Kinnahauk começou a achar que os deuses haviam roubado seu bom senso. Ao se acomodar ao lado de Bridget, na ponta do colchão, com os joelhos puxados para o corpo e os braços cruzados sobre o peito, para afastar o frio, chegou a ouvir o riso deles, na voz do vento. O roupão de pele de lobo não era grande o bastante para cobrir um homem e mulher decididos a dormir juntos e, ao mesmo tempo, continuar separados. Ela que ficasse com o roupão. Kinnahauk não precisava dele, nem do colchão macio, sob seu corpo. Passara metade de suas noites dormindo sob as estrelas, tendo como única proteção sua própria pele, o que muito o ajudara a endurecer seu organismo contra os elementos da natureza. Nem sabia por que dera ouvidos àquela criatura tola! Só se fosse por que ela poderia mantê-lo acordado a noite inteira, falando sem parar. Sua oquio! Os deuses só podiam estar rindo, mesmo. Tinham lhe dado uma terra onde o milho não crescia. E o atormentavam com perguntas que não tinham respostas. Mas a ironia final fora aquela: para seu conforto, tinham lhe dado uma mulher que o desprezava, desde a primeira vez em que a vira! O vendo mudou de direção, jogando a chuva de encontro à parte da frente da tenda. Bridget encolheu os pés, sob o roupão, e seus joelhos roçaram as costas de Kinnahauk. Ela prendeu a respiração. Ele gelou. Ao que parecia, os deuses ainda não estavam dispostos a deixá-lo em paz. Sem dúvida tinham pensado numa tortura ainda mais refinada, que aumentaria seu sofrimento. Sua pele, extremamente sensível, sentia o hálito de sua oquio nas costas. E suas narinas tremiam ao perceber o cheiro do corpo dela. Acima do aroma característico de mulher, ele distinguiu o cheiro de ervas e folhas que ela costumava misturar às raízes com que tomava banho. Ela estava inquieta. O colchão produziu um ruído quando ela se virou, dando-lhe as costas. Ele seguiu o movimento, virando-se também e aproximando-se até sentir o calor feminino ao longo de cada centímetro de seu corpo. Alguns fios dos cabelos loiros tocaram seu rosto, e ele os prendeu entre os dedos, maravilhado com tanta maciez. Como pudera, um dia, compará-los a grama seca? Muito depois de o som da respiração de Bridget ter-lhe dito que ela dormia, Kinnahauk continuava acordado. Pensava na mulher que partilhava sua cama. Ela lhe pertencia. Tinha a sua marca. Toda a aldeia sabia disso. Ele só não a levara para sua ouke porque ficara muito desapontado, depois de tantos anos esperando que sua visão se realizasse. Ela não era bonita como as mulheres de sua raça, no entanto ele começara a ver


nela uma beleza que nunca vira em outra mulher. Ela pertencia ao povo que tanto desprezava, mas não se mostrara boa, amorosa, gentil e amiga de seu próprio povo? Não provara que tinha honra, ao pedir-lhe que a levasse para o homem que havia pago seu preço de noiva? Ela era sua. Não por direito do preço de noiva, mas por direito de sua visão. Talvez, se procurasse esse tal de David Lavender e lhe pagasse um preço ainda maior por ela, sua honra e a dela nada sofreriam. Na escuridão, Kinnahauk apertou os punhos. Se sua mente não lhe dava descanso, seu corpo era ainda pior, pois seu membro viril procurava por ela na escuridão, como se tivesse vontade própria. Não era característico de seu povo tomar à força uma mulher, pois um ato desses trazia mais vergonha que prazer. Mas também não havia prazer em arder daquele modo. Fechando os olhos, ele procurou dirigir os pensamentos a lugares mais altos. Escutou para ver se a Voz que Fala Silenciosamente lhe dava algum conselho, mas só uma voz ressoava acima do choro do vento: a voz de seu desejo desesperado. Ele a seguraria de encontro a si. Ele a abraçaria e não faria o menor gesto para tomá-la, e, quando seu membro viril se cansasse de esperar, acabaria adormecendo. Então, em silêncio, sairia da tenda e iria até a aldeia ver o que havia restado, depois da tempestade.Com isso ele se aproximou, moldando o corpo às costas dela e passando-lhe o braço pela cintura. Enterrando o rosto nos cabelos loiros e macios, sentiu seu cheiro doce e não conteve um gemido, que se perdeu em meio ao barulho do vento. Seu membro viril, rebelde, procurou lugar entre as coxas femininas, deliciando-se com o prazer dado pela pressão suave, que o satisfez por um momento, enquanto alimentava as chamas de seu desejo intenso. Respirando fundo, ele engoliu com dificuldade, pois tinha a boca seca. Muitas vezes, em sua vida, desconfiara de que não era um homem de muito juízo, mas essa impressão nunca fora tão forte quanto naquele momento. Baixinho, entoou as palavras de uma velha canção de guerra, que dava coragem aos que estavam a ponto de enfrentar o inimigo, no campo de batalha. — Coragem, coragem, tudo vai passar, e tudo voltará. — Sua mão roçou a dela, e ele capturou um dedo pequeno e delicado. Com o polegar e o indicador, pôs-se a traçar-lhe o contorno, consciente do aumento de calor, à medida que se aproximava do vale entre aquele dedo e o outro. Ao atingir esse ponto, começou a friccioná-lo gentilmente, os pensamentos em outra junção. Entreabrindo os lábios para acalmar a própria respiração, desceu a mão para a barriga feminina. Seu polegar encontrou o fundo causado pelo umbigo, e ele abafou outro gemido. Tendo a memória como inimigo implacável, reviu o tufo de pêlos dourados, que tanto o encantara. Seu membro viril, já rijo, agitou-se ainda mais. Atormentado pelo desejo, não resistiu e deslizou os dedos para baixo, até encontrar a penugem macia. Em nome do Grande Espírito, um homem não tinha sido feito para sofrer tanto! De repente, Bridget esticou uma das pernas, a de baixo, virando o corpo de modo que a mão dele ficou entre ela e a pele de gamo. Suas coxas, que haviam abrigado o membro viril de forma tão apertada,


separaram-se, deixando a pobre criatura exposta e procurando, inutilmente, a fonte do calor feminino. Ela murmurou algo, e Kinnahauk gelou. Mas era só conversa de sono. Sua oquio não acordara, apesar de estar com a respiração cada vez mais rápida e pesada. Por um longo instante, ele não se mexeu, a honra lutando contra a feroz exigência de seu corpo. Mas ele não queria ouvir. E não ouviria! Aquela mulher tinha a sua marca. Fora dada a ele! E a honra exigia que não recusasse tal presente. Bridget moveu-se, e ele sentiu a ponta do seio feminino roçar seu braço e enrijecer. Desta vez, não conteve um gemido. Devagarinho, tirou a mão da barriga e levou-a ao seio, que envolveu com cuidado, cheio de admiração pela pele macia e, ao mesmo tempo, tão firme. Traçando o mamilo delicado com o polegar, lembrou-se de como a vira naquela noite, nua, em pé diante dele, exibindo a beleza clara, que tanto o excitava. Puxando o ar por entre os dentes, Kinnahauk baixou o rosto para os cabelos de Bridget. Com o queixo, empurrou-os até sentir-lhe a nuca, que tocou com a ponta da língua. Nunca pensara que a pele de uma mulher pudesse ser tão doce! Jamais imaginara que pudesse querer tanto experimentar o corpo de uma mulher! O que aconteceria se ela acordasse e o encontrasse tão perto de si? Ela se voltaria e o acolheria em seu corpo? Ou gritaria e correria para fora, apesar da tempestade? Como podia outro homem ter pago por uma mulher que exibia sua marca, que obviamente lhe pertencia? Pelo que sabia, uma coisa dessas jamais acontecera, antes. Kinnahauk estava ciente de que deveria esperar e buscar o conselho dos mais velhos, mas, mesmo assim, não queria esperar. Cautelosamente, deslizou a mão pelo seio e seguiu para baixo, procurando o lugar cuja lembrança o atormentava há tanto tempo. Um desejo agoniante o dominava quando, afinal, enterrou as pontas sensíveis dos dedos na pele úmida, abaixo da penugem dourada. Bridget se mexeu, ainda adormecida, e ele apertou o corpo de encontro ao dela, desejando acordá-la. Em vez disso, no entanto, ficou quieto, a mão pousada sobre a junção das pernas macias, um dedo sentindo-lhe o calor do seu sexo, até vê-la tranquila. Pelas reações dela, sabia que tinha consciência de seu toque, embora continuasse a dormir. Incapaz de se controlar, começou a acariciá-la, o coração disparando ao sentir-lhe a excitação cada vez maior, cuja prova era a umidade que lhe dizia, que ela estava pronta para recebê-lo. As coxas bem feitas estremeceram, e ele percebeu que ela as abriria de boa vontade para tê-lo, se a deitasse de costas. Seria tão fácil... tão bom... O corpo dela lhe pertence esta noite, ó poderoso chefe. Você o ganhou com sua inteligência e persistência. Mas... e o espírito dela? Ela virá para você de boa vontade, amanhã? Kinnahauk revoltou-se contra a voz que Fala Silenciosamente. Por que a Voz não lhe dava atenção quando queria conselhos, e no entanto gritava-lhe alto, quando não desejava ouvi-la? Por que não deveria ele tomar o que lhe fora prometido, na juventude? A mulher estava em sua tenda, adormecida sobre seu colchão e correspondendo ao seu toque com o corpo tão quente quanto o seu. O Grande Espírito não ficaria contente? Não se dizia, entre seu povo, que as sementes plantadas no auge de uma tempestade cresciam mais alto e mais fortes? Mas também não diziam, todos,


que Kinnahuk era um homem de honra? Relutante, imobilizou os dedos. Ela mexeu-se, inquieta em seu sono, falando baixinho, e ele tocou-lhe a nuca com os lábios. — Pelo menos isso eu posso fazer por você, minha oquio. Um dia, você me pedirá mais. Encontrando o que procurava, Kinnahauk pôs-se a esfregar e acariciar gentilmente, até ouvi-la gemer. Se ela acordasse naquele momento, prometeu a si mesmo, ele a tomaria. Mas ela não acordou. Em vez disso, apertou-se de encontro à mão dele até estremecer, gemendo e murmurando. Kinnahauk suspirou. Por mais um segundo, cheio de agonia, continuou com a mão sobre o ninho aconchegante. Depois, puxando-a, umedeceu a própria pele com o fluido feminino. — Não vai ser esta noite, meu bravo guerreiro — murmurou para si mesmo. Em silêncio, levantou-se e cobriu a mulher adormecida. Depois de fitá-la por uns instantes, foi para fora, onde permaneceu por um longo tempo, em pé, diante da tenda, castigado pelo vento e pela chuva, os pensamentos mais desordenados do que nunca.

CAPITULO XV

Durante três dias o vento soprou. Onde, antes, existira um círculo de oukes, havia agora apenas areia, atulhada de presentes dos deuses da tempestade. Doce Água encontrou um balde de madeira, que tinha navegado por todo Mar Interior e o filho da viúva Peixe que Corre encontrou um casaco azul, sem uma das mangas. Ele o vestiu, pulando e dançando em círculos na praia, para divertimento de seus amigos. Para ele, esse gesto representava um pequeno golpe contra o inimigo pela morte de seu pai, Três Chifres, abatido muitos anos atrás. Mas, no fim, o casaco voltou para o mar, pois todos sabiam o que pensava Kinnakauk a esse respeito. Enquanto seus irmãos do continente adotavam o estilo de vida dos olhos brancos, usando roupas feias e desconfortáveis, alimentando-se como eles, vivendo em caixas de madeira e tornando-se insensíveis de tanto beber álcool, os Hatorask mantinhamse à parte. Se Kinnahauk tivesse o poder de reformular o passado, os olhos azuis, cinzentos e até mesmo dourados de seu povo mudariam instantaneamente para negros. Doce Água, no entanto, ficou com o balde. — No Tempo Antes do Começo — ela argumentou — , nosso povo comia carne crua. Quer voltar a esse tempo? Ah, meu teimoso filho, você não pode impedir o sol de andar pelo céu!


Depois da noite da tempestade, em que Bridget tinha sonhado tanto, sonhos que ainda a faziam corar, muitos dias depois, ela foi atrás deDoce Água e pediu para voltar para a tenda da mulher. — Eu sei que Kinnahauk é um bom filho e ótimo chefe, Doce Água, mas o que você quer jamais poderá se realizar. Doce Água fitou-a com atenção, desapontadíssima. — Nenhuma semente foi plantada? É hora do seu fluxo lunar? Não pensamos em construir um lugar separado para as mulheres que... — Não, não é isso! É que... Como poderia explicar, quando nem ela mesma entendia o que se passava? Estava entre aquela gente há mais tempo do que devia, pois começava a ver tudo como eles. De vez em quando, quase desejava ter nascido ali. Assim, seu dever lhe seria muito mais claro. — O homem que pagou minha passagem... Meu preço de noiva, está esperando por mim. Eu já devia ter ido ao encontro dele, mas no começo estava muito fraca, depois os homens estavam ocupados demais com a caça e a pesca, e agora o tempo... Muitos dias tinham se passado. E a caça e a pesca não haviam mantido os homens ocupados o tempo todo. Sem citar o fato de que ela havia sarado rapidamente, sob os cuidados ternos daquela mulher. No fundo, Bridget sabia que, se tivesse tentado um pouco mais, poderia ter convencido alguém a levá-la a Albemarle. Tinha sido mais fácil dizer: "Espere o tempo melhorar, espere os ventos quentes chegarem, espere a Lua do Plantio...". Quando a Lua do Plantio chegasse, já seria primavera, o que era tempo demais para fazer o pobre David esperar pela noiva. — O sr. Lavender pagou uma fortuna pela minha passagem, Doce Água. Como posso dar-lhe as costas e ser feliz aqui, quando sei que ele acha que estou perdida e seu dinheiro foi desperdiçado? A outra deu de ombros. — Ele encontra outra mulher. — Ele pagou cento e vinte libras de tabaco por mim. Se eu ficar aqui, não serei melhor que um ladrão. — Kinnahauk pagou um preço de noiva mais alto. Ele não a tirou da Grande Água? Não a trouxe para a minha ouke, quando você estava waurepa caure de febre? Sem o meu filho,


você estaria com o Grande Espírito, não andaria mais por este lugar. David Lavender não pode ter Bridgetabbott. Bridgetabbott está dormindo com Kinnahauk. — Os olhos de Doce Água adquiriram um brilho astuto. — A wauraupa shaman não acha Kinnahauk agradável aos olhos? A pele dele é muito escura? Ele não tem cheiro gostoso, para o seu nariz inglês? O som da voz dele fere os seus ouvidos? O toque dele traz um gosto amargo à sua boca? Percebendo a emoção da mulher, Bridget apressou-se em afirmar que o filho dela era, sem dúvida, um homem excepcional. — Como poderia uma mulher não achar Kinnahauk atraente? Ele é o homem mais bonito que já vi. É forte, sábio e gentil. O toque, o cheiro e... e o som da voz dele me agradam muito, também. Na verdade, estavam até começando a agradar demais. Quando dormira ao lado dele, sonhara a noite inteira. Fantasias tolas, que deviam ser esquecidas o mais rápido possível. Sentindo o sangue colorir seu rosto, Bridget falou, depressa: — Por favor, Doce Água... Ainda não estou pronta. Leve-me para a sua tenda, e deixe Soconme partilhar a de Kinnahauk. Doce Água estudou o rostinho corado com grande interesse, e aparentemente percebeu algo que levantou seu ânimo. Vendo-a sorrir, Bridget foi tomada por uma certa apreensão, mas pelo menos conseguira o que queria. Voltaria para a tenda de Doce Água, até a aldeia ser reconstruída. O dia inteiro Bridget interceptou olhares rápidos e curiosos das mulheres da aldeia, que iam de um lado para o outro, cantando enquanto trabalhavam. Ela acendeu um fogo baixo e Doce Água fez os bolos de milho, chamados appones, que usaram para absorver o sumo das ostras de água salgada, que Kinnahauk abriu para elas. Como sempre, quando não se tratava de uma refeição cerimonial, homens, mulheres e crianças comiam juntos, em grupos formados por pessoas da família. Mas as crianças iam frequentemente de um grupo para outro, experimentando a comida de diversos potes e havia muita conversa entre os vários grupos. Naquele dia havia quatro pessoas em volta do fogo de Doce Água, pois o velho Soconme passara a fazer a maior parte das refeições com a velha amiga. Notando o olhar constante de Kinnahauk, Bridget logo começou a se sentir embaraçada. Se soubesse que seria obrigada a partilhar a tenda do rapaz aquela noite, provavelmente não teria sido capaz de engolir um único pedaço da refeição composta de ensopado, deostras, appones e chá de yaupon, feita por Doce Água. Lançando um rápido olhar a Kinnahauk, quando ele prestava atenção a uma história contada por Soconme, Bridget pensou novamente nas palavras de sua anfitriã. A pele dele era muito escura? Ou a dela era muito clara? Porque, mesmo com a pele cor de cobre, Kinnahauk era o homem mais bonito que já vira. E o cheiro dele? Sem dúvida não era ofensivo, pois como podia alguém se ofender com o cheiro de vento, chuva e sol, misturado ao aroma de couro e fumaça produzida pela


queima de madeira? Quanto à voz, ela não o vira atrair um pássaro do galho mais alto de uma árvore, falando simplesmente, até fazê-lo pousar em seus ombros fortes? E o toque... Bridget lembrou, cheia de admiração. Como poderia dizer que o toque de Kinnahauk a desagradava, quando muito depois de qualquer contato sua pele ainda ardia onde os dedos dele haviam pousado? Suspirando profundamente, ela fitou as brasas incandescentes da fogueira. Se achasse que Kinnahauk poderia ver, em seu olhar, a lembrança dos sonhos que tivera com ele, na certa caminharia até o mar e deixaria que as ondas se fechassem sobre sua cabeça. Seria preferível morrer a permitir que ele tomasse conhecimento dos sonhos eróticos que tivera. Com a inconstância que Bridget já aprendera a conhecer, o tempo mudou, da noite paia o dia, de tempestuoso para quente e agradável. Como se já fosse primavera, ainda que estivessem no meio de janeiro. Vindo do lado mais distante da ilha, o som do oceano batendo na praia, como o pulsar do coração de um gigante adormecido, continuava a ser audível. No lado interno da ilha, voltado para o continente, havia agora um novo grupo de oukcs, construídas rapidamente, assim que a maré baixara. Também a superfície da ilha sofrera mudanças e, muito calma, passara a refletir a imagem de pássaros marinhos em busca de alimentos, lendo como fundo um céu azul, completamente sem nuvens. Inclinando-se para a frente, Bridget notou, admirada, a mudança em seu próprio reflexo. Em vez de branca, pontilhada de Niinlas, sua pele estava cor de mel, com um leve tom rosado, de passar tanto tempo ao ar livre. Seus cabelos também haviam mudado e adquirido um novo brilho com aquele tipo de vida, colorindo-lhe os ombros como uma capa sedosa. As vezes Kinnahauk usava os cabelos soltos, como fazia Kokom, mas a maior parte da aldeia preferia trançá-los, para evitar que embaraçassem com o vento. — Quer ir juntar capim na praia conosco, Bridget? — chamou Wattapi, que se dirigia à praia com um grupo de mulheres solteiras. — Bah! A mulher olhos brancos está muito ocupada admirando a cor doentia que tem! Não lhe sobra tempo para trabalhar. O que não faz a menor diferença, pois não precisamos dela. Todos sabem o quanto é fraca! — Com esse comentário, Lontra Cinzenta pôs-se a caminhar à frente das outras, levando nos ombros uma das redes. -Não ligue para Lontra Cinzenta, Bridget. Ela é assim mesmo — murmurou Senta Lá, apressando o passo. Lontra Cinzenta era aceita por toda a aldeia como a líder das mulheres. Apesar de geniosa, tinha inteligência e coragem, e seus olhos brilhantes não perdiam quase nada do que se passava na aldeia. Bridget, no entanto, não conseguia gostar dela. E foi com a raiva queimando no peito que replicou baixinho, seguindo o grupo com os olhos:


— Fraca, eu? Pois eu gostaria muito de saber como você se sairia, sua víbora, se estivesse no meu lugar, esse ano que passou! Todas na aldeia, inclusive Bridget, tinham trabalhado duro para reconstruir as tendas e o depósito, usando o capim que os homens haviam cortado, antes da maré avançar sobre as terras mais baixas. As mãos de Bridget ainda estavam em carne viva de tanto amarrar feixes e prendê-los às estruturas de madeira, que serviam de base para as construções indígenas. Durante a tempestade, duas canoas haviam desaparecido e os homens derrubaram e desgalharam um enorme cipreste para fazer outras. Depois de dividir o tronco ao meio, moldaram as pontas e colocaram brasas incandescentes no centro de cada metade, deixando que queimassem por várias horas. Em seguida, rasparam a madeira queimada, conseguindo as novas canoas. Cara de Cavalo, que guardara a ponta de um dos troncos, estava agora usando fogo para escaválo, pois Muitos Dedos precisava de um novo pilão para moer milho. Observando a paciência com que ele trabalhava, Bridget sentiu a raiva diminuir. Lontra Cinzenta não queria lhe fazer mal. Estava só cansada e impaciente, depois de passar tantas horas trabalhando e dirigindo a reconstrução das tendas. Na verdade, todas elas estavam cansadas. O trabalho era duro e constante, mesmo quando não tinham de reconstruir a aldeia. Se não fosse o orgulho desmedido de Kinnahauk, que o impedia de adotar os costumes ingleses, tudo seria mais fácil. Um caldeirão de ferro, pendurado numa trave, sobre o fogo, sem dúvida era mais eficiente que um pote de barro, enterrado numa camada de brasas e pronto a rachar quando menos se esperava. E o que havia de tão ruim em se usar um manto de lã, em vez de um pedaço de pele? Todos os bravos traziam lâminas de aço presas à cintura, mas as mulheres eram obrigadas a renunciar a qualquer melhora. Homens! Até os mais pobres habitantes de sua vila, na Inglaterra, tinham condições de comprar um saco de farinha de trigo, pronta para ser usada. A gigantesca roda d'àgua movimentava as pedras que amassavam o trigo, junto ao lago. O mesmo lago onde sua mãe... — Não. Não! — Bridget quase gritou. Às vezes passava dias sem se lembrar daquilo. Com o correr do tempo, as lembranças piores tinham se tornado mais apagadas e ela passara a pensar na época de sua infância. Volta e meia, no entanto, quando menos esperava, algo abria as portas de sua memória e os acontecimentos terríveis dominavam sua mente, como se tivessem acabado de acontecer. Obrigando se a não pensar no passado, Bridget pôs-se a correr atrás das outras, pela praia. Tornara-se uma grande fã das roupas curtas, feitas com pele de gamo, que ofereciam uma enorme liberdade de movimentos. — Esperem por mim! — gritou.


Alcançou as outras numa parte mais larga da praia, onde velhas raízes de árvores, única evidência da floresta que um dia ali existira, projetavam-se para fora da areia muito branca. Senta Lá fitou-a com olhar brincalhão. — Veio para trabalhar conosco ou participar do jogo, no aurraupa shaman? Ela e Wattapi explodiram num acesso de riso, enquanto Lontra Cinzenta apontava para um monte de capim brilhante, ainda molhado pela água do mar. — Olhos brancos não conhecem os nossos jogos. Mas ela pode limpar esta grama e colocar para secar. Agora, parem com esse riso bobo e venham. Ainda têm muita coisa a fazer, se querem dormir em conforto esta noite. Bridget sabia que o capim teria de ser levado para um ponto mais alto da praia e espalhado para secar ao sol. Também teria de ser limpo de todos os bichinhos que nele se escondiam, antes de estar em condições de ser transferido para as tendas e misturado com folhas esmagadas de determinadas plantas, que serviriam para perfumá-lo e afastar todos os tipos de insetos. Bridget foi deixada sozinha para realizar sua tarefa. Quando as outras voltaram, estava quase acabando. Wattapi e Senta Lá carregavam uma rede cheia do mesmo capim, que fora preparado no dia anterior. Lontra Cinzenta vinha mais atrás, olhando por cima do ombro para um grupo de cavaleiros, que acabavam de aparecer na ponta da praia. — O jogo vai começar, Bridget! — gritou Senta Lá. — Depressa, venha para perto de nós! De repente, todas as mulheres se agruparam, apavoradas como se temessem pela própria vida. No entanto, os homens que se aproximavam eram da aldeia, não uma horda de selvagens prontos a pilhar, destruir e violar. Pasma, Bridget olhou das mulheres para os homens, que agora vinham em pleno galope, brandindo lanças e gritando alto o bastante para acordar até os mortos. Um jogo? Com as mulheres fingindo-se de virgens apavoradas e os bravos Hatorask berrando como garotinhos excitados por uma brincadeira nova? Sem dúvida, parecia o tipo da tolice própria de Kokom, que estava sempre pregando peças para fazer os outros rirem. Mas Kinnahauk estava no comando, e logo atrás dele vinha Graveto Torto.Bridget lançou um rápido olhar para o grupo de mulheres. À esquerda delas estava espalhada a grama que colocara para secar; à direita, ficava uma faixa estreita de areia branca, que terminava no mar. Sem querer pisar na grama que limpara com tanto cuidado, ela se dirigiu cautelosamente para a margem da água, colocando-se fora do caminho do exército de bravos. De lá, cada vez mais divertida, pôs-se a observar, curiosa para saber até onde iria aqueIa guerra de brincadeira. Parecia-lhe incrível que Lontra Cinzenta pudesse se esquecer da própria dignidade a ponto de participar de algo tão infantil. Se bem que ela era a única, entre todas as mulheres, a não rir, limitando-se a seguir, com os olhos opacos, todos os movimentos de Kinnahauk. Com gestos descuidados, os bravos de peito nu detiveram os


cavalos por um instante. Depois, dirigiram-se para o meio do grupo de mulheres, suas montarias jogando as cabeças para trás e dando passos curtos e medidos, como se elas também gostassem do que estavam fazendo. Uma a uma, como ovelhas separadas de um rebanho, as mulheres foram separadas do grupo. Atenta, Bridget viu Graveto Torto levar habilmente Senta Lá para longe das outras, inclinando-se em seguida para levantá-la nos braços. Era este o jogo, então? Ou havia mais alguma coisa? Não seria aquilo parte de um ritual que terminaria numa festa ou numa dança? Ou mesmo num outro tipo de celebração? O enorme garanhão de Kinnahauk ficou à parte dos outros, até restarem apenas duas mulheres: Lontra Cinzenta, em pé junto da grama, e Bridget, encolhida perto da água. Só então, com evidente propósito, o homem e o animal começaram sua caçada. Um instante depois Lontra Cinzenta estava ao lado de Bridget, superlotando o pequeno espaço sobre a areia molhada. Com um gesto arrogante de cabeça, a moça Hatorask avançou, colocando-se diante da outra. Sem dar sinal de estar sendo guiado por seu cavaleiro, o garanhão Tukkao dançou para o lado, pondo-se entre as duas. A perna musculosa de Kinnahauk, brilhante ao sol do entardecer, tocou o ombro de Bridget, espantando-a com seu calor. O cheiro do cavalo suado chegou às narinas de Bridget, que instintivamente recuou, pisando na água gelada. Seu olhar desceu para o chão, exatamente quando Kinnahauk se inclinava, com os braços estendidos. O que aconteceu em seguida nunca ficou muito claro na mente de Bridget. Mais tarde, Senta Lá contou-lhe que Lontra Cinzenta, vermelha de raiva, tinha dado um tapa na garupa de Tukkao, fazendo-o empinar. Ela só se lembrava de ter recuado aos tropeções, para escapar dos cascos agitados e da água se fechando sobre seu rosto. Entorpecida pelo choque e o frio, ela se viu lutando para respirar. Tudo acabou num instante. Ofegante devido ao mergulho inesperado, Bridget sentiu que a levantavam da água. O entorpecimento desapareceu, substituído por um frio que atingia até os ossos. Vagamente, ouviu a voz de Kinnahauk soando mais fria que a própria água. — Não, ela não foi atingida pelos cascos de Tukkao. Saia da frente! Kokom, dê um jeito na sua mulher! Bridget sentiu-se grata pelo calor de Kinnahauk. Ele a segurava de encontro ao peito, transmitindo calor às partes que tocava, o que fazia o resto de seu corpo parecer ainda mais gelado. Os outros recuaram, com expressões preocupadas. Alguém, ela achou que era Graveto Torto, providenciou uma camisa, que Kinnahauk usou para envolvê-la. Outra pessoa ofereceu-se para ir correndo buscar Soconme. — E-Eu na-não preciso de Soconme — Bridget murmurou, batendo os dentes e aconchegando-se mais a Kinnahauk, que já caminhava em direção à aldeia. — Só preciso trocar de roupa. Já na-nadei em águas mais geladas que esta.


Não era verdade, pois a fonte onde as mulheres costumavam se banhar era rasa e aquecida pelo sol. Só os homens mais fortes entravam nas águas geladas do mar durante os meses de inverno para apanhar ostras. Os outros faziam isso das canoas, usando uma espécie de forquilha de cabo longo. Ouvindo um bufo atrás de si, Bridget virou-se e viu que Tukkao os acompanhava docilmente, de cabeça baixa, como se soubesse que havia desagradado seu dono. Dócil ou não, ela estava contente por Kinnahauk não ter tentado colocá-la sobre o animal. Vento Vermelho, sua eguazinha, já era mais do que podia suportar. — Minha nova ouke é quente e bem fechada, Bridgetabbott. E você sabe o quanto meu roupão de pele de lobo é gostoso — Kinnahauk disse de repente, baixinho. Mas foi o calor do hálito dele tocando-lhe a testa que a perturbou. Com a cabeça apoiada no ombro de Kinnahauk, ela se lembrou de outra ocasião em que ele a carregara através da mata. Seria seu destino ser salva por aquele homem todas as vezes que estivesse em perigo? Naquele caso a culpa fora em parte dele, mas ela não estava com disposição para censura. — Como é, minha oquio! Não quer voltar para o meu tapete de dormir? Você não foi gentil, mandando o velho Soconme ocupar o seu lugar. Ele ronca como um urso ferido. Bridget olhou rapidamente em torno para ver se os outros tinham ouvido. Eles os seguiam, aos pares sobre os cavalos, a não ser por Lontra Cinzenta, que correra para o outro lado da floresta, com Kokom atrás. — Por favor, Kinnahauk, não me peça isso. Me leve para a sua mãe. Ela entende por que não posso dormir na sua ouke. Ela... Existe David Lavender. As pupilas escuras de Kinnahauk arderam enquanto os músculos do rosto se contraíam. — E se ele não existisse? Sabendo que ferira o orgulho dele, Bridget foi obrigada a reconhecer a verdade. — Se ele não existisse, eu me sentiria honrada em partilhar a sua tenda. - Honrada! Era honra que fazia seu coração bater mais depressa sempre que via aquele homem? Era honra que a deixava ofegante, cada vez que ele a tocava? Angustiada por sentimentos que não era capaz de entender, Bridget afundou a cabeça no peito de Kinnahauk. — Você está sempre vindo em meu socorro — disse baixinho, rezando para que ele não adivinhasse seus tolos pensamentos. Arriscando, então, um olhar para as feições bonitas e másculas, calou-se, confusa. Kinnahauk aperto-a ainda mais de encontro a si, como se quisesse quebrá-la.


