CRÔNICAS
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NADA NA MANGA
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Bela Branca Rapunzel
Há um valete de copas à minha espera, uma carta está a caminho, breve farei uma viagem, tenho conversado muito com alguém do signo de Câncer. Quem é Touro em minha vida? Quando as três fadas vieram ao meu batizado, temi pelo que a bruxa me traria. E não me enganava. Agora o príncipe encanta‑ do vai demorar a chegar, e o mato cresce, o mato cresce ao redor. Todo dia peço à Harpia para não fazer cocô na minha comi‑ da, ou para poupar minha cabeça. Ela não me ouve. Ou talvez me ouça e não me atenda apenas para preservar sua função específica de Harpia. Sigfrido, Sigfrido, antes a falha não se tivesse colado no nosso calcanhar! Há uma carta a caminho, e vem de longe. Quem me escreve? Tlac, tlac, batem os pentes do tear tecendo a minha trama. Dis‑ tante de mim, meu amanhã se organiza sem que eu dele participe antes do amanhã. Quem me dará a deixa? Piquei o dedo, eu que nunca gostei de fiar e pensei não houvesse rocas no meu reino. Quem terminará o fio que comecei? Matei o Grilo Falante e agora não há quem me responda. Cri, cri, cri, responde ele, e já não é fala. Há um valete à minha espera. Um valete de copas me espera e não sei onde. E me inclino, me debruço, procuro. Convexa na bola de cristal, minha vida me chega destorcida e eu me vejo viver toda disforme. Bem que mamãe falou para não passar na floresta. Mas o ca‑ minho era mais curto e eu estava com pressa de chegar. E agora, José? O menino nasceu e não sou o pai, o filho pródigo voltou e é ele o bem‑amado, sete anos de fome se passaram e a mim não dão comida. E agora, Jacó, que não me deram Raquel? 21
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Atendo o telefone. É Câncer que me chama. Converso muito, e a solução não chega. Bem que eu te disse, Câncer, que o mar não estava para Peixes. O mato cresce ao redor na Semana da Árvore, e todos plan‑ tam mudas. Quando as três fadas vieram ao meu batizado tremi pelo que a bruxa me traria, e de tanto tremer não aproveitei os presentes das fadas. E o sapo bebeu no meu copinho de prata, e a Fera dormiu na minha cama de ouro. Rapunzel, Rapunzel, baixa tuas tranças, gritava a bruxa; e eu que já conhecia a história baixei mi‑ nhas tranças vezes sem conta à espera de ver subir o príncipe. Até que veio a moda dos cabelos curtos, e comecei meu longo sono. Breve farei uma viagem. Que não seja lisérgica, pois que a mim me conheço. Quero sair de mim por um instante, ir mexer no tear. Tlac, tlac, batem os pentes à espera da hora da partida. E o pano cresce. E Ulisses não chega. E minhas mãos estão cansadas. Veja na bola, Madame, se a sorte me sorri, só ela. Veja no vidro, no espelho, na superfície do lago em que minha bola caiu. Veja, Madame, no fundo do poço. Mas Madame não enxerga, e então eu própria te procuro, e te pergunto em ânsia: “Espelho, espelho meu, tem alguém nesse mundo mais perdida que eu?”.
