Análise da música Tempo rei1 – de Gilberto Gil Por Givas Demore2 Esta canção nasceu de um pequeno verso da canção “Oração ao tempo” de Caetano Veloso, amigo e parceiro de composição de Gilberto. O verso é, segundo o próprio Gil, “Quando eu tiver saído para fora do teu círculo, não serei nem terás sido”. Nas palavras do próprio Gil essa música “(...) tem uma coisa mais cristã; uma, quem sabe, quimera; um vago desejo de permanência e de transformação”. Esta canção revela um Gil com uma perspectiva existencial, espiritual. Isso se faz muito interessante, pois sabemos que Gil é agnóstico declarado. Não me iludo Tudo permanecerá do jeito que tem sido Transcorrendo Transformando Tempo e espaço navegando todos os sentidos Gil inicia canção com o verso não me iludo, mas antes desses versos há muito que considerar, pois o compositor, explicou na ficha técnica de seu CD (Gilberto Gil, 2006, Luminoso - voz e violão) que a influência em Caetano, especificamente na música “oração ao tempo” que considera o tempo como construtor, mas limita sua percepção à existência humana, foi a propulsora da reflexão de Gil acerca da existência que ocorre no tempo. Gil afirma que não se ilude, pois quando ele partir o tempo continuará a existir e as coisas continuarão a acontecer. O autor revela um determinismo que envolve a noção de que as coisas são de certa maneira e sempre serão como terão que ser. Pães de Açúcar Corcovados Fustigados pela chuva e pelo eterno vento Este verso revela a imponência dos fatores climáticos que açoitam e molestam as grandes construções da natureza. Nem os grandes monumentos criados pela própria “mãe” natureza resistem à ação do tempo. Assim todos estão sujeitos ao tempo. Água mole Pedra dura Tanto bate que não restará nem pensamento Este é um ditado popular que teve seu final omitido propositalmente. A intenção do autor é romper com a construção semântica (o ditado popular) e interromper a duração do tempo contínuo que causa efeitos em todos que se expõem a ele. A ideia é que existimos no tempo e será esse tempo que nos acontecerá até que não sejamos capazes de pensar e senti-lo, porque não haverá existência.
1 Gege Edições / Preta Music (EUA & Canadá) 2
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Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei Transformai as velhas formas do viver Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei O tempo rei que Gil revela e clama é o mesmo que Caetano conclama a realizar seus pedidos em “oração ao tempo”. Gil, ao fazer seu pedido no imperativo afirmativo (transformai), ele revela o seu desejo de transformação da realidade, que por inferência, parece não ser como o autor quer (ou pensa) que ela seja. Não há necessidade de transformar o que é bom, supostamente. Gil revela o que Caetano não revelou: O Deus dos Cristãos e uma devoção católica à virgem maria. A perspectiva de Gil nesta estrofe é antiexistencialista, pois o existencialismo, de Sartre, que Gil admira, coloca o homem como responsável por todos os seus atos sem que haja uma interferência externa: a vontade de Deus, religiosamente falando. Não fica claro se o tempo é reflexo de Deus ou se Gil desejou falar de Deus como criador. Gil, que sabemos ser agnóstico e adepto do candomblé, revela um sincretismo religioso ao fundir devoção a nossa senhora que é católica com a ideia de um Deus único, visto que o candomblé não tem um Deus único. Na verdade não sabemos se o autor, quando utiliza a expressão pai, está se referindo a olorum ou ao Deus Cristão (Yahveh). No fim, Gil pede o que ele ainda não sabe: sabedoria — como pediu Salomão a Deus (Yahveh), segundo a bíblia sagrada — e roga a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, através da rogatória, rogai por nós. Pensamento Mesmo o fundamento singular do ser humano De um momento Para o outro Poderá não mais fundar nem gregos nem baianos Gil revela sua cosmovisão e admiração pelo pensamento humano capaz de análises, de gerar a consciência da percepção do tempo e de que estamos lançados nele. Tudo pode se acabar de modo que não seja mais possível compreender a existência humana! Essa visão está dentro de um contexto que considera a morte. O objetivo é justamente falar do fim da vida e do fim da percepção do tempo. O trocadilho nem gregos e baianos é expresso de forma divertida onde o compositor utiliza o paralelo com o ditado popular “agradar a gregos e troianos”, substituindo o “troianos”, dado a fonética e contexto regional, pela expressão baianos. Mães zelosas Pais corujas Vejam como as águas de repente ficam sujas Não se iludam Não me iludo Tudo agora mesmo pode estar por um segundo
A ideia central desta estrofe é demostrar que mesmo sob o mais atencioso e valioso cuidado as coisas podem ficar ruins e, no contexto da canção, podem deixar de existir. Podem deixar de existir as mães zelosas, os pais corujas e os filhos que são objeto de cuidado dos pais. O verso “vejam como as águas de repente ficam sujas” está dentro de um contexto presente, pois o autor não utiliza os verbos — vejam e ficam — no futuro e sim no presente, denotando que isso é algo que ocorre atualmente. Gil faz um alerta: não se iludam e logo em seguida afirma que tem consciência de que sua existência pode a qualquer momento cessar. É interessante que Gil, que se coloca na canção como agnóstico teista que acredita e Deus, mas não consegue provar sua existência sendo assim ele consegue satisfazer alguns questionamentos como, por exemplo, sobre o pós-morte. Acompanhe a fala do próprio compositor sobre o tema no trecho abaixo.
Por fim transcrevo as palavras do próprio Gilberto Gil: Em todo o meu filosofar popular sobre o existente e o eterno, há sempre uma possível porta aberta pra algo pós. Para mim é muito difícil não crer nos pós sem não crer no pré. Como me é absolutamente impossível anular a existência do anterior a mim, também me é muito difícil aceitar a inexistência do posterior; para mim são coisas iguais. Assim como eu 'não posso esquecer que um dia houve em que eu não estava aqui' (Cada Tempo em Seu Lugar), um dia haverá em que eu não estarei aqui: mas esse dia haverá; haverá o ser das coisas que serão independentes de mim então. Eu não imagino a extinção de tudo com a extinção do meu ego. A morte de todas as pessoas que nós conhecemos até aqui não extinguiu o mundo - nem o que foi anterior a elas, nem o que lhes foi posterior; por que esse milagre aconteceria justo comigo? Eu levaria tudo comigo? (Gilberto Gil, 2006, Luminoso - voz e violão -ficha técnica)
Brasília, 2018 givasdemore@gmail.com Ao citar esta análise, por favor, citar o autor Givas Demore. Abraço!