Revista Gotaz

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diretores executivos & criação: daniel zuil {daniel@gotazkaen.com} & diana figueroa {diana@gotazkaen.com} editor-chefe: elvis rocha {elvis@gotazkaen.com} | produção: elianna homobono {elianna@gotazkaen.com} produção de conteúdo online: luiza cabral {luiza@gotazkaen.com} editora: gotazkaen estúdio

EDITORIAL Caminho longo esse, viu? Quando um dia, lá longe, em 2008, reunimos a turma para tocar um projeto editorial voltado para a internet, não imaginávamos que, alguns anos mais tarde, estaríamos aqui, escolhendo as melhores palavras para um editorial de lançamento da Revista Gotaz. Porque vocês sabem: essa é a primeira, mas na verdade não é. Antes, muitas gotas já pingaram embaixo dessa ponte (epa, um trocadilho). Muitos fotografaram, desenharam, escreveram, leram, gostaram ou detestaram as três edições online que precederam este, um pequeno passo para a humanidade, mas um grande salto... Bom, talvez a ordem da frase não seja exatamente essa. O fato é que chegamos aqui. E chegamos com uma vontade danada de fazer o certo - seja lá o que o certo signifique. Quer saber? A gente descobre no caminho. Por ora, queremos é juntar Drika Chagas com Mestre Nato; Jorge Eiró com Gil Vieira; Keyla Sobral com xBerecox; Flavya Mutran com Ionaldo Rodrigues; Esses com Todos Aqueles Outros. O novo e o renovado no mesmo copo, chacoalhados e servidos como uns bons drink (epa, dois trocadilhos) a Belém, à Amazônia, ao Universo. Bebamos, amigos; bebamos que o goró é do bom.

Este projeto foi contemplado com o Prêmio Procultura de Estímulo as Artes Visuais Categoria B 2011


jornalista, radialista, cantor e compositor. aos 24 anos, desenvolve trabalho musical baseado em experimentações com poesia e música. possui dois álbuns lançados, “arthur nogueira” (2007) e “mundano (2009), e um ep virtual, “mundano+” (2010).

arthur nogueira

ionaldo rodrigues

tem canções em parceria com antonio cicero, omar salomão, eucanaã ferraz e outros poetas.

mus ex evenia audandaectem volum con pariatur res reseque porum vent, cus et utem rereptatet ut aceri vendae alitataecum quiat arum fugiaer ibusam invelen disita qui nonpa cus, cores necabori vitat perrum

brunno regis “dane-se se a foto é de celular, digital, analógico, pin-hole, tekpix, o que importa não é a plataforma e sim o resultado.”

keyla sobral keyla sobral, artista visual/ editora e fundadora da revista eletrônica não-lugar (www.naolugar.com.br). colaboradora do blog novas medias.quatro anos nesta foto, casa da vó florinda. a lembrança de uma mesa de mármore, onde minha mãe me colocava pra desenhar.

Drika Chagas é graduada em Artes Plásticas, mas foi nas ruas que encontrou o cenário ideal para a sua produção artística. Começou a trabalhar com grafite ainda na adolescência, integrada a grupos de arte urbana. Sua primeira exposição foi em 2009 e de lá para cá já participou de 10 salões. O ponto forte do seu trabalho está na sutileza em que usa o spray para expressar um olhar íntimo sobre o mundo.

nasceu e vive em belém. estudou ciências sociais na ufpa e começou a fotografar nas oficinas da fotoativa. trabalha no núcleo audiovisual da fundação curro velho e coordena projetos na área de pesquisa e documentação na fotoativa.

drika chagas

jorge eiró arquiteto, artista plástico e professor da ufpa e unama. no momento, curte um doutorado em educação. inventa palavras pintadas e arrisca pinturas faladas - cartografias, labirintos líquidos e paisagens da solidão... narrativas visuais para falar de coisas que se passam por aqui de vez em quando... vive perigosamente em berlim do pará.


mateus moura

gil vieira

mente que finge sonhar cinema em belém na amazônia, e outras coisas. acaba devaneando: filma, escreve, fala, canta, atua, silencia. É indivíduo. Também participa de ações em coletivo: música (les rita pavones), teatro de rua (perifeéricos), cineclubismo (apjcc), produção cultural (garfo e faca), qualquer quoisa (qualquer quoletivo). mantém um blog onde cultiva o seu pensamento ( h t t p : / / c i n e m at e u s m o u ra.blogspot.com.br/) e canais que guardam sua produção audiovisual

r

eside em Ananindeua. é professor e técnico em gestão cultural. mestre em artes pela ufpa. lê, escreve, investiga, comunica e silencia, não necessariamente nessa ordem. adepto incondicional das incertezas.