25 de setembro de 1970
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Os solitários pandas
As espirradeiras balançam suas flores no vento leste, os pe‑ riquitos cantam na gaiola, amanhece um dia de sol. Mas houve tempos em que eu era um panda solitário e acordar significava apenas sair do refúgio do sono. Eu era um panda e não encontrava meu par, ou só encontrava pares que, de outra espécie, não me serviam. Lembrei‑me disso de repente, ao encontrar um recorte dobrado num livro, foto de jornal londrino que Ziraldo me mandou no ano que Chi‑Chi viajou de Londres para Moscou para o fim de se encontrar com An‑An, o único outro panda em cativeiro no mundo. Tragédia dos pequenos ursos brancos de olhar triste para sempre mergulhado na olheira preta do pelo. Porque embora sendo os dois únicos de que se tem notícia e posse, não se gostaram, não se quiseram, e foram cada qual devolvido à própria solidão, no falso conforto do zoológico. Eu fui panda ao primeiro olhar. Assim que vi o bicho e sou‑ be seu nome percebi que, se tribo havia para mim, era aquela. Dispersos, quase extintos, os últimos representantes da raça gra‑ ciosa vivem na Mongólia, em floresta de bambu, alimentando‑se de brotos vegetais. São animais delicados, delicadeza de solidão. Naquele tempo eu também vivia em espessa floresta que me escondia o resto do mundo. E tinha medo, porque nem sempre a floresta é um lugar bom de se ficar. E me alimentava de forma estranha, sopas tomadas num canto, com o prato quente na mão, sem a formalidade da mesa que evidenciasse ainda mais a ausên‑ cia de companhia. Eu era um panda solitário, e andava em roda no zoológico por mim mesma construído, presa, embora sem visitantes. E la‑ mentava a minha sorte, certa de que não escaparia. 23
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Nem me dei conta da queda progressiva do pelo, quase não percebi quando perdi as olheiras pretas. Não foi como nos contos de fadas, assim, de repente, só porque bebi no copinho de ouro da princesa. Foi aos poucos, lentamente, na medida em que a floresta se fazia menos espessa ao meu redor, permitindo‑me ver. E quando afinal deixei de ser panda, nem me espantei, como se a metamorfose fosse o grande direito dos solitários. E quase esqueci a condição primeira. Lembrei‑me agora por causa do recorte e senti uma ponta‑ da de traição por ter abandonado com tanto prazer os da minha espécie. Mas era ruim ser panda, doía muito sentir‑se excluída da festa da vida. As pessoas me olhavam e me achavam graciosa, gostavam de mim, algumas gostavam de verdade. Mas havia sem‑ pre o momento em que cada qual voltava para a sua casa e o seu par, deixando‑me sozinha sem remorsos, e eu me sentia então um ser à parte. Cansei, ah, cansei daquela fragilidade de graveto, daquela delicadeza que dava até pena aos outros me atacar. Cansei do meu regime de brotos de bambu. Quero a voracidade de quem está vivo, a dentada no semelhante. Quero andar em frente, sem cercas, e ser um, em meio a semelhantes. Os pandas que me perdoem, saí da roda. Ou, pelo menos, se não deixei completamente de ser panda, porque da origem alguma coisa sempre fica, deixei, isso sim, de ser solitária. Sou, digamos, um panda acompanhado. E isso muda tudo. Dois pan‑ das já fazem multidão. E brincando, buscando‑se, não andam em círculos. Sei que a metamorfose parece duvidosa. Mas enquanto al‑ guns pandas enovelados se recusam a acordar, temerosos de que o dia lhes traga mais uma vez o andar concêntrico dos que não encontram saída, outros começam a perder o pelo e se preparam para visualizar o companheiro no horizonte. Porque achar outro panda pode ser fácil. Difícil é sair da floresta.
3 de dezembro de 1971
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Quando eu crescer
Quando eu era pequena meu sonho era ser uma menininha suíça. Agora sou uma menina suíça, e a paz não está comigo. Fui menino numa travessa do Ouvidor: minha mãe bordava para fora na máquina, com um bastidor. Eu ficava na janela ven‑ do o movimento lá embaixo e as pessoas que comiam apressadas no restaurante chinês em frente. Fora, o barulho da rua. Dentro, o barulho da máquina. Odiei minha mãe que me mantinha preso. E quando cresci, foi em revanche que empunhei os pauzinhos chineses para comer a comida que me repugnava. Sempre tive tudo o que quis. Mas nunca reparei nisso por‑ que as crianças com quem eu andava também tinham tudo o que queriam. Havia sempre, porém, quem sabia querer mais. No verão íamos catar tulipas na encosta de um morro de sua‑ ve declive. As tulipas eram muitas e selvagens, nós éramos crian‑ ças e selvagens. Então catávamos tantas quantas aguentávamos arrancar do talo macio e íamos empilhá‑las no alto do morro. Ao fim do dia depositávamos as tulipas num velho cemitério. Havia túmulos abertos pelo tempo e pela pilhagem. Na tarde em que uma caveira me sorriu percebi que a morte sempre me esperaria. Meu pai é jangadeiro. A gente come o que ele traz, mas não tudo porque uma parte ele vende. Tem dias que não traz nada. Rico é meu tio que é embarcadiço. Ele quase não para aqui em Cabedelo, mas quando vem traz dinheiro. Ele é taifeiro. Quando crescer quero ser Camisa Negra. Não quero crescer, quero ficar pequena. Não chore, mãe. Quando eu crescer te dou tudo o que ele não te dá. E caso com você. 25
