Book Preview | Se Eu Pudesse me Perdoar

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Se eu pudesse me perdoar

Danielma Reis 2022

© 2022, Danielma Reis

Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais.

(Lei 9.610/98)

Revisão e Copidesque: Grasiela Lima

Leitura sensível e crítica: Gabriele Diniz

Capa e diagramação: Gabriela Melo

Arabescos: Rawpixel.com em Freepik

Para aqueles que não param de se culpar. Não se deixem queimar.

TRAGÉDIA NO MAR

Na noite do último dia 09, um grave acidente com o vapor Piranhas, da Companhia Pernambucana de Navegação Costeira, vitimou todos os seus passageiros e tripulantes. A embarcação dirigia-se a Recife quando foi surpreendida por uma forte tempestade. Entre os falecidos estão os ilustres comerciantes alagoanos Antônio Machado de Freitas e Francisco Gomes de Oliveira e suas respectivas esposas, Joana Maria Machado de Freitas e Luiza Gomes de Oliveira. Este jornal presta condolências às famílias dos falecidos.

O Diário de Maceió, 10 de janeiro de 1902.

Capítulo Um

Maceió, 13 de janeiro de 1903.

Da janela do bonde, vejo os vestígios de mais uma dessas chuvas de verão que deixam tudo encharcado e com cheiro de terra úmida. Também choveu no dia da morte dos meus pais. Mais de um ano depois, eu ainda lembro de todos os acontecimentos daquela data.

Acordei com batidas fortes na porta de casa e desci correndo do meu quarto, tudo isso para encontrar meus tios, João e Leopoldina, parados no meio da sala de estar. Os dois nunca pisaram naquela casa, não desde o meu nascimento, pelo menos. Por isso, logo percebi algo errado no ar. A expressão no rosto deles era impassível, mas a de Lúcia, a cozinheira que os atendera, era de puro terror. Apenas ela veio ao meu encontro, aconchegando-me em seu peito.

Os murmúrios de desaprovação dos meus tios ao ver a cena foram esquecidos nas lamúrias de Lúcia. “Oh, minha menina, que desgraça, que

desgraça”, ela dizia afagando minhas costas. Ainda sem entender, perguntei sobre o acontecido, mas foi meu tio quem respondeu, sua voz seca e sem emoção permanece ecoando em minhas lembranças até hoje: “O vapor Piranhas naufragou próximo à costa de Recife na noite passada. Ninguém escapou. Seus pais morreram, Adelina.”

O tempo parou enquanto eu tentava assimilar aquelas palavras. Meus pais e um casal de amigos, senhor Francisco e dona Luiza, tinham embarcado no vapor na tarde do dia anterior. Da ponte de embarque, observei-os acenando um até logo que tinha se transformado num adeus. O senhor Oliveira era amigo de painho desde quando eles eram integrantes da Sociedade Libertadora de Alagoas, um clube conhecido por lutar pela libertação de pessoas negras escravizadas.

A relação entre eles estreitou-se quando o senhor Francisco ajudou no casamento do meu pai com a minha mãe, uma escrava liberta. Todos os familiares do meu pai foram contra a união, um escândalo enorme, mas tanto o senhor Francisco como dona Luiza ficaram do lado do casal. Foi tam-

bém o senhor Oliveira quem apresentou meu pai aos importadores ingleses responsáveis por transformá-lo em um dos homens mais ricos do estado, isso graças a uma parceria entre eles.

Fiquei olhando para o meu tio sem reação.

Após alguma ordem de minha tia, Lúcia colocou-se em movimento e levou-me escada acima, de

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volta ao meu quarto. Encolhi-me junto a janela e só me mexi quando a cozinheira voltou trazendo um copo de café e um pão francês torrado que não consegui comer. Momentos depois, eu estava metida num vestido preto e usava um véu da mesma cor. Encontrava-me na sala de estar da minha casa e uma série de pessoas vinham falar comigo. Minha tia, sentada ao meu lado, mantinha distância no sofá de três lugares, enquanto meu tio recebia os outros na porta. Era como se eu estivesse assistindo tudo isso de fora, uma figura triste, sem reação sob o véu. Os corpos chegaram quando a noite já havia caído. Observei eles serem colocados lado a lado, rodeados por buquês e coroas de flores. Os dois tinham ido e eu havia sido abandonada sozinha. Na manhã do dia seguinte, quando o cortejo fúnebre estava para sair, fui carregada por Lúcia para sala novamente. Caminhamos para a porta, porém, minha tia impediu-nos de sair. A empregada estremeceu com o comando, querendo desobedecer, mas não pôde. Ela ainda não sabia qual seria seu futuro, o nosso futuro. Assim, levou-me para o quarto, onde finalmente chorei agarrada numa foto antiga dos meus pais. Nela, minha mãe estava sentada numa cadeira, com meu pai em pé ao fundo. Atrás, mesmo com a passagem do tempo, ainda se podia ler a dedicatória feita por minha mãe, Joana.