— Você fala de pagamento — murmurou, com aspereza. — Talvez eu acabe aceitando esse pagamento que você diz que me deve! Hipnotizada, ela viu as pupilas escuras se expandirem até cobrirem quase todo o dourado dos olhos dele. Seus lábios se entreabriram, quando esses olhos procuraram sua boca. Uma boca lindamente formada, apesar das palavras zangadas que dizia. Bridget observou-o se aproximar, o sangue latejando nas têmporas, quase sem conseguir respirar. O cheiro familiar de couro, fumaça de madeira e algo mais, que era essencialmente masculino, essencialmente Kinnahauk, atingiu seus sentidos. Presa nos braços dele, virou o rosto como uma flor procurando o sol. — O que fez com ela agora, menino tolo e impaciente?! Será que sempre vai tentar colher frutas que ainda não estão maduras? Não pode esperar que caiam nas suas mãos? Eles haviam chegado à periferia da aldeia e Doce Água corria ao seu encontro, censurando a cada passo do caminho. Kinnahauk piscou, uma vez, depois olhou, zangado, para sua carga pequena e molhada. — Não quero seus agradecimentos, inglesa!— disse de modo que a mãe não pudesse ouvilo. — O que eu quero ainda vou tomar de você! Essas palavras ásperas foram as últimas que ele falou, antes de praticamente jogá-la na tenda da mãe. Bridget recebeu, então, um chá fumegante, feito de algo que não conseguiu identificar. — Para afastar os maus espíritos — explicou Doce Água, friccionando-lhe a pele com chá quente de hortelã, até causar-lhe a impressão de estar em carne viva. Em seguida, esfregoulhe o corpo com óleo aquecido e forçou-a a comer tudo que podia. Só então enrolou-a num manto de peles de coelho e disse-lhe para dormir. Como se o sono pudesse encontrá-la, aquela noite! Os acontecimentos do dia enchiam sua mente. Como pudera ser tão tola a ponto de se deixar acuar entre a água e aquele enorme animal, Tukkao? Pior ainda, por que Kinnahauk ficara tão zangado quando tentara agradecer-lhe? Não tinha sido por desconhecer gesto de cortesia, pois os Hatorask estavam entre as pessoas mais gentis e educadas que já conhecera, com atitudes sempre guiadas pela consideração em relação aos outros. Talvez fosse isso. Em vez de lhe dizer simplesmente "obrigada" devia ter-lhe oferecido um presente. Ouvira contar, a bordo do navio, que os primeiros exploradores a chegar àquele lugar, centenas de anos atrás, tinham trazido muitos presentes para os nativos, para mostrar sua boa fé e conquistar-lhes a amizade. Ele falara em tomar, mas ela não tinha nada para dar. Já não estava em débito com outros pelas roupas que usava e cada pedaço de comida que punha na boca? Abalada, Bridget percebeu que daria a Kinnahauk até o céu e as estrelas, se pudesse. Daria um navio cheio de milho para alimentar o povo


dele, e paz de espírito para apagar a ruga que frequentemente surgia entre suas sobrancelhas. Não havia nada além daquilo. Precisava parar de arrumar desculpas e pôr-se a caminho de Albemarle. De um jeito ou de outro, não importava quanto seu coração sofresse com a ideia ia de deixar aquele lugar, tinha de procurar David Lavender e começar a pagar seu débito. Casamento não era mais possível. Não suportava mais nem o simples pensamento de partilhar uma cama matrimonial com um estranho, por mais simpático que lhe parecesse o nome dele. Dos que haviam cruzado o oceano com ela no Malinson, muitos estavam em débito por dois anos, outros por quatro, e alguns até por mais tempo. Ela não fazia ideia do quanto valiam cento e vinte libras de tabaco, mas era forte, estava disposta a trabalhar e tinha mais talento que muita gente. Trabalharia por sua passagem e depois um pouco mais, para tranquilizar a própria consciência. Tomada esta decisão, ela fechou os olhos e procurou dormir. Sim, pagaria sua dívida, depois voltaria para Croatoan. "Voltaria para ver os filhos de Kinnahauk crescendo altos e fortes, as filhas trabalhando ao lado de Lontra Cinzenta", uma vozinha irritante sussurrou, fazendo-a arregalar os olhos na escuridão.

— Minha nossa, acho que meu cérebro virou geléia! — Bridget resmungou, virando-se de bruços e fazendo o possível para esquecer os sonhos estranhos e maravilhosos, que tanto a atormentavam ultimamente, O sol brilhava intensamente quando Bridget tornou a abrir os olhos, acordada pelo som de uma voz familiar, do lado de fora. Uma voz que fez seu pulso se acelerar e a boca ficar seca. — Viu Lontra Cinzenta, minha mãe? Parece que toda vez que eu chego, ela desaparece. — Ela tomou o caminho da fonte verde, meu filho. Se vai atrás dela, é melhor levar seu arco. Estou cansada de ostras e pássaros. Seria bom um pouco de carne fresca, para variar. Bridget vestiu depressa as roupas que Doce Água lhe dera para usar, enquanto as suas eram lavadas, secas e amaciadas, mais uma vez. Valentemente, tentou não ligar para o fato de Kinnahauk ter vindo ate ali e nem perguntado por sua saúde. Ou para o fato de o rapaz só ter pensamentos para Lontra Cinzenta, pois era assim que devia ser. Seu próprio futuro fora traçado no dia em que assinara seu nome ao lado do de um plantador, chegasse ou não a se casar com ele. Só porque se enchera de sonhos tolos, só porque sua mente tomara caminhos proibidos, de vez era quando... Lontra Cinzenta daria uma boa esposa para aquele jovem e arrogante chefe, pois era tão forte, teimosa e irritante quanto ele. Ela, Bridget, não tinha nada que se importar com aquilo; quando chegasse a uma das cidades da colônia e se visse entre os de sua própria raça, se esqueceria rapidamente daquelas idéias tolas sobre olhos dourados, lábios bonitos e mãos que possuíam um toque mágico. Provavelmente nem saberia como pudera chegar a ter tais pensamentos.


— Quer que eu vá virar o capim que está secando, Doce Água? — Bridget perguntou logo depois, enquanto comia um appone frio, regado com mel. — Deixe as crianças fazerem isso. Eu é que deveria ir buscar milho hoje, mas meus joelhos estão tão duros quanto o tronco de uma velha árvore. E o pior é que meu estômago está pronto para uma tigela de pawcohiccora! Bridget não gostava do prato feito com o fruto do carvalho fermentado e sabia que não havia nada de errado com os joelhos de Doce Água, mas se sua amiga queria uma desculpa para se sentar ao sol e conversar com as outras mulheres enquanto costurava um novo par de mocassins não seria ela que a impediria. — Posso ir buscar os frutos para você, então? Doce Água lançou-lhe um olhar maroto. — O vento deixou as árvores nuas. Você vai ter de entrar bastante na mata, até o lado mais distante da segunda rapina, para achar um lugar que o vento não atingiu. — Com seu sorriso encantador, ela escolheu uma cesta de palha, entre as que dependurava no interior da ouke. — Leve esta. E quando encontrar um carvalho que os guaxinins ou o vento não roubaram, é só sacudi-lo. Os frutos mais doces vão cair na sua mão. — Ou melhor, na minha cabeça! Que caminho devo tomar? — Bridget perguntou, rezando para que não fosse o que levava à fonte verde. — Aquele. — Doce Água apontou na direção oposta. — Passe por aquela árvore enorme, de tronco nodoso, os pés de framboesa, e continue caminhando até o lugar onde os gaviões fazem seus ninhos. É naquela rapina. Mas ande depressa, minha filha, que Kinnahauk foi atrás de carne fresca. Teremos uma festa, esta noite.

CAPÍTULO XVI

Com seu piado curto e inconfundível, o gavião sobrevoou o topo das árvores, um animalzinho debatendo-se entre suas garras fortes. Gralhas gritaram, perseguindo-se de galho em galho, saltando no ar e imobilizando-se novamente, como que em resposta a um sinal secreto. Embora fosse apenas meio-dia, o sol de inverno já ia baixo no horizonte, quando Bridget encontrou a segunda ravina. Apesar do frio, ela estava com a testa porejada de suor. A ilha podia dar a impressão de ser plana, mas o terreno em meio à mata era bastante acidentado. Bridget passou ao lado de mais um alagado, cujas águas escuras estavam superlotadas de lírios silvestres. De uma touceira mais além veio o som de um animal qualquer correndo para se esconder e não acabar numa panela aquela noite,


rodeado por batatas, milho e ervas aromáticas. Sombras cobriam o caminho, deslocando-se de um lado para o outro, quando o vento balançava as trepadeiras que se agarravam aos galhos dos pinheiros altos e dos enormes carvalhos, Chegando ao topo da ravina, ela prendeu a respiração, encantada por ver que dali podia enxergar o oceano Atlântico e o Pamlico Sound, ou, como diziam os Hatorask, a Grande Águia e o Mar Interior. Pela primeira vez, teve noção do quanto era isolado e vulnerável aquele pedaço de terra, cercado de água por todos os lados, até onde a vista podia alcançar. Bridget mudou a cesta para o outro braço e começou a descer, cuidadosamente, pelo outro lado da ravina. Havia todo tipo de flor naquele pequeno Éden, ao abrigo dos ventos mais fortes. Era o lugar perfeito para plantar até as ervas mais frágeis. E seria delicioso formar, ali, alguns canteiros. Como ainda ia ficar na ilha um certo tempo, precisava descobrir... Não, ela não ia ficar ali tempo algum! E na fazenda de David Lavender devia existir um lugar onde pudesse cultivar plantas ornamentais e medicinais, na certa até melhor que aquele. Talvez até pudesse vender algumas aos outros habitantes do local. O que seria ótimo, pois assim conseguiria, mais depressa, comprar sua liberdade. No meio da descida, ela parou. Era o gavião que estava piando de novo ou ouvira vozes? Inclinando a cabeça, esperou até ouvir o som de novo. Uma voz de mulher? Provavelmente alguém que caíra ou dera com uma árvore cheia de abelhas, pois o grito era de dor intensa. Afastando os galhos de uma trepadeira, Bridget inalou o ar bruscamente, prendendo-o nos pulmões. A cesta caiu de sua mão e rolou para longe, indo parar junto ao tronco de uma árvore, Uma onda de dor invadiu-a enquanto, incrédula, incapaz de se mover, continuou a olhar a cena diante de si. Mesmo no auge da paixão, a voz de Lontra Cinzenta era inconfundível. Sem dúvida, eram as pernas dela que envolviam a cintura estreita do homem que a cobria, pois era a única a usar mocassins com um lírio bordado. Além disso, o bracelete de conchas no braço que prendia a cabeça morena de encontro ao peito feminino pertencia à Lontra Cinzenta. Bridget já a vira com ele inúmeras vezes. O homem. Inevitavelmente, os olhos de Bridget percorreram as costas largas, suadas, e os braços poderosos, antes de chegar às nádegas que se moviam sem parar. Como a pele dele era clara, no lugar geralmente coberto pela tanga. Com o rosto enterrado no pescoço da mulher debaixo de si, ele não tinha a menor noção de nada que não fosse ela. Por um momento que lhe pareceu uma eternidade, Bridget fitou-o, notando desde o bracelete de cobre no braço até os mocassins que lhe cobriam os pés longos e estreitos. A luz do sol arrancava reflexos azulados dos cabelos negros, que daquela vez, livres da tira de couro que os prendiam habitualmente, cobriam-lhe os ombros. De repente, ele enrijeceu. Em seguida, soltando uma exclamação baixa e gutural, caiu sobre a companheira. Como se o grito másculo e triunfante a tivesse liberado daquela imobilidade, Bridget girou nos calcanhares, correndo para o meio das trepadeiras selvagens. Cega pelas lágrimas, nem percebeu quando saiu da trilha estreita. Galhos chicoteavam-na, enrolando-se em seu corpo, mas ela


se soltava e continuava, aos tropeções. Espinhos enterravam-se em sua pele, e raízes atingiam seus pés, mas nem assim ela parou de correr, abrindo caminho em meio ao mato. Pensamentos incoerentes atormentavam-na, enquanto corria. Ouviu de novo a voz de Kinnahauk perguntando: "Viu Lontra Cinzenta, minha mãe?" A resposta de Doce Água começou a lhe parecer horrivelmente zombeteira: "Vá atrás dela! Vá atrás dela!" Mais uma vez, lembrou-se de Lontra Cinzenta, provocando-a: "Eu vou ser a primeira esposa de Kinnahauk, sua olhos brancos à toa!" — Como é que ele teve coragem! — Bridget gritou, a voz abafada pelos soluços. Ele a convidara para partilhar sua tenda, dizendo que a marca que tinha na testa unia seus destinos, no entanto o tempo todo estava atrás daquela... Daquela víbora! No dia anterior ele a tivera nos braços, olhando-a como se quisesse beijá-la com paixão, e agora estava com aquela língua venenosa, possuindo-a como se nunca tivesse pedido a ela, Bridget, para partilhar sua lenda e seu tapete de dormir! -Oooh! — Bridget exclamou, quando o choque cedeu lugar à fúria e a fúria a uma dor inacreditável. Estivera certa o tempo todo, um não tinha nada a ver com o outro. Ela era uma inglesa, cujo avô fora um homem da igreja, o pai fora um guarda-caças respeitado e a mãe fora amada por todos que a conheciam, até... Zangada, ela se jogou no colchão macio formado pelas agulhas de um pinheiro. Estava muito cansada e triste para ir em frente. Ah, Kinnahauk! Ele não passava de um animal no cio. Um selvagem que corria pelo mato, coberto apenas por um pedaço de couro, brandindo facas, xingando naquela língua atrasada e dormindo com toda mulher disponível, sem pensar duas vezes! Primeiras e segundas esposas! E muitas mais, provavelmente, pois o que sabia aquele povo de amor, fidelidade e lealdade a uma única pessoa? Ah, se pudesse, arrancaria o escalpo daquele maldito! Bridget secou os olhos com a mão, mas logo em seguida teve outro acesso de choro. Como pudera ele feri-la daquela maneira? E por que tinha a impressão de que seu coração ia se partir? Pensara que Kinuahauk fosse seu melhor amigo... No entanto, traíra sua confiança. Ele errara ao salvá-la, quando estava prestes a ser levada pela próxima onda, para depois tratá-la daquele modo. Como pudera ele entregá-la à própria mãe, pedindo-lhe que a ajudasse a se recuperar, para depois fazer-lhe aquilo? No entanto, um amigo não tinha o direito de viver como queria, procurando prazer onde melhor lhe aprouvesse? A pergunta surgiu era sua mente, antes que pudesse sufocá-la. E, honestamente, foi obrigada a admitir que não tinha nenhum direito sobre Kinnahauk. Nem era como se fossem comprometidos, pois o que um selvagem entendia disso? Deitada de bruços no chão, Bridget chorou até não ter mais lágrimas, lavando a alma com soluços sentidos e profundos. Aos poucos, foi percebendo que o sol não mais brilhava no céu. Logo começaria a sentir frio, mas não estava com disposição para voltar e contar à Doce Água que não só não colhera os frutos como também perdera a cesta. Ainda de bruços, com o rosto escondido


nos braços, ela respirou fundo, tentando juntar forças para a longa caminhada de volta à aldeia. Sentou-se, tirando as agulhas de pinheiro e empurrando para trás os cabelos que lhe cobriam o rosto molhado, pensando vagamente que precisava encontrar um riacho para lavar os sinais de seu desgosto, senão Doce Água desconfiaria e insistiria até que lhe contasse tudo. Mas como poderia ela confessar a razão de sua infelicidade, quando nem sabia exatamente qual era? Não era o que chamavam de "dor-de-cotovelo", porque não podia estar apaixonada por um homem tão diferente dela e dos de sua raça. Aquele tal de amor raramente acontecia entre seu próprio povo, apesar de todas as palavras doces e declarações que costumavam fazer. A conveniência estava por trás de quase todos os casamentos e a ambição por trás dos outros. Poucos, muito poucos, eram acompanhados por palavras doces e olhares lânguidos e mesmo esses acabavam assim que a mulher perdia a forma, com a primeira gravidez. Tremula, com o calor da emoção diminuindo, Bridget ergueu os joelhos e passou os braços em volta deles. O ar estava frio e úmido. Ou o tempo mudara, ou fora parar no lado oposto da ravina, mais sujeito a ventos. Examinando pela primeira vez o ambiente, ela nada viu que pudesse reconhecer. Nenhuma árvore, pedra ou lago. Seria possível que tivesse saído da trilha? Naquela mata fechada, sem nem mesmo marcas de rodas de carroça no chão, não seria difícil uma coisa dessa acontecer. E o pior era que até os pássaros haviam se calado. Bridget fungou pela última vez. Com as costas da mão secou as lágrimas. Estava na hora de esquecer o que vira e começar a jornada de volta para a aldeia. No dia seguinte, antes que sua mente se afligisse ainda mais com idéias absurdas, daria um jeito de deixar aquele lugar para sempre. Ela nunca soube o que a alertou, pois não ouviu nenhum som, nem mesmo um leve sussurro. De repente, no entanto, percebeu que não estava mais sozinha. Um gamo, talvez, ressentido com a invasão de seus domínios? Não, podia ser algo pior. Já ouvira histórias de ingleses chegando em seus barcos para pegar ostras e mariscos junto à ilha e de náufragos espanhóis procurando abrigo naquelas praias, mas eles dificilmente entrariam na mata. Também ouvira falar de homens sedentos de sangue, que vinham em canoas de outras cidades, na calada da noite, para roubar, matar e destruir pelo simples prazer de fazer isso. De acordo com Soconme, no entanto, ataques como esse não aconteciam ali há muitos anos. Ao contrário das aldeias no continente, aquela, latorask, por sua localização, estava a salvo de tudo, menos dos elementos da natureza. Ainda assim, os cabelos em sua nuca continuavam arrepiados. Sentia a presença de outra pessoa, quase podia ouvi-la respirar. Devagarinho, contraiu os músculos do corpo, preparando-se para levantar de um salto e fugir. — Por que está sozinha, tão longe da aldeia, Bridgetabbot? Não é bom. Existem muitas trilhas por aqui, você pode se perder.


Bridget girou nos calcanhares, fitando o homem junto à clareira. O corpo bronzeado confundia-se com o tronco dos pinheiros. Quantas vezes seus olhos tinham passado por ele, sem enxergá-lo? — Kinnahauk? — sussurrou. Ele viera para zombar dela, então? Para se gabar da própria proeza? Para lhe mostrar que não queria mais que partilhasse seu tapete de dormir? — Por que está me olhando assim? Não reconhece mais um velho amigo? Kinnahauk saiu das sombras e Bridget levantou-se depressa, começando a recuar. Vendo-o tão perto de si, magnífico com aqueles olhos dourados e porte altivo, ela sentiu a dor voltar e reagiu com a única arma que possuía: a zanga. — Amigo?! Eu não diria isso! Kinnahauk não entendeu. Estava cruzando a ravina quando ouvira alguém chorar. Deixando o gamo que matara de lado, aproximara-se devagarinho para deparar, surpreso, com a visão de sua oquio deitada no chão, longe de todas as trilhas conhecidas. Levara ainda um momento para descobrir que ela estava sozinha e chorando como quem tem a alma despedaçada. No entanto, como podia ser assim? Ele a vira assustada, com febre, a pele marcada por todo tipo de arranhões e espinhos. Ele a vira quando tinha a mente tão atormentada pela dor, que segurava a cabeça entre as mãos, gemendo baixinho e balançando o corpo para a frente e para trás. Mas ele nunca a vira chorar. Kinnahauk aproximou-se. Arregalando os olhos, aterrorizada, Bridget recuou para o meio de um arranha-gato. — Eu só quero saber por que está assim, Bridgetabbott. - O tom de voz dele foi o mesmo que usava para acalmar animais selvagens. — Você sabe por quê! — ela gritou. E mordeu o lábio, frustrada, ao puxar a saia, que estava presa aos espinhos, e ouvir o tecido se rasgar. — Você me enoja! — Fez uma pequena pausa, depois acrescentou, meneando a cabeça: — Não é verdade. Afinal, pouco me importa com quem você dorme ou deixa de dormir. Vou-me embora deste lugar, assim que achar alguém para me levar até o continente! Kinnahauk foi se aproximando, até parar junto dela. Estava preocupado, mas sabia que tinha de afastar os temores de Bridget antes de procurar uma resposta para suas perguntas. Por que estava ela ali? Por que falava como se fossem estranhos? Por que mencionava a palavra dormir daquele modo? Seria possível que o banho frio e inesperado tivesse trazido


a febre de volta? Só podia ser, senão por que ela o olharia como se ele fosse um cachorro louco, que se divertia em atacar mulheres? — O sol está descendo depressa. Esta noite, a lua vai se esconder atrás das nuvens. Não vou deixar que volte sozinha para a aldeia. Bridget estava arrepiada e com os olhos inchados de chorar. Kinnahauk ardia de vontade de abraçá-la. Queria partilhar o calor de seu corpo com ela, cobrir-lhe o rosto de beijos e saborear as lágrimas salgadas como se fossem o doce néctar das flores que se abriam no vale. — Eu posso voltar sozinha. Afinal, vim... vim muito bem até aqui! — A trilha que sai desta clareira só é usada pelos ratos almiscarados. Vai dar nas oukes de lama que eles fazem. Chegando lá, você pode perguntar ao chefe deles para que lado fica a aldeia de Kinnahauk. Bridget sentiu os lábios tremerem e apertou-os, lutando para não perder o controle. Não deveria doer daquele modo. Não deveria! E ela não tinha que se importar com aquele homem, porque não havia futuro nisso. Movendo-se com a velocidade de uma cobra dando o bote, Kinnahauk puxou-a de encontro a si, segurando-a com firmeza até que parasse de lutar. — Agora vai me dizer por que está tão zangada, minha coelhinha. Nós somos amigos. Somos até mais que amigos, pois você tem a minha... — Não repita isso! — Ela o atacou com selvageria, mas só conseguiu que ele agarrasse sua mão e a prendesse sob o braço. — Eu tenho a marca das bruxas. O que não quer dizer nada, pois não sou uma bruxa! Procure sua marca no corpo de outra mulher. Marque todas elas, para escolher à vontade! Nem sei como Lontra Cinzenta ainda não arrumou uma marca igual, onde todos possam ver. Onde foi que você a marcou? No traseiro? No... Nesse ponto, Bridget jogou o corpo para trás. De imediato Kinnahauk apertou-a novamente, dando-lhe a impressão de que se partiria em duas. — De que é que está falando, mulher? Andou tomando yauejau? Que história é essa de Lontra Cinzenta? Ele estava realmente surpreso, mas Bridget não se deixou convencer. — Não sei como pôde deixá-la sozinha, tão cedo depois de... — Deixá-la sozinha?!


Bridget torceu o corpo e ele aumentou ainda mais a pressão com que a segurava. As lágrimas, que ela havia pensado que tinham acabado, recomeçaram. Tomada pela raiva, chutou-o, mas seus mocassins eram macios demais e só conseguiu machucar os próprios dedos. — Como pode deixá-la e vir para mim, desse jeito? Odeio o cheiro dela na sua pele! E odeio você! Acho que nunca odiei tanto um homem, nesta terra de Deus! Ah, como eu queria nunca ter pisado neste lugar horrível! Chorando copiosamente, ela sentiu que era levantada e carregada alguns passos, para depois ser depositada no chão, fora do alcance do vento. Pensou em escapar, mas perdeu a oportunidade, pois ele logo estava a seu lado, puxando-a para o colo e apoiando-lhe a cabeça no ombro. — Ah, minha florzinha amarela, não chore assim! Meu coração fica apertado quando vejo você tão infeliz — Kinnahauk murmurou, embalando-a como se fosse uma criança. — Seu coração deve ser é do ta-tamanho de uma abóbora, para ter lugar para tantas pessoas! Ele concordou, com um gesto que Bridget mais sentiu do que observou. — É verdade — disse, pensativo, provocando nela um novo acesso de choro. Empurrando-a para fora de seu colo, Kinnahauk esticou o corpo e deitou-se ao lado dela, segurando-a com um dos braços. Mas logo em seguida sentou-se novamente. — É um tolo o caçador que se deita com um carcás de flechas preso às costas — explicou, num tom bem-humorado. Exausta pelas emoções, Bridget levantou os olhos inchados para vê-lo tirar o carcás. Ao mesmo tempo, notou que ele tinha os cabelos trançados, com as pontas cuidadosamente amarradas por tiras de couro, tingidas de branco e vermelho. Piscou,tentando se lembrar... Kinnahauk deitou-se mais uma vez, puxando-a para si. — Que grande tristeza fez a chuva correr de seus tempestuosos olhos cinzentos, Bridgetabbott? Se estiver em meu poder aliviar esta ferida, é só me dizer. — De onde é que você veio, Kinnahauk? — ela arriscou, traçando, com um gesto distraído do indicador, a tatuagem que ele tinha, logo abaixo da base do pescoço. Como eram parecidas, a sua marca e a dele. A única diferença era que tinham sido feitas ao contrário, uma da outra.


— Tukkao me levou pela praia, na direção de Chacandepeco. De lá entrei no bosque, seguindo as pistas de um gamo, até encontrá-lo pastando junto à fonte verde. Minha mãe queria carne fresca. A fonte verde. Bridget tinha uma vaga idéia de onde ficava, pois as trilhas serpenteavam e entrelaçavam-se tanto que era difícil dizer em que direção iam. — Viu alguém quando estava por lá? — Seu dedo indicador abandonou a tatuagem, deslizando para outra parte do peito firme. — Vi Lontra Cinzenta. Zanguei com ela, por causa do que fez ontem, mas não creio que vá me dar ouvidos. É muito voluntariosa. Kokom vai ter muito trabalho quando a levar para a sua ouke. Kokom. Fora Kokom e não Kinnahauk, que vira com Lontra Cinzenta! Uma onda de alívio tomou conta de Bridget. Sua mão curvou-se, roçando um dos mamilos masculinos, que enrijeceu de imediato. — Kokom — ela repetiu, em voz alta. — Acho que não vai demorar para ele levar Lontra Cinzenta para sua ouke. Eu vi os dois juntos agora há pouco, e eles pareciam... bem contentes. Então era aquilo! Kinnahauk finalmente compreendeu. Ela o tomara por Kokom e ficara zangada. Nenhuma mulher podia ficar tão aborrecida sem razão. Talvez não tivesse mais que dormir sozinho, afinal de contas. Se bem que seria paciente pelo tempo que fosse preciso para domá-la e fazê-la vir para seus braços de boa vontade. Se a tomasse antes que ela se oferecesse espontaneamente, jamais teria certeza de ser dono do coração, além do corpo de sua oquio. Kinnahauk sorriu. — Se eu fosse você, não me prepararia tão cedo para a festa de casamento, Bridgetabbott. Entre nós, um homem e uma moça podem se deitar juntos livremente, até darem o coração a alguém. Depois disso, acaba essa liberdade, pois não há honra em tomar o que é de outro. Kokom está pronto, mas Lontra Cinzenta ainda vai brincar um pouco com seu peixe, antes de puxar a rede. Bridget não protestou quando ele a puxou para mais perto de si e passou uma das pernas por cima das suas. — Então Lontra Cinzenta ainda é... livre para partilhar o tapete de quem quiser? Com a cabeça dela sob o queixo, Kinnahauk sorriu. — Isso a aborrece, minha oquio? — Não. Sim. Na verdade, eu não tenho nada a ver com isso. — Sentindo um graveto sob o quadril, ela girou o corpo para aliviar a pressão. De imediato tomou consciência de outra


pressão, desta vez sobre seu ventre e exercida pelo corpo de Kinnahauk. Engoliu em seco, fazendo o possível para não se mexer. O vento soprava o topo das árvores, acima deles. O sol estava se pondo e logo seria difícil ver as trilhas. Uma parte de Bridget queria continuar ali para sempre, nos braços daquele homem forte e gentil, uma criatura magnífica que despertava em seu íntimo sentimentos tão estranhos e maravilhosos, de um tipo que jamais sonhara que pudessem existir. Kinnahauk encontrou os seios femininos. Através da pele do vestido, Bridget sentiu-lhe o calor da mão e arrepiou-se da cabeça aos pés. A outra mão masculina subiu para sua nuca e ela mexeu-se, fazendo acelerar, o pulso de Kinnahauk. Jogando a cabeça para trás, ela tocou o pescoço dele com a língua, experimentando, pela primeira vez, o sabor da pele dele. A reação de Kinnahauk foi assombrosa. Ele abraçou-a com força e gemeu, o membro viril ereto, forçando a tanga a se levantar. Então, respirando fundo, abaixou uma das mãos e acomodou melhor a expressão de sua masculinidade. Por causa de sua própria honra, não poderia possuí-la enquanto David Lavender estivesse entre eles. Mesmo assim, era-lhe insuportável a ideia de afastar-se dela. E que mal poderia haver em prolongar aquela doce agonia por uns instantes, antes de conduzi-la de volta à aldeia? Deslizando a mão pela coxa macia, ele segurou a barra da saia de Bridget e puxou-a para cima. Depois, com um movimento rápido, pressionou o corpo ao dela, vendo, na imaginação, o tufo de pêlos dourados aninhado junto a seu membro. Ainda viria o tempo em que ele se abrigaria no mais doce dos casulos. E não ia demorar. Não ia demorar... Ofegante, Bridget retorcia o corpo, tentando livrar-se da dor insuportável que queimava em seu íntimo. Nunca experimentara uma agonia tão doce, uma ansiedade tão grande! — Por favor... — suplicou. — Não sei o que fazer para acabar com isso! Havia muitos jeitos e Kinnahauk conhecia todos, pois ardera em excitação e apagara o próprio fogo muitas vezes, antes de chegar à idade adulta. No entanto, nunca sentira um ardor tão intenso. Poderia ela apagar o fogo que lhe tirava a razão? — Eu poderia acabar com isso, meu botão dourado, mas duvido que amanhã você me agradeça. — Por favor, acabe logo! Estou ficando louca! Fechando os olhos, Kinnahauk permitiu que a luta entre o desejo e a sensatez continuasse por mais um instante. Sabia que aquela não seria uma noite de glória, pois a hora certa ainda não chegara. Logo em seguida, ergueu as pálpebras e fitou o rosto, pequeno e corado da mulher que roubara seu coração. Os lábios dela estavam inchados de tanto gemer e implorar. Mas ele não a tomaria, pois desde o começo percebera que, uma vez que a tomasse, haveria de querer tê-la sempre. Ela possuiria sua alma. Se a tomasse naquele momento e depois tivesse que deixá-la ir para o homem que pagara o preço de noiva, uma parte de si mesmo morreria. Precisava ir devagar. A honra tinha de ser respeitada e os


pagamentos devidos acertados. Depois disso, ela ainda teria de vir para ele espontaneamente. Seus lábios tocaram os dela com leveza, movendo-se numa suave provocação. Logo em seguida imobilizaram-se, presos na rede de um encantamento mais poderoso que o de qualquer shaman. Depois, abriram-se, deslizando sobre a superfície úmida e gentilmente reprovada, explorando e testando com a cautela de um beija-flor à procura de néctar. Só então, como o beija-flor, mergulhou. Com a língua, separou-lhe os lábios e procurou as profundezas secretas da doçura feminina, ao mesmo tempo que movia uma das mãos entre seus corpos agitados. Pouco depois, levado pelo bom senso, afastouse, mas não teve coragem de deixá-la daquele modo, quando tinha condições de lhe dar o alívio que procurava. Inquieta, Bridget movia-se de encontro à mão masculina, buscando instintivamente o que nem entendia. Percebendo que estava em seu poder dar-lhe um presente magnífico, Kinnahauk foi tomado por uma emoção indescritível. Ainda era virgem, a sua oquio. Não fora isso que os deuses lhe haviam prometido? Na noite em que se deitara ao lado dela em sua tenda, tocara o véu delicado e percebera que teria de conquistar a confiança dela, antes de rompê-lo. Sua oquio teria de confiar nele a tal ponto que o prazer seria maior que a dor. Kinnahauk pousou a mão sobre os pêlos dourados, permitindo que um de seus dedos deslizasse sobre seu sexo. E pôs-se a friccionar delicadamente, enquanto lhe acariciava a língua com a ponta da sua. Logo ela começou a se mover, e ele deixou que estabelecesse o ritmo. Pouco depois, ouviu-a gemer, esfregando-se em sua mão com frenesi, inclinando então a cabeça, envolveu-lhe um dos seios com a boca, lamentando que ela não estivesse nua, arqueando o corpo sob o seu. Numa verdadeira agonia, ele lutou para não ceder à tentação. Poderia possuí-la naquele momento e ela até lhe agradeceria por isso. Mas será que lhe agradeceria no dia seguinte também, quando estivesse com o corpo frio? Ou citaria novamente o nome de David Lavender, erguendo entre ambos uma barreira contra a qual ele não tinha a menor defesa? Exausta, ofegante, com o rosto corado pela paixão, Bridget deixou-se cair sobre os braços de Kinnahauk. Ele a fitou com tristeza, ciente de que aquela seria mais uma noite de solidão. Se pertencesse a outra tribo, provavelmente faria dela uma escrava e a usaria até cansar-se, vendendo-a então a outro bravo. Se não fosse o maldito sangue inglês que corria em suas veias! Não conseguia nem imaginá-la como escrava. Quando a tomasse pela primeira vez, queria ser recebido com ansiedade. Só então, sabendo que juntos criariam os filhos que tivessem, plantaria sua semente. Os deuses não lhe tinham prometido exatamente isso em sua visão? Ela lhe daria um quasis, que ainda estaria guiando seu povo, muito depois do seu proprio espirito ter escapado para voar na companhia dos gansos selvagens.