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Foi bom quando a guerra acabou e chegou o exército de ocupação. A prisão deles era na frente da minha casa e estava sempre cheia. Eles chamavam a gente pela janelinha e trocavam garrafas de vinho por barras de chocolate. De noite cantavam. Toda vez que meu pai chegava em casa trazia comida e pre‑ sentes. Nós corríamos para recebê‑lo. Depois meu pai morreu, minha mãe morreu, e eu percebi que Deus não existia. Em Saigon morávamos num antigo jazigo de luxo. Havia ou‑ tras famílias morando ali e as crianças brincavam de guerra entre os túmulos. Matávamos tantos inimigos com nossas espadas de pau, que nunca nos lembramos do que havia debaixo da gente. O bombardeiro tem o ronco pesado e quase nunca vem só. O caça tem ronco mais leve e frequentemente está sozinho. Do caça a gente se esconde no mato da beira da estrada. Do bombar‑ deiro a gente não se esconde. Quando afinal comecei a achar graça em baile de carnaval minha mãe disse que eu já estava mocinha e não me deixou mais ir. Como bombons porque meus pais têm dinheiro. Mas junto o papel de estanho e levo ao colégio para as freiras das missões resgatarem as crianças pretas na África. Jesus, José, Maria é fácil de dizer. Se eu repetir muitas vezes, mesmo sem pensar, ganho o concurso de jaculatórias. Mãe, olha como estou alta. Já consigo olhar dentro da pia. Você disse que era bom ser gente grande só porque achou que até lá eu ia esquecer.
22 de maio de 1972
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A tarefa de fazer
A amiga que há tanto não via chegou e disse, fiz um vestido para que você caiba toda nele enquanto espera seu bebê. E num gesto mágico tirou da sacola o pano de antiga cor e antigo feitio, com olhos da fertilidade africanos e pássaros estranhos, aves des‑ dobradas em borboletas. Ela pintou, ela fez, e a roupa é do meu feitio, vestido renas‑ centista com símbolos africanos, para mim que sou italiana nascida na África. Prendo os cabelos, escolho o colar, amarro a cor do vinho à cor da pele. E calço sapatilhas andaluzas, há muito guarda‑ das para a roupa que as merecesse. Gira, gira, gira. Quero gramado, declive, árvore para brincar com minha filha, rodar com ela pelas mãos enquanto outro filho se faz. Passos leves, gestos dançantes. A roupa larga, o decote en‑ costado, moldura do pescoço. As mangas sem cavas, fartas asas de onde os braços saem por entre pregas. Os pés aparecendo no corte reto sem medo de desgaste. Essa é uma roupa para um uso. Lento trabalho do meu corpo que aos poucos cede e se alar‑ ga, recipiente. Longa paciência de uma espera que é todos os dias diferente. Agora, às vezes, o aviso, movimento rápido, peixe no aquário de mim dando sinal. Frio na pele, orvalho nos pés. Quero o campo. A cidade não foi feita para gerar. Quero visão de pastos e de gado, eu própria pasto e gado, alimento de outro e ruminante. Quero o tempo, aproveitar a lentidão dos gestos, esquecer a pressa. Não há pressa, são nove meses de dedicação. Ando tão nidificante. Com vontade de fazer coisas, ajeitar a casa, botar tapete e cortinas, aconchegar com pelo a limpeza do 27
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espaço. Ando fazendo coisas, pequenos objetos, pequenas costu‑ ras, tudo pequeno. E à noite, abandonadas leituras fundamentais, me esqueço no tricô. Tenho em mim gestos de fiar e tecer. Desfaço tranças. Não, a cidade não foi feita para gerar. Talvez a praia, de ma‑ nhã cedo, quando se banham pela mão das mães as crianças que já estão prontas e todo rosto é uma possibilidade de semelhan‑ ça. Talvez a estrada vazia, inacabada, que acaba em si mesma e onde ainda se pode andar. Alguns jardins, talvez. Mas não o resto. O ônibus, a lanchonete, o aperto do sinal não têm sentido para quem constrói com tanta concentração e com amor se cuida. Procuro o convívio de outras mulheres, eu que sempre gostei mais da companhia dos homens. E as outras mulheres me procu‑ ram. Há um atrativo em mim. Eu sou mulher que justifica as ancas. E breve darei leite. As outras ao redor, falamos de crianças, de menino pequeno, roupa e cheiro. O privilégio de saber. Em mim a tranquilidade da coisa que se faz, nas outras a saudade, o desejo de estar. Somos da mesma espécie. Que sou eu para os homens? Uma coisa terna, a proteger. Uma coisa misteriosa, a estudar. Tenho um pouco da criança que faço, tenho um pouco da mãe que ameaça. Tenho a superioridade da estância definitiva. Mas na hora do nascimento, abrindo para o menino, me fecharei no segredo do sofrimento que nenhum homem sabe. Desço o declive orvalhado à procura da planície. Segura, sei o que faço, conheço o caminho que já trilhei. Tenho uma dire‑ ção. E o pai me olha confiante. Cabe a mim, agora, a tarefa mais importante.