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“Minha pequena Adelina, Eu sei que deve estar sendo difícil para você ficar longe de nós todo esse tempo, mas seu pai e eu acreditamos que você merece uma boa formação. Tenha um ótimo ano na escola e lembre-se: estaremos sempre com você.

Com carinho, Mainha.”

O bonde dá um solavanco e para em mais um ponto. Seguro com firmeza a foto, agora em minhas mãos. Dizem que me pareço com minha mãe. A pele negra, somente um tom mais claro que a dela, os cabelos castanhos escuros cacheados, o nariz largo e achatado. Outros falam que o sorriso é do meu pai, o riso tímido que eu observo impresso em minhas mãos. O bonde volta a se deslocar e, enquanto observo as casas na rua molhada, relembro aqueles dias de luto.

Pouco depois do enterro, meus tios assumiram o controle dos negócios da minha família e instalaram-se na minha casa, onde me mantinham presa em meu quarto. Por um bom tempo, eu não me importei, a dor e a tristeza eram tudo que eu tinha. Também havia Lúcia. Apesar de ter sido impedida de conversar comigo, ela sempre encontrava um jeito de me contatar através de bilhetes passados por debaixo da porta. Eles nunca deixavam de conter palavras doces, orações e incentivos. Aqueles pequenos pedaços de papel eram como

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ganchos segurando-me para que eu não desabasse rumo ao precipício. Eram também um lembrete da presença dos meus pais, pois foram eles que insistiram para que a cozinheira aprendesse a ler e escrever.

Um dia, após semanas de confinamento, consegui escapulir enquanto a roupa de cama era trocada. Ouvi um barulho de conversa e segui o som até a sala de jantar. Lá, vozes alegres sobrepunham-se umas as outras. Estavam felizes. Como eles podiam?

No meio da conversa, consegui distinguir minha tia falando com entusiasmo sobre a volta do filho à cidade. “Será uma felicidade tê-lo de volta, e agora mais do que nunca, quando temos uma ótima oportunidade...” A sugestão jogada no ar foi motivo de indagações e minha tia respondeu com uma satisfação disfarçada: “Ora, de casamento. Tudo já está sendo preparado para que se case com ela.” “E quem seria a sortuda?”, alguém perguntou ao fundo. “Adelina, é claro”, ela falou alto, sobrepondo-se as outras vozes, as quais se calaram diante da surpresa. Eles pretendiam casar-me com o filho deles? Meu primo? Fiquei paralisada, com medo de que minha respiração, acelerada demais, pudesse chamar a atenção, mas no outro instante a conversa voltou e eu aproveitei para sair dali.

Após ouvir aquela informação, tudo começou a fazer sentido. Eu não questionei quando soube por Lúcia que eles pediram minha tutela ao Juiza-

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do de Órfãos, meu estado de choque não permitiu reação da minha parte. O casamento escandaloso dos meus pais excluiu-nos da família Machado de Freitas. Tio João era o irmão mais velho e nunca tinha perdoado painho por ter manchado o nome da família daquela forma. Lutar pela abolição era uma coisa, mas casar-se com uma escrava forra? Ah, isso foi demais.

Após o casamento com minha mãe, meu pai perdeu todo o apoio da família, então, com a ajuda do senhor Francisco, restabeleceu-se à custa de muito trabalho. Eu sabia que como única filha teria direito ao valor total da herança dele. Meus tios também sabiam.

Quando me casassem com seu filho, os dois teriam poder sobre os bens deixados para mim. Sendo marido, meu primo poderia dispor de tudo como quisesse. E eu estaria nas mãos deles para sempre. Como eu tinha sido besta, uma tola. Mas o que eu poderia fazer? Eu poderia tentar conseguir ajuda, mas com quem?