CAPÍTULO XVII


O cheiro pungente de tabaco espalhou-se pelo ar parado da noite. Do interior das oukes vinha o murmúrio de crianças adormecidas. Soconme havia trabalhado muito na ouke da velha Tumme Wawawa, preparando o espírito dela para voar para longe. Muitos espíritos já haviam se juntado aos gansos brancos que voltavam para aquela região todos os anos, depois da Lua das Folhas Caídas. Logo, não sobraria mais nenhum. Os olhos brancos se espalhariam pela ilha com seus noppinjure, acabando com as grandes extensões de capim e impedindo que quaisquer outros animais vivessem ali. Muitas árvores frondosas morreriam, para que suas oukes horrendas pudessem ser erguidas. Com suas varas de trovão, eles matariam muitos gamos, comendo pouco e desperdiçando quase tudo, inclusive couro e ossos. Os olhos brancos não tinham o costume de secar ou defumar a carne para conservá-la, preferindo matar sempre que suas barrigas ficavam vazias. Esse tempo ainda chegaria. No fundo do coração, Soconme torcia para que, quando isso acontecesse, seu espírito já estivesse livre, voando pelo céu. Ele jamais conseguiria viver sob o domínio do chefe branco chamado Charles, que mandava o próprio povo atravessar a Grande Água para tomar o que não era deles. — Os modos do Grande Kishalamaquon são estranhos — Soconme murmurou, pensativo. — Pelos espíritos de webtau velhos — ergueu cinco dedos nodosos —, ele nos dá apenas nunperre. — Dobrou três dedos, deixando só dois erguidos e estudando-os com ar de quem considerava aquela uma troca tremendamente injusta. — No entanto, nós temos feito o que ele mandou. Acolhemos, e muito bem, seus filhos menos favorecidos, de pele branca e modos tão estranhos. — Antes da Lua do Grande Vento, teremos entre nós três novos espíritos, meu velho amigo — rebateu Doce Água. — Muitos Dedos carrega no ventre um filho de Cara de Cavalo. — Essa criança não chegará a florescer. — Ah, não diga isso! — ela exclamou penalizada, cobrindo o rosto com as mãos. — Por meio da fumaça sagrada, perguntei à Voz que Fala Silenciosamente se o espírito de Tumme Wawawa voltaria para junto de nós, para trilhar estes caminhos nos mocassins do filho de Muitos Dedos. A Voz disse que Tumme Wawawa só voltará a andar conosco nos tempos de nossos bisnetos. A Voz disse que o filho de Muitos Dedos logo deixará o corpo de sua mãe, porque nenhum espírito se juntou à sua carne. Muitos Dedos a seguirá. Minha medicina não conseguirá segurá-los aqui. Isso a Voz me disse, e será verdade. Doce Água fixou os olhos na água parada, lá fora. Uma faixa de luz, no horizonte, lançava seu reflexo prateado. Acima e abaixo dessa faixa estava tudo escuro, devido às nuvens que


tinham se aproximado sorrateiramente, vindas da terra dos Mattamuskeets. Logo, as chuvas também chegariam. — Uma vez, pensei que meu filho fosse levar Lontra Cinzenta para sua ouke e me dar muitos netos — ela murmurou, seguindo a linha dos próprios pensamentos. — Lontra Cinzenta é uma mulher forte. Teria tido filhos fortes. — Lontra Cinzenta é como o pinheiro. É alta e tem valor, mas não seria capaz de aguentar os ventos fortes, que estão para vir. Ela é do tipo que quebra, em vez de vergar. — Ela não gosta da waurraupa shaman.- O velho assentiu, vagarosamente. — É verdade. — A moça waurraupa daria uma boa filha para mim, tem muita bondade no coração. Ela sofreu muito, mas não deixou que esse sofrimento amargurasse sua alma. Seu jeito é mais parecido com o do nosso povo do que com o jeito dos olhos brancos. O velho curandeiro tragou a fumaça malcheirosa de seu cachimbo, concordando. — É. Mas seu filho está cego para a marca na testa dela. Ele só vê a cor da pele dessa moça. — Meu filho pensa no pai dele, um homem honrado e um grande chefe, que morreu por causa da doença dos olhos brancos. Ele também pensa no irmão mais novo, Ckicktuck, que foi abatido pela vara de trovão de um pele pálida e trazido para mim sem o rosto. A dor está enterrada no fundo do coração de meu filho, onde ninguém vê, mas está lá. — Tenha paciência, mulher. Kinnahauk conhece bem a dor. Ele não provou a própria virilidade enfrentando a tempestade quando tinha apenas doze invernos, jejuando desde os primeiros sinais, vedando os olhos e expondo o corpo nu aos deuses enfurecidos? Não achou o caminho de Woccon até Chacandepeco sozinho, atravessando a maré violenta que cobria tudo, deixando de fora apenas o pico das colinas mais altas? Não escapou das armas lançadas pelos deuses do vento, que destruíram muitas árvores em seu esforço para atingilo e fizeram as águas se levantarem e caminharem pela terra? Eu lhe garanto que seu filho é mais forte que a maré branca que se aproxima. Ele não vai se curvar diante do chefe branco Charles, que roubou nossas terras fazendo sua marca num pedaço de pele. Ao lado de Kinnahauk estará a waurraupa shaman, pois ela é como o carvalho cujas raízes vão fundo e os brotos são fortes, mas generosos. — Ela é tão pequenininha, menor até que um weekwonne!


— A waurraupa shaman é mais forte que os ventos que a moldarão; Kinnahauk sabe disso. A Voz lhe disse muitas coisas sobre a moça olhos brancos. O corpo dele se volta para o dela como a flor amarela do wittapare se volta para o sol. E logo o coração dele fará o mesmo. — Meus netos serão mestiços — Doce Água queixou-se, baixinho. — Melhor um bebê que é meio Hatorask do que nenhum bebê. Muitos espíritos voaram para longe e poucos escolheram voltar para nós. Kinnahauk precisa plantar sua semente antes que ela fique velha demais para germinar. Vou falar com ele a esse respeito. O vento mudou de direção durante a noite, levando embora as nuvens de chuva e mandando peixes para as redes. Bridget, segurando um deles pelas guelras, fitou as velas que apareciam no horizonte, ao norte de Croatoan. — Wintsohore — resmungou Orelhas Longas. Ela sabia que essa palavra queria dizer ingleses. — Tontaríníe? — perguntou o velho TooCoria, que tinha perdido a vista olhando para o sol durante cinco dias, depois que sua família morrera da doença que fazia a pele chorar. — Nammee — replicou Kinnahauk. Dois ingleses, Bridget traduziu para si. Ou eram três? Senta Lá estivera lhe ensinando a contar, mas ela sempre confundia as palavras usadas para dois e três. Bridget nem notou quando as outras mulheres começaram a desaparecer no bosque. Levou os peixes que tinha limpado para o defumadouro, ajeitou melhor um galho de folhas verdes no fogo e voltou para junto da água, onde lavou as mãos com areia molhada. Depois, esfregou-as bem com folhas de um arbusto cheiroso, para tirar delas o aroma de peixe. À beira da água, um grupo de homens vigiava, silencioso. Bridget desviou os olhos para o veleiro que avançava cautelosamente por entre os recifes que tornavam o estreito de Chacandepeco tão traiçoeiro para navios maiores. Logo em seguida, no entanto, sua atenção voltou para o grupo de homens. Entre eles havia dois homens de costas largas, quadris estreitos e pernas longas, bastante parecidos. Kinnahauk e Kokom. Ambos usavam braceletes de cobre na parte superior do braço direito, mas o de Kinnahauk era mais largo e apresentava uma espécie de desenho. Não era de admirar que tivesse confundido os dois, vendo Kokom só de costas. Ou melhor, ajoelhado. Mais ou menos ajoelhado, ela se corrigiu logo em seguida, corando ao relembrar a cena que vira naquele canto do bosque. Bridget lançou um rápido olhar para o pedaço de couro que cobria as nádegas de Kinnahauk. Ele era mais claro lá, também? A primeira vez que tomara banho com as mulheres, descobrira, surpresa, que elas eram bem mais claras sob o vestido, embora não chegassem a ter a pele da cor da sua. Elas também haviam admirado sua coloração, tecendo vários comentários sobre os pêlos que cobriam sua parte mais íntima, pois os delas eram totalmente arrancados. A princípio


Bridget sentira-se embaraçada, pois fora ensinada a ter pudor desde o berço, mas não vira nada de mau no divertimento daquelas mulheres. No fundo, elas eram mais puras que sua própria gente, usando sempre roupas feitas para proporcionar proteção e conforto e nunca para chamar a atenção de um homem para uma ou outra parte da anatomia feminina. Qual seria a moda em Albemarle? Bridget torcia para que fosse mais parecida com a de Little Weddborough do que com a de Londres, senão faria má figura aparecendo de mocassins, com um xale de pele de gamo e um vestido praticamente em pedaços. David Lavender na certa a rejeitaria, desgostoso, assim que a visse. O que não deixaria de ser uma boa coisa, já que não tinha mais intenção de casar-se com ele. Sombreando os olhos com a mão, Bridget pôs-se a observar a aproximação cautelosa do barco. Kinnahauk arranjara uma desculpa atrás da outra, todas as vezes que lhe pedira para tirá-la de Croatoan. Se aqueles homens concordassem em levá-la para a cidade deles, poderia ir de lá para Albemarle e liquidar sua dívida, de uma vez por todas. Andava muito preocupada ultimamente, sem saber se ia ou ficava. Precisava seguir a cabeça, que sem dúvida era mais sábia que o coração. Bridget não dera mais do que três passos quando Kinnahauk se voltou e a viu. — Depressa, mulher! Esconda-se no bosque! — Mas eu... —Vá! —Não! Cobrindo rapidamente a distância entre eles, Kinnahauk ergueu-a e levou para o bosque, onde a jogou aos pés de Lontra Cinzenta, sem a menor cerimônia. As mulheres os fitaram. Estavam todas sentadas no chão, conversando enquanto trançavam cordas de cipó e tomavam conta das crianças, que brincavam na areia, a alguns passos dali. — Não saia daqui, enquanto eu não vier atrás de você. E fique quieta ou fale baixo. Dito isso, ele se foi, deixando Bridget furiosa por perder sua chance de escapar e ter sido tratada como uma criança, diante das outras mulheres. — Por que devo... — começou, sendo logo calada por Lontra Cinzenta. — Shiu! Kinnahauk deve estar achando que fará uma troca melhor, se aqueles homens não virem você. A sua cara não é das melhores, mesmo. — Troca? Ele vai ter de dar alguma coisa em troca da minha passagem.- Lontra Cinzenta sorriu, os olhos cheios de maldade.


— Ele vai é dar você em troca de um cesto de milho ou uma bela faca. — Kinnahauk vai me trocar?! — exclamou Bridget, esquecendo-se das precauções. Logo em seguida, no entanto, sua raiva foi substituída por uma angústia inexplicável. Doce Água levantou-se com dificuldade do chão. — Ah, Bridget, meu filho não lhe explicou que... — ...que se os cães ingleses souberem que você está aqui, vão dizer que é nossa cativa e usar isso como desculpa para arrasar a aldeia? — completou Lontra Cinzenta, sem o menor respeito pela mulher mais velha. — Não! Não é verdade! Você só está dizendo isso para me aborrecer! Bridget virou-se para Doce Água, procurando a verdade. Não daria ouvidos a Lontra Cinzenta, que estava sempre procurando magoá-la. Mas a mãe de Kinnahauk assentiu, com ar triste. — Ela diz a verdade, minha filha. Sei que nem todos os ingleses são maus, alguns até se mostraram muito bons, inclusive partilhando o que tinham conosco, mas até o melhor deles nos coloca abaixo dos animais da floresta. Para a sua gente, se não for para sermos escravos deles, não servimos para nada. Bridget deixou-se cair no chão, abraçando o próprio corpo. Aos poucos, as mulheres voltaram a conversar e até Lontra Cinzenta juntou-se a elas, brincando com Senta Lá por causa do bravo apaixonado que a seguia como um pelicano manso, à espera de ganhar um peixe. Os dias que se seguiram foram tristes, embora o sol brilhasse radiante. Kinnahauk fora embora com os homens do barco, que tinham vindo à praia à procura de água doce para refazer seu suprimento. A deles havia vazado dos barris e eles não tinham se dado ao trabalho de coletar a que caíra do céu, durante a recente tempestade. — Kinnahauk vai mostrar a eles como encontrar água boa, no chão — Kokom explicou, quando ela o procurou. — Eles viram nossa floresta. Sabem que temos boa água. A água do outro lado do Chacandepeco não é tão boa. — Então é atrás de água que eles estão e não de uma inglesa cativa. O sorriso do rapaz foi triste. — Lontra Cinzenta mentiu. Ela vê o modo como Kinnahauk olhou para você e não gosta. Mas ela não é má pessoa. Só age assim porque tem sentimentos errados por Kinnahauk. — Ela o ama — murmurou Bridget, surpreendendo-se com o gosto amargo que essas palavras deixaram em sua boca. — Ela me disse que eles vão se casar logo.


Um brilho estranho surgiu nos olhos de Kokom. — Ela é uma tola! Não é nem capaz de ver que é de mim que precisa! Eu a amo desde que éramos crianças. E sou tão bom caçador e pescador quanto Kinnahauk. Mas porque eu não sou chefe como ele, ela se recusa a ir para a minha ouke, como minha mulher. Num gesto impulsivo, Bridget tomou a mão dele, sem saber o que fazer para consolá-lo. Ele era o que dizia ser e muito mais, qualquer mulher se sentiria orgulhosa de tê-lo como marido. Foi o que lhe disse. — Venha andar a cavalo comigo, Bridget. Preciso do consolo de um amigo e não posso tocar nesse assunto com Kinnahauk. Com a habilidade aprendida recentemente e que nunca deixava de lhe dar prazer, Bridget assobiou para sua égua. Logo, ela e Kokom estavam galopando ao longo da praia arenosa, ultrapassando as dunas que marcavam o fim da floresta e alcançando a planície que avançava até os bosques distantes, localizados nas regiões sul e oeste da ilha. Eles conversaram durante muito tempo, aquele dia, e Bridget tentou distraí-lo falando de sua cidade natal e de Londres, onde estivera duas vezes com o pai, quando era pequena. Só não falou da morte da mãe e da última viagem que fizera a Londres para ser julgada por feitiçaria. Kokom ouviu tudo, mas não demorou a mostrar que seus pensamentos estavam em outro lugar. Falou de Lontra Cinzenta com tanta ansiedade e frustração que Bridget se viu querendo achar um meio de ajudá-lo. — Ela divide meu tapete de dormir, mas não irá para a minha ouke enquanto existir a chance de Kinnahauk tomá-la como uma de suas esposas! — Com o punho fechado, ele esmurrou uma das coxas. — Eu preciso de uma esposa, Bridget! Quero ter filhos antes de ser velho demais para prepará-los para a busca de seu nome, sua visão e sua caminhada pela tempestade. Enquanto cavalgavam de volta para a aldeia, Bridget suspirou, cheia de simpatia. Conhecia os rituais mencionados, porque o velho Soconme lhe falara do que um rapazinho devia enfrentar para provar a própria força, não tanto para os outros quanto para si mesmo, de maneira a amais sentir medo diante de perigos maiores. Soconme lhe dissera que a tempestade de Kinnahauk fora a maior de que se tinha notícia. — Seja sincera, Bridget, eu não sou tão atraente quanto Kinnahauk? E tão corajoso quanto ele? Bridget concordou, mesmo achando que não era verdade. Nenhum homem chegava aos pés de Kinnahauk.


— Você faz papel de palhaço, Kokom. Nós todos rimos do que você faz, inclusive Lontra Cinzenta. Vai ver que ela não leva você a sério, porque acha que está brincando. Tente lhe mostrar que os seus sentimentos são verdadeiros. Perto da aldeia, eles desmontaram. Kokom bateu na anca das montarias, enxotando-as para junto dos outros animais. Todos corriam livres pelas imediações, mas sempre atendiam aos assobios de seus donos. — Você me ajudou muito, Bridget. Vou fazer o que sugeriu. Chega de brincadeiras. Com olhos tristes e uma expressão desanimada, vou tentar provar meu amor por Lontra Cinzenta. Mas mesmo enquanto falava o riso dançava nos olhos de Kokom, que não conseguia disfarçar sua personalidade inegavelmente alegre. De repente, um movimento junto à clareira chamou a atenção de ambos. Lontra Cinzenta, com ar zangado, deu-lhes as costas e desapareceu entre as árvores. Bridget voltou-se para Kokom. — É melhor não exagerar, meu amigo. Acho que Lontra Cinzenta precisa da sua alegria muito mais do que é capaz de imaginar.

CAPÍTULO XVIII

Não era próprio de Kinnahauk cavalgar Tukkao até a exaustão, mas quando Lontra Cinzenta lhe disse, assim que chegou de viagem, que Bridget e Kokom tinham passado quase todo o tempo juntos e estavam, naquele exato momento, cavalgando no bosque, longe de olhos curiosos e línguas maldosas, não conseguiu se conter. Sem nem mesmo cumprimentar a mãe, chamou seu cavalo e saiu. Não ficava longe o bosque citado por Lontra Cinzenta. Quando rapazinho, fora muitas vezes a pé até lá, para caçar os animais que viviam à beira dos riachos, na porção mais baixa da ilha. Não era um bom lugar para fixar a aldeia, devido às inundações frequentes, mas constituía um ótimo ponto de lazer, principalmente por causa do cheiro doce dos cedros que lá cresciam. De repente, avistando duas figuras montadas, junto à praia, Kinnahauk mudou o peso do corpo, diminuindo a velocidade do garanhão. Mesmo daquela distância, não havia como confundir os cabelos dourados de uma das figuras. E pensar que seu melhor amigo, que tinha o mesmo sangue que ele, era capaz de traí-lo daquele modo! Com as feições endurecidas, Kinnahauk esperou Tukkao. E só quando estava praticamente sobre eles soltou seu grito de guerra. O mesmo grito que


seu povo costumava soltar quando abria caminho em terras inimigas, no Tempo Antes dos Avós. Os dois culpados separaram-se. A montaria de Kokom recuou, dançando nas patas traseiras, mas Bridget apenas arregalou os olhos de medo, ao ver que Kinnahauk pretendia passar por cima deles. — Kinnahauk, o que foi que deu em vo... — Kokom começou. Mas não pôde dizer mais nada. Do lombo de Tukkao, Kinnahauk jogou-se sobre ele, atirando-o ao chão. O cavalo de Kokom relinchou, afastando-se de lado, enquanto Tukkao empinava, escavando o ar com as patas poderosas. Vento Vermelho dançou para trás, sacudindo a cabeça e Bridget agarrouse à crina do animal, assustada demais para tentar qualquer outra coisa. O que estava acontecendo? Outros dos estranhos rituais Hatorask, destinados a provar o valor de um homem? Se era assim, que coisa bárbara! Dois amigos de infância estavam agora a seus pés na areia macia, agachados e movendo-se em círculos, as facas desembainhadas brilhando à luz do sol. Havia uma espécie de beleza mortal na dança e Bridget, fascinada e horrorizada, não conseguia desviar o olhar. Kinnahauk, com o rosto transformado numa máscara vingativa, era obviamente o que tinha maior domínio da situação. Kokom chegou a rir, tentando quebrar a tensão, mas seu riso morreu depressa quando Kinnahauk avançou com a faca. — O que foi que fiz de mal a Kinnahauk, para que ele queira o meu escalpo? — perguntou Kokom. Kinnahauk rosnou e, com uma velocidade incrível, atacou. Kokom tropeçou numa raiz, caindo, e Kinnahauk foi atrás, jogando-se a cavaleiro sobre o primo. De repente, a faca de Kokom brilhou, subindo. Um grito escapou dos lábios de Bridget quando uma fina linha vermelha surgiu no peito de Kinnahauk. O som foi demais para a égua assustada. Vento Vermelho disparou. Sentindo-se jogada para cima e para baixo como um saco de farinha, Bridget agarrou-se à crina da égua, porque não tinha mais em que se segurar. Nem sela, nem rédea, nem nada, só lhe restando a própria voz e a pressão das coxas para tentar dominar o animal em pânico. Mas a égua estava além da capacidade de obedecer. Apavorada, Bridget viu que começava a escorregar para o lado e agarrou-se com mais força à longa crina, lutando para recuperar o equilíbrio. Não era, no entanto, páreo para o animal forte, determinado a se livrar da carga incômoda. Percebendo que ia cair, Bridget tentou saltar, mas não teve tempo. Num momento estava agarrada ao dorso liso e úmido da égua em pânico, no outro estava entre os cascos que voavam pelo chão. Ela caiu de mau jeito. Antes que pudesse rolar para longe, foi atingida na parte de trás da cabeça. Uma luz brilhante explodiu diante de seus olhos, depois apagou-se como a chama de uma vela, deixando apenas a consciência do som abafado de cascos, que logo se misturou com o som surdo das ondas quebrando na areia. Em seguida, veio o nada.


Logo, no entanto, ela teve a impressão de estar sendo carregada sobre a superfície turbulenta do mar. Estava, então, novamente a bordo do Andrew C.? Ou flutuando nas águas escuras, pronta a ser jogada de um lado para outro pelas ondas enfurecidas, como se não passasse de um barril vazio? Sussurros. Vozes em sua cabeça? Sentiu medo de abrir os olhos e descobrir que estava sozinha, jogada sobre a praia de um lugar estranho e selvagem. Isso já lhe acontecera uma vez, antes... Ou fora apenas um sonho? — Não, minha mãe. Ela vai ficar aqui. A voz era familiar. Grave e ressonante, aqueceu-lhe a alma. — E se ela não voltar a si? Uma pancada dessas, na cabeça, pode ter-lhe roubado a inteligência. Quer passar o resto da vida com uma esposa assim? Leve-a para a minha ouke, meu filho. Se a alma dela voltar para o corpo, você a traz de volta. Senão, cuidarei da shama como se ela fosse meu bebê recénascido. — A senhora aceitaria a carga de uma filha sem inteligência, minha mãe? — O coração que ama não enxerga essas coisas. Uma filha não é nunca uma carga, mesmo que não tenha inteligência. — É verdade, minha mãe — retrucou a voz familiar. — O coração só aceita o que lhe dita o amor. Eu tomo conta dela. Pode mandar Soconme para a minha ouke. — Você não... Bridget deixou escapar um gemido, calando Doce Água. Mãe e filho fitaram-na com tanta atenção e ela tornou a fechar os olhos. Não entendia direito o que tinha ouvido. Doce Água realmente se oferecera para cuidar dela como se fosse uma filha, sem saber se conseguiria se recuperar? Não sabia o que pensar de tanta generosidade. Eles haviam falado de amor, mas sem dúvida Kinnahauk não podia... Não, claro que não. Existiam muitas espécies de amor e muitas palavras com diferenças sutis em seus significados. Gostar. Amar. Querer bem. Senta Lá estava sempre rindo das confusões que ela fazia com as palavras da língua Hatorask, chamando uma pantera de rato ou o vento de peixe. Doce Água ajoelhou-se junto dela, os olhos escuros cheios de preocupação. — Eu queria levar você para a minha ouke, menina, e cuidar de você lá, mas o meu filho não quer que saia daqui. No entanto, se preferir ficar comigo, peço a Kokom para levá-la. Kinnahauk é meu filho. Ele é meu chefe e sua palavra tem valor nas reuniões de conselho, mas existem horas em que um homem não sabe julgar com exatidão. O olhar de Bridget foi para o homem alto e silencioso, em pé junto à abertura da ouke. A fumaça do braseiro aceso no centro do local mascarava-lhe a expressão, mas não escondia a


linha vermelha que lhe cruzava o peito. Sangue seco. Sangue derramado pela faca de um amigo de ambos. O que teria acontecido para colocar Kinnahauk contra um amigo de infância? — E Kokom? Onde está? O que foi que você fez com ele? - Uma expressão estranha surgiu nos olhos dourados. Kinnahauk virou-se para a mãe. — Pode ir. Quero falar com minha mulher a sós. Diga a Soconme que não precisa vir. Se depois for preciso, eu vou atrás dele. Com um sorriso preocupado, que atingiu os nervos de Bridget como a brisa atinge a superfície do mar, Doce Água se foi. Bridget seguiu-a, com os olhos, com vontade de chamála de volta. Mas sabia que não ia adiantar. Fosse lá o que fosse que Kinnahauk pretendia lhe dizer, ele diria, mesmo que ela não quisesse ouvir. E pela expressão zangada no rosto dele não devia ser nada agradável. Bridget tentou se levantar. Se tinha de enfrentar a zanga de um homem, preferia estar de pé, pois isto lhe daria uma certa dignidade. Mas subestimou a própria fraqueza. Até sentar custou-lhe um grande esforço. Seus ossos pareciam ter virado água e todos os músculos doíam. Nacerta estava gravemente ferida, embora ninguém, a não ser Doce Água, parecesse se importar. De mau humor, exclamou: — O que foi? Não conseguiu me trocar por tudo que esperava? Está arrependido de ter me engordado para o mercado? Então me leve para Albemarle e peça milho a David Lavender! Acho que até os fazendeiros mais pobres sabem que não vão conseguir preços tão bons quanto os de Londres, se não forem para longe de Little Whcddborough! — Sehe, mulher! Não fale até ter recuperado todos os sentidos. — Eu estou chima, seu selvagem vermelho! Não fui eu que saí por aí com uma faca na mão, feito louca, assustando os cavalos com gritos e ameaçando a vida dos meus amigos. — Não! Você só esperou eu virar as costas para se oferecer ao primeiro homem que... — Ah, é disso que estou sendo acusada?! E o que você vai fazer? Me presentear com outra marca? — Jogando os cabelos para trás com um gesto zangado, Bridget voltou para ele uma das faces, que já exibia o corado da raiva. — Aqui? Ou aqui? — Indicou a outra face, tão furiosa que mal podia se conter. — Como pode ver, na testa eu já tenho a marca do que sou. Ah, eu fiz jus a muitas marcas, meu amo e senhor! Será uma honra ter outra, para acrescentar à coleção. Kinnahauk viu as lágrimas encherem os grandes olhos cinzentos. Causava tanto medo que ela não podia vê-lo sem chorar? Viu os lábios pálidos tremerem e seu coração se apertou dolorosamente. Por que não conseguia fazer nada direito, quando se tratava daquela


mulher? Conhecia muitos jeitos de fazer uma mulher sorrir e dar-lhe prazer, mas, com aquela mulher, mandada pelo Grande Kishalamaquon, não conseguia fazer nada direito. Se retraía, estava errado. Se mostrava mais atirado, também estava errado. Ajoelhou-se junto dela, preparando-se para ignorar o modo como fugiria de sua proximidade. Não sabia como, mas tinha de fazê-la entender. — Nós dois dizemos coisas que não queremos, Bridgetabbott. Nossos mundos são muito distantes, os costumes de nossos povos, muito diferentes. Não há palavras em sua língua para muitas coisas que têm grande valor para o meu povo. — Respirando fundo, ele começou a tarefa de reclamar o que era seu. — Você já deve ter me ouvido chamá-la de oquio. — E coelho — ela acrescentou, mal humorada.— Além de corça malhada, peixe fedorento, olhos brancos, pele pálida e feiticeira branca. Kinnahauk sorriu e Bridget não conteve a admiração ao ver a beleza do sorriso. — Waurraupa shaman. Meu povo a chama de feiticeira branca por causa da sua habilidade e conhecimentos. É um nome para ser usado com orgulho. Escute o que digo, minha waurraupa shaman, pois quero que saiba o que vai no meu coração. Na minha gente, quando um jovem se aproxima do décimo quinto inverno, deve procurar orientação nas coisas que se tornarão parte de sua vida, como homem. Quando chegou a minha hora de ter a visão, jejuei durante muitos dias. Ungi meu corpo com óleo sagrado e caminhei, nu e sozinho, até uma colina de onde podia ver o lugar onde dois grandes espíritos vivem debaixo da Grande Água, cada um reclamando esta ilha para si. É um lugar de enorme poder. Lá eu me sentei durante três dias e três noites, antes que o Grande Kishalamaquon se dignasse a falar comigo. Ele me disse que, um dia, uma mulher do outro lado das águas viria até mim. Disse que ela seria a minha oquio, uma moça intocada, escolhida para receber a semente do meu corpo. Disse que eu a reconheceria pela marca na testa. E disse que dessa união nasceria um quasis, um filho, que um dia seria líder entre no nosso povo. Ouvindo a voz sonora de Kinnahauk fluir com riqueza hipnótica, Bridget teve a impressão de que as palavras atingiam diretamente sua consciência. Sem querer, viu se examinando a tatuagem no peito forte e largo. A mesma marca que enfeitava a ouke e o escudo de Kinnahauk. Num gesto impulsivo, tocou a marca em sua própria testa, depois a que estava no peito dele. Eram tão parecidas... e tão diferentes. — Como um homem e uma mulher são diferentes — Kinnahauk murmurou. Espantada, ela ergueu os olhos para ele. — Como soube o que eu estava pensando?


— Existe uma voz... — Tomando a mão dela, Kinnahauk colocou-a sobre o coração, permitindo que sentisse os batimentos fortes, violentos como um mar tempestuoso. — Ela fala silenciosamente. Às vezes, não diz o que quero ouvir e eu fico bravo. Mas eu preciso prestar atenção a ela, pois a Voz que Fala Silenciosamente nunca diz mentiras. — É essa voz que sinto dentro de você, batendo de encontro aos meus dedos? — Bridget sussurrou, os olhos presos aos dele. Mal podia se lembrar das palavras que dissera um momento atrás. Só sabia que seu coração repetia o que dizia o dele e sua alma parecia estar, de algum modo, ligada à daquele homem. — A sua voz também já lhe falou, Bridgetabbott. Vi a verdade em seu rosto muitas vezes, quando você olha para mim. Por que continua citando esse homem, David Lavender, quando sabe que ele não é para você? David Lavender foi completamente esquecido quando Kinnahauk se inclinou, aproximandose tanto que deu para ela ver a sombra da barba que ele não tivera tempo de raspar, com a lâmina da faca. O hálito masculino banhou suas faces e os olhos dourados, cheios de ternura, despertaram em seu íntimo um calor que a fez ignorar por completo a dor em sua cabeça e a rigidez no corpo. Em vão, ela tentou manter um traço de sensatez. — Essas coisas que você me disse... As palavras... - Em resumo, o que ele tinha dito? Que era mulher dele? Que teria de lhe dar filhos? Seu corpo reagiu a esta idéia com um estremecimento que a assustou, de tão intenso. — Kinnahauk... Como é que eu posso acreditar em você? Primeiro, você foi embora e me deixou aqui, enquanto tentava me trocar por milho. Depois, quando isso não deu certo, voltou e me acusou de coisas... coisas... — Instintivamente ela apertou as pernas, uma de encontro à outra. A surpresa de Kinnahauk foi quase cômica. — Eu não tentei trocar você por nenhum milho, mulher! Se fui com aqueles estúpidos olhos brancos, foi para mostrar a eles onde encontrar água. Por que diz coisas que não são verdadeiras? — Como é que posso saber o que é verdade e o que não é? — Bridget exclamou, lutando para se sentar. — Você nunca pára para explicar! — Explicar?! Kinnahauk é chefe — ele esclareceu com altivez, como se isso fosse explicação suficiente. - Um chefe que tenta matar o melhor amigo, que me acusa de coisas que não fiz, que nem pensei em fazer, e que agora...