4 de junho de 1972
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Ao lado da gente
Não é nada disso, a gente percebe que não é nada disso, quando a moça ao lado da gente no ônibus começa a chorar. A gente sabe aqueles negócios todos, de fraternidade, da ne‑ cessidade de carinho, da selvageria das grandes cidades. A gente sabe que se uma pessoa precisa de ajuda a gente vai e ajuda. Mas de repente a moça do lado começa a chorar, e aí? Primeiro pensei, ou quis pensar, que ela fungasse. Depois não deu mais jeito, tive que perceber que soluçava mesmo. E por fim, olhei. Chorava sentido, irrefreável, de olhos inchados. Mas como, em tão pouco tempo? Ou será que já tinha chorado em casa antes e agora continuava ao meu lado aquele pranto doméstico? Soluçava sacudindo a cabeça e de vez em quando limpava o nariz na manga. O que é que a gente faz ao lado de uma pessoa que chora? Pergunta se precisa de alguma coisa, se dá pra ajudar. Estica a mão, faz um afago na mão da pessoa. Bom, então o que eu te‑ nho que fazer primeiro é perguntar, moça, a senhora precisa de alguma coisa? E se ela responder atravessado, ou não me responder, ou se responder sim, que precisa, e me contar a história toda, o drama, a mim que certamente não vou poder resolvê‑lo na curta viagem do ônibus para a cidade? Melhor não perguntar nada. Se ela quiser, se ela precisar, ela fala. Viu quando olhei, não fez cara nenhuma de quem que‑ ria falar. Vai ver, não quer que eu me meta. Quer chorar em paz. Todo mundo no ônibus já viu e ninguém perguntou nada. A pes‑ soa tem o direito de chorar em paz onde quiser. É isso, a gente tem que respeitar o sofrimento dos outros. 29
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Então o jeito é voltar para o meu livro, para ela entender que não vou atrapalhar a tristeza dela. Mas como que a gente lê com uma pessoa infeliz do lado? Infeliz de unhas roxas. Reparei quan‑ do olhei para ela, que usava esmalte escuro, cor de uva. E com a ponta dos dedos de vampiro limpa as pestanas maquiladas. Olho de novo disfarçado, procurando em mim a coragem de falar, nela a razão do choro. Nem parece. Está toda direitinha, arrumada, de pulseira. E tem momentos que para, fica só fungando como se afinal tivesse enten‑ dido que não vale a pena sofrer tanto. Mas é só um pouco, logo recomeça, sacudida, soluçando alto, a dor redobrada na entrega. Eu preciso falar com ela. Preciso ser humana com essa moça. Mas porque sou humana tenho tanto medo dela que não consigo nem chegar perto. Não consigo abrir a boca e dizer, moça... Então olho pela janela para ela não pensar que estou ali só de curiosidade, curtindo o sofrimento dela. Mas como posso olhar as vitrinas que passam na calçada quando alguém ao meu lado se lamenta de forma tão evidente? Está sem meias mas maquilou as pernas. Eu sei que maquilou para fingir de meias porque a pele está fosca e sem desigualdades, pele de nylon. Então quando saiu de casa não estava tão infeliz assim, ou estava mas tentou disfarçar a tristeza melhorando as pernas, e depois no ônibus as pernas dobradas já não adiantaram nada e pronto lá foi ela de novo chorando alto e com vergonha porque todos no ônibus percebem. Foi por isso também que bo‑ tou o vestido de mangas embabadadas, para se enfeitar, não para limpar o nariz como está fazendo agora. Achou que não ia preci‑ sar de lenço. Achou que já estava boa. E agora o nariz escorre na frente de todo mundo, os olhos escorrem, ela toda se escorre nesse choro, sem que sequer a vizinha do lado lhe pergunte o que foi.
9 de julho de 1972
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