Passei dias desesperada e sem rumo. Mesmo estando casada, eles iriam manter-me trancada, fora do mundo. Pelo que sabia do meu futuro esposo, não tinha dúvidas de que ele não iria se opor. Eu não poderia mais ser livre, conversar com Lúcia, terminar a escola normal. E mais, seria obrigada a vê-los usufruírem daquilo que meus pais batalharam tanto para conseguir. Eu não poderia deixar. Então, comecei a tentar novas fugas do quarto, in-

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ventava que tinha algum animal debaixo da cama, ou um lençol rasgado, tudo para criar uma brecha. Um dia, enfim, consegui escapar mais uma vez e foi justamente quando um grupo de senhoras estava reunido na sala de estar.

Escutei quando uma delas fez um comentário sobre o filho mais velho do senhor Francisco, Elias. “Pobre moço, está vendendo tudo que pode para pagar as dívidas do falecido pai”, uma outra se lamentou. “É uma pena, poderia ser um bom candidato a marido, mas com as finanças assim...”, outra voz, cujo veneno logo reconheci, falou: “A melhor saída para ele seria um casamento com uma mulher rica, sem dúvidas.”. A fala de minha tia Leopoldina fez meu estômago embrulhar. Era só nisso que pensava. Riqueza, posição.

Ainda naquele dia, afastei-me da sala de estar e esgueirei-me até o antigo escritório do meu pai, a fim de encontrar algo, qualquer coisa capaz de me ajudar a sair daquela situação. A mesa estava cheia de papéis, jornais e revistas. Procurei nas gavetas da escrivaninha. Sabia da existência de um fundo falso em algumas e, por isso, fui verificando todas que estavam abertas. Em uma, encontrei uma carta sem lacre, sem envelope. O papel estava gasto pelo tempo, mas dava para ler que era uma mensagem do pai de Elias para o meu. Algo como uma transação financeira. Guardei-a na esperança de que o documento ajudasse de alguma forma.

Quando terminei a mesa, vasculhei algumas

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prateleiras e nelas algo me chamou a atenção. Uma pilha de envelopes jazia por trás de uma série de cadernos de couro. Eram cartas de Elias destinadas a mim. Tinha uma dúzia delas. Peguei-as e sai o mais rápido que pude em direção ao meu quarto. Ao chegar nele, comecei a abrir uma a uma, ansiosa para saber o conteúdo, ainda mais pela conversa escutada minutos antes. Surpreendi-me com as palavras de conforto, pêsames e preocupação. Em uma das missivas, Elias perguntava se poderia fazer-me uma visita, já que estava preocupado com a falta de respostas. “Teria ele vindo?”, pensei.

Elias e eu nunca fomos amigos próximos, mesmo que nossos pais tenham sido. Ele era cinco anos mais velho e sempre me pareceu muito sério quando criança, quase um pequeno adulto ciente desde cedo das suas responsabilidades futuras. Com a minha ida para o internato, meu contato com os Oliveira diminuiu e passei a encontrá-los somente nos dias festivos, ou durante as férias do colégio. Fazia um bom tempo que não o via, até o dia do funeral.

Elias estava pouco parecido com o moleque pequeno e magro que eu conhecia. Ele tinha se tornado um homem muito bonito, de estatura alta, pele clara, ombros largos, os olhos castanho-escuros e o cabelo, também castanho, encaracolado baixo, quase tocando os ombros. Quando ele veio oferecer suas condolências, o seu olhar era vazio, assim como o meu. Foi Elias quem organizou o

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cortejo e seguiu o bonde especial pela Estrada do Trapiche até o cemitério de Nossa Senhora da Piedade. Éramos duas vidas desgraçadas pela mesma tragédia, mas talvez eu tenha encontrado uma solução para nós dois.

Dias depois da minha aventura no escritório, Lúcia enviou-me um bilhete avisando do retorno do meu primo a Maceió. Nesse dia, percebi que eu precisava agir imediatamente. Não poderia mais esperar. Elias é a minha única saída. Se ele estiver disposto a se casar por dinheiro, bem, senão eu serei obrigada a utilizar a carta do seu pai. Ela é meu último recurso para salvar o que é meu por direito. Só espero não me arrepender de usá-la.