— É verdade. — Com um leve suspiro, Kinnahauk fez com que ela se deitasse novamente, pondo-se a acariciar-lhe um dos ombros. — Mais uma vez, meu coração, reconheço que agi como um nanupeeyauhhe, uma pessoa que fica louca de tanto beber uísque. O medo e a raiva roubaram a minha sensatez. Eu já lhe disse que isso nunca aconteceu comigo. Antes, eu sempre soube as palavras certas para dizer a uma mulher, o jeito certo de conseguir o que eu queria. Você deve ser mais poderosa que a maior das shamans. — Está agora querendo me dizer que eu sou a culpada por você ter atacado o pobre do Kokom como se fosse um selvagem? — A ironia dessas palavras escapou-lhe. No entanto, alguns meses atrás ela não teria esperado nada melhor dele, pois fora levada a acreditar que todas as pessoas de pele cor de cobre eram selvagens ignorantes e sedentos de sangue. — Pode me dizer, pelo menos, o que foi que fez com Kokom e por quê? Kinnahauk apertou os dedos sobre o ombro feminino. — Kokom! Até quando me ajoelho a seu lado, pedindo pelo que é meu por direito, você só pensa nele. — Alguém tem de pensar! Principalmente com Lontra Cinzenta quebrando-lhe o coração e o melhor amigo tentando cortar-lhe a garganta por causa de uma besteira qualquer. — Eu não o machuquei. Se você quer mesmo chorar, é melhor chorar por Kinnahauk, que estava tão cego de raiva que não enxergava nada. Só a lâmina de Kokom arrancou sangue. Quando a sua égua disparou, saí atrás de você, em vez de terminar o que tinha começado. — Você estava disposto a matá-lo? Bridget estava chocada. Tendo conhecido, até aquele momento, só a delicadeza de Kinnahauk, não fazia idéia do quanto ele era capaz de ficar zangado. — Não. O que Lontra Cinzenta disse era verdade, embora o significado fosse falso. Se não fosse assim eu o teria banido daqui, mandando-o viver com o nosso povo do continente. Kinnahauk correu os olhos pelo corpo de Bridget, como tinha corrido as mãos, momentos antes. Ao ouvir as palavras de Lontra Cinzenta, fora tomado por uma raiva intensa. Tão intensa que montara e fora atrás deles, sem nem se dar ao trabalho de pintar o rosto ou o cavalo. Se as penas de águia estavam em seus cabelos, era só porque costumava usá-las sempre que saía da tribo, como símbolo de sua posição e feitos corajosos. No entanto, não fora um feito corajoso assustar sua oquio e colocar em risco a vida dela. Caída no chão, ela parecera tão frágil e sem vida que os dois haviam temido que nunca mais acordasse. Enquanto Kokom segurava os cavalos irrequietos, ele a examinara com todo cuidado, mas não encontrara nada além de arranhões e um galo na parte de trás da cabeça. Levantando-


se, ele a colocara nos braços de Kokom, enquanto montava. Kokom a entregara então a ele, que a levara de volta para aldeia, dividido entre a necessidade de pressa e a de cautela. — Eu não joguei minhas tarefas nas costas de sua mãe — murmurou Bridget, mais calma. — E se passei tanto tempo consolando Kokom, foi só porque ele anda se sentindo muito infeliz. Por mais que tente, ainda não conseguiu convencer Lontra Cinzenta a se mudar para tenda dele. — Isso eu sei. — Eu ensinei ao coitado algumas coisinhas para despertar o interesse dela. — Eu sei. — Kokom é um bom rapaz, bom até demais para aquela encrenqueira, mas... — Agora chega, meu coração. Fique quietinha, que eu lhe mostro quem é o melhor homem. — Deitando-se junto de Bridget, Kinnahauk virou-a, de modo que o encarasse. — Seu povo trouxe para esta terra um costume que se espalhou entre o meu. Foi uma das poucas coisas boas que eles nos deram. — Um costume nosso? Bridget mal conseguiu pronunciar estas palavras com os lábios trêmulos, pois Kinnahauk a fitava como se quisesse consumi-la. Exatamente como em seus sonhos, quando revivera inúmeras vezes o momento em que ele a beijara. Sem replicar, Kinnahauk beijou-a de leve nos lábios. Um toque delicado, um leve roçar, mas que a fez sentir-se completamente mole e quente. Quando, afinal, ele introduziu a língua em sua boca, todos os sentidos de Bridget despertaram e ela teve a certeza de que, por mais que vivesse, por mais que andasse, jamais se esqueceria daquele momento. O cheiro másculo de Kinnahauk encheu-lhe as narinas. A princípio com timidez, ela começou a retribuir o beijo, tocando a ponta da língua masculina com a sua. O gemido que escapou da garganta de Kinnahauk causou-lhe calafrios de excitamento, pois sabia que naquela noite ele não a deixaria sozinha, como fizera na última vez em que haviam se deitado juntos. Até agora os sonhos incríveis que tivera naquela noite a perseguiam, fazendo seu rosto corar nas horas mais impróprias. Foi no dia em que ele a encontrara chorando na floresta, tocara-a de um modo que... Bridget sentiu uma onda de calor invadi-la, acelerando seu pulso. Estava tão certa de saber tudo o que acontecia entre um homem e uma mulher, mas na verdade não sabia nada. E como poderia saber alguma coisa daquela sensação incrível, doce e intensa, que fazia seu corpo enrijecer e as pernas tremerem? Kinnahauk moveu os lábios por seu rosto, seguindo a curva do queixo até alcançar a concavidade tão sensível, na base do pescoço. Bridget estremeceu. As sensações que percorriam seu corpo não podiam ser naturais. Ele lançara algum tipo de


encantamento sobre ela. Um encantamento que a fazia se sentir fria e quente, fraca e forte. Que lhe dava vontade de arrancar as roupas e apertar o corpo de encontro ao dele... — O que foi? O que está fazendo, Kinnahauk? — perguntou, sobressaltada, quando sentiu a mão dele em seu joelho. — Shiu! Não tenha medo, pequenina, vou ser delicado com você. Sei que está dolorida da queda, mas a voz me diz que não devo esperar mais tempo para tornar posse do que é meu. E meu corpo fala ainda mais alto - ele terminou, com um traço de zombaria que ela achou cativante. Kinnahauk segurou lhe um dos joelhos, os dedos acariciando as saliências na parte de trás. Mais uma vez ela foi assaltada por uma onda de exalação incontrolável que aumentou-lhe a agitação. - Estou sentindo umas coisas estranhas, Kinnahauk. Você acha que Socome ... A mão dele, rija e quente, espalmada sobre a coxa delicada, pôs-se a deslizar para cima, levando junto a saia que a cobria. - Socomme não pode ajudar em nada, minha corçazinha trêmula. As coisas que está sentindo são ruins? - Não..não. - ela balbuciou, recebendo um beijo na curva do pescoço, -Elas assustam você? — Mais uma vez, os lábios dele voltaram a deslizar. -Siiim... - O calor atingiu a pele nua dos quadris de Bridget, quando Kinnahauk levantou a saia até a cintura.

- Não confia o bastante em mim, para deixar que eu cuide de você, Bridegetabbott? — A voz grave soou estranhamente tensa. As chamas do fogo dançavam entre as brasas, lançando sombras sobre o rosto de Kinnahauk. Na penumbra, Bridget podia ver-lhe os olhos, que um dia havia comparado aos de um falcão. Ele a tirara do mar e levara para casa, quando tinha todo o direito de desprezá-la. E não lhe mostrara nada a não ser bondade, embora às vezes ela confundisse essa bondade com outra coisa. — Sim, Kinnahauk — respondeu afinal, baixinho. Eu amo você, acrescentou em pensamentos, relutando em entregar-se completamente. Com um movimento que foi lindo em sua simplicidade, Kinnahauk levantou-se e tirou a tanga. Bridget correu os olhos lentamente pelo corpo forte, que poucos segredos tinha para ela, pois mesmo durante os


dias mais frios os homens de Croatoan usavam poucas roupas. Mas não pôde deixar de se espantar quando ele desnudou o membro que ela já sentira de encontro a si, porém nunca vira. — Está com medo, minha pequena shaman! Os lábios entreabertos, ela sacudiu a cabeça devagar. Não tinha motivos para estar. Não sabia o que acontecia entre um homem e uma mulher? Não vira tantos acasalamentos em Newgate? A única coisa que nunca vira era o membro masculino, livre e ereto. — Não vai dar — murmurou. — Deve haver alguma coisa errada comigo. Meu corpo não pode aceitar um... um... — Presente desses? Bridget levantou os olhos implorantes para ele. Todos os sonhos, todas as sensações estranhas que tivera cada vez que o vira, cada vez que ele a tocara ou abraçara... No fundo, sempre pensara que tudo viria com tanta naturalidade quanto a chuva, mas isso fora antes de vêlo daquela jeito. — Por favor, Kinnahauk... Não me peça isso! Faço o que você quiser, mas isso não é possível. Você mesmo pode ver que não fomos feitos um para o outro! Ele hesitou por um breve momento, antes de dizer: — Então vou só segurar você, enquanto dorme. E fitou-a, muito ereto, alto e cheio de altivez, o centro do corpo bronzeado marcado pelo tufo de pêlos escuros, que atraíam os olhos dele como um imã. — Não é hora de dormir. O sol ainda está alto — Bridget protestou, baixinho. — Mas você vai dormir. Precisa descansar. Quando acordar, discutiremos melhor esse assunto. — Você não tem que ficar comigo. — Sua voz soou mais alta que o normal, e ela percebeu que devia ter batido a cabeça, ao cair. Sua capacidade de raciocínio havia sumido como um bando de pássaros assustados. — Vou ficar até você dormir, Bridgetabbott. Agora levante os braços, para eu tirar seu vestido. Se não quer me receber em você, deixe pelo menos que eu segure seu corpo junto ao meu.


Devagarinho, Bridget levantou os braços acima da cabeça. Não sabia por que era tão passiva quando estava com aquele homem. Sem que percebesse, ele tomara conta de sua vida e agora tinha sua alma na palma da mão. Sem dúvida, tomaria posse de seu corpo, também. A última vez que se sentira daquele modo, acabara assinando um documento que a fizera deixar para trás tudo que lhe era querido, começando uma vida inteiramente nova. Naquele momento, o sentimento era ainda mais intenso. Kinnahauk amarrou o couro que fechava a entrada da tenda, para impedir que se abrisse com uma rajada súbita de vento. Em seguida, estendeu a pele de lobo vermelho no chão e ajoelhou-se ao lado de Bridget. Com toda delicadeza, ele tirou o vestido dela, tendo o cuidado de não esbarrar na parte ferida da cabeça. Por um instante, ambos ficaram como estavam, absolutamente imóveis. Depois, para surpresa de Bridget, Kinnahauk inclinou-se e beijou-a nos seios. Soltando repentinamente o ar que tinha nos pulmões, ela enrijeceu. Kinnahauk murmurava em sua própria língua, intercalando palavras com beijos. Waurraupã, enquanto lhe beijava os seios. Ela sabia que queria dizer branca. Wisto era a palavra que designava a pele de uma corça, roosommé queria dizer macia. Mas quando ele tomou o bico do seio entre os dentes e começou a sugar devagarinho acabaram-se as palavras. Bridget apertou os punhos junto ao corpo, lutando contra a vontade de tocá-lo como estava sendo tocada. Como era possível que um homem fizesse uma mulher se sentir daquele modo? Havia trocado beijos com garotos de sua aldeia, mas nunca se emocionara. Nenhum deles tinha lhe dito que quando um homem e uma mulher se tocavam de certos modos ficavam quentes, suados e cheios de uma languidez diferente de tudo que havia no mundo! Kinnahauk tomou a mão de Bridget e colocou-a sobre o próprio peito, para que ela sentisse a violência com que batia seu coração. Aquilo só podia ser perigoso! Mas, mesmo sabendo disso, ela resolveu desafiar o perigo e começou a acariciá-lo devagar a princípio, depois com mais ousadia. Ele estava quente, a pele lisa como seda, os músculos duros. Movia-se sinuosamente, nunca estava parado. Num momento sugava-lhe os seios, no outro mordiscava o lóbulo das orelhas de Bridget, a respiração acelerada revolvendo-lhe os cabelos. Ele sussurrava palavras estranhas mas de significado claro. Pretendia fazer com ela aquela coisa misteriosa que os homens fazem com as mulheres e que incluía toda a agitação e gemidos que vira sob os montes de trapos, em Newgate. Só que isso, agora, já não lhe parecia tão impossível. Ele a tocou do mesmo modo que a tocara na floresta e Bridget foi tomada pela sensação de que o mundo se consumia em chamas. Queimava por ele, ansiosa por... por...Respirando pesadamente, ela girou o corpo e Kinnahauk imobilizou-se. A mão que estivera sobre seu sexo interrompeu os movimentos mágicos. -Chegou a hora, meu amor — ele sussurrou, em inglês. Ouvindo-lhe a voz grave, ela foi assaltada por um estranho tremor.


— Por favor, Kinnahauk! Eu não sei o que fazer! Só sei que não aguento mais esta agonia! Ajoelhado junto dela, Kinnahauk fitou-a. Depois, com todo cuidado, ergueu-a pela cintura e colocou-a no colo, de modo que ficassem de frente um para o outro. — Passe os braços pelo meu pescoço. Encoste a cabeça no meu ombro. Vamos até onde você quiser e no ritmo que preferir. Isso eu lhe prometo, amor. Bridget obedeceu e sentiu a barriga pressionar o membro rígido. Kinnahauk ergueu o rosto para o céu, pedindo aos espíritos que lhe dessem paciência e autocontrole. Beijou-a então nos cabelos, sentindo o cheiro gostoso de sol, que sempre parecia acompanhá-la. Beijou-a também nas pálpebras e, quando ela ergueu o rosto, beijou-a nos lábios. Foi correspondido de imediato, mas esperou até sentir os movimentos agitados dos quadris femininos antes de levantá-la, apoiando-lhe as nádegas na palma das mãos, e abaixá-la até a ponta de seu pênis tocar o tufo de pêlos dourados. Ela estava molhada. As narinas de Kinnahauk tremiram quando ele captou o doce cheiro de mulher. Tudo nela fora feito para agradá-lo. Ela seria dele! E logo a espera terminaria. Podia senti-la vibrando de encontro a si e só com um esforço sobre-humano dominava a vontade de mergulhar impetuosamente, sem ligar para nada. Quase tremendo de emoção, segurou-lhe o rosto entre as mãos, de modo que pudessem se olhar nos olhos. — Você é a minha própria alma, Bridgetabbott. Se houvesse um jeito de fazer isso sem machucar você, eu faria, mas não há. A dor vai passar logo, mas a escolha será sua. Bridget escolheu. Só com o instinto para guiá-la, baixou o corpo sobre o membro viril. Quando a fina membrana foi rompida, os lábios dele estavam lá para capturar seu grito. Kinnahauk esperou que Bridget se acostumasse com a sensação de tê-lo dentro de si, pois ela era pequena e apertava-o com uma força que por pouco não o fazia perder a noção de tudo. Deslizando a mão entre as pernas de Bridget, procurou até encontrar o que queria... e começou a acariciar. Logo ao primeiro toque, ela se pôs a mexer, tomando consciência completa do modo como estavam unidos. Só então ele a colocou sobre a pele de lobo, começando a se mover, afundando cada vez mais no delicado corpo feminino, à medida que ela correspondia com mais ardor. Ele nunca se atrevera a esperar que a mágica que lança um homem e sua companhia em direção ao paraíso acontecesse, mas não havia como se enganar com o rosto corado e os gemidos de Bridget, que se agarrava a seus ombros em completo abandono. De repente, sentindo nela os tremores do êxtase, não pôde mais se controlar. Quando tudo acabou, Kinnahauk abraçou-a com força. Não tinha coragem de deixá-la, pois os ecos de sua paixão ainda lhe davam um prazer todo especial. Nunca, em toda sua vida, tivera uma união como aquela.


— Foi por isso que sempre esperei — sussurrou emocionado, fitando com ternura a criaturinha coberta de suor que tinha nos braços. Delicadamente, afastou-lhe os cabelos da testa e beijou a marca feita a fogo. Sua! Ela era sua agora e nenhum homem podia torná-la! Algum tempo depois, Bridget voltou à realidade para ver Kinnahauk banhando seu corpo. Deveria se sentir embaraçada, mas aquele homem já não vira tudo que tinha para mostrar? Já não a conhecia da forma mais íntima possível, nessa terra de Deus? Sorrindo, cansada demais para analisar o que acontecera, ela fechou os olhos. No dia seguinte teria tempo de sobra para meditar a respeito. Kinnahauk saiu da tenda e entrou na água, o luar brilhando em seu corpo molhado. Sentia o poder de muitos espíritos, na noite clara e fria. O Espírito do Rio Frio e o Espírito do Rio Quente estavam em paz. Os espíritos de seus ancestrais aprovavam, era sussurros, sua mulher. A sabedoria do Grande Kishalamaquon era realmente enorme, pois, sabendo que Kinnahauk ainda teria de levar seu povo a partilhar o mundo com os olhos brancos, que tanto desprezava, fizera-o abrir o coração a eles. Afinal, eram todos filhos do Grande Espírito. Se não fossem, não teriam alma. Ele mergulhou e nadou sob a superfície até os pulmões estarem a ponto de arrebentar. Na manhã seguinte começaria a colecionar peles. Tiraria as melhores peles de sua ouke, pegaria as três moedas de ouro que há muitos anos estavam num esconderijo seguro e iria ao lugar onde muitas trilhas se cruzavam. Espalharia a notícia de que Kinnahauk, de Croatoan, pagaria em ouro pelas melhores peles. Quanto tivesse o bastante, iria ao lugar chamado Albemarle. Encontraria aquele homem, David Lavender, e lhe pagaria o preço de noiva. Desse modo, sua honra e a de sua mulher seriam preservadas.

CAPÍTULO XIX

Lontra Cinzenta viu as canoas levando Kinnahauk, Graveto Torto e Chama o Corvo se afastarem em meio à névoa que cobria as águas. Estava acordada quando Kinnahauk passara por sua ouke, à procura da mãe. Saíra então, pensando em encontrá-lo no caminho de volta, para mostrar-lhe que era mais linda, mais sábia e mais apaixonada que aquela criatura pálida como leite, com quem ele havia passado a noite. Naquela hora quieta que precede o nascer do dia, ela o ouvira dizer a Doce Água que usaria as moedas para conseguir mais peles e pagar o preço de noiva da mulher branca. — O dinheiro do homem branco nunca nos trouxe nada de bom — Doce Água comentara, incapaz de esquecer que seu filho caçula fora morto por uma moeda daquelas. — É mesmo preferível que você as leve para longe de nossa aldeia.


— São homens de honra, os caçadores de peles que vou procurar. Vão aceitar nossas peles e o ouro do homem branco sem dizer nada. — Tenha muito cuidado, meu filho. — Eu volto no quinto dia, antes que a luz apareça no céu. Fique com minha mulher, até eu chegar. Ela está dormindo, agora. Lontra Cinzenta, que havia passado a noite acordada, imaginando o que acontecia na tenda de Kinnahauk, enfiara as unhas na palma das mãos. Doente de amargura, escondida pela névoa da manhã, seguira os três rapazes até a praia. Agora, muito tempo depois de a canoa ter sumido, continuava lá, desejando, em pensamentos, que Kinnahauk voltasse. Escolha a mim! Eu lhe darei muitos filhos que serão grandes caçadores, pescarão nas águas mais profundas, enfrentarão as piores tempestades. Eu lhe darei filhas para tomarem conta de você, quando for velho. Ensinarei a nossos filhos o jeito de nosso povo, para que um dia possam se levantar contra a maré branca e desprezível que invadiu nossas praias, desde a Terra da Água Congelada até a Terra Sem Lua Fria. Ela ainda observava as águas quando o sol começou a dispersar a névoa. Foi então que viu novamente o pequeno barco de Kinnahauk, as velas murchas devido à calmaria matinal. Mais adiante estava uma canoa larga, bastante pesada. Ingleses. Não era raro vêlos por ali, mas eles nunca tinham chegado tão perto. Lontra Cinzenta resolveu dar lhes as boas-vindas. Apesar de pertencerem à traiçoeira raça dos olhos brancos, três homens sozinhos não se atreveriam a atacar a canoa de Kinnahauk tão perto da aldeia, principalmente quando tinham as próprias velas murchas. Além disso, eles não sabiam quantos guerreiros tinham ficado para trás. Andando depressa, ela foi para a tenda de Kinnahauk. Só se atrevera a entrar lá uma vez, antes, no dia em que ele trouxera a mulher branca para a aldeia. Desde então, sua vida havia piorado. A mulher que todos chamavam de waurraupa shaman ainda estava dormindo. E no tapete dele! Os dois tinham ficado juntos até o sol descer e a luz aparecer acima da árvore mais alta, sem comida, sem chamar Doce Água e Soconne. Ele a levara para lá na noite da última tempestade, mas ela voltara para a ouke de Doce Água com o nascer do sol. Na noite anterior, ele a levara para lá, novamente. Nenhum homem levaria uma mulher duas vezes para sua ouke, na frente de todo seu povo, se não pretendesse fazer dela sua mulher. Kinnahauk escolhera aquela criatura inútil para ser sua primeira esposa! Com o rosto marcado pela raiva, Lontra Cinzenta fitou a figurinha imóvel a seus pés. Kinnahauk a cobrira com a pele de lobo vermelho, que lhe fora dada pelas tribos do continente, na esperança de convencê-lo a morar entre eles. Desde a primeira vez que o vira, Lontra Cinzenta cobiçara o manto espesso, de pêlos cinza e vermelhos. De repente, um brilho de metal chamou a atenção da moça indígena, e ela soltou uma exclamação admirada. Sobre o manto, ao lado da mulher


branca, estava o bracelete de cobre de Kinnahauk. Foi fácil reconhecer o desenho de serpentes mordendo as próprias caudas, ligadas de forma a constituir um círculo interminável de círculos intermináveis, um símbolo de grande poder. Junto do bracelete estava um ramo da árvore yawaurra, que simbolizava para seu povo, o mais forte de todos os laços. Colocando aquilo ao lado da miserável mulher branca, Kinnahauk se comprometera do modo que só se compromete o homem que quer ter apenas uma esposa! A dor atingiu o coração de Lontra Cinzenta como a lâmina de um punhal. Seria possível que ele não soubesse que aquela mulher estúpida não valia um sacrifício tão grande? Ela na certa nem entenderia seu significado. Lançando um rápido olhar por cima do ombro, para verificar se a tenda estava fechada, Lontra Cinzenta inclinou-se e pegou o bracelete e o ramo, escondendo os dois nas dobras de seu xale. Em seguida endireitou o corpo, a expressão raivosa cedendo lugar a outra, cheia de determinação. Não era ela a neta de Yatestea Wetkes, o grande guerreiro que nadara sob as águas até uma canoa de guerra Coree e afogara cinco bravos que tinham vindo em meio à escuridão da noite, roubar mulheres Hatorask? Os olhos de Lontra Cinzenta apertaram-se, especulativos. Se Kinnahauk contara à mulher o motivo de sua partida, seria preciso arrumar outro modo de livrar-se dela. Se bem que Kinnahauk não tinha o hábito de explicar-se. Mesmo quando criança, ele ostentava uma arrogância que ela admirava, agindo sempre como queria e jamais explicando os motivos. Se pelo menos Kokom fosse como ele! Era bom para um homem ser forte, mas um homem forte precisava de uma mulher forte a seu lado, não de uma fracote pálida! Ela tinha de agir depressa, antes que a aldeia começasse a acordar. Os ingleses deviam ter vindo à procura de ostras e na certa iriam embora com a primeira luz do amanhecer. Sem conhecer a forte correnteza perto de Chacampedeco, eles tinham sido levados em direção a Croatoan, durante a noite. Com o primeiro vento, levantariam a vela e partiriam. — Acorde, Bridget. — Lontra Cinzenta forçou um sorriso.— Trago boas novas, mas temos de andar depressa. Bridget mexeu-se, gemendo ao esticar o corpo. Em seguida, bocejou e olhou timidamente para o lado, esperando ver Kinnahauk. Mas não havia sinal dele na tenda, — Lontra Cinzenta?! Sua voz soou estranha. Até seus ossos pareciam estranhos! Kinnahauk banhara seu corpo com água morna, antes que dormisse, cobrindo-a depois com óleos adocicados e beijos mais doces ainda, mas ela continuava terrivelmente dolorida, tanto por causa da queda quanto por causa do que acontecera em seguida. No entanto, mesmo achando que ela


precisava da ajuda de uma mulher, provavelmente não mandaria Lontra Cinzenta, pois sabia o quanto a moça lhe era hostil. — O que você está fazendo aqui? Kinnahauk lhe pediu que viesse? — Bridget sentou-se, fazendo o possível para esconder o desconforto. — Isso mesmo. Kinnahauk me mandou para avisar que um barco de ingleses está chegando. Eles a levarão para onde quer ir. — Ah, mas eu... — Ande logo! — O rosto de Lontra cinzenta, cheio de animação, estava lindo. — Kinnahauk não pôde vir porque tem muita coisa para fazer. Perdeu muito tempo yottoha... ontem. Ele me falou de você quando foi para a minha ouke, antes do sol surgir. Pediu para eu lhe dizer que você está livre para ir ao encontro do homem que pagou seu preço de noiva. Ele não vai pedir nada em troca da sua liberdade. Nem milho, nem peles. E isso é porque tem grande respeito por você. — Mas... Você não entende! Ele não pode ter dito... — Kinnahauk também disse que você pode voltar para ser a segunda esposa dele, se o homem que a comprou não a quiser mais. Pode ter certeza de que a trataremos com muita gentileza. Com um homem do tipo de Kinnahauk, terei muitos filhos. Haverá muito trabalho, e vou precisar de outra mulher em minha ouke. Lontra Cinzenta apertou os olhos, esperando para ver o efeito desta última oferta. Depois daquele golpe, se a mulher pálida ainda quisesse ficar, teria de pensar em outra coisa. Anos atrás, Lontra Cinzenta decidira que um dia seria esposa de um chefe, mãe de muitos chefes, uma mulher de grande riqueza e alta posição. Kinnahauk tinha muitas peage, as fieiras de contas de ostras que representavam muita riqueza até para o homem branco, pois havia pouco ouro a ser descoberto. Ele caçava e pescava com os outros homens da aldeia, embora fosse chefe. Até Doce Água ficava contente de passar os dias limpando peles e secando carne, apesar de a tarefa deixar seus dedos tão nodosos quanto os de Soconme. Mas quando ela, Lontra Cinzenta, fosse a primeira esposa do werowance dos Hatorask, as coisas mudariam. Teria seu milho moído e a ouke limpa todos os dias por outras mulheres. Também não prepararia mais peles. Em vez disso, todos os homens e mulheres da aldeia se ajoelhariam diante dela, colocando a seus pés as peles mais lindas e macias. Anos atrás, ela tivera um sonho em que se vira rodeada por uma montanha de peles de lontras cinzentas. Os homens não eram os únicos a ter visões! Encolhida no chão, Bridget transformou-se na imagem da infelicidade ao entender o que Lontra Cinzenta dissera. Kinnahauk a estava mandando embora. Depois de possuí-la, fazendo-a dele, usando-a... ele resolvera mandá-la embora como se não tivesse mais valor que uma tigela quebrada.


— Ande logo, senão o vento muda e leva o barco embora — Lontra Cinzenta exclamou, muito tensa. Bridget ergueu o queixo. — Tenho de me despedir dos meus amigos. — Não dá tempo! — Lontra Cinzenta insistiu, puxando a pele de lobo que a cobria. Surpresa demais para se zangar, Bridget estendeu a mão para a roupa amarrotada e cheia de areia que Kinnahauk havia jogado no chão. A cinza do braseiro há muito tinha esfriado, permitindo que uma umidade acre tomasse conta do local. — Espere lá fora. Eu saio assim que estiver pronta — disse, com toda dignidade. Só o orgulho impedia que chorasse e saísse correndo atrás de Kinnahauk para se jogar aos pés dele e implorar piedade. — Depressa! - Lontra Cinzenta saiu da tenda, fechando a abertura atrás de si. Ainda não estava acabado, mas se a sorte continuasse com ela a mulher de pele cor de barriga de peixe logo estaria a caminho do continente. Sabendo que a maldita vivera entre os Hatorask, os apanhadores de ostra com certeza a desprezariam, vendendo-a pelo maior lance ou então usando-a e depois se livrando dela de outra maneira qualquer. Era assim que os homens brancos agiam. Lontra Cinzenta fechou o coração para o destino da mulher branca, que vivia entre eles desde a Lua do Ganso Branco. Ali não era o lugar dela. Talvez, quando ela não mais estivesse ali, encantando Kinnahauk, ele se voltasse para uma mulher com força e coragem suficiente para ser a esposa de um chefe. Um dia, ele ainda lhe agradeceria por tê-lo livrado daquela pobre criatura, reconhecendo que seu povo estava melhor sem ela. Descendo a colina que levava à aldeia, Lontra Cinzenta lembrou-se rapidamente de Kokom, que tinha saído atrás do enorme gamo que deixara várias pegadas num dos bosques. Quando Kinnahauk a levasse para a ouke dele, não poderia mais se encontrar com Kokom em seu lugar secreto. Mas sentiria falta desses encontros, pois Kokom era um amante adorável. No entanto, Kokom não era chefe. Ele só seria chefe se Kinnahauk morresse sem ter filhos. Kinnahauk tinha de arrumar logo uma esposa. Pelo bem dos Hatorask, ele precisava ter muitos filhos. E ela, Lontra Cinzenta, conheceria, finalmente, a virilidade de Kinnahauk. Parando diante da ouke de Doce Água, Lontra Cinzenta compôs a fisionomia. — Doce Água, acabo de ver Soconme. Ele está sentindo a umidade e acho que ficaria contente de ter a sua companhia. Não me disse nada, mas eu desconfiei e resolvi lhe dizer.


— É, meus ossos também estão me dizendo que vem mais chuva. Vou ficar com ele. Podemos fumar juntos, tomar vinho e falar dos velhos dias, quando nossos ossos não eram tão velhos. — Ah, Bridget me pediu para levar as coisas dela para a ouke de Kinnahauk. Doce Água sorriu, radiante. — Eu levo. — Ela vai ficar com vergonha vendo a mãe do amante, hoje. É melhor eu levar. Afinal, somos quase da mesma idade. Logo depois, Lontra Cinzenta entrou na tenda de Kinnahauk. — Doce Água mandou estas coisas. — Mostrou a trouxa de pele de gamo, que continha um vestido azul, velho e desbotado, duas anáguas rasgadas, um calção em pedaços e os restos de um avental gasto e desbotado. — Ela está triste com a sua partida, mas não pode vir se despedir porque tem de ficar com o velho Soconme. Ele sofre muito quando chove. — Senta Lá... — ...está na ouke de Graveto Torto — Lontra Cinzenta mentiu. — Acho que não vão gostar de ser interrompidos. Venha! Temos de andar depressa, senão os pegadores de ostras vão embora. Agarrando Bridget pelo braço, Lontra Cinzenta saiu quase correndo em meio ao ar frio da manhã. Com um sorriso satisfeito, lançou a canoa menor na água. O vento estava começando a sussurrar no topo das árvores. Logo toda a aldeia estaria acordada. — Eu me despeço de todos por você. Se bem que isso não tem importância. Adeus é uma palavra que não existe na nossa língua. Nós chegamos quando é hora, e vamos quando é hora. É esse o nosso jeito. Lontra Cinzenta começou a remar em direção ao barco dos catadores de ostra. Os três homens já estavam em ação, desenrolando a vela e suspendendo a âncora. Bridget viu a aldeia, onde conhecera tanto amor, desaparecer em meio à névoa que abraçava a praia. Seu coração apertou-se de tristeza, pois pensara que Kinnahauk retribuía seus sentimentos. Mas o que sabia ela dessas coisas? Talvez o povo dele não conhecesse sentimentos mais ternos. Afinal, esse tipo de emoção era raro até mesmo entre seu próprio povo. No entanto, algo em seu íntimo não conseguia aceitar essa idéia como verdadeira. Os olhares trocados por Senta Lá e Graveto Torto mostravam que havia entre eles mais que um simples acordo, segundo o qual ele providenciaria a comida para ela e ela cozinharia, curtiria as peles, limparia a ouke e aqueceria o tapete de dormir dele. Mesmo entre Muitos Dedos e Cara de Cavalo eram frequentes os olhares rápidos e sorrisos secretos. Ela ia sentir falta dos amigos.


Às vezes, tinha a impressão de que bastava se apegar a alguém para logo se separarem. Bridget endireitou as costas. Mesmo ainda estando dolorida da noite anterior, tentou mostrar uma cara alegre. — Obrigada por tudo que fez por mim, Lontra Cinzenta. Diga a Doce Água, Senta lá e... e... — Que palavra é essa que você disse? Eu não conheço "obrigada". Vou dizer a eles que você foi para o lugar chamado Albemarle. Não vai ser preciso mais nada. Sem dúvida, Bridget pensou, com um suspiro. Levantando o remo, Lontra Cinzenta chamou baixinho: — Ei! Olho sbrancos! Tenho uma mulher da sua raça aqui, que quer ir para o lugar chamado Albemarle. Ela pode ir com vocês? Com a cabeça doendo, Bridget ouvia o velho tagarelar. — É, essas vai ser as melhor de todas as ostra. Já catei em todas as água, de Chesapeake ao Cabo Faire. — O velho, que se chamava Hamish O'Neal, indicou o barquinho que arrastavam e onde estavam as ostras, cobertas por uma rede de pesca. —Vamo fazê muito dinheiro com elas, eu e os garoto. Bridget forçou um sorriso, em resposta. O velho vinha falando desde a partida, enquanto ela sorria e tentava se convencer de que era bom estar entre pessoas de sua raça, de novo. O sotaque familiar era música a seus ouvidos, mas ela sentia falta da cadência do inglês dos Hatorask. A não ser quando estavam excitados, eles falavam sua língua muito bem. Os "garotos" a que o velho se referia eram seus sócios, Cormick e Isaac. Os dois tinham vindo de Chesapeake para trabalhar com ele em lugares menos povoados e rios das colônias mais ao sul. Já haviam feito várias referências à nova esposa de Hamish e à carga de ostras que levavam, dando a Bridget a impressão de que o velho se casara recentemente com uma mulher muitos anos mais moça. Hamish falou das colônias ao norte e ao sul de onde estavam, de guerras e escaramuças entre os caçadores de pele, colonos e os horrendos peles vermelhas. — Não que alguém possa culpa os pobre diabo. Mais é muita terra pra desperdiçar com gente ignorante. Vermelho ô branco, um hôme só deve tê o que ele pode segurá. — E todo mundo sabe o qui esse velho aqui gosta di segura — comentou Issac, dando uma cotovelada no amigo. Hamish soltou uma ameaça, e os dois rapazes riram, cheios de malícia. Bridget fingiu não entender. À medida que o dia passava, ela começou a se sentir cada vez menos à vontade com Cormick e Isaac. Eles faziam com que se lembrasse dos tipos que conhecera em Newgate.


