Quando a primavera chegar

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Na palma da mão

As chuvas haviam terminado e as flores cresciam até de‑ baixo das pedras, quando a tribo dela chegou. Outras tribos já estavam acampadas havia dias, com seus cavalos, suas carroças, suas tendas e seus filhos. Muitas ainda viriam para o encontro. E este ano ela não era mais menina. Havia­‑se feito mu‑ lher. Agora trazia um crisântemo pintado na palma da mão direita. E no coração, o desejo de encontrar o homem a quem ofertá­‑lo. — É no mercado que eles estão — sussurraram­‑lhe as outras moças, na primeira manhã. — E como são bonitos! 9


Bonitos eram, os homens jovens caminhando entre os animais e as barracas de peles, examinando ora uma arma ora uma joia, com suas mãos enfeitadas de anéis. Esbeltos como árvores novas. E exibindo, nos ombros, a arrogância. As moças não caminhavam entre as barracas. Mantinham­ ‑se juntas num canto, entre murmúrios e pequenos risos. Sua escolha era outra. E a faziam de olhos baixos. Vários daqueles jovens olharam para ela no primeiro dia. Ela não olhou para nenhum. À tarde, aquele que usava um brinco de prata prendeu às costas uma pele de lobo e longamente, diante dos anciãos, dançou a dança da caça. Depois foi pedi­‑la ao pai. — É bom caçador — murmuraram os velhos —, comida em sua casa não há de faltar. Mas no coração dela amor faltou. E, sem nada dizer, sacudiu a cabeça em recusa. Na palma da mão, como se murchasse, uma pétala do crisântemo desbotou até desaparecer. Dia seguinte, aquele que prendia o cabelo na nuca sentou­‑se sobre o tapete do pai da moça. E na bandeja de areia dese‑ nhou os limites da terra em que a receberia, e aos seus que quisessem acompanhá­‑la. — É homem rico — todos nas tribos disseram —, qualquer moça há de querê­‑lo. O coração dela não quis. Do crisântemo, mais uma pétala se foi. Houve depois, ao correr dos dias, um que atirou sua lança para o alto, tão alto que desapareceu sem voltar a cair. Outro que trouxe inscrito num interminável rolo de pele o registro dos animais do seu rebanho. Um terceiro que com seu cavalo saltou por cima do rio em seu ponto mais largo. 10


Todos os três foram louvados pelos velhos e pela gente das tribos. A moça não louvou nenhum. Três vezes o pai ergueu os olhos para ela esperando resposta. Mas a resposta não veio. E o crisântemo perdeu mais três pétalas.

Gastava­‑se aos poucos o tempo do encontro. A cada ama‑ nhecer, ela olhava sua mão, e estremecia vendo o despetalar­‑se da flor. Teria que esperar o próximo ano, se não encontrasse o que tinha vindo procurar. E o tempo passa lento quando a alma está carregada de desejos. 11


Um chefe de tribo a quis, para acrescentá­‑la a suas duas esposas. Ela sequer ouviu o pai, e inutilmente fechou a mão para que pétala alguma se fosse. Um viúvo pai de belos filhos a pediu. Ela teria querido as crianças, mas não o pai. E para cada um desapareceu uma pétala. As outras moças invejavam­‑lhe a sorte. Ela se perguntava onde sua sorte havia ficado. Um pretendente encantava serpentes, ela temeu o veneno. Outro derrubava árvores, ela temeu o machado. Fazia­‑se escuro o olhar do pai. Do crisântemo quase nada sobrava, e a moça mantinha a mão voltada para baixo, que não se visse a palma quase desguarnecida encostada na saia. Vergonha seria ajudar a mãe a desmontar a tenda com mão limpa. E naquela manhã, um apresentou­‑se que não havia estado entre os jovens, nem era companhia dos mais velhos. Havia chegado tarde ao encontro, com seu cavalo, sua carroça e seu sorriso. Já quase em tempo de retomar o caminho da volta. Mas os cabelos eram longos, finos os dedos. O tempo de que dispunha era pouco, e ainda assim sentou­‑se no tapete do pai, pois para isso havia vindo. Ela esperava fora da tenda. Por uma fresta viu quando, feito o pedido, ele tirou uma flauta da manga e começou a tocar. As notas escaparam através do tecido da tenda. Os velhos voltaram a cabeça na sua direção, os jovens pararam o que estavam fazendo, as moças sentiram amaciar­‑se a cintura. Debaixo das pedras, as últimas flores do verão ergueram as corolas. 12


Como um vento, a música dava asas aos painéis da tenda. O sorriso percorreu o corpo da moça, pareceu vibrar na palma da mão. Ela olhou. Entrelaçadas com as linhas do destino, uma a uma ressurgiam as pétalas, brotava fresco o crisântemo. Não fechou os dedos. Manteve a mão erguida e aberta, para oferecer a floração quando ele saísse para buscá­‑la.

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