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Agradecimentos

As primeiras páginas dessa história começaram a ser escritas em 2018. Ao longo dos anos, mexi, remexi, mudei nomes (o único que permaneceu foi Elias), reescrevi vários capítulos. De um certo modo, ela foi evoluindo junto com a vontade de me tornar uma escritora de ficção. Me tornar não, mas de me reconhecer como uma. Desde muito cedo eu já criava histórias, mas nunca as colocava no papel. As poucas que finalizava eram fragmentos com personagens de outros autores, as fanfics que minha geração aprendeu a amar. Adelina e Elias são meus primeiros personagens originais, e é para eles que faço meu primeiro agradecimento.

Também gostaria de agradecer as minhas leitoras beta, que leram essa história e forneceram suas sugestões e até soluções que eu nem mesmo enxergava.

Julia, Jordana, Laís e Raíssa, vocês foram demais!

Agradeço também a toda minha família, em especial meus pais e meus amigos de agora e sempre.

Agradeço ao Victor, meu amor e companheiro, que sempre estimulou a colocar esse livro no mundo. Por fim, gostaria de agradecer a você, leitor, que tirou um tempinho para viver essa história. Espero que vocês tenham amado ela tanto quanto eu.

Fontes utilizadas

COMPANHIA BRASILEIRA DE TRENS URBANOS. Sobre a CBTU-MAC, 2019. Disponível em: <https://www. cbtu.gov.br/index.php/pt/empresa-maceio/historia-maceio#:~:text=Inaugurado%20em%2025%20de%20 mar%C3%A7o,bairro%20do%20Trapiche%20da%20 Barra.&text=Em%2012%20de%20janeiro%20de,BRAZILIAN%20CENTRAL%20RAILWAY%20COMPANY%20LIMITED%E2%80%9D>. Acesso em: agosto de 2020.

LINS, Nide. Marrecas, o eterno charme do turismo rural na cidade de Maragogi, 2015. Disponível em: <https://www. nidelins.com.br/2015/05/18/marrecas-o-eterno-charme-do-turismo-rural-na-cidade-de-maragogi/>.Acesso em: agosto de 2020.

LIMA-JÚNIOR, Félix. Maceió de outrora. Maceió: CEPAL, 2014.

MARQUES, Danilo Luiz. Sobreviver e resistir: os caminhos para a liberdade de escravizadas e africanas livres em Maceió (1849-1888). Dissertação (Mestrado em História). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 145 p. 2013.

_____________________. Sob a “sombra” de Palmares: Escravidão e resistência no século XIX. São Paulo: eManuscrito, 2020.

TICIANELI, Edberto. Francisco Domingues e a histórica Sociedade Libertadora Alagoana, 2019. Disponível em: <https://www.historiadealagoas.com.br/francisco-domingues-e-a-historica-sociedade-libertadora-alagoana.html>.

Acesso em: agosto de 2020.

__________________. Estrada do Norte, a grande obra do governador Fernandes Lima, 2018. Disponível em: <https:// www.historiadealagoas.com.br/estrada-do-norte-a-grande-obra-do-governador-fernandes-lima.html>. Acesso em: agosto de 2020.

__________________. Funerais em Maceió no tempo do bonde, 2017. Disponível em: < https://www.historiadealagoas.

com.br/funerais-em-maceio-no-tempo-do-bonde.html>. Acesso em: agosto de 2020.

__________________. Transporte a vapor sobre águas alagoanas no século XIX, 2019. Disponível em: < https://www.historiadealagoas.com.br/transporte-a-vapor-sobre-aguas-alagoanas-no-seculo-xix.html>. Acesso em: agosto de 2020.

TRIBUNA HOJE. Hotel Fazenda Marrecas, em Maragogi, encerra suas atividades de hospedaria, 2019. Disponível em: https://tribunahoje.com/noticias/interior/2019/03/12/ hotel-fazenda-marrecas-em-maragogi-encerra-suas-atividades-de-hospedaria/

Sobre a autora

Danielma Reis é alagoana, residente em Maceió. Licenciada e bacharel em Ciências Biológicas, doutora em Biologia Celular e Molecular, professora e pesquisadora na Universidade Federal de Alagoas. As histórias sempre foram a sua paixão. Dos clássicos da literatura brasileira aos livros contemporâneos, nunca tinha tempo ruim para ler uma boa aventura. Até que decidiu escrever suas próprias histórias, dar vida aos personagens que insistiam em povoar a sua cabeça. Seu primeiro conto, Inesperada Conexão, foi publicado de forma independente na Amazon em 2020.

@danielmareis @danielmareis

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