— Albemarle fica muito longe? — perguntou, depois de estarem navegando pelo que lhe pareceu uma eternidade. — Bem, isso depende — respondeu o velho, os olhos na vela e a mão curtida pelo tempo no leme. — Si o vento continua no rumo norte, vai sê uma coisa. Si ele muda pro rumo sul, vai sê outra. Pra que lugar de Albemarle você disse qui quiria i, criança? — Ha! Ele chama ela di criança! — caçoou Isaac, com um olhar lascivo para a perna de Bridget, exposta pelo vestido curto de pele de gamo..— Ela deve sê mais velha qui a sua nova mulhé, Hamish. Embaraçado, o velho murmurou qualquer coisa, enquanto Bridget tentava cobrir melhor as pernas. Hamish tinha idade para ser seu pai. Ou até mesmo avô. A idéia lhe deu um certo conforto e ela deslizou em direção à proa, afastando-se o mais possível dos dois rapazes. — Eu quero ir para a fazenda de David Lavender. Sabe onde fica? — Já ouvi fala dele. Não sei onde, mais já ouvi. Isaac, Corrnick... Já ouviram fala de um fazendeiro chamado Lavender, em Albemarle? Os dois trocaram um olhar rápido, que deixou Bridget ainda menos à vontade. Foi Isaac, o moreno com olhos injetados de sangue, que respondeu: — Eu mi lembro di incontrá um hômi chamado Lavender, da última veiz qui paramo no Hoag, pra toma uísqui. Um sujeito alto i magro. Num tinha muita carne nele, não. Cormick sorriu, exibindo o toco de vários dentes cariados. Ele era um homem grande, com cabelos aloirados e pele clara, mas de expressão sinistra. — É. Você é mulhé dele? — Eu... estou pensando em trabalhar para ele — respondeu Bridget, cautelosa. Não devia explicações àqueles homens, mas estava no barco deles e não tinha como pagar a passagem. — Eu tenho um lugá bem bonzinho pra cima de Albemarle — comentou Hamish. — Um dia desses, quando eu fica muito velho pra trabalha na água, vô planta um pouco de milho, sussegá u apito i cria uma leva di filho. De novo, os rapazes se dobraram de rir. Os três eram rudes, mas a fala rude do velho não ofendia Bridget tanto quanto os olhares dos dois rapazes. O vento continuava firme, levando o barco pelas águas não muito calmas. Não havia lugar para sentar, a não ser sobre a lona úmida, que Hamish explicou ser a vela de reserva. Pela cara do triângulo velho e


remendado, que se esforçava para aguentar o vento, ela não demoraria muito a ser usada. Eles passaram por muitos barcos, alguns pequenos, outros surpreendentemente grandes. A distância, Bridget viu várias canoas transportando homens de pele acobreada e cabelos negros, e teve de morder o lábio para não chorar. Além de umas poucas fogueiras na praia, que Hamish explicou que pertenciam aos acampamentos de pesca dos índios, Bridget não viu sinal de cidades. Frequentemente, eles perdiam a terra de vista. O estômago de Bridget estava roncando de fome. Ao meio dia, Hamish ofereceu-lhe um pedaço de pão de milho e um naco de peixe seco e salgado, mas ela recusou, pois não tinha condições de retribuir. Os três homens tomaram uma cerveja que Hamish disse ser feita de sabugo de milho e que ela também recusou. — Onde estão as cidades? — Bridget perguntou timidamente, quando o sol se escondeu atrás da água, numa explosão de cores maravilhosas. — Londres fica logo depois daquele ponto —Cormick caçoou, recebendo um olhar severo de Hamish. — Num precisa si preocupa cum elegância, menina. Só tem gente simples, trabalhadora i temente a Deus, em Albemarle — disse o velho,com um rápido olhar para o vestido de pele de gamo, que Doce Água havia costurado para ela. — É — continuou Cormick. — Gente com simples castelo di tijolo i simples campo di tabaco, i centenas di simples es... — Tem alguns qui usa seda, menina, mais u resto di nós fica contente im usá pele de gamo, algodão, lã. — É. E cum essa pele de gamo, você vai fazê os grãfino arrebenta as braguilha, quando a gente chega no cais do Hoag. — Isaac inclinou-se para a frente, o rosto moreno retorcido num sorriso maldoso. — Quanto tempo mesmo você disse qui viveu cum aqueles índio? Hamish fechou a cara. — Vê si si comporta, garoto! A moça aqui num foi pega em nenhum ataque, ela foi salva pelos índio. Se fosse uma das vagabunda deles, eles já tinham vendido ela ô trocado por alguma coisa, cum outro bando di selvagem. Bridget foi tomada por um enjoo que não tinha nada a ver com a fome que estava sentindo ou o movimento constante do barco. Colocando os braços sobre os joelhos e apoiando neles a cabeça, fechou os olhos e fingiu dormir. "Ah, Kinnahauk!", pensou desesperada, "por que você teve de me mandar embora?"


Dentro de alguns instantes, no entanto, o fingimento tornou-se realidade, e ela adormeceu. Acordou ao sentir o peso da vela de reserva caindo sobre seu corpo. — Dorme, menina. Eu acordo você di manhã, quando a gente chega a Albemarle — Hamish murmurou, com relutante bondade. Bridget mudou de posição, procurando uma que não pressionasse um músculo dolorido. Todo seu corpo doía, mas a dor maior era em seu coração. Isaac ficou um pouco no leme enquanto Cormick dormia e o velho examinava o céu, onde algumas estrelas brilhavam atrás das nuvens. As vozes masculinas passavam sobre a cabeça de Bridget, misturando-se com o barulho da água e os rangidos do mastro. — É, é uma terra rica, garotos. Boas colheita, peles grossa, peixes pulando pra dentro do barco da gente e ostras isperando pra sê pega. — Eu trocava tudo por um bom trago de uísque pra aquece meus pé — resmungou Cormick, sonolento. Ele puxou uma ponta da lona que cobria Bridget e ela apertou os joelhos de encontro ao peito, tentando evitar qualquer contato com o rapaz. — Você bebe quando a viagem acaba, garoto. Um hôme num bebe uísque na água, si qué continua respirando. Si os tubarão num pega você, os índio pega. — É fácil pra você dizê, velho, porquje vai tá dormindo na sua cama, cum a sua mulhé, antes do dia claria. Eu i o Cormick ainda temo chão pra anda. — Foi o qui combinamo, garotos. Eu dô o barco, e voceis sobe o rio. — E ela? — Isaac apontou para a moça adormecida. — Acho qui o tal di Lavender vai dá um prêmio a vocêis, por entrega a mulhé dele. Num vô querê uma parte, porque num vô tá lá pra incontrá o diabo. Solte um pouco a vela, garoto, qui o vento tá piorando. Tô sintindo cheiro di chuva. — Num é cheiro de chuva qui eu sinto, é di mulhé — resmungou Cormick. Mas Bridget não ouviu, pois já tinha adormecido novamente embalada pelo movimento hipnótico do barco.

CAPÍTULO XX


A névoa movia-se um pouco acima da água escura, dando uma frieza de gelar os ossos ao ar do amanhecer. Bridget estremeceu, tomando conhecimento de novas dores, além das antigas. O ar tinha um cheiro diferente, ali. Menos salgado. Da terra úmida, rica em humo e pinheiros resinosos, recendia uma misteriosa doçura. Ela mudou a posição dos pés adormecidos e abraçou os joelhos, procurando se aquecer. A vela impedira o orvalho de cair sobre seu corpo, mas não retivera o calor.

— Estamos chegando? — perguntou num sussurro, quase com medo de romper o silêncio. Hamish estava na proa, um longo remo nas mãos. Cormick, por sua vez, controlava o leme, enquanto Isaac impedia que o barco com as ostras que rebocavam se aproximasse demais. As velas estavam soltas, e eles deslizavam em direção à praia. — Não, filha, você ainda tem um bom caminho pela frente. Os garoto vão leva você para o Posto de Troca do Hoag, e o Hoag vai manda alguém busca o seu hôme. — O senhor vai nos deixar?! Bridget não teve coragem de olhar para os dois rapazes. Não queria que vissem o medo que sentia de ficar sozinha com eles. Pescadores honestos ou não, ela nunca vira um par com ar tão pouco digno de confiança quanto aqueles dois, desde que saíra da prisão. — Vô, filha. Esta aqui é a minha fazenda. Minha mulhé já deve tá cum pão pronto e café quente mi esperando. Chega prá lá, garoto, sinão eu num consigo atraca! O longo remo raspou no ancoradouro envelhecido, que surgiu de repente entre os arbustos cobertos de névoa, junto à praia. Sentindo cheiro de fumaça, Bridget começou a tirar a lona de cima de seu corpo. Talvez pudesse ficar com Hamish e a esposa, durante algum tempo... — Três dias, garotada! Encontro cum voceis aqui. Num vão deixa o Hoag paga pouco pelas ostra, porque ele tem freguês pra elas daqui até Chowan. Cautelosamente, o velho saltou do barco e desapareceu em meio à névoa. Num território estranho, com dois homens que lhe davam cada vez mais medo, Bridget sentiu-se só e vulnerável. Na prisão tivera Maggy e Billy. A bordo do Mallinson, pudera contar com Tess e Tooly. Até Sudie Upston fora um rosto familiar, se bem que pouco agradável. Ali, no entanto... Desde que deixara Croatoán para trás, a saudade vinha crescendo em seu coração. Kinnahauk! Nunca mais o veria? Que destino triste a fizera atravessar metade do mundo para jogá-la nos braços do único homem que poderia amar e depois levá-la para


longe? Seria melhor ter morrido, abandonada na praia, do que chegar tão perto dos portões do paraíso e não poder entrar. Perdida em sua infelicidade, Bridget não notou quando o barco deixou a rota que seguia e enveredou por um riacho estreito e tortuoso. Cormick abaixou as velas, pois o vento não conseguia penetrar pela camada de ciprestes que cresciam junto às margens, lançando as raízes na água escura, como serpentes sinuosas. — O Posto de Troca do Hoag num fica longe. É bem capaz do seu fazendeiro fazê as troca dele por lá, si é qui vive por aqui. — Albemale é aqui? — Bridget perguntou, examinando a floresta densa em torno de si. Suas dúvidas eram maiores do que nunca, pois ouvira dizer que Albemarle era uma vila com um bom atracadouro, e ali não havia sinal disso. — De certo modo, é — replicou Isaac, trocando um rápido olhar com o companheiro. — Mais eu i o Cormick achamo qui merecemo um pouco di consideração, por leva você até o Hoag. Leva passagero num é nossa obrigação. — Mas o sr. Hamish... — Hum si preocupe cum aquele velho. Apesar da velhice dele e da vesgueira da Tess, eles deve tá si divertindo agora. Intão eu i o Cormick pensamio num jeito di anima essa viage, antes di acaba. Bridget esqueceuse imediatamente da notícia de que Tess era a esposa de Hamish, ao entender o que os dois queriam. Mais que depressa, procurou uma arma em volta de si. Não havia nada além do remo que Hamish usara e ele estava bem longe dela. — Encostem um dedo em mim e o sr. Lavender acaba com vocês! A ameaça soou fraca até para ela. Os dois rapazes riram ruidosamente, assustando os pássaros e fazendo com que se caiassem. — O seu grãfino vai é agradece à gente por tê cuidado tão bem da mulhé dele. Ajeitando o caminho, por assim dizê. Vai pra aquele banco di areia ali, Cormick. Num quero fica cum o traseiro cheio di ispinho! Ajoelhando-se, Bridget fitou o local escolhido. Assim que chegassem perto, precisava saltar. Com uma boa vantagem, teria chances de se esconder na floresta, pois o sol ainda não se erguera o bastante para afastar todas as sombras. Devagarinho, apoiou a mão na beirada do barco, pronta para se jogar na margem. Isaac estava na proa, evitando que o barco batesse nas raízes dos ciprestes, enquanto Cormick esperava, de pé na popa, com uma corda na mão. De repente, um grito rompeu o silêncio. Cormick cambaleou, agarrando a garganta,


onde uma flecha havia se fincado. Horrorizada, Bridget viu-o cair de cabeça na água, um jato de sangue esguichando da boca. — Malditos!—berrou Isaac, numa voz esganiçada.—Malditos índios! Imergindo violentamente o remo na água, ele tentou inverter o movimento do barco, mas só conseguiu bater em uma raiz e virar o barquinho de ostras, que ficara preso entre duas outras raízes. Ajoelhada sobre a lona, sem acreditar no que via, Bridget observou três selvagens pintados entrarem na água. Um quarto ficou em terra, exibindo os dentes amarelados num sorriso horrendo. Ele só esperou que os outros três puxassem o barco para mais perto, para pular em cima de Isaac, levando um machado e uma faca nas mãos. O machado atingiu o crânio de Isaac, fazendo o rapaz cair para a frente. Segurando-o pelos cabelos, o selvagem passoulhe a faca pelo couro cabeludo e puxou com violência, gritando de exaltação. Bridget levou a mão à boca, o estômago contraindo-se violentamente. Só a determinação que a levara até aquele ponto, lutando contra tantas adversidades, permitiu que se jogasse na água escura. Pensando apenas em escapar dali com vida, ela se esqueceu dos outros selvagens. No momento em que Bridget voltou à superfície, eles a agarraram e jogaram, de rosto para baixo, na margem lamacenta. Um deles firmou um dos joelhos nas costas dela, tirando-lhe todo o ar dos pulmões. Em seguida, agarrando-lhe os cabelos, puxou-lhe a cabeça para trás, até que não pudesse nem mesmo gritar. Com o indicador, ele traçou então o contorno de seu couro cabeludo, murmurando algo numa língua completamente estranha. Bridget, no entanto, não teve dúvidas sobre o significado daquelas palavras. Ela também ia perder os cabelos, a vida... e muito mais. O selvagem mudou de posição, até ficar a cavaleiro sobre seus quadris. Os outros três, depois de puxarem o corpo de Cormick para a margem, a fim de retirarem o escalpo, começaram a saquear os dois mortos. Todos bebiam e, entre um trago e outro, jogavam as cabeças para trás e urravam como animais. Bridget, mesmo entorpecida de horror, arrepiou-se da cabeça aos pés. O cheiro da criatura em suas costas era nauseante e, misturado com bebida, ficava pior ainda. Mas ela não tinha coragem de se mexer, pois ele parecia enlouquecido pelo álcool e o cheiro de sangue. Ninguém melhor do que ela sabia o quanto era perigosa aquela situação. — Pense! —, disse a si mesma. Tinha de pensar em alguma coisa, um jeito de escapar. Fora das mãos deles, estaria salva, pois duvidava de que pudessem segui-la naquelas condições. Eles já estavam cambaleando, tropeçando, derrubando mais uísque no chão do que na boca. A cada gole pareciam se tornar mais selvagens, gritando mais alto enquanto dançavam junto aos cadáveres de suas vítimas. Até o selvagem em suas costas havia começado a se mexer, pulando sobre ela e forçando seus quadris de encontro ao chão. De


repente, os selvagens começaram a mutilar os mortos com suas facas. Bridget abafou um gemido, fechando os olhos e apertando o rosto de encontro à terra úmida. "Por favor, meu Deus, faça com que eles me matem logo! Não deixe que eles me torturem", rezou em silêncio. Mesmo naquela situação, sua força de vontade não permitiu que se entregasse. Quando o homem em suas costas caiu de lado, tentando sorver as últimas gotas de uísque, ela não perdeu tempo e arrastou-se para o mais longe possível. Mergulhando então num espinheiro, começou a abrir um túnel. Estava quase totalmente escondida quando um dos selvagens agarrou seu pé e puxou-a para fora. Soltando um grito de triunfo, ele torceu seu tornozelo e ela foi obrigada a virar-se. Uma dor aguda subiu por sua perna, alcançando sua virilha e forçando-a a ficar como estava, desamparada, de costas sobre a terra úmida. — Connoowa wareocca cotshu! Bridget não fazia a menor idéia do que ele queria dizer. Seria possível que estivesse pretendendo esquartejála — Não — sussurrou. — Pelo amor de Deus, não! — Cotshu connoowa — murmurou um dos outros, cambaleando em direção a eles. — Eu quero a mulher. Com grunhidos que lembravam animais famintos, os outros dois desceram sobre eles, um caindo de joelhos ao lado da cabeça de Bridget e o outro, alguns passos além. O que caiu junto de Bridget agarrou-lhe as mãos e puxou-as com violência para cima da cabeça, deixando-a completamente indefesa. Com um grito de júbilo, o selvagem que segurava os pés dela caiu de joelhos e começou a se arrastar sobre Bridget. As listras diagonais, amarelas e brancas, com que ele pintara o rosto, enrugaram-se de um modo assustador quando a boca alargou-se num sorriso. O selvagem começou a mexer o corpo, lançando os quadris para a frente e para trás, sobre as coxas de Bridget. Momentos depois, ele tentou abrir-lhe a parte de cima do vestido. Quando a pele de gamo não cedeu, tirou a faca e segurou-a por um instante interminável diante dela, antes de inclinar-se e cortar, com um gesto brusco, as tiras que mantinham a roupa fechada. A princípio Bridget não acreditou que ainda estivesse respirando. Um único toque daquela lâmina poderia ter terminado com sua vida. Logo, no entanto, sua atenção foi desviada para o brilho feroz que surgiu nos olhos injetados de sangue do selvagem. No momento seguinte, ele agarrou seu seio desnudo, apertando-o entre os dedos manchados de sangue. Deus, era preferível ser apunhalada no coração! Morrer era melhor do que suportar o que ainda viria. Precisava dar um jeito de escapar, Tinha de escapar! Se não morresse nas mãos deles, daria um jeito de fugir. Depois... Uma dor repentina fez com que gritasse, arregalando os olhos. Aquela criatura


horrível acabava de morder seu seio! Pasma, ela o viu traçar com o sangue um círculo sobre sua pele clara, rindo sem parar. Reunindo todas as forças que ainda lhe restavam, ela o chutou, puxando os punhos. Em vão. Eles apenas a seguraram com mais força, esmagandolhe o corpo até que, abençoadamente, perdeu a consciência. Quando voltou a si, viu que continuavam a se divertir com seus cabelos, sua pele, seu peito exposto. Com alívio, percebeu que ainda não haviam conseguido tirar-lhe o vestido. Talvez estivessem bêbados demais para conseguir o que queriam e lhe restasse uma chance de fugir. Bridget pensava freneticamente num modo de distraí-los, quando o índio alto, de nariz torto, que parecia menos bêbado que os outros, começou a falar depressa, fazendo jorrar uma série de sons incompreensíveis. Aparentemente, mandava que o que estava sobre ela se afastasse. Mais uma vez a esperança de ser libertada morreu. Nariz Torto, segurou-lhe os pulsos, indicando que tomaria o lugar do companheiro. Seguiu-se uma discussão e Bridget virou de lado, gemendo e chorando, sem acreditar que vivia aquela agonia. Só abriu os olhos quando sentiu um líquido quente atingir seu corpo. O selvagem só a libertara para urinar sobre ela! Horrorizada diante dessa degradação, ela se pôs a chutar violentamente, atingindo-o na perna. Nariz Torto caiu e ficou onde estava, imóvel, mas soltou um grito feroz, esmurrando-a na cabeça e fazendo-a ver estrelas à luz do dia. Ainda atordoada, incapaz de reagir, ela foi erguida com um safanão e teve as mãos amarradas para trás. — Uhntahah! — resmungou Nariz Torto. Bridget meneou a cabeça, tonta, os ouvidos zumbindo. — Você vem! — ele repetiu. — Você fala inglês?! — foi mais uma exclamação do que uma pergunta que, afinal, não recebeu resposta. Apesar de completamente bêbados, os quatro partiram num trote firme. Um galho atingiu o rosto de Bridget, que caiu para trás, com um grito baixo. De imediato, foi rodeada pelos quatro. — Você vem! — Nariz Torto ordenou, brutalmente. E, para dar mais ênfase à ordem, atingiu-a de novo na cabeça, desta vez com um graveto. — Para onde estão me levando? — Bridget perguntou. — Pa onde tão me levando? — o selvagem repetiu. Confusa, ela tentou de novo. — David Lavender vai lhes pagar bem, se me levarem até ele. — David Lander paga bem leva ele — disse um dos outros, com ar de triunfo. — Leva! Leva! Leva!


Mais um selvagem juntou-se ao coro e Bridget percebeu que nenhum deles entendera uma única palavra do que dissera. Eles simplesmente imitavam o que dizia. — Deus do céu! — exclamou horrorizada. Cansados daquilo, os selvagens reassumiram o trote através da floresta interminável, três à frente e um atrás de Bridge, a pé. Todos levavam garrafões e ela começou a torcer para que a bebida não acabasse logo, pois quando eles estivessem mais sóbrios sua agonia seria muito maior. Quando Bridget começou a pensar que correriam a noite inteira, os quatro pararam. Sem uma única palavra, ela caiu no chão. Estava tonta de fome e horror. Perdera os mocassins ao longo do caminho e seus pés sangravam, mas nem sentia mais dor. Instintivamente, sabia que, se não pudesse acompanhá-los, seria morta com um golpe das bordunas que os quatro levavam, amarradas à cintura. Pelo menos, não fora violentada! Deus, daria tudo para estar com Kinnahauk! Se submeteria mesmo a ser uma segunda esposa! Logo que parou de andar, Bridget sentiu o frio tomar conta de seu corpo e uma forte tontura quase fazê-la cair no chão. Precisava comer alguma coisa, qualquer coisa ou não resistiria. Mas não houve comida nem água. Só mais bebida. Sentada, em silêncio, encolhida, ela observava os quatro tagarelarem enquanto bebiam o que restava dos garrafões. De vez em quando, um deles agitava os escalpos no ar e batia no peito, enquanto os outros grunhiam em aprovação. "A qualquer momento eu vou acordar deste pesadelo", Bridget pensou. Vou ver Doce Água colocando a água sobre as brasas, para fazer o chá de folhas de yaupon. Bridget não sonhava mais com Little Wheddborough. Croataon tinha se tornado seu lar, e os Hatorask, seu povo. Até mandarem que fosse embora. Um por um, três de seus captores se estenderam no chão e, em questão de minutos, roncavam ruidosamente. Nariz Torto esvaziou o último garrafão e jogou-o longe. Bridget elevou uma prece aos céus por não temer aquela noite, pois até Nariz Torto estava bêbado demais para ficar em pé. A manhã seguinte representava uma nova ameaça, porém daria um jeito de fugir antes que os selvagens acordassem. Assim que Nariz Torto sucumbisse, sairia de mansinho. Mesmo que não encontrasse Albemarle, preferia a companhia dos animais da floresta à daquelas criaturas violentas. Seus pulsos ainda estavam amarrados. Devia ou não pedir a Nariz Torto para soltar as tiras de couro? Ele parecia ser o mais sensato de todos... Não custava tentar, ponderou, não havia nada a perder. Arrastando-se para onde Nariz Torto estava, ela mostrou os pulsos amarrados. — Por favor... — implorou. — Não posso dormir deste jeito.


Com um grunhido, ele se pôs a mexer nas tiras. Bridget preferia que ele desamarrasse os pedaços de couro, em vez de tentar usar a faca; naquelas condições, ela corria o risco de ser ferida. De repente, sentiu o selvagem agarrar seus tornozelos, juntando-os com força. — Não! Você não entendeu! Não faça isso! Não amarre meus pés, também! Solte meus pés! Ela ainda protestava quando o selvagem passou outra tira de couro por seu pescoço e amarrou-a à que prendia os tornozelos, puxando até que seu pescoço dobrasse para trás. Soluçando de dor, Bridget implorou em vão que ele afrouxasse um pouco a tira. Devia ter esperado e tentado fugir, quando ainda tinha a chance! Atrás de si, ela viu Nariz Torto lutando para se levantar. Com medo de outro castigo calou-se, mal se atrevendo a respirar. Mas não precisava ter se preocupado. Depois de tê-la amarrado de modo que nem podia se mexer, ele cambaleou até o meio das árvores e pôs-se a vomitar. De algum ponto, a distância, veio o piado cavernoso de uma coruja. Pensando na agonia das vítimas dos predadores, Bridget tentou se elevar acima da dor. O que fora mesmo que Soconme lhe dissera? Que a dor era outro mar, para a alma cruzar? Ela tentou, mas não havia como escapar da agonia física. No entanto, comparada à dor de saber que Kinnahauk não mais a queria, parecia menor. — Será que sou tão ruim assim, para ser tão castigada? — murmurou. Um pouco antes do amanhecer, Bridget acordou, o corpo entorpecido. Tinha sonhado coisas tão estranhas que não sabia mais distinguir o sonho da realidade. Uma hora, tivera a nítida impressão de que Kinnahauk estava ali, em pé no meio das árvores, fitando-a em silêncio. Chegara a pensar que, respirando fundo, sentiria o cheiro gostoso das roupas e da pele dele. Mas tudo não passara de um sonho... expressando o desejo de seu coração.

CAPÍTULO XXI

Bridget nunca soube quanto tempo dormiu nem o que a fez acordar. A dor era a única realidade constante e ela ficou em silêncio, absolutamente imóvel, com medo de acordar seus captores. Estava com a mão e os pés amortecidos, e lutava contra o pavor que ameaçava entorpecer sua mente. De repente, ouvindo o som de movimentos, ela entrou em pânico. Com a respiração alterada e o coração batendo forte, distinguiu quatro barulhos de queda, o último seguido por uma exclamação abafada e um gorgolejo. Algo resvalou por sua cabeça, e ela encolheu-se instintivamente, quase sufocando quando a tira em volta de


seu pescoço aumentou a pressão. Antes, no entanto, que pudesse pensar em fazer alguma coisa, sentiu-se brutalmente agarrada e levantada do chão.

— Ukettawa! — murmurou uma voz abafada. — Wewaukee? — perguntou outra. — Neep. Etauwa. — Etauwa — repetiram diversas vozes graves, em meio à escuridão. Ukettawa Etauwa! Bridget sentiu mãos sobre seu corpo. Mãos que eram rudes, mas não brutais. De repente, seus tornozelos foram desamarrados e a pressão em volta de sua garganta acabou. Mal se atrevendo a acreditar que estava sendo libertada, esperou que eles cortassem as tiras de seus pulsos, mas obviamente isso não iria acontecer. Tentou então tirar o corpo da posição arqueada em que estava, mas a agonia foi tanta que não conteve um grito. As vozes masculinas se calaram, de repente. Pensando apenas em escapar, Bridget deu alguns passos vacilantes, mas suas pernas ainda estavam muito dormentes. Tanto que teria caído se um dos selvagens não a segurasse. Sentindo os dedos fortes em seus braços, ela percebeu que aquilo não passava de um jogo. Não tinha saída, não tinha a menor chance de escapar. Deus do céu, seria verdade que o povo de Little Weddborough pensava a seu respeito? Era mesmo uma feiticeira? Se não, que motivo poderia haver para merecer tamanha punição? A essa altura seus olhos já tinham se adaptado à luz cinzenta que prenuncia a aurora. Um olhar bastou para ver que aquelas não eram as mesmas criaturas animalescas que a tinham capturado. A esperança morreu em seu coração. Poderia ter escapado de quatro selvagens com a mente alterada pelo álcool, mas agora seria impossível. Eles eram muitos, não cheiravam a bebida nem estavam pintados com desenhos assustadores. — Vamos! Me matem logo e acabem com isso — Bridget desafiou, com a coragem nascida do desespero. O homem que a segurava fitou-a, aparentemente surpreso. Mordendo o lábio para não chorar, Bridget aguentou o exame enquanto pôde. Depois, cambaleou e teria caído se ele não a tomasse nos braços. — Matar? — Ele deu a impressão de analisar a palavra como se estivesse diante de um novo brinquedo. — Neep mata. Neep mata ukettawa Etauwa.


Bridget foi tomada por uma vontade ainda maior de chorar. Não tinha reconhecido uma só palavra. Aquela gente não era Hatorask. Falavam uma língua diferente até da língua falada pelos selvagens que a tinham capturado. Quem eram eles? E o que pretendiam fazer com ela? Bridget respirou fundo, depois tornou a respirar. Havia neles um cheiro estranhamente familiar. Almíscar? Sentira o mesmo cheiro nas mãos de Kokom, depois de vê-lo tirar o couro de um rato do banhado. Seria possível que tivesse sido vendida a um bando de caçadores de pele, enquanto dormia? Desesperada, Bridget começou a se debater nos braços do novo captor. Grunhindo, ele mudou de posição e ela vislumbrou o lugar onde passara a noite, em intenso sofrimento. Um olhar foi o bastante para colocá-lo a par do que acontecera. Os assassinos que a tinham capturado jaziam onde haviam caído, entorpecidos pela bebida, com flechas fincadas na garganta e no peito. Seu estômago revirou, e ela gemeu, empalidecendo. De imediato, seu novo captor colocou-a no chão. Afinal; com a garganta dolorida pelo esforço de conter muito a ânsia de vômito, Bridget recostou-se a uma árvore. Estava tão fraca que mal conseguia ouvir as vozes masculinas, murmurando atrás dela. Mesmo assim, lançou um olhar para a floresta escura, tentando avaliar suas chances de fuga. Não tinha ilusões sobre o que lhe aconteceria, se fosse pega de novo, mas qualquer chance, por menor que fosse, era melhor do que nada. Ela se moveu com todo cuidado. Antes que pudesse dar mais que alguns passos, seus pulsos foram agarrados por mãos fortes e erguidos com um safanão, fazendo com que caísse de joelhos. — Ah, como eu queria ser homem, seu selvagem nojento! — desafiou, com o desafio do desespero. Seus pulsos foram soltos um segundo antes de a dor se tornar insuportável, e Bridget tentou encontrar ânimo nisso. Pelo menos, seus novos captores não tinham mutilado suas vítimas como os primeiros haviam feito. Talvez fossem mais civilizados que os outros. Ainda de joelhos, ela os examinou, à luz do amanhecer. Fortes e altos, nem bonitos nem feios, não tinham a postura altiva dos Hatorask. Eram seis, todos aparentemente homens feitos. E por enquanto, pelo menos, não davam a impressão de querer lhe fazer mal. — A que povo vocês pertencem? — arriscou-se a perguntar, falando devagar e com clareza. Foi só quando notou como eles olhavam que Bridget viu o estado em que se encontrava. Seu vestido estava rasgado, deixando seus seios totalmente à mostra, e, com os braços amarrados atrás de si, ela não tinha como se cobrir. O selvagem com duas penas na cabeça colocou-a de pé, de modo que ficasse de frente para ele, mas de costas para os outros. Lutando para demonstrar confiança, ela ergueu o queixo e perguntou novamente, numa voz quase firme: — A que povo vocês pertencem?


Por um instante, ninguém falou. Depois, começaram a resmungar e murmurar entre si. Bridget esperou um pouco, antes de tornar a se dirigir ao que parecia ser o chefe. — Meu nome é Bridget. Bridget. Sou inglesa. Não quero nada de mal para vocês. Os olhos do selvagem brilharam, espelhando compreensão. Batendo no próprio peito, respondeu orgulhosamente: — TausWicce. TausWicce. Poteskeet. Até o momento tudo corria bem, Bridget pensou, sentindo a esperança renascer. Dali em diante, o importante era fazer com que ele a compreendesse o suficiente para ajudá-la. Como fazer isso, no entanto, era outro problema. Não conseguia pensar, com o corpo todo dolorido e tonta de fome e sede. Bridget chegou a abrir a boca para pedir comida, mas antes que pudesse falar manchas negras começaram a dançar diante de seus olhos. Para seu horror, percebeu que ia cair, mas o selvagem estendeu as mãos e segurou-a. Ela se encolheu de medo, e ele grunhiu qualquer coisa, apoiando-a numa árvore. — Me ajude... por favor! —Bridget implorou. Seguiu-se outra discussão entre os seis, e o que se chamava TausWicce deu a última palavra. Seria a respeito de seu destino? Não sabia como, mas tinha de fazê-los entender que precisava chegar a Albemarle. — Albemarle? — falou, com uma pontinha de esperança. — David Lavender? Ele vai pagar bem a você, se me levarem até ele. — Paga? — um dos homens repetiu. — Paga ouro? - Começou outra discussão entre os seis. Afinal, voltaram-se para ela. O que estava mais perto ergueu a mão e tocou seus cabelos, que caíam emaranhados sobre os ombros, pois há muito perdera as tiras de couro com que os prendera. — Ugh! Ouro. Paga ouro. Apesar de sua fraqueza, Bridget percebeu que tinha de corrigir o engano deles, e depressa. Não seria bom dar-lhes falsas esperanças. David Lavender podia não querer pagar por sua volta, principalmente quando soubesse que hão pretendia mais se casar com ele. Desapontados, os selvagens poderiam matá-lo, então. Aparentemente, como acontecia entre os ingleses, havia selva, gens de todos os tipos, bons e maus, capazes das atitudes mais imprevisíveis possíveis. — Acho melhor falarmos em troca. Troca! — ela frisou. — Lavender me trocará por alguma coisa de valor. Uma faca... ou um pouco de comida. Talvez milho...


Bridget falou nisso, porque conhecia o valor que os Hatorask davam a esse alimento. Seus captores, no entanto, não disseram nada, e ela se lembrou de ter ouvido contar que no continente era muito fácil cultivar milho. Em Croatoan é que era difícil, devido ao solo arenoso. O que teria valor, para aqueles homens? TausWicce voltou-se para ela de novo, o rosto inexpressivo. Tirando a faca do cinto, ajoelhou-se e tirou as tiras que prendiam seu pulso. O alívio de Bridget foi tão grande quanto a dor que sentiu nos braços. Só depois de alguns momentos, conseguiu trazê-los para a frente. Mas ainda levou alguns minutos para conseguir erguê-los e fechar a frente do vestido. Com isso, recuperou um pouco da dignidade. — Obrigada. — Paga troca. Hoag. Ukettawa Etauwa vem — o selvagem grunhiu, forçando-a a ficar em pé. Então, como se fossem um só, os seis partiram a trote, abrindo caminho entre as árvores como se estivessem na rua mais larga de Londres. Bridget foi atrás, tropeçando, grata pelo rumo dos acontecimentos. As palavras troca e ouro tinham mudado tudo. E, se não estava enganada, Hoag era o nome do posto de troca para onde Isaac e Cormick pretendiam levála. Talvez estivesse, finalmente, chegado ao fim de sua jornada. Se não fosse pelo que passara entre os Hatorask, Bridget jamais teria conseguido ir tão longe e tão rápido, com os pés tão machucados. Há muito ela se acostumara a suportar todo o tipo de desconforto. Quando tropeçou numa raiz e caiu, seus captores esperaram que se levantasse, sem reclamar, mas também sem oferecer ajuda. Para eles, ela não passava de uma carga de certo valor, que tinha de ser entregue no posto de troca. Bridget já sabia que os nativos daquela terra nunca andavam, preferindo correr quando iam de um lugar para outro. Como os Hatorask, aquele povo, os Poteskeet, movia-se depressa. Em Croatoan, ela conseguira recuperar as forças que perdera na prisão, porém os acontecimentos das últimas horas a haviam enfraquecido. Por isso, tinha dificuldade em acompanhá-los e rezava baixinho para que eles não perdessem a paciência e desaparecessem, deixando-a sozinha no meio da floresta densa e escura. — Hoag — TausWicce resmungou, parando de repente. — Troca. Bridget recostou-se no tronco de um cedro, sentindo o cheiro doce de resina. — O posto de troca? Onde? O selvagem apontou e ela viu alguma coisa entre as árvores. Um telhado? Sim, e havia três chalés pequenos, de construção grosseira, mas obviamente habitados por gente de sua raça. Uma onda de alívio assaltou-a. Dentro de minutos poderia estar sentada a uma mesa de verdade, diante de uma lareira, tomando chá e comendo biscoitos! Sem dúvida, ali encontraria um lugar para descansar e pensar no que fazer de sua vida.


— Venham! Vamos ver se o sr. Hoag pode mandar alguém atrás de David Lavender. Antes que pudesse endireitar o corpo, no entanto, TausWicce e outro índio desapareceram entre as árvores. — Ei, esperem! Vocês não podem me deixar aqui. Ela deu alguns passos, atrás deles, mas um dos índios que ficaram agarrou-a pelo braço, apontando para o chão e dizendo: — Senta! Bridget ficou tão surpresa que sentou. Daí em diante, viu-se completamente ignorada. Os quatro selvagens puseram-se a conversar entre si, e logo depois um deles foi para o mato. Apesar da dor no tornozelo, Bridget também se levantou e procurou um arbusto grande o bastante para escondê-la. Depois, arrumou o vestido com todo cuidado. Não havia muito que pudesse fazer a respeito de sua aparência, pois a trouxa que continha suas coisas ainda devia estar a bordo do barco do Hamishi. Ela estremeceu, relembrando o horrível momento de sua primeira captura. Tivera muita sorte em escapar com vida. O fato de estar com roupas rasgadas e descalça não era motivo para desespero. Sem dúvida, David entenderia quando contasse tudo que lhe acontecera. Não. Tudo, não. Não poderia falar a ninguém de Kinnahauk e do que acontecera entre eles. Ela mesma às vezes não conseguia acreditar, achando que sonhara com ele. Kinnahauk fora a mais bela experiência de sua vida, um homem que aprendera a amar, apesar de tudo, e que jamais esqueceria. Exausta, Bridget acabou por cochilar sobre as agulhas de pinheiro. Quando TausWicce voltou, sentou-se depressa, examinando o homem enorme, com barba por fazer e olhos estranhamente pálidos, que viera com ele. — Tá bem, tá bem, índio. Ela é inglesa, e bem ajeitada, - Bridget encolheu-se. Estava diante de David Lavender? Deus do céu, teria mais chance na prisão de Newgate do que unida a um homem daquele! A expressão dele refletia maldade. Com movimentos bruscos, o homem fez sinais para o selvagem, que respondeu do mesmo modo, sacudindo a cabeça várias vezes. — Num vale tanto, seu fedorento, mas eu quero conserva o meu cabelo. Sal, duas facas e um espelho. É isso e acabou! TausWicce fechou a cara, depois fez sinal para Bridget se levantar e seguir o sujeito. Ela ficou onde estava, relutante em trocar a companhia dos selvagens pela daquele homem. Mas que outra escolha tinha? O homem agarrou-a pelo queixo, virando seu rosto para a luz. Estreitou os olhos, ao ver a marca em sua testa, mas não disse nada. Bridget encolheu-se


ainda mais, quando ele examinou seu corpo, quase totalmente descoberto. Se ele a tocasse, morreria! — Vamo limpa você e vê se vale o que esses índio tão pedindo, feiticeira. Mulhé de índio não vale muito, por aqui. Docilmente, Bridget seguiu os homens. Passaram pelas três cabanas, indo parar no posto de Troca Hoag. Lá, ela ficou sabendo que o sujeito não era David Lavender, mas Bóris Hoag. Mais aliviada, começou a examinar o ambiente. Enquanto isso, os Poteskeets pegaram o que tinham conseguido e saíram, sem um olhar em sua direção. Posto de Troca era um conjunto de cômodos pequenos em completa desordem, ligados um ao outro. Havia caixas, barricas, sacos e garrafões jogados no meio de panelas de ferro, tecidos empoeirados, trouxas de pele e fardos de folhas brilhantes de tabaco. Do teto pendiam lanternas e um balcão manchado, usado como bar, ocupava um dos extremos do cômodo maior. O forte mau cheiro devia-se em parte às peles não curtidas, em parte devido à sujeira acumulada durante anos. — Vamos lá, mulhé feiticeira. Qui tal conta pra mim há quanto tempo você é puta dos índios? Eles ti trataram bem. Trocaram você quando ainda tá inteira. A maioria das mulhé branca num tem tanta sorte, quando são pega pelos selvagens. Bridget engoliu a raiva, procurando se dominar. Mesmo com o corpo inteiro doendo, não havia perdido a capacidade de raciocínio. Quanto menos aquele homem soubesse de seu passado, melhor seria. Devia a ele o valor de um saco de sal e algumas bugigangas, mas essa era a menor de suas preocupações. Pobre David Lavender! Estava começando a detestar a idéia de encontrá-lo, depois de tudo que acontecera. — Eu ia ao encontro do fazendeiro que pagou minha passagem para as colônias, quando os índios atacaram e mataram os catadores de ostra com quem eu estava. Eu... fui salva pelos homens que você viu e eles tiveram a bondade de me trazer até aqui. Hoag sorriu, exibindo dentes manchados de nicotina. — Acho que tem mais nessa história do que você tá mi contando, moça, mas num importa. Quem é o fazendeiro qui compro você? — D-David Lavender. De Albemarle. Você o conhece? - Não houve resposta, e ela chegou a pensar que ele não tinha ouvido. Então, de repente, Hoag começou a xingar baixinho. — O que foi? Aconteceu alguma coisa? — perguntou, preocupada. Hoag arrotou, dando palmadinhas na região do estômago. E sorriu, como que pedindo desculpas, enquanto sua mente trabalhava a todo vapor.


A vagabunda! Ainda bem que ele a vira, ante que tivesse uma chance de arruinar tudo. Colocar Sudie sob a proteção de David Lavender, na qualidade de uma pobre viúva desamparada, fora um golpe de gênio. Principalmente porque ela já estava esperando um filho do produtor de uísque. E a sem-vergonha tinha jurado que a mulher de Lavender morrera de febre durante a travessia, como acontecera com os próprios parentes dela, tendo sido enterrado no mar. A mentirosa! Verdade que ele sempre soubera que Sudie estava mentindo, pois fazia questão de conhecer tudo que ocorria em seu território. Ela mentira sobre Fickens, e evidentemente mentira sobre a mulher de Lavender. Vagabunda! Agora, uma palavra daquela maldita dos índios, e até um idiota como Lavender poderia levantar o nariz do copo pelo tempo suficiente para fazer algumas perguntas. De acordo com seu trato, Sudie mantinha Lavender bêbado e o avisava de quando era seguro roubar o armazém ou abater algumas cabeças de gado da fazenda. Depois de cada roubo, sempre apareciam marcas de mocassins na propriedade, e Sudie espalhava a notícia de que índios pintados tinham sido vistos, escondidos na floresta. Evitando os olhos preocupados de Bridget, Hoag deu-lhe as costas. — Lavender, né? — repetiu, passando a mão pelo queixo. Tinha de ver Sudie, enquanto Lavender ainda estava em Chowan, atrás do bando de renegados que andava roubando seu gado. O idiota nunca tinha pensado em dar uma olhada nas barricas de carne salgada, que ele, Hoag, conservava no quarto dos fundos! — Você sabe que o hôme arrumo outra mulhé? — Hoag arriscou um olhar para a mulher bonita usando o rasgado vestido de pele de gado, para ver como ela recebia a notícia. De um jeito ou de outro, ela ia ser uma mina de ouro. Bridget piscou. Casado! David Lavender estava casado! Isso nunca lhe ocorrera. Não que se importasse. Se ainda pretendesse casarse com ele, provavelmente ficaria arrasada. Mas isso não tinha mais importância. Na verdade, estava tão atordoada que nada mais tinha importância. — Será que a sra. Lavender não precisa de uma criada? Eu... eu não tenho medo de trabalho duro. — Pra que si cansa cum trabalho duro? Si quisé fica aqui, eu posso lhi dá casa e comida, e você nunca vai te qui levanta um dedo. Bridget franziu a testa. Atordoada ou não, sabia que seria melhor se arriscar com os selvagens que a tinham trazido até ali do que ficar naquele buraco imundo.


— Posso tomar um copo de água e comer alguma coisa, então, antes de irmos ver a sra. Lavender? Um sorriso malicioso surgiu na boca de Hoag. Sudie não ia gostar nada de ver uma belezinha daquelas pela casa, doce como cana de açúcar e exibindo os seios debaixo do nariz de Lavender. Na certa, acabaria dando à moça o mesmo fim de Fickens, e ele, Hoag, perderia uma boa prostituta. Mulheres eram raras naquela região e ele seria um tolo se não usasse o que a providência tinha posto em seu caminho. — Acho que eles num vão querê outra boca para alimenta, moça. Já tão cum filho a caminho. - Sudie estava grande e gorda e detestaria ter aquela jovenzinha linda por perto. Afinal, ela era tão vaidosa quanto mercenária. Bridget começou a se desesperar Tinha de se livrar daquele homem, de qualquer maneira! Ah, não devia ter seguido a ideia de Lontra Cinzenta. Devia ter ficado em Croatoan. Mesmo rejeitada por Kinnahauk, poderia ter ficado com Doce Água, ajudando-a a cuidar dos velhos da aldeia. Já que não podia ter o homem de sua vida, ficaria contente em vê-lo passar, sorrir, conversar... Ela mal podia respirar, naquela atmosfera fétida. O homem chamado Hoag era sujo e pouco confiável. — Eu vi outras cabanas, aqui perto. Não podemos perguntar numa delas? Conheço muito bem ervas e sei ler e fazer contas. — Fazê contas, hein? — Hoag murmurou distraído, pois estava pensando no melhor modo de usar sua nova aquisição. — O que um hôme qué é uma mulhé que cozinhe, lave, passe e abra as pernas pra ele, à noite. Fazê conta num interessa. — Fez uma pausa, depois continuou: — O que você acha de fica trabalhando pra mim? — De qualquer maneira, tenho de ver o sr. Lavender primeiro. Eu lhe devo a minha passagem e não vou descansar enquanto não saldar a minha dívida. "E enquanto não me livrar de você", ela acrescentou em pensamento, pois Hoag lhe causava um medo intenso, que não conseguia entender. O comerciante ficou quieto, parecendo refletir. Depois de alguns momentos, levantouse da barrica em que estava sentado, ajeitando a calça imunda. — Tá bem, vô vê o que posso fazê por você, moça. Pegando uma caneca, ele ofereceu um pouco de água a Bridget. Ela aceitou e bebeu com vontade. Logo em seguida, recebeu uma fatia de presunto. — Eu vô até a fazenda do Lavender, dizê que você tá aqui. Naquele canto, tem uma cama. Bridget assustou-se.


— Não, por favor! Eu vou com você! Hoag examinou-lhe o rosto por um instante, antes de correr os olhos pelo corpo delineado pelo vestido de pele de gamo. Então, chegando à uma conclusão, assentiu. Antes dos quinze minutos de viagem, Hoag já havia planejado tudo. Era bom levar a moça junto. Sem prova, Sudie poderia não acreditar em sua palavra. Ela ia levar um bom susto! Ele estava com sorte. Se tudo corresse bem, ganharia dos dois lados. Limpa, a garota seria um prêmio. Mulheres do tipo dela eram raras, na região. E, apesar de ter vivido só Deus sabe quanto tempo com aqueles vermelhos sujos e ladrões, ela ainda tinha cara de inocente. Pela primeira vez, ele quase estava contente por não poder usá-la para acalmar o próprio desejo sexual. Se não fosse pela maldita flecha Tuscarora, que há dez anos o acertara na parte mais importante para um homem, ela na certa acabaria como todas aquelas indiazinhas bonitas tinham acabado. Na calada da noite, ele teria de jogar o que restasse dela num riacho das redondezas, com uma pedra amarrada ao pescoço. Ah, bons tempos aqueles! Pena que tivessem acabado, e com ele ainda tão jovem. Agora, tudo o que podia fazer era pagar para que outros homens o deixassem observar, quando tinha vontade. Hoag coçouse, a mente presa ao que ultimamente se tornara razão de tudo o que fazia: lucro. Levando a moça a casa de Lavender, descobriria, com certeza, o quanto Sudie estava disposta a pagar para se livrar dela. Ele se virou para a moça que viajava a seu lado. Parecia mais morta do que viva. Deveria ter lhe dado um bom trago, antes de saírem, para ajudá-la a anfrentar a caminhada. — Você fico sozinha no mundo, agora que Lavender arrumo outra mulhé? — perguntou, adotando um tom paternal. — Eu... tenho amigos em Croatoan. E uma mulher, que veio comigo da Inglaterra, está casada e mora perto daqui — Bridget respondeu, pensando que não era bom dar a idéia de que estava desprotegida. — Croatoan, hein? Então era lá que ela havia passado o inverno. Será que tinha fugido ou os Haties a tinham dado aos Potes, em troca de alguma coisa? Não que tivesse importância. Ele detestava todas as tribos igualmente, pois não havia uma que não tentasse passar-lhe a perna. Até os malditos caçadores de pele brancas escondiam dele os melhores produtos, alegando que não recebiam preços justos. Ele lhes mostraria o que era preço justo! Era só esperar até ele acomodar aquela belezinha no quarto dos fundos, com o corpinho macio pronto para servir a qualquer homem que aparecesse com um fardo razoável de peles. Teria todos os malditos trapaceiros de joelhos a seus pés, implorando por uma chance de chegar perto dela.


— São engraçado, os Haties — Hoag comentou, em tom amigável. — Gostam de vive longe de tudo. Vi um ô dois por aqui, querendo troca folha de chá e ostra por milho e pólvora. Na maior parte do tempo, eles prefere fica longe dos civilizado. A trilha que eles seguiam, no meio das árvores, desembocou num campo arado, onde ainda restavam alguns pés de milho da última colheita. Tudo tinha um aspecto feio e triste, provavelmente por estarem no fim do inverno. — Esta é a fazenda de Lavender — Hoag esclareceu. — Milho e gado. Num é grande coisa, mas si o bando de renegado Tuscarora qui anda roubando o gado fô pego, eles vão tê algum lucro. E bem que precisam, cum mais um a caminho. Num há nada cumo um filho pra fazê um velho fica todo orgulhoso. É ingraçado, não? — Velho? Sem saber por que, Bridget havia imaginado David Lavender como um homem moço, de feições finas e olhos límpidos. — Tem hóme qui acaba mais depressa. Num faz mal bebé e gosta de mulhé, si um hôme tem tutano pra isso. Mas Lavender já tava acabado quando a família mando ele pras colônia. Bridget comparou essa imagem com a do rapaz alto, de olhos dourados, cheio de vida, que deixara para trás. Um homem para quem a honra fazia parte de si mesmo. E com isso lembrou-se também das tendas simples, construídas de galhos cheirosos e contendo apenas tapetes de grama, musgo e ervas aromáticas. Que diferença das estruturas de troncos, em forma de caixa, que ocupavam a clareira à sua frente. — É... É aqui? — perguntou, timidamente. Nenhuma tentativa tinha sido feita para suavizar o aspecto frio das construções. — É, essa é a fazenda do Lavender. É melhor você mi deixa fala primeiro cum a dona. Ela tá grávida e pode si assusta, vendo uma estranha. Você espera aqui, tá? Hoag lançou um rápido olhar para a testa de Bridget, traindo o que estava pensando. Mulher nenhuma gostava de ver outra com a marca de feiticeira na testa, estivesse ela grávida ou não. Sem outra escolha, Bridget ajeitou-se melhor no banco de madeira. A carroça não oferecia conforto, tendo sido construída para levar carga, mas ela estava feliz por não ter tido de andar. A cada momento, seu corpo doía mais. A água e a fatia de presunto tinham lhe feito bem, mas sua barriga continuava a roncar. Além disso, seu cansaço era tanto que seria capaz de dormir em pé. Encolhida, aproveitando o calor do sol que se punha, ela viu o comerciante desaparecer por uma porta baixa e larga. Da mulher


que o recebeu só conseguiu vislumbrar a mão pálida e um pedaço de saia azul. Logo, as sombras começaram a se alongar na clareira e ela estremeceu. Engraçado, tinha se acostumado tanto ao frio de Croatoan que, ao longo de um tempo, mal sentia. Agora, no entanto, até seus ossos pareciam gelados. Dentro da casa de troncos, Sudie andava de um lado para o outro, com uma das mãos nas costas e a outra apertada com força. — Tem certeza qui é ela? — Ela tem a marca aqui você falo. Mas num acho qui seja feiticeira. Si fosse, já tinha jogado uma praga naqueles índios, muito tempo atrás. — Qui coisa, hein? Eu era capaz di dá a minha alma por uma criada decente. Pra tê uma ama di leite, eu vendia até a minha mãe. Mi dá enjoo só di pensa num garoto pendurado em mim! — Pra isso ela num ia adianta. Até parece virge! E é bonita, Sudie. David vai fica de água na boca. - Sudie fitou-o, desgostosa. — Eu i ele tamo casado na igreja i no civil. Certo de que Sudie tinha noção absoluta da posição vulnerável em que se achava, Hoag pesou cuidadosamente suas próximas palavras. — É, mas num é todo nó qui fica amarrado. O sangue subiu o rosto de Sudie, deixando-a estranhamente pálida. Ela levou uma das mãos aos cabelos sujos, presos num coque malfeito. — Mais qui droga, Bóris! Eu já falei qui foram os índio qui mataram o coitado do meu Albert! Hoag exibiu os dentes grandes e amarelados num sorriso maldoso. Conhecimento era poder, e o poder representava lucro nas mãos de um sujeito esperto como ele. — É, eu tô sempre esquecendo. Mais é bom a gente si lembra qui nois dois podemo saí perdendo, si o Lavender descobri qui a noiva volto do meio dos mortos. — Ele subiu o rio. Só volta amanhã. — Ainda tá atrás dos índios qui roubaram o gado? - Ignorando a expressão zombadora de Hoag, Sudie deu mais alguns passos pelo cômodo sujo e desarrumado.


— Mais qui diabo! Por que essa idiota num se afogo, como devia? — Tem muito jeito da gente si livra di um problema i ninguém fica sabendo. Confia no seu velho amigo aqui, qui sempre lhi serviu bem. — Prefiro confia numa cobra! Você só serve uma pessoa, i é você mesmo. Mas Sudie tinha ido muito longe, para recuar. Toda sua vida fora obrigada a servir aos homens, para sobreviver. Pelo menos, casando-se com um fraco e transformando-o num bêbado, não tinha mais de aguentar esse tipo de coisa. Com mais alguns anos, estaria economicamente bem. — Dá cabo dela, Hoag. — O quê? Você tá me pedindo pra acaba cum uma inocente, qui nunca fez mal a ninguém? — Hoag assumiu um ar chocado. Mas o olhar de Sudie mostrou-lhe o que ela pensava de suas palavras e ele deu de ombros. — Si vô dá cabo dela, quero sê recompensado pelo risco qui vô corre. Sei qui o seu hôme ganha em bom ouro, por cada ano qui fica longe da família. Si um pouco desse ouro vié pra mim, fica mais difícil ele sê encontrado cum a cabeça aberta pelos índios. - Hoag meneou a cabeça, satisfeito consigo mesmo. Ele era realmente esperto. Começara a vida subindo por chaminés imundas, com brasas quentes nos pés, e tivera de abrir caminho na vida sozinho. Agora, era dono do maior empório entre Virgínia e Charles Towne. Com ou sem bagos, isso fazia dele um homem e tanto! — Aquele idiota miserável escondeu o ouro! Ou você pega um pouco di tabaco ou fica sem nada, porque eu num posso mi bota di joelho pra procura esse ouro. Mas quando eu mi livra desse fedelho, vô encontra o cofre. Aí, sim, vô imbora pra Virgínia! Num quero nunca mais vê esse lugar fidido, cheio di cobra i índio. — Ela apertou os olhos, fitando Hoag com mais atenção. — Tem certeza qui a mulhé é a mesma? Cabelo amarelo, olho cinza, marcada a ferro na testa? — Vai olha você mesma — Hoag convidou, dando de ombros. Se ele só ia conseguir tabaco daquele lado, tinha de dar um jeito de compensar o pouco lucro usando a moça. Não importava como. Sudie espiou por uma das fendas da porta, aberta para permitir uma boa visão e um bom tiro. — É ela, sim. Que pena qui essa vagabunda num acabo na barriga di um monstro do mar!


CAPÍTULO XXII

Com o rosto totalmente inespressivo, Kinnahauk examinou as inúmeras peles belíssimas que tinha à sua frente. No entanto, seu coração estava cheio de orgulho e antecipação. As peles totalizavam, um extraordinário preço de noiva. Se David Lavender exigisse mais, ele daria um jeito de pagar, mas levaria tempo, e a espera não seria fácil. Entre os Hatorask, um homem podia fazer uma oferta por qualquer mulher, desde que não fosse casada. Se a oferta fosse aceita pelo pai da moça, ela podia se mudar para ouke do rapaz. Apesar de os dois terem dormido muitas vezes juntos, antes, teriam de viver como irmãos até o preço ser totalmente pago. Isso podia levar muitas luas, mas, em nome da honra, tinha de ser respeitado. Kinnahauk fitara a mulher de sua escolha, que dormia em sua ouke, e percebera que tinha de agir rápido. Caso contrário, estaria se arriscando a perder a própria honra. Deixando junto dela a prova de seus sentimentos, pegara três homens e a maior canoa da aldeia, e partira a toda velocidade para o norte, parando apenas para alertar as aldeias ao longo do caminho de sua intenção. Logo todos sabiam que Kinnahauk, de Croatoan, daria muitas peage por peles de boa qualidade. Um lugar de encontro fora indicado, e, em parte por ódio do mercador branco, Hoag, muitos caçadores haviam comparecido. Tuscarora, Haynoke, Nottoway e até mesmo olhos brancos tinham trazido a pele espessa dos castores das montanhas do oeste, além da pele macia dos pequenos minks. Com um caçador das terras frias do norte tinham vindo as mais belas peles que Kinnahauk já vira. Kinnahauk tratara lealmente com todos, usando o valioso peage negro e púrpura, que era duro e levava muito tempo para ser perfurado. Ele oferecera moedas de ouro pelas peles mais raras e espessas, e tanto peage quanto uma moeda de ouro pelas peles de dois raríssimos linces brancos. As trocas haviam levado mais tempo do que ele planejara. Três dias tinham se passado antes que pudesse deixar a Grande Baía dos Coritucks. Por isso, agora desciam a toda velocidade em direção a Pasquinoc, a aldeia de TausWicce, situada junto à embocadura de Albemarle. Queriam estar lá antes de o sol sumir. — Minha barriga ronca, só de pensar na festa que nos espera em Pasquinoc — comentou Chama o Corvo. — Paugh! Não é a sua barriga que está levando você para a aldeia de TausWicce. É outra coisa, e bem diferente; Pensa que não vi o modo como olhava para Pé Pequeno, da última vez que estivemos aqui? — brincou Graveto Torto.


Na proa da longa canoa, Kinnahauk remava com firmeza e em silêncio. O sol já avermelhava a água, e seu olhar percorreu a praia, reconhecendo árvores e tocos que haviam guiado seus passos muitas vezes por aquele caminho. Ele ouvia as vozes atrás de si, mas seu pensamento não estava na comida das esposas de TausWicce, nem nas moças solteiras da aldeia Poteskeet. Ele pensava era na sua oquio, no modo como os lábios dela se abriam, quando dormia, no cheiro da pele deliciosa e no tesouro que ela havia lhe entregue, com tanta meiguice. Pensava na paciência com que ela tratava as crianças de sua aldeia e as pessoas mais idosas, que contavam as mesmas histórias inúmeras vezes. Pensava no riso fácil e na corajosa teimosia de sua oquio. Ela seria sua primeira e única esposa. O coração de Kinnahauk pedia-lhe que continuasse a viajar mesmo à noite, para estar com ela mais depressa. Mas durante anos teve de escolher entre a sensatez e a inquietude da mocidade, e agora era obrigado a fazê-lo mais uma vez. Ele passaria a noite com os amigos, em Pasquinoc, e continuaria viagem antes de a primeira luz do dia. TausWicce devia saber onde poderia encontrar o homem David Lavender, pois pouca coisa escapava dos olhos agudos de seu amigo que os olhosb rancos chamavam, de Albemarle. Hoag não perdeu tempo em dizer a Bridget que não havia trabalho para ela na casa de Lavender. - Eu troxe os seus papel, mocinha. A mulhé do Lavender mi passo eles por pura consideração. Agora, a sua dívida é com Bóris Hoag. Bridget ficou horrorizada. Preferia dever a um estranho do que àquele homem, que lhe causava arrepios de repulsa. A notícia de que havia uma mulher estranha no Posto de Troca de Hoag logo se espalhou. Tanto os homens quanto as mulheres apareceram para vêla. No início, Bridget teve esperanças de encontrar alguém que quisesse seus serviços, mas depois de três dias ficou claro que não era bem-vinda a cidadezinha. Pelo menos, não era bemvinda entre as mulheres, que viviam olhando a marca em sua testa e cochichando entre si. Com os homens, isso não acontecia. Se eles a fitavam por um tempo maior que o necessário para satisfazer a curiosidade era para avaliar seu corpo com olhares que não escondiam seus pensamentos. Hoag havia sugerido que ela o reembolsasse fazendo companhia a alguns homens que negociavam com ele, mas diante de sua recusa categórica, não tinha insistido. Na verdade, ele concordara em lhe fornecer cama e comida em troca de seus serviços no posto. Ele lhe dera um vestido, dois aventais e um xale, todos bastante velhos e feitos para uma pessoa com a metade de seu tamanho e o dobro de sua cintura. Os sapatos que ele arrumara estavam gastos demais e ela acabara lhe pedindo um pedaço de pele para fazer um mocassim. Com medo da resposta, Bridget não tivera a coragem de perguntar a Hoag onde ele arranjara aquelas roupas. Mesmo sabendo que ele a


salvara de morrer de fome e de situações degradantes, não conseguia lhe ser grata. A cama que ele lhe dera estava infestada de vermes e a comida não se encontrava em melhores condições. Ela havia esfolado os dedos limpando o posto naqueles primeiros dias, só esperando que Hoag se fechasse no próprio quarto para cair, exausta, sobre o colchão que fizera, de musgo e pele de gamo. Desde o início, Bridget tivera medo de que Hoag quisesse se casar com ela, mas ele não havia falado nisso. Também não mostrara interesse nela como mulher, apesar de passar muito tempo a observá-la como que imaginando o que havia por baixo daquelas roupas gastas. Se Hoag gostava de sua comida, nunca manifestava seu agrado. Ele também ignorava por completo a área limpa, que aumentava a cada dia, mas mesmo assim Bridget continuava a limpar, usando uma barra de sabão de soda, que encontrara sob um monte de trapos imundos. A barra não ia durar muito, mas talvez ela pudesse fazer mais um pouco, se encontrasse o material necessário. Talvez ela até pudesse fazer sabão para vender, perfumando os pedaços com ervas cheirosas, para ficar ao gosto das mulheres de Albemarle. Com isso, poderia comprar sua liberdade mais cedo. E se também fizesse velas para vender poderia... Bridget fez uma pausa em seu serviço, a cabeça cheia de sonhos de liberdade. Além disso, sua mente se recusava a pensar. Se ela chorava durante o sono, era só porque seu coração ainda não tivera tempo de cicatrizar. Nos anos que ainda viriam, ela acabaria por se esquecer do homem que a ensinara a amar. Tinha de esquecer! Para apressar a sua libertação, Bridget tinha se oferecido para ajudar na contabilidade do posto, pois estava quase certa de que Hoag não sabia ler. Ele só conseguia fazer contas com a ajuda de barbantes cheios de nós e gravetos marcados, mas, pelo modo como a fitara e negara sua oferta, qualquer um diria que fora violentamente insultado. Assim, Bridget continuava a esfregar. Agachada no chão, estava limpando anos de gordura acumulada junto à lareira e fazendo o possível para não ser vista por uma mulher de língua ferina chamada Piety Smith quando ouviu a porta se abrir e fechar. — Sra. Lavender! Faz tempo que não a vejo. Já soube da novidade? Se eu estivesse no seu estado, não punha os pés neste lugar nem à força! Ia ficar com medo do meu bebê ser marcado pela feiticeira de Hoag. Bridget corou de raiva, mas se conteve. No pouco tempo que decorrera desde sua chegada, ouvira cochichos, gozações, palavras de exorcismo e desprezo, todos dirigidos a ela por pessoas da elite de Albemarle. — Se eu fosse tão má e poderosa quanto eles pensam — murmurou mergulhando o pano de limpeza na água —, já teria transformado toda essa gente em ratos! — Ainda é cedo pra minha criança fica marcada, Piety. Meu casamento não tem nem cinco meses. Minha mãe me disse qui um bebê tá salvo na barriga da gente até completa sete mês.


Sudie estava lívida. Hoag tinha prometido livrá-la daquela ameaça. Em vez disso, no entanto, colocara a maldita num lugar onde todos podiam vê-la. Se o que ele queria era destruir o que haviam conseguido através de seu casamento com o idiota do Lavender, estava no caminho certo. — É mesmo?! Pensei que a senhora estivesse mais perto da hora do parto — exclamou Piety. — Não. Mas do jeito que as minha costa dói, é capaz do meu queridinho chega antes do tempo. Na certa vai sê impaciente como o pai dele, o danadinho. Ainda escondida atrás do balcão que separava a cozinha do salão público, Bridget fitou o balde cheio de água suja. Engraçado como a memória podia enganar uma pessoa. A voz da sra. Lavender lhe parecia quase familiar. — Bom dia, Piety — disse uma terceira mulher, entrando no posto. — Sra. Lavender! Muito me admira que o seu marido lhe dê permissão para sair de casa, na sua condição. — Mi dê permissão?! Faz tanto tempo que a senhora tá nessa terra esquecida por Deus que o seu cérebro amoleceu, Johanna Jones. O galo pode canta mais alto, mais é a galinha qui manda no galinheiro. Bridget ergueu a cabeça, esquecida da dor em seus joelhos, devido as longas horas passadas limpando o chão. Seus ouvidos deviam estar lhe pregando uma peça. Não era possível que Sudie Upston e a sra. Lavender fossem a mesma pessoa. Ou era? Precisava verificar. — Pode ser — Piety rebateu —, mas eu não trocaria o meu galo por nenhuma galinha! — Não? Espere só até o seu galo começar a tirar a comida da boca das crianças para trocar pelas peles — comentou a sra. Jones. — Peles? Eu sou a melhor fiandeira de Albemarle. A troco de quê o meu Henry haveria de querer peles? — Quer dizer que a senhora não ouviu falar do concurso do Hoag? Houve uma série de cochichos, seguidos por uma exclamação atônita. O rosto ardendo, Bridget ouviu a que tinha a voz parecida com a de Sudie soltar vários palavrões. Que concurso? Ela também não sabia de nada a respeito. Avançando até poder olhar entre as pernas da mesa, Bridget correu os olhos pelo salão. Não precisou mais que um segundo para reconhecer o rosto sem vida, de queixo pontudo e olhos negros, bem pequenos. Sudie


estava enorme devido à gravidez, mas fora isso não mudara muito desde que a vira pela primeira vez, na carroça a caminho de Newgate. Vestígios de beleza ainda podiam ser encontrados no rosto dela, se se olhasse com atenção, mas a expressão maldosa desencorajava esse trabalho. As mulheres foram embora antes que Bridget tivesse tempo de se recuperar da surpresa. Logo depois, a porta abriu-se novamente e três caçadores de pele entraram. Ela se levantou devagarinho e chamou Hoag, que estava trabalhando no quarto de armazenagem. Os três homens, dois brancos e um índio, jogaram seus fardos de pele no chão e fitaram-na com atrevimento. — Ouvimo fala do concurso. Ela é a tal? — perguntou o mais alto de todos, um ruivo, quando Hoag apareceu. Ouvindo a conversa, Bridget pensou que estivesse ficando louca. Eles falavam a seu respeito como se ela não estivesse ali, discutindo se ainda era virgem, com quantos homens havia dormido e se era ou não verdadeira a crença que dizia que dormir com uma feiticeira dava a um homem o poder de realizar proezas sexuais além de qualquer imaginação. Assim que os caçadores se foram, Bridget avançou para Hoag. — Você não é gente! Como teve a coragem de pensar numa coisa tão horrível? — O sangue tinha fugido do seu rosto, deixando-a lívida. Os olhos pequenos de Hoag estreitaram-se até quase não serem visíveis, entre as bolsas de gordura que os rodeavam. — Penso qui ia vive da caridade de Hoag para sempre, feiticeira? — Caridade! Quase quebrei as minhas costas tentando limpar este chiqueiro, e é isso que você diz! Porque este lugar é um chiqueiro! Você não tinha o direito... — Não tinha?! — o mercador rugiu, inclinando-se para a frente, com ar beligerante. — Quem não tem direito aqui é você! Duas vezes eu comprei você, feiticeira. Uma, dos malditos pele vermelha, e outra, da mulhé do Lavender. Eu nunca levei a pior i num vô começa agora, com uma vagabunda de cara marcada! Nesse ponto, Hoag já havia agarrado Bridget e a sacudia com brutalidade. A infeliz dava trabalho demais, pelo que valia. Tivera a coragem de perguntar sobre suas contas, como se desconfiasse dele. E vivia olhando para ele com aqueles enormes olhos azuis, como se o culpasse por não ser a rainha de Maio! Se ela podia dormir com os Potes e os Haties, podia dormir com os caçadores de pele. A ideia que ele tivera ia acabar com a história dos caçadores não lhe entregarem as melhores peles. Os vagabundos tinham colocado na cabeça que Bóris Hoag estava ali para enriquecê-los. Quando ele não pagava o que eles queriam, os malditos começavam a contar miséria, dizendo que tinham tido uma péssima temporada e apresentavam apenas piores peles, guardando as melhores para vender a um sujeito que ia se estabelecer rio acima. A ideia de


usar uma feiticeira como isca lhe ocorrera quando vira o modo como os caçadores se sentiam atraídos por ela. Estavam loucos para dormir com a maldita, mas ele havia impedido, pois sabia que havia um jeito melhor do que trancá-la num quarto e deixar que a tivessem por alguns shillings, de cada vez. Se não tivesse feito isso, ela já estaria acabada. Mulheres claras não aguentavam tão bem quanto as squaws. Ele inclusive chegara a pensar em vendê-la para um fazendeiro, mas por que vender uma vez apenas o que podia vender centenas de vezes? Fora então que tivera a ideia do concurso. Com a temporada de caça acabando, dera a notícia do que pretendia fazer, certo de que os imundos peles vermelhas se encarregariam de espalhar sua ideia aos quatro ventos. Como eles conseguiam isso nunca descobrira, mas os malditos sabiam de tudo que acontecia por ali, tanto com os brancos quanto com sua própria raça. Era só um colono cortar uma árvore no Chesapeake que, antes de a noite cair, todos os índios já sabiam se era pinheiro ou carvalho. Hoag divertira-se vendo os homens avaliarem a mulher e depois se voltarem para ele, com inveja na expressão. Era evidente que pensavam que a usava, pois não sabiam o que lhe acontecera nas mãos dos Tuscarora. Há muito tempo ele havia matado os selvagens que o tinham castrado e o único homem branco que tivera conhecimento disso: o fazendeiro que o encontrara inconsciente e sangrando. No entanto, o ouro falava mais alto que o orgulho, e Hoag não era homem de desperdiçar uma oportunidade caída do céu. Ele não vira motivos para contar à feiticeira do concurso, mas espalhara a notícia de que o caçador que lhe vendesse as melhores peles seria o primeiro a usá-la. O que trouxesse o segundo melhor fardo seria o seguinte, e assim por diante, até o final. Depois de pensar um pouco, ele resolvera não dizer que ela era virgem, mas afirmara que era quase isso. Afinal, para sua sorte, ela era pequena e tinha um ar inocente, que desmentia a vida de prostituição que levara. A notícia se espalhara como fogo e caçadores que, há anos não punham os pés em seu estabelecimento, tinham aparecido para ver a feiticeira branca. Depois de um olhar, todos haviam saído apressados, à procura de peles que pudessem comprar, barganhar ou até mesmo roubar. Hoag não pretendia deixar que muito tempo se passasse. Sabia que, para manter vivo o interesse de todos tinha de agir com rapidez. Assim, esvaziou um dos cômodos do posto e mandou que Bridget o limpasse. Bridget pensou em fugir, mas ele a vigiava com olhos de águia. Se pudesse pôr as mãos numa faca, sem dúvida o mataria e iria embora dali, mas não teve essa oportunidade. Era como se ele lesse seus pensamentos. — Num fique zangada com o velho Bóris, menina. Eu só tô fazendo um pé de meia pra nós. É melhó do que morre di fome, num é? E eu num tô querendo qui você faça uma coisa qui nunca fez antes — Hoag comentou, um dia. De onde esfregava o chão, Bridget lançou-lhe um olhar de ódio. Se achasse que não seria pega e morta em três tempos, teria jogado a escova na cara dele e corrido. Mas era preciso mais que uma escova para deter um homem violento. Por enquanto, não tinha outra coisa a fazer a não ser esperar. Sob o pretexto de tirar uns enormes fardos da porta, Hoag continuou a vigiar Bridget. Fingindo não perceber,


ela se levantou e examinou o que tinha feito. Logo que ele lhe pedira para limpar a sala, ela havia se recusado, pois sabia qual era o objetivo daquela limpeza. Fora quando ele a esmurrara na cabeça, tomando o cuidado de não marcar seu rosto. Durante horas, depois disso, suas orelhas tinham doído. Apertando os lábios, Bridget correu novamente os olhos em torno de si. — Você pode dizer o que quiser, Hoag, que eu não vou levar isso em frente! — declarou, afinal, mal conseguindo se controlar. — Ah, não?! E o que é que você vai fazê? Monta na sua vassoura e saí voando por aí, atrás dos seus amigo, os Potes? — Prefiro mil vezes passar o resto da minha vida com eles do que mais um minuto com você. Só de respirar o mesmo ar que você, eu já me sinto mal! Avançando subitamente, Hoag tornou a esmurrá-la. E desta vez não tomou o cuidado de evitar-lhe o rosto. — Mas que droga, mulher! Você me fez fazer isso! — ele exclamou furioso. Agora não podia exibí-la para os caçadores com o queixo inchado e roxo! Maldita! Ela o provocava demais. Respirando fundo, Hoag tentou se acalmar. Afinal, antes de o sol nascer, ele a veria cabisbaixa e humilhada. E a cada vez que ela se deitasse com um caçador, mais ouro entraria em seus bolsos! Ele a ensinaria a respeitar Bóris Hoag!

CAPÍTULO XXIII

O excitamento de Hoag foi crescendo com o passar das horas, até que, finalmente, ele cometeu um erro: deixou Bridget sozinha, enquanto ia à dispensa colocar água em outro barril de rum, antes de levá-lo para o salão principal. Bridget só esperou que ele sumisse, antes de pegar o xale e sair sorrateiramente, fechando a porta atrás de si. Tomando todo cuidado, deu a volta no posto, rumando para onde ficavam os cavalos. De lá até o bosque, a


distância era pequena e ela pretendia seguir pela margem do rio, até a casa de Hamish. Por mais tempo que levasse, tinha de tentar. Se seguisse cautelosamente, sem perder a cabeça, sem dúvida tudo daria certo. A floresta cheia de animais ferozes não a assustava mais que o terrível destino que Hoag havia traçado para ela. Quanto à alimentação, não tinha com que se preocupar. Não morreria de fome, durante a jornada, uma vez que a região oferecia raízes comestíveis, nozes e água fresca, em abundância. Com o máximo cuidado, ela deu a volta no canto da cerca, encolhendo-se ao ouvir o resfolegar dos animais. Só tinha de atravessar a clareira numa corrida, para alcançar o bosque. — Tá pensando em í a algum lugar? — ouviu a voz detestável de Hoag perguntar, de repente. Arrepiada, ela se virou. Ele estava recostado na cerca, com os braços enormes cruzados sobre o colete manchado de gordura. — Eu... meu... — Pensando em fugi de mim, por acaso? E depois de tudo que fiz por você? Depois que lhe dei um quarto só seu, roupas bonitas e cavalheiros pra enche as suas noites? Seu braço estava ficando cheio de manchas roxas quando ele a jogou de volta no quarto. Daí em diante, não ficou um segundo sozinha. Mas sua maior vergonha foi quando teve de se lavar e vestir, na presença dele. — Se vou ser vendida para você encher seus bolsos de ouro, prefiro ficar como estou — ela ainda o desafiou, num arroubo de coragem. Tinha a pele escura de sujeira, os cabelos embaraçados e o vestido úmido e manchado. De imediato, ele a atingiu com as costas da mão, — Pois eu mesmo lavo você, sua ordinária! — berrou, torcendo-lhe o braço, antes de pegar o trapo imundo que ela usava para limpar o chão. — Não! Saia daqui! Mas ele ficou parado na porta, usando o corpanzil para bloquear a única via de fuga. Dandolhe as costas, ela começou a jogar água no rosto e no pescoço, esperando sentir, a qualquer momento, as mãos horríveis em seu rosto. — Lava tudo!


Certa de que ele a lavaria, se não obedecesse, Bridget cedeu. Com a maior rapidez possível, lavou-se com a água que restava no balde, depois da limpeza do salão. Em seguida, enxugou-se e colocou o outro vestido. —. Pronto! Estou pronta, você pode ir embora. — Dê um jeito no seu cabelo, si é que qué fica com ele, mocinha. Ele nem parece mais amarelo. De má vontade, ela se inclinou e mergulhou a cabeça no balde, tateando o chão à procura do resto do sabão. Depois de lavar e torcer as longas mechas para tirar delas o excesso de água, jogou-as para trás, arrumando-as com uma tira de couro. Talvez a marca em sua testa assustasse os caçadores. Além disso, deixou o vestido solto, sem o cinto, e amarrou o xale bem junto do pescoço. Só então se voltou para seu carrasco. — Hoag, se você me deixar ir embora, prometo que lhe pago duas vezes o que o sr. Lavender gastou comigo. Em algum lugar tem de haver alguém precisando de uma pessoa com as minhas habilidades. -Tem, e eles tão tudo esperando por você agora, mocinha. Tudo quanto é hôme capaz de tira o couro de um gato tá aqui, esta noite. E tem mais pra chega. Agarrando-a pelo braço, Hoag arrastou-a em direção ao salão principal. Bridget tentou impedí-lo, mas não conseguiu. Ouvindo o alarido cada vez mais alto, não conteve um assomo de náusea ao chegar à porta e deparar com a massa de rostos sujos e cheios de luxúria. — Não! Pelo amor de Deus. Hoag! Eu faço tudo que você quiser, mas isso não! Isso não! Vã esperança. Sem lhe dar atenção, Hoag ergueu-a nos braços e depositou-a no alto de um barril, que fora colocado num lugar bem visível. De imediato, Bridget se viu cercada por uma massa humana. — Aqui tá ela, garotada, exatamente como eu prometi: pura como a neve que acaba de caí, bonita como uma moeda novinha em folha. Apavorada, Bridget correu os olhos em torno de si. Ali estavam dezenas de caçadores, homens que passavam urna temporada inteira sozinhos na floresta, sem ver o menor sinal de uma mulher branca. Havia também muitos fazendeiros e uns tantos mercadores. Durante o dia inteiro eles haviam chegado ao posto de troca, enquanto a notícia da disputa corria de uma aldeia para a outra. Bóris Hoag ia leiloar a chance de um deles dormir com a feiticeira branca, mas só participariam do leilão os que trouxessem fardos de pele de primeira qualidade. Naturalmente, o vencedor seria o que trouxesse o melhor fardo. Num


lugar onde as reuniões sociais eram tão poucas, aquele era um acontecimento excitante. Bridget tentou rezar, mas o barulho era ensurdecedor e o mau cheiro dava náuseas. Só o pouco orgulho que ainda lhe restava impedia que desmaiasse de pavor. Coloque-se acima disso, ordenou a si mesma. E tentou desesperadamente. Mas foi em vão. Sabia, agora, que jamais conseguiria se libertar do pesadelo que começara tanto tempo atrás. Uma vez, chegara a ter esperança, em Croatoan. Por que deixara que a convencessem a partir? Desde aqueles dia, fora atormentada pela saudade de Kinnahauk. Sofrera tanto que seu coração parecia completamente seco. Agora, só estava grata por não tê-lo ali presenciando a sua vergonha. Hoag andava de um lado a outro entre a multidão, examinando peles e gritando para seu mal humorado ajudante, no sentido de que fizesse todos os homens pagarem pelo que comiam o bebiam. Obviamente, estava muito orgulhoso de sua nova função como empresário. — Isso tá muito mal esticado, Pearson. Newcomb, esses rato de banhado num serve nem pra limpa o chão. — Rato di banhado?! Isso é mink,Hoag! — É rato di banhado. Si que ví o qui o mink de primeira qualidade, dê uma olhada nos fardo de Kuiulewaii e Pena Amarela. Assim ele continuou a provocar todo mundo, jogando um contra o outro, vermelhos contra brancos. Os cavadores também faziam seu jogo, reservando as melhores peles para ver o que a competição produziria. Bridget seguia tudo com um olhar sem brilho, seu desespero aumentando a cada vez que um caçador saía para logo depois voltar com uma pele especial, um exemplar melhor, mais tarde, de outro mercador. Hoag estava felicíssimo. Os preços que oferecia eram vergonhosamente baixos, mas os caçadores eram um grupo competitivo e ele sabia muito bem como explorar a fraqueza dos outros, quando achava conveniente. — Ela é mesmo uma feiticeira? — perguntou um jovem caçador, que vinha da sua primeira temporada. — Isso é a mesma coisa que uma mulher que reza encantamento? Meu pai diz que se um homem dorme com uma mulher dessa, o pinto dele fica preto e cai na próxima cheia. Seguiu-se uma avalanche de comentários e Bridget sentiu o rosto esquentar. Inclinando-se para a frente, fitou os inocentes olhos azuis do garoto, garantindo com ferocidade: — Seu pai tem razão. Minha mãe era uma mulher que rezava encantamentos, assim como a minha avó, antes dela. Eu sou a sétima filha de uma sétima filha, o que me torna uma feiticeira das mais poderosas. Sei de pragas que nem o próprio diabo teria coragem de rogar, e juro que todos os homens que encostarem a mão em mim vão... Sua voz foi abafada pelo riso alto e forçado de Hoag.


— A mocinha gosta de brinca, num é mesmo, garotos? Só um idiota num ia sabe a diferença entre uma mulhe qui reza encantamentos e uma feiticeira branca. São poucos os hôme qui tem tanta sorte a ponto de cruza com uma verdadeira feiticeira branca. Elas são muito rara, principalmente por aqui. Acreditem no velho Bóris, é dormi com uma criatura dessa qui separa os hôme dos menino. Tô certo num to, Newcomb? Hein, Pearson? O prazer qui elas dão prum home é uma coisa do outro mundo. O único perigo ê qui se um hôme mergulha sua vara numa feiticeira branca fica tão potente qui as outras mulhé nunca deixam mais ele em paz. Elas fica atrás dele, chorando í implorando pelo qui vocês sabe! Houve algumas exclamações, algumas cotoveladas e um certo falatório entre os caçadores brancos. Os vermelhos mantinham-se à parte, sem nada revelar em seus rostos inexpressivos. Bridget estremeceu, fazendo o possível para ignorar o ambiente e não pensar no que tinha pela frente. Desde o começo dos tempos, as mulheres vinham suportando vergonha e humilhação. A mente era capaz de se desprender do corpo, colocando-se acima dele. Não fora isso que Soconme lhe dissera? Ah, Deus, até as mulheres iam testemunhar sua vergonha! Pasma, Bridget viu Sudie entrar ao lado de um homem magro, de rosto abatido, usando calça malfeita e uma camisa suja. Aquela criatura lastimável era David Lavender?! Que peças a imaginação era capaz de pregar! Ela o visualizara tão doce e lindo quanto a erva da qual tinha o nome. No entanto, a aparência dele não era muito melhor que a Sudie. Mesmo assim, como podia ele ver o que estava acontecendo com a mulher que trouxera para ser sua noiva e nada fazer para impedir? — David... Sudie, pelo amor de Deus! — Bridget gritou. Mas sua voz se perdeu em meio ao barulho da multidão embriagada de álcool e excitamento. David rumou diretamente para o bar e Sudie, com a cabeça jogada para trás e os braços cruzados sobre a barriga enorme, fitou Bridget com um olhar satisfeito, sem mostrar a menor surpresa. Naturalmente, ela sempre soubera que Bridget não havia se afogado. Era tudo tão confuso... Mas que importância tinha isso, agora? Quando o cheiro dos corpos sujos e suados se tornou sufocante, Bridget começou a lutar contra a náusea. Mal havia escurecido e o posto já estava superlotado de homens decididos a aproveitar até a última gota do excitamento produzido por uma diversão tão rara quanto aquela. As peles, que haviam ficado no chão o dia inteiro, começaram a cheirar mal, com o calor do ambiente. Hoag já tinha aberto o terceiro barril de seu rum aguado. Ele vendera o rum não "batizado" só enquanto os fregueses ainda não estavam bêbados e tinham condições de notar a diferença. Muitas horas ainda se passariam antes que disputa chegasse ao fim. Bridget sabia que, mesmo que sobrevivesse até lá, não conseguiria sobreviver ao que viria em seguida. Todos os caçadores, sem exceção, traziam facas presas à cintura. Raciocinando febrilmente, ela decidiu que roubaria uma faca... ate mataria por uma, se preciso fosse... e fugiria para a floresta. Armada, e na escuridão, não seria facilmente recapturada.


Kinnahauk não sentia tanto medo desde a época em que caminhara debaixo da tempestade, na juventude. Eles haviam parado em Pasquinoc, pensando em festejar e descansar um pouco, antes de irem atrás do tal de David Lavender. Em vez disso, tinham descoberto que era uma mulher branca, com uma marca feita a fogo na testa, fora salva de Tuscarora bêbados por TausWicce e levada para onde queria ir: o posto de trocas do homem chamado Hoag. — É um lugar ruim. Não gosto de ir lá, mas a mulher falou em troca e eu nem tento mais entender os costumes dos olhos brancos — explicou o Poteskeet, ao saber que a mulher era a murraupa shaman que vivia entre os Hatorask, desde a Lua do Ganso Branco. Os dois homens conversavam numa mistura de Poteskeet e sinais, por que TausWicce, teimosamente, havia se recusa a aprender a língua dos olhos brancos. — Ela é minha mulher — Kinnahauk disse, a dor evidente em seu timbre de voz. — Então, preciso lhe contar o que falam — retrucou TausWicce, colocando a mão sobre o ombro do jovem werowance. — Dizem que Lavender arrumou outra mulher, e que essa mulher é a mesma que matou o fabricante de uísque, que vivia a dois dias de caminhada daqui. Dizem, também, que Hoag mantém a sua mulher cativa e vai entregá-la ao caçador que trouxer as melhores peles, na noite em que a lua mostra sua cara cheia. — Não sobra muito tempo — Kinnahauk murmurou, os olhos ardendo como brasa. — Tenho de ir depressa. — Mas não pode ir despreparado. Vocês são poucos e eles são muitos. Você vai atrás de uma mulher que não é de sua raça. Uma mulher que todos os homens querem, porque tem boa aparência. — Ela é capaz de fazer o mais lindo botão se fechar de pura vergonha! Uma expressão bondosa surgiu no olhar de TausWicce. — Vai ser perigoso, meu amigo. Aqueles homens estão cheios de desejo e bebida. Você tem de andar entre eles com muito cuidado. Quatro dos meus melhores guerreiros irão com você. Dois deles falam a língua dos olhos brancos. Eles têm muitos amigos entre os caçadores. Incapaz de expressar seus sentimentos, Kinnahauk assentiu, dizendo apenas: — Então, vamos depressa, — Minhas mulheres vão preparar comida. A distância daqui até lá não é pequena.


— Não dá para esperar — Kinnahauk insistiu cheio de medo de não chegar a tempo. Sua pequena já sofrera muito, e a menos que ele andasse mais rápido que a flecha mais veloz, ela sofreria o triplo. E sem dúvida morreria, se isso acontecesse. — Não seja tolo, meu amigo. Você precisa adquirir a paciência que vem com a idade e a sabedoria, senão o fogo da juventude consumirá tudo que tocar. Existe um homem chamado Hamish, que mora um pouco depois do lugar onde os Yeopim passavam o inverno, nos dias de meu pai. É um homem de honra. Depois da casa dele, você estará seguro. Os bêbados de Pena Azul voltaram a ser pó, e não apareceram outros para tomar o lugar deles. — Eu vou matar esse tal de Hoag, se ele a machucou! - TausWicce sorriu, enrugando o rosto magro e curtido pelo tempo. — Ele não pode magoar sua mulher desse modo, meu amigo, porque nosso velho inimigo Raucaucáu arrancou-lhe as sementes, muito tempo atrás. Você precisa planejar com cuidado e levar muita coisa de valor. Eu andei guardando umas peles para comprar outra esposa, mas isso pode esperar. Com três esposas, duas estão sempre brigando com a terceira. Com quatro, cada uma tem uma amiga e eu fico em paz. Bridget apertou os olhos. A fumaça no ambiente era tão espessa que tornava quase impossível enxergar o outro lado do salão. Uma rajada de vento agitou o ar e ela vislumbrou outro pele vermelha entrando e abrindo caminho junto à parede. Como todos os outros que tinham chegado durante os últimos minutos, ele não trazia um fardo de peles. Agora, apoiado à parede, com os braços cruzados e uma das mãos fechadas sobre o cabo da faca, ele bem poderia ser confundido com uma estátua, tamanha a sua falta de expressão. O que pensavam eles dos homens que chamavam de olhos brancos, os mesmos homens que os chamavam de selvagens? Bridget reconhecia que encontrara muito mais nobreza entre as pessoas que viviam em Croatoan do que entre todos os habitantes de sua aldeia, a não ser por algumas exceções. O salão estava superlotado, com fardos por todo lado, esperando o julgamento. Encolhida, ela tentou ignorar o excitamento febril em torno de si. Fingiu que estava de volta a Croatoan, inalando o ar fresco e com o cheiro de sal, ouvindo o riso das crianças, que brincavam em volta das tendas. Fingiu que o barulho dos pés, arrastando-se pelo chão imundo do posto era o murmúrio das ondas, quebrando na praia. Em vez dos comentários maliciosos e grosseiros, ouviu o grito solitário do ganso branco, passando no céu. Uma vez, Soconme lhe dissera que os gansos brancos eram os espíritos dos que já haviam partido. Fechando os olhos, ela os viu, as pontas negras das asas brancas movendo-se com graciosa precisão, quando se inclinaram para olhar a ilha que um dia fora seu lar. Como seria bom se seu espírito pudesse voar com eles, deixando para trás toda dor, toda tristeza e toda solidão! Alguém deu-lhe um beliscão na coxa. Uma voz pastosa pelo uísque especulou sobre o formato de seus seios e


Hoag avançou, arrancando o xale que lhe cobria os ombros. Cruzando os braços defensivamente diante do corpo, Bridget lançou-lhe um olhar de puro ódio. Rindo, Hoag deu uma cotovelada no homem em pé ao lado dele. — Já viram um tesouro igual, minha gente? Não tem dois melão mais bonito, nessas colônias.— Jogando o xale sobre o esteio do telhado, que já estava cheio de armadilhas, presuntos e fardos de tabaco dependurados, ele se voltou para os homens. — Vamo, não escondam o que têm do velho Bóris. Mostrem o que têm de melhor, porque é isso que ela vai custa, garotada. Newcomb tá em primeiro lugar, por causa da linda pele de castor. Pena Amarela tá em segundo, por causa do tamanho daquela pele de Lontra. Quando aquela vela apaga, a disputa tá encerrada. Por isso, se alguém ainda tem alguma coisa pra mostra, é melhor mostra logo ô num vai pô as mão na minha florzinha. A agitação redobrou, enquanto vários homens comparavam seus fardos com os dos outros. Os que tinham escondido algumas peles melhores, na esperança de não ter de entregá-las a Hoag, saíram apressadamente, voltando logo em seguida. Acima do clamor, soou a voz grave de Bóris: — A vela tá acabando, minha gente! Não vai demora muito pro vencedor pega seu prêmio. O resto pode fazê fila e espera a veiz, enquanto eu guardo tudo isso no meu depósito. Eles estavam se aproximando cada vez mais dela. O tal de Newcomb avançou mais, e Bridget fitou-o, apavorada. O sujeito tinha um hálito nauseante e respirava com dificuldade. De repente, ele sorriu, revelando tocos enegrecimentos de três dentes. — Mulhê, cê vai ganha um prêmio! Luthor Newcomb vai ti dexá loca, antes da noite termina. Eu sei uma ou duas coisinha sobre os lugar certo di acaricia mulhé. Acima do barulho ensurdecedor, Bridget ouviu o riso estridente de Sudie. Gemendo baixinho, ela fechou os olhos. Ia vomitar. A não ser pelos peles vermelhas que tinham entrado na última meia hora, dois deles de aparência bastante familiar, apesar de não poder vê-los direito daquela distância, não havia um único homem no salão que desse a impressão de ter tomado um banho nos últimos doze meses. Naquela atmosfera fechada, com o mau cheiro de centenas de peles, uísque, tabaco e corpos suados e sujos, o ar era tão ruim quanto o da cela comum de Newgate. A rajada de vento frio e o silêncio repentino fizeram Bridget abrir os olhos. Uma onda de excitamento correu pela multidão, como a tensão que toma conta do ar, um pouco antes de uma tempestade violenta. Outra pessoa tinha entrado no salão, mas a parede humana que a rodeava impedia que visse quem era. De repente, a multidão deu a impressão de dissolver-se. Uma figura alta avançou até parar diante dela e


Bridget piscou para clarear a visão. Só podia estar sonhando. Sem dúvida, sua alma havia procurado a fuga que fora negada a seu corpo. — Kinnahauk? — murmurou. Não houve resposta. Foi como se não tivesse falado. Então, era sonho mesmo. Fantasma ou não, ela teria caído nos braços da figura diante de si, se ele não tivesse recuado naquele momento, para colocar no chão um enorme fardo de peles. Só aí seus olhares se encontraram, os dele mandando uma mensagem que ela foi incapaz de interpretar. Choque? Surpresa? Desgosto? Envergonhada por estar sendo vista por ele naquela posição, Bridge. encolheu-se ainda mais. Talvez ele não a tivesse reconhecido. Ela ouvira uma das mulheres de Albemarle dizer que, em sua opinião, todos os peles vermelhas eram iguais, tinham a mesma aparência. Será que os peles vermelhas não pensavam o mesmo, em relação aos brancos? As três penas de Kinnahauk roçaram um dos esteios do telhado, quando ele se virou e encarou o enorme mercador. — Sou Kinnahauk de Croatoan — declarou, com ar frio e arrogante. — E esta mulher é minha. Kinnahauk amaldiçoou-se por abrir o jogo tão depressa. Havia planejado com tanto cuidado o que dizer, quando cruzavam as águas velozmente, em direção ao posto de trocas. Porque roubar uma mulher olhos brancos debaixo do nariz de homens como aqueles podia ser mais perigoso que atravessar um ninho de cobras de boca branca, durante a Lua da Canção, quando elas enlouqueciam devido ao acasalamento. — Espera á sua veiz, diabo vermelho — Hoag replicou, cutucando o fardo de peles com a ponta do pé. — Abre isso. Vamo vê si tem alguma coisa aqui, qui valha a pena olha. Eu conheço os Hatie. Não têm nada, em cima de dois o quatro pé, qui valha mais qui umas conta de vidro. Bridget viu os olhos de Kinnahauk arderem diante do insulto. Ela mesma gelou, apesar do calor daquele salão superlotado. Kinnahauk fez um sinal com uma das mãos. Um dos homens encostados à parede avançou. Graveto Torto! Bridget não conteve uma exclamação abafada, mas ele não deu mostras de tê-la reconhecido. Com um movimento rápido, tirou a faca e cortou as tiras de couro cru, que prendiam o fardo de peles. Embora elas tivessem sido curtidas à moda índia, sua boa qualidade era evidente. — Castor, hein? — Hoag grunhiu. — Num é a melhor qui já vi, mas num é a pior.


— É a melhor — rebateu Kinnahauk, com firmeza. Nem uma vez, ele olhou na direção de Bridget. Newcomb adiantou-se. — E as minha? As minha sao melhó qui as sua, seu vermelho intrometido! Kinnahauk levantou uma das mãos. Vendo o sinal, outro dos Hatorask avançou, com mais um fardo de peles. Depois de colocá-lo no chão, voltou a se mesclar com a multidão que lá estava. — Abra — Hoag mandou, os olhos pálidos cheios de avidez. — Primeiro quero examinar a mulher. Pode ser que ela não valha nada. — Não valha nada?! — Hoag esbugalhou os olhos, de indiganação. — Ela é carne de primeira! Intocada, mas pronta pra sê colhida. Juro qui num tem outra igual em toda essas colónia! Kinnahauk rodeou vagarosamente o barril, sobre o qual Bridget estava sentada. Como que reconhecendo seu direito de assim fazer, os caçadores recuaram, abrindo passagem. Uma vez ele a tocou, dando a Bridget a impressão de estar sendo marcada de novo. Afinal, virouse para Hoag, com ar de pouco caso. — Paugh! Magra demais — declarou, estendendo as mãos para pegar os fardos de pele. Boquiaberta, Bridget fitou as costas largas de Kinnahauk. Lágrimas inundaram seus olhos e ela começou a achar que tinha enlouquecido. Seria possível que Kinnahauk tivesse mudado tanto, em tão pouco tempo? E ela? Seria possível que ele realmente já tivesse esquecido? Como que temendo a perda de seu extraordinário lucro, Hoag pulou em defesa de Bridget. — Mesmo num tendo muita carne, ela é forte e tem muita energia! — Ela é marcada e tem a pele cheia de manchas. Não vale as peles de castor. Nem as de lince branco. E muito menos... — Lince branco?! — Hoag repetiu, incrédulo. — Dois lince branco? Ignorando a interrupção falou: — Vou conseguir mais peage por elas, do homem chamado Batts. — Mas ele ainda nem monto o negócio. E vai sê bem longe daqui. — Um dia de viagem não é nada. Eu vou.


Conversando com os homens que tinham lhe vendido as melhores peles, Kinnahauk ficara sabendo que um novo posto de trocas seria aberto, na junção de dois grandes rios, mais ao norte. Para lidar com os olhos brancos, era preciso seguir as regras dos olhos brancos, rebaixando-se a mentir e ignorar a própria honra. Pensando nisso, ele pegou o fardo fechado e fez sinal a Graveto Torto para pegar o outro. Nem por um instante olhou para sua oquio, com medo de perder o controle e matar todos os olhos brancos daquele lugar tocando fogo no posto. De repente, em meio ao silêncio que tinha caído no local, um trovão ribombou. — Espera! Deixa um hôme vê o qui ele tá comprando, pele vermelha! Abre o outro fardo. Pode sê qui a gente chegue num acordo. Como se pouco lhe importasse de um jeito ou de outro, Kinnahauk depositou o fardo no chão e fez sinal a Graveto Torto para abrí-lo. Um murmúrio ergueu-se da multidão, quando várias peles de mink, tão espessas que brilhavam mesmo à luz mortiça do ambiente, deslizou para o solo, seguidas por duas peles de lince albino. Hoag caiu de joelhos, as mãos enormes estendidas sobre os inacreditáveis tesouros, como se tivesse medo de tocá-los. O que aquele índio arrogante trouxera sobrepujava tudo que já vira em sua vida, desde que conseguira se livrar do laço do carrasco e se mudara para Albemarle, doze anos atrás. As peles de mink eram tão brilhantes quanto o gelo molhado, as de castor eram extraordinariamente espessas, e as de lince... Droga, ele nunca vira uma pele de lince branco antes, quanto mais um par quase igual! Hoag detestava ter de negociar com os selvagens, mas lucro era lucro e a verdade era que os malditos podiam caçar, lutar e assentar armadilhas melhor dom que qualquer homem branco do território. Assim, como ele não estava naquele negócio pelo prazer de perder a própria camisa... — Vô lhe dizê uma coisa, vermelho: eu pago o preço mais alto pelo seu fardo e lhe dô uma hora inteira no quarto dos fundos, com a mulhê. Um cara novo e macho como você vai tê tempo di si refresca nela umas cinco vez, pelo menos. Se fosse preciso, ele até bajularia o idiota do pele-vermelha, para ficar com aquele fardo. O infeliz não tinha nada a perder, já que provavelmente roubara tudo. Kinnahauk fingiu refletir. — A mulher é marcada. Não vale muito. — Num tem uma marca nela, além da do rosto. E no escuro isso não vai importa. Ela é de primeira, garoto. Si eu quisesse vende, uma mulhé branca como ela ia me rende uma fortuna!


Os dedos de Kinnahauk avançaram em direção à faca, presa em sua cintura. Um dia ele ainda teria o prazer de arrancar o fígado daquele homem e jogá-lo aos abutres. Até lá, no entanto, precisava participar daquele jogo mortal com todo cuidado. Sabia muito bem dos riscos que corria um homem vermelho, ao se misturar com os olhos brancos e reclamar uma das mulheres deles. Mesmo sem estarem bêbados e com o sangue fervendo de desejo, os olhos brancos eram traiçoeiros. Para eles, tanto fazia matar pela frente quanto pelas costas. Kinnahauk lançou um rápido olhar pelo salão, examinando os homens que esperavam pelo seu sinal. A tensão no ar era tão grande que ficava quase impossível respirar. De repente, Hoag se viu fitando um par de olhos frios e lembrou-se de um gato selvagem, que vira um bravo Mattamuskeet capturar. Só que os do Hatorask eram mais frios. E mortais. — Kinnahauk não compra o uso de prostituta de homem branco. Quero um tanto assim de peage — com um gesto conciso, ele indicou um palmo — pelas peles de castor. Pela mulher, eu lhe dou as peles de lince. E ela vai comigo. Quando não me interessar mais, vai servir de escrava para as mulheres da minha aldeia. — Tá muito enganado, si pensa qui vou deixa você fica com ela! — Hoag rugiu. A troco di quê vô deixa um índio fedorento saí daqui com uma coisa qui é minha, quando posso vende ela pra mais de cem hôme, antes de acaba cum ela? Kinnahauk deu de ombros. Mais uma vez, começou a juntar as peles, enquanto Hoag despejava uma fileira de palavrões. Newcomb, muito bêbado, resolveu acompanhá-lo e, em seu entusiasmo, tropeçou nas peles de Pena Amarela. Foi prontamente arrancado de lá, por um pontapé certeiro. Kinnahauk fingiu ignorar tudo, embora estivesse ciente de cada movimento no salão. Alguns dos homens presentes, vermelhos e brancos, odiavam Bóris Hoag o suficiente para quererem vê-lo levar a pior, mesmo que para isso tivessem de perder a chance de abocanhar o prêmio da noite. Quantos eram, no entanto? E quais? Ele não tinha coragem de olhar para a mulher, por medo de desencadear uma guerra. Uma voz pastosa gritou um comentário insultuoso sobre homens vermelhos e fêmeas animais e um silêncio inquietante envolveu o local. De repente, os homens que um momento atrás estavam recostados às paredes sumiram. Exclamações abafadas foram ouvidas. Dois corpos deslizaram para o chão. Se de muita bebida ou por terem sido repentinamente privados de ar, ninguém sabia. E ninguém se importava. Todos os olhos estavam fixos nos dois homens que se encaravam, no meio do salão. — Existe um homem chamado Nathaniel Batts. Me disseram que ele vai pagar um bom preço pelas nossas peles. Se este homem, o Hoag, trata vocês bem, não vão precisar de outro comprador — Kinnahauk falou, alto e claro o bastante para que todos entendessem.


— Mesmo assim, quero que saibam que o Batts, além de pagar pelas peles, vai fornecer tudo o que é preciso para os caçadores que trabalharem para ele. Graveto Torto fez sinal a Kuntewah, que fez sinal a outro de seus irmãos. Os dois homens recomeçaram a juntar os fardos. Logo, os caçadores brancos que ainda estavam sóbrios o suficiente para isso começaram a juntar seus fardos. — Kumtewah! Nariz Azul! Espere aí! Ele tá mentindo! Alguma vez eu já menti pra vocês? O qui é que vocês tão fazendo?! Ninguém respondeu, e Hoag xingou. Só Deus sabia como o maldito conseguira aquilo, mas todos os caçadores estavam prontos a seguí-lo, deixando ele, Hoag, sem nada em troca de todo o trabalho que tivera! — Seus maldito fedorento! E ainda nem pagaram pelo qui beberam! Volta aqui, Pearson! Faz mais di oito ano qui eu compro as suas pele. Saia por aquela porta e eu juro qui num vai vende mais nem uma pele pra mim! Como se nada estivessem ouvindo, Pearson e os outros continuaram a refazer seus fardos. Hoag enlouqueceu. Não conseguia acreditar no que estava vendo. Como um bando de estúpidos carneiros, estavam todos dispostos a seguir o pele vermelha rio acima e vender todas as peles ao tal de Batts! Bridget encolheu-se ainda mais em cima do barril, pouco percebendo do que acontecia à sua volta. Tinha as mãos e os pés frios como gelo. Seu coração parecia uma pedra, no peito. Quantas vezes, em sua vida, perdera toda a esperança? E quantas vezes, contra tudo e contra todos, vira sua esperança renascer? No momento, sua última esperança estava acabando de juntar um fardo de peles e se preparava para sair pela porta. E o pior era que ela nem tinha vontade de continuar vivendo. Kinnahauk a destruíra como se tivesse atingido seu coração com uma faca. Newcomb avançou, aos tropeções, e fitou-a com lascívia. — Carne branca num é pra sê desperdiçada cum selvage. Tô certo ô num tô, Pearson. Esta mulhê é minha! A maré começou a virar, quando outro homem avançou para discutir com ele. — Eu tenho duas vezes mais pele de castor. E de primeira qualidade. Ela é minha! De repente, os dois estavam no chão, e Kinnahauk estava em pé, diante dela. Sem a menor cerimônia, ele a ergueu e jogou a no ombro, como se não passasse de um feixe de capim. Lutando, Hoag começou a abrir caminho entre e multidão. — Tá bem, fica cum ela, seu índio ladrão! — gritou. — Pega ela logo vai embora! Já tô mesmo cansado de olha pra ela!


— Você tem de me pagar — declarou Kinnahauk com firmeza. — Paga?! Você já vai fica com ela! O que mais pode querê, seu índio sem vergonha? Já num chega te virado todos eles contra mim? A minha própria gente? — Você me paga — Kinnahauk repetiu, sem se alterar. A multidão imobilizou-se, mas era uma imobilidade perigosa, como a de uma cobra antes de dar o bote. — Pega, então! Hoag jogou uma certa quantidade de peage para ele. Do tipo claro, não do escuro, mais valioso. Kinnahauk deu de ombros e prendeu-o ao cinto. Estava em débito com TausWicce, pelas peles de lince branco. Então, com ar altaneiro, percorreu o caminho que tinha se aberto, como que por mágica, diante dele. Só quando eles estavam do lado de fora Bridget começou a respirar novamente. E, mesmo assim, com dificuldade, pois continuava sobre o ombro de Kinnahauk. Quando ele se pôs a correr, gritou, pedindo para ser colocada no chão. Para sua surpresa, conseguiu o que queria. Aliviada, deslizou pelo corpo dele e sentiu, por um rápido segundo, que era abraçada com força. O barulho dentro do posto de troca aumentou. Quando eles estavam a meio caminho do rio, a porta abriu-se bruscamente e a multidão surgiu, gritando pela feiticeira branca. Agarrando a mão de Bridget, Kinnahauk disparou. Deus do céu, o pesadelo estava recomeçando! A multidão ainda não os vira, mas a qualquer momento seriam descobertos, pois relampejava sem parar. Bridget notou que seis guerreiros seminus colocavam-se entre ela e o resto dos Hatorask. Graveto Torto ajoelhouse no chão, trabalhando em algo impossível de se ver. — Depressa! — Kinnahauk exclamou, empurrando-a para a frente. —Vá andando, que eu logo alcanço você. Decidindo que sua curiosidade teria de esperar, Bridget correu para a canoa, ajoelhando-se na proa e empurrando-a para longe da margem. E bem em cima da hora. A multidão já os vira e vinha atrás deles, expressando sua raiva aos berros. — Kinnahauk! — ela chamou. — Depressa! Corra! Foi quando várias coisas começaram a acontecer, ao mesmo tempo. Um relâmpago iluminou o céu, dando-lhe um tom pálido e rosado. Parecia que o próprio universo havia se partido, com a violência da descarga elétrica. Na escuridão impenetrável que substituiu a claridade cegante, uma série de bolas de fogo cruzou a noite em direção ao posto de troca, uma atrás da outra, até o telhado de Hoag estar inteiramente em chamas. Um homem gritou alguma coisa sobre feitiçaria. Outro


berrou alguma coisa sobre seu fardo de peles. Mas o som das vozes se perdeu em meio ao rugido do fogo, quando uma rajada de vento soprou, aumentando-lhe a violência.

CAPÍTULO XXIV

Bridget tremia incontrolável quando as outras canoas surgiram, silenciosamente, a seu lado. Kinnahauk passou para sua embarcação sem causar uma única onda na água do rio e Graveto Tono inclinou-se sobre o pequeno espaço para entregar-lhe um pesado roupão. Ela agradeceucom um sorriso tenso. Em terra, o fogo iniciado pelas flechas incendiárias estava completamente fora de controle. Figuras diminutas, meras silhuetas contra o edifício em chamas, corriam de um lado para outro, em absoluta confusão. Em pânico, cavalos disparavam, alguns arrastando carroças atrás de si e eram perseguidos por homens frenéticos, aos gritos. Ninguém tinha tempo para pensar num punhado de peles vermelhas e numa mulher branca, — Vamos embora deste lugar, que ofende as minhas narinas. — disse Kinnahauk. Na proa, meio ajoelhado, meio sentado, ele cortava a água com reinadas silenciosas e velozes, colocando sua canoa à frente das demais. De repente, três relâmpagos assustadores iluminaram o céu, seguidos por um trovão ensurdecedor. Abraçando os joelhos, Bridget encolheu-se toda, como que esperando ser atacada por Hoag, a qualquer momento. — Eu preferia ficar e acabar o que começamos — comentou Chama o Corvo, num tom que soou estranho aos ouvidos de Bridget. Naquela noite ela vira um lado novo dos pacíficos Hatorask, um lado que nunca pensara que existisse. — Nós vamos embora. Está acabado. Hoag e o tal de Newcomb estão acabados. Há muito tempo seus espíritos voaram para longe, a fim de escapar de seus corpos podres. Olhar nos olhos deles é ver a morte, e da morte não há escapatória. Bridget reconheceu a verdade do que Kinnahauk dissera. Estremecendo, ela apertou mais o roupão em torno de si. — Ninguém vai cantar a canção da morte para eles - comentou Graveto Torto. — Ninguém — concordou Kinnahauk, solenemente. — Os homens que vieram por causa da waurraupa shaman vão pegar o que o fogo não destruir e procurar Batts. Ou outro comerciante qualquer. Newcomb não verá a Lua da Plantação. Ele tem a doença da respiração. E Hoag vai morrer aos poucos, vítima da própria ambição. — Eles não sabiam que a waurraupa shaman era sua oquio!


— Não. Nem TausWicce sabia. TausWicce. Era esse o nome do homem que a salvara e levara até Hoag. Em meio à escuridão, Bridget olhou de um homem para o outro. As canoas moviam-se silenciosamente, separadas por uma pequena distância. Então, as duas que pertenciam aos estranhos adiantaram-se e a que levava Graveto Torto e Chama o Corvo posicionou-se atrás da canoa de Kinnahauk. A mente de Bridget estava cheia de perguntas, mas ela sabia que era melhor dominar sua curiosidade, pelo menos por enquanto. Não tinha a menor ideia de para onde iam ou quem eram os estranhos. Quando outro clarão iluminou o céu acima deles, encolheu-se instintivamente. Ao longo da praia, destacavam-se as silhuetas escuras das árvores, cujos galhos pareciam, braços escondidos para o alto. À visão do rosto de Kinnahauk, revelado polo clarão momentâneo, seria algo que carregaria para sempre, guardado em sua memória. Ao entrar no posto de troca, Kinnahauk lhe parecera frio e arrogante. Agora, estava sério, com uma expressão quase que de dor, com os lábios comprimidos e a mandíbula rígida. O que podia ter acontecido para fazê-lo mudar tanto, transformado-o do homem que amava naquele estranho distante? Tanto Doce Água quanto Soconme tinham lhe dito que, desde criança, Kinnahauk fora moldado para ocupar a posição que um dia seria dele. Enquanto as outras crianças brincavam do caçadas e guerra, ele se sentava, em conselho, com os homens mais velhos da aldeia. Na companhia de um professor, ele viajara para o lugar onde a terra se ergue e encontra o céu: a terra dos Cherokees. Enquanto outros jovens faziam uso da liberdade e alegria da infância, Kinnahauk aprendia a ser um líder justo e sábio, capaz de governar bem seu povo. Muitas vezes, Bridget tivera rápidos vislumbres do rapazinho que Kinnahauk devia ter sido. Ela o vira jogar a cabeça para trás e rir, enquanto cavalgava Tukkao ao longo da praia, a todo galope. Vira o orgulho que ele não era capaz de disfarçar totalmente quando voltava para casa com o maior gamo ou o melhor peixe. Vira-o segurar a cabeça de um corça, cujo coração arrebentara de horror, quando ela caíra num atoleiro. Ele ficara com ela, até os enormes olhos aveludados assumirem o ar vidrado da morte. Os olhos dele tinham se enchido de lágrimas e Bridget havia se afastado depressa, para evitar que ele percebesse que tinha presenciado aquele momento de fraqueza. Outro trovão ribombou por cima da água revolta, como se os céus estivessem zangados. Com o rosto sério de Kinnahauk ainda impresso em sua mente, Bridget prendeu a respiração. Enquanto as frágeis canoas deslizavam pelo rio, sob a terrível tempestade que se formava, seu único desejo era jogar-se nos braços de Kinnahauk e ficar lá, protegida pelo calor e a força dele. Mas não teve coragem, pois ainda não estavam a salvo. Ela ainda não podia acreditar que ele falara a sério quando dissera a Hoag que seu destino seria ser usada e, depois, entregue às outras mulheres. Não fazia sentido, pois as mulheres da aldeia eram todas suas amigas. A não ser


por uma. Além disso, apesar do esforço que Lontra Cinzenta fizera para enganá-la, sabia que os Hatorask não mantinham cativos. Bridget estava cansada demais para pensar. Tremendo incontrolavelmente, apesar do roupão e da corrente de ar quente, trazida pela tempestade, ela lutava contra as lágrimas, censurando-se pela vontade de chorar. Se não havia chorando durante o leilão, por que chorar naquele momento, quando tudo já estava acabado? Outro relâmpago permitiu que ela visse o tórax nu de Kinnahauk e o fitasse dentro dos olhos. Uma rajada de vento jogou seus cabelos sobre o rosto e ele se inclinou para afastá-los, roçando a ponta dos dedos em sua face molhada. — Está com medo da tempestade, pequenina? — ouviu-o perguntar, a voz cheia de suavidade. — Claro que não. É só uma chuva mais forte. O sal da água é que entrou nos meus olhos. Para sua surpresa, ele sorriu. Por um rápido momento ela vislumbrou os dentes muito brancos, mas foi o bastante. De súbito, apesar do futuro incerto, da tempestade ameaçadora e da barriga vazia, seu estado de espírito melhorou tremendamente. A névoa começou a cobrir a superfície escura da água, agrupando-se de forma mais intensa em volta do tronco das árvores, na praia. Relâmpagos intermitentes revelavam a silhueta dos esbeltos pinheiros e os galhos angulosos dos ciprestes, desfolhados pelo inverno. — Para onde você está me levando? — Bridget perguntou. — Vamos parar logo. A chuva vai seguir o vento. Sem o menor sinal de aviso, as quatro canoas enveredaram por uma abertura estreita, indo dar numa baía pequena, rodeada por enormes cedros brancos. Seu cheiro perfumava o ar. Os estranhos arrastaram suas canoas pela margem baixa e sumiram na escuridão, sem nada dizer. Antes que as primeiras gotas de chuva começassem a cair, os homens já haviam construído três abrigos, com galhos entrelaçados. Bridget encolheu-se debaixo de um deles, enquanto Kinnahauk, Graveto Torto e Chama o Corvo ocupavam o segundo, o terceiro ficou para os Poteskeets, que nessa altura já tinham sido apresentados a Bridget. Todos eles conversavam baixinho, entre si e ela acabou por adormecer, aquecida pelo roupão que Kinnahauk estendera sobre seu corpo. O sol já ia alto quando Bridget acordou. O cheiro de fumaça de madeira e carne assando fez sua barriga roncar e ela bocejou abertamente. Logo Kinnahauk apareceu, convidando-a a comer. Foi só quando Bridget já se havia lavado e devorado o coelho caçado por Chama o Corvo que ela percebeu que o grupo de homens havia diminuído. — Onde estão os outros? — perguntou, limpando os dedos, delicadamente, na barra do vestido.


— Meus amigos de Pásquinoc foram embora para casa. Nós também vamos. Graveto Torto e Chama o Corvo já estão arrumando tudo. Mais uma vez, os olhos de Bridget se encheram de lágrimas. E ela não podia dizer que a culpa era da fome, pois seu estômago estava cheio de coelho assado, além de pão de milho e nozes, que havia sido preparado pelas esposas de TausWicce. — Não sei por que estou tão mole — murmurou, com voz chorosa. — Eu queria agradecer a eles. Ainda nem lhe agradeci ter ido atrás de mim, também. — Achou que eu não iria? O tom de Kinnahauk foi baixo e suave. Tão suave que ela se arrepiou da cabeça aos pés. — Kinnahauk... Por quê? Por que você me abandonou? - De repente, Bridget estava desesperada para saber. Kinnahauk levantou a cabeça, permitindo que o sol batesse em seus olhos fechados, por um instante. Depois, começou a falar. — Um homem só é verdadeiramente dono de sua honra, Bridgetabbott, porque todo o resto pode lhe ser tirado. Eu sou Kinnahauk, werowance de todos os Hatorask. Quando os primeiros ingleses chegaram, eram muitos homens e rapazes, uma menina e algumas mulheres. Nossos avós os receberam em suas oukes e em suas vidas. Muitos, entre os olhos brancos, tomaram nossas moças como esposas, mas vários deles não gostaram de viver onde não podiam fazer plantações. Esses, então, atravessaram o Mar Interior e foram viver com nossos irmãos do continente. Mais tarde, outros saíram à procura do ouro do homem branco e hoje estão por aí, espalhados como as sementes da floresta. Muitos acabaram voltando para Croatoan, decididos a esperar seu chefe, que viria do outro lado da Grande Água. Eles aprenderam a caçar e pescar. Suas crianças se tornaram nossas crianças. Eles aceitaram nossa liderança, pois seus chefes nunca voltaram. O som de pássaros ecoou através da escuridão verde da floresta. Os raios de sol transformaram as gotas de chuva que cobriam as folhas em pequeninos cristais. O cheiro gostoso de terra molhada enchia o ar. — Nosso povo está dividido. Os Hatorask do continente já me pediram, muitas vezes, para ir morar com eles. Eu não posso fazer isso, mas tenho de ter força bastante para guiar todos os que me chamam de werowance. Eu já aprendi muito, Bridgetabbott, mas não sei quase nada de mulheres. Isso foi uma coisa que só descobri há pouco tempo. O que eu sabia, mesmo, é que quando um homem perde sua honra não tem mais forças. Mesmo sem as três penas que eram o sinal de sua alta posição na tribo e que ele removia, quando dormia, Kinnahauk nunca tivera uma aparência tão altiva. Fitando-o, Bridget não


pôde deixar de pensar que ninguém jamais poderia questionar a honra e a força daquele homem. — Um homem de honra não toma uma mulher que pertence a outro, Bridgetabbott. O homem chamado David Lavender não tinha reclamado você, mas ele havia pago seu preço de noiva. Eu fiz o que a honra exigia. Honra? Honra era a última coisa na qual Bridget pensava quando Kinnahauk segurou-lhe as mãos e começou a acariciar a pele clara de seus pulsos. — Eu já não sou mais a garota assustada que foi dar na sua praia, tanto tempo atrás — disse baixinho. — Sei que ninguém pode ser dono de outra pessoa, mas acredito que uma pessoa pode se dar a outra, de livre é espontânea vontade.

— As velhas crenças têm valor, Bridgetabbott — Kinnahauk insistiu. — Você é uma mulher de grande valor. Todos, na minha aldeia, sabem disso. Doce Água a chama de filha. Soconme quer que você aprenda com ele para ser feiticeira de nosso povo, quando o espírito dele voar para longe. — E você, Kinnahauk? — Para mim, você tem o valor que não dá para ser expresso em palavras. Mesmo que eu capturasse mil cavalos, não teria o suficiente para pagar por você. — Inesperadamente ele sorriu, enrugando os olhos daquele modo que ela aprendera a amar tanto. — De qualquer maneira, se existissem mil cavalos para serem capturados e eu conseguisse capturar todos, não teria uma canoa grande o suficiente para carregá-los. Bridget não se preocupou mais em esconder seus sentimentos. — Você nunca precisou de mil cavalos, Kinnahauk. Nem mesmo de um. Eu sou sua desde o dia em que me tirou da água e me levou para sua aldeia, queimada de sol e cheirando mal. Kinnahauk respirou fundo, inalando o cheiro de resina no ar, sentindo-se tão alto quanto a árvore mais alta, tão forte quanto a tempestade da noite anterior. Estava feito. A mulher era sua. Aquela coisa que os olhos brancos chamavam de amor... Ele não sabia bem como afetava um homem. Havia muitas palavras para descrever sentimentos, mas nenhuma tão forte a ponto de descrever o que sentia quando olhava para ela. Ou pensava nela. Ou quando a tocava. Ou para descrever o que sentira quando pensara que a tinha perdido. — Eu vou lhe dizer uma coisa, depois não vamos mais falar nisso. TausWicce me contou o que ficou sabendo do homem chamado Haraish, que levou você da aldeia. Karnisb disse que


Lontra Cinzenta falou por você pedindo um lugar na canoa dos olhos brancos e que os homens com quem ele a deixou foram mortos pelos Tuscarora. Kinnahauk não contou tudo que TausWicce lhe dissera, antes de ficar sabendo que Bridget era sua mulher: do modo cruel como ela fora amarrada, do vestido rasgado e do seio ensanguentado. Ouvindo, ele sentira o próprio coração morrer mil vezes. E sentira vontade de matar o amigo por não tê-la levado com ele e cuidado dela em sua aldeia, embora soubesse que se um inglês visse TausWicce com uma mulher branca toda rasgada e ensanguentada, na certa morreria. Não só ele, como todos os guerreiros e possivelmente o resto da aldeia. No entanto, mesmo diante de tudo aquilo, a Voz que Fala Silenciosamente dissera a Kinnahauk que sua oquio ainda estava viva. Mas por quanto tempo? Quanto uma mulher frágil como ela era capaz de aguentar, antes de perder a razão? Ele se resignara a levar o que sobrasse de Bridget de volta para a aldeia, onde cuidaria dela pelo resto de seus dias. Talvez futuramente ainda arranjasse uma esposa, pois um homem precisa de filhos. Mas nenhuma outra mulher teria seu coração, pois o coração só é dado uma vez. E o seu fora dado a Bridgetabbott. Só quando Bridget puxou a mão, Kinnahauk percebeu que lhe apertava os dedos brutalmente. Inclinando a cabeça num gesto que nada tinhade altivo, ele se desculpou: — Acho que muitas luas vão se passar antes que eu possa dormir sem segurar você com força, em meus braços. Vou seguir você por toda parte como um animalzinho domesticado, até que se canse de ver o meu rosto. Desta vez foi Bridget quem apertou a mão dele. Depois, rindo baixinho, ela murmurou: — Daqui a cem anos, talvez eu já esteja cansada de ter você por perto. Mas não se preocupe que vai saber logo, pela minha língua ferina. Ele sorriu, divertido. Depois, levantando-se, ajudou-a a fazer o mesmo. Bridget pousou as mãos no peito de Kinnahauk, as pontas dos dedos movendo-se sobre a pele macia e viçosa, que conservava o calor mesmo nos dias mais frios. — Kinnahauk, o que vai acontecer com Lontra Cinzenta? Ela disse... Olhe, ela me contou... — Lontra Cinzenta gosta de causar encrenca. Ela torce as palavras até elas perderem o significado correto. — Você não a ama? Não a quer para sua primeira esposa? - Kinnahauk apertou os olhos, até o tom dourado ficar quase invisível. Com a amargura de antes, disse:


— Mesmo antes de encontrar você, eu não a queria, Bridgetabbott. Só, há uma pessoa que eu quero, uma mulher que será a minha esposa, uma mulher com quem vou dividir a minha ouke e que será a mãe de meus filhos. Mas Bridget continuou preocupada. Acariciando-lhe ternamente o rosto, Kinnahauk prosseguiu: — Está na hora de mandar Kokom viver com os Hatorask do continente. Sob a minha orientação, ele vai liderar nossos irmãos. Será chamado de Winneewau, que é um título de grande valor. — E Lontra Cinzenta? — Irá também, como esposa dele. Kinnahauk não acrescentou que tinha mandado Graveto Torto e Chama o Corvo irem na frente para Croatoan, levando uma mensagem: Lontra Cinzenta não deveria aparecer na sua frente, pois se a visse ele na certa se sentiria tentado a tirar-lhe a vida com a próprias mãos. — Mas chega de falar — ele murmurou, segurando as mãos de Bridget e fitando-a como se ainda não acreditasse que a tinha ali, diante de seus olhos. Bridget retribuiu o olhar, examinando o corpo alto e forte, coberto apenas por uma tanga de pele de gamo e um colete, aberto na frente. Kinnahauk não estava mais usando o bracelete de cobre. — Venha, Bridgetabbott. Conheço um lugar onde o sol brilha e a terra é macia e cheirosa. Vamos levar o roupão. De repente, Bridget começou, a ter dificuldade para respirar. Ergueu o rosto para encontrar os olhos dele, mas, em vez disso, encontrou os lábios. Quando, afinal, os dois se separaram, o lugar quente tinha sido esquecido. Kinnahauk inclinou-se, voltando para baixo do abrigo de galhos entrelaçados e levando-a consigo. Ele sussurrava em sua própria língua, usando palavras que ela nunca ouvira. Pelo menos, ela nunca as ouvira ditas daquela maneira. Bridger não poderia se aproximar mais de Kinnahauk. Seu rosto estava apoiado no peito másculo e o cheiro da pele dele, em suas narinas, era mais doce que o das ervas mais doces. Os lábios fortes deslizaram por seus cabelos, tocaram a ponta de uma de suas orelhas e foram se deter em sua testa. — Pensei que nunca fosse ver você — ela sussurrou, tendo novamente aquela sensação agoniante de perda. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Sofrera muito, pensando que ele não a queria, mas aquele sofrimento não era nada, comparado à tortura de estar nos braços dele e saber o quanto estivera perto de perdê-lo. — Kinnahauk, ainda não sei por que você foi embora, sem me dizer nada.


Com todo cuidado, Kinnahauk colocou-a sobre o roupão e deitou-se, tomando-a nos braços. Ficou imóvel por alguns instantes, depois, cheio de delicadeza, começou a abrir-lhe o corpete do vestido. — Não sabia que eu ia voltar para você? Não viu o que eu deixei? Não viu o símbolo da minha promessa? — Não vi nada. Quando acordei, você não estava mais lá e Lontra Cinzenta... — Bridget respirou fundo, tentando perdoar o imperdoável. Afinal, sussurrou: — Dá quase para sentir pena dela, Kinnahauk. Você nunca... — Não, meu amor. Nunca! — ele exclamou baixinho, com um traço de divertimento na voz grave. — Pelo menos, nunca com Lontra Cinzenta. Quem quer sobreviver tem de aprender a evitar armadilhas, mesmo que a isca seja apetitosa. Bridget pôs-se a lhe acariciar as costas, enfiando as mãos por baixo do colete para atingirlhe os ombros. Em seguida, desceu pelas costas até encontrar a barreira da tanga de pele e o cabo de uma faca. Sem hesitar, tirou-a e colocou-a de lado. Não era daquela a arma que ele precisaria. Kinnahauk roçou os lábios nos de Bridget, num beijo suave. Ela estremeceu. — Não gosto deste vestido. Sem levantar o rosto, ele terminou de abrir o corpete do malfadado vestido. Quando ela sentiu as mãos dele nos bicos sensíveis de seus seios, não conteve uma exclamação abafada. A sensação era deliciosa e parecia irradiar-se para todas as partes de seu corpo. Kinnahauk aproveitou o fato de os lábios de Bridget estarem entreabertos para beijá-la melhor, a língua procurando a dela. O cheiro da pele feminina incendiava seu sangue de tal forma que ele teve de lutar para não penetrá-la precipitadamente. Só o calor daquela mulher poderia aliviar sua agonia intolerável. Delicadamente. Ele precisava agir delicadamente, pois ela sofrera muito nas mãos daqueles homens. Não queria assustá-la. E a espera seria gostosa, pensou consigo mesmo, procurando convencer seu impaciente membro viril. Mas à medida que o calor do corpo dela atingia o seu, embriagando-o mais depressa que a mais potente das bebidas alcoólicas, começou a perder o controle. Bridget mexeu-se, arqueando o corpo e entreabrindo as coxas. Kinnahauk fechou os olhos, incapaz de conter um gemido. — O que foi? Está sentindo alguma dor? — Vai passar — ele murmurou, por entre os dentes cerrados, — Não quero apressar você, meu coração. Você sofreu demais. Ficar assim já é o bastante.


Kinnahauk desfez o nó que segurava sua tanga, mas deixou-a no lugar. Então com todo cuidado, introduziu a mão debaixo da saia de Bridget, lamentando não poder livrá-la mais depressa daquelas roupas tão feias. A pele dela era macia como as penas do peito do gavião do mar e ele acariciou-lhe as coxas, subindo sempre, atraído pela beleza daquele corpo de mulher. Cheia de ousadia, Bridget correspondeu aos movimentos da língua de Kinnahauk com a sua, encantada com a textura sensual do corpo que cobria a seu. As carícias faziam com que se movesse, inquieta, e quando a boca dele deixou a sua, deslizando para baixo, passando por seu ombro e capturando um de seus mamilos, não se conteve mais. Completamente arrepiada, começou a gemer comprimindo-se de encontro a ele. Em resposta, Kinnahauk envolveu-lhe mais o seio com a boca. Habilmente, com muito cuidado para não feri-la, ele sugou-o, a língua traçando o contorno no bico sensível, enquanto seus dedos continuaram a deslizar pela coxa sedosa, até encontrarem o que queriam. — Quero ver você sem esses trapos feios. Você não imagina quantas vezes eu a vi na minha mente, desde a última vez que nos encontramos — murmurou com voz rouca. Sem esperar, esquecido de que tinha soltado a tanga, ele se ajoelhou. De imediato, o pedaço de pele de gamo deslizou para o chão, deixando à mostra seu corpo totalmente excitado. Vendo a expressão dele, Bridget riu baixinho. — Eu também o vi muitas vezes com a minha imaginação, meu amor, se bem que não com tanta clareza. — Sehe — Kinnahauk exclamou, rindo apesar do embaraço que sentia. Devagarinho, Bridget ergueu os braços e tirou o vestido. Em seguida, livrou-se das roupas de baixo e tornou a se deitar, fitando-o com ar terno e convidativo. — O meu povo acredita que a semente plantada durante uma tempestade resulta em ótima colheita — Kinnahauk comentou, adorando-a com os olhos e as mãos. — Mas a tempestade terminou. — Com a ponta dos dedos, Bridget acariciou-lhe os ombros, seguindo a linha forte da garganta até roçar-lhe a ponta das orelhas. Então, com os lábios encostados no peito masculino, confessou:— Mesmo assim, eu ainda preciso de você. — Outras tempestades virão, meu amor. E, enquanto os gansos brancos continuarem a voar por cima de Croatoan, eu vou precisar de você. Perdidos em sua felicidade, nenhum deles tomou conhecimento do círculo de homens silenciosos que montava guarda a alguma distância, para protegê-los durante aquele dia e à noite. Era o presente de casamento de TausWicce. O fato de ninguém ter realizado aquele


casamento não tinha a menor importância, pois as palavras necessárias haviam sido gravadas em seus corações. Assim, eles se uniram. Kinnahauk lançou sua semente em Bridget e dessa união nasceu um poderoso quasis, que um dia guiaria seu povo em direção ao futuro. FIM


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