( http :// www . youtube . com / cinemateus, http://www. youtube.com/matouocinema, http :// www . youtube . com / qualquerjamcine, https:// v i m e o . c o m / g a r f o e f ac a )

renan viana

lorenna montenegro crítica de cinema e jornalista há seis anos. também trabalha na assistência e direção de vídeos e filmes de curta e longa-metragem. colaborou com diversos sites de entretenimento e cultura local.

xberecox traços em peles, muros e papel. são tantos codinomes quanto aspirações artísticas: xgilx, xberecox ou two face é tatuador, grafiteiro e ilustrador. paraense, 24 anos. seu trabalho circula principalmente nos nichos undergrounds da cidade, como em rodas de hardcore e grupos de fanzineiros.

turia pra volest exllit et as dolorro

magniae. nequid quamus ilitatur, quistia

et eicillo rescit, sum aut quamet an-

idem doluptas aliquam, aut assim qui oc-

torer undaectur arum quunto dolo coriore

culpa runtis nostrundelloat quatatium as

prestot aquunte ab int officiatqui beaque

remquid qui reperchillo cusciet pre es adis

Renan Viana é fotógrafo e designer multimídia, com mais de quatro anos de experiência no mercado de fotografia publicitária, editorial e institucional. Atende diversas agências de comunicação, empresas, bancos de imagem e editoras.

adriele silva graduanda em artes visuais pela universidade federal do pará. desde 2010 atua como uma das editoras do blog novas medias!? [http://www. novas-medias.blogspot. com]. também trabalha como produtora executiva da kamara kó galeria [http://www.kamarakogaleria.com]. mus ex evenia audandaectem volum con pariatur res reseque porum vent, cus et utem rereptatet ut aceri vendae alitataecum quiat arum fugiaer ibusam invelen disita qui nonpa cus, cores necabori vitat perrum sum adita volo int aut offictisqui sinverum

quidi rem fugit quam hilibus, voluptata qui omnia voluptae nonsers pissinisit et ipis eos etus eiument ulluptur magnatur repelenditat acestet latibus ius unt.Lesti ratum, quo beat. Lupita quam quis con es rerio odit dolor sequatus si auti cipicia volore dolupti untu.



12

mestre nato

60

certas palavras

26

domingo de manhã bem cedo

68

foto_grafia paraense

28

arrabalde

70

memória avessa

40

lugar de fluxo

84

mistérios revelados

48

manifesto-me hÀ familia

94

a escrita amoral das ruas

50

na marra, com amor

96

fim do mundo



CONTATOS: Mestre Nato & Drika Chagas http://drikachagas.com.br/

Arrabalde http://www.flickr.com/photos/ionaldorodrigues/ http://kamarakogaleria.com/site/?portfolio=ionaldo-rodrigues-2 Na marra, com amor http://www.youtube.com/user/MultiMarat http://cinemaderua.blogspot.com.br/ http://cufapara.blogspot.com.br/ https://www.facebook.com/pages/Cine-Gempac Lugar de Fluxo http://atelierdoporto.blogspot.com.br/ Certas palavras http://www.culturapara.com.br/artesplasticas/keylasobral/index.htm Memória avessa http://flavyamutran.wordpress.com/ Envie seus trabalhos: revistagotaz@gotazkaen.com

Anuncie: comercial@gotazkaen.com Gotazkaen Estúdio www.gotazkaen.com Rua Ó de Almeida, número 755. CEP: 66053-190 fone: +55 (91) 3347-6632 Belém - Pará - Brasil Agradecimentos: Vasco Cavalcante, Lucas Gouvea, Thiago Freitas, Mateus Moura, e todos que participaram direta ou indiretamente da revista, em suas edições online, ao longo desses anos.


E

ntre as definições possíveis, ele não hesita na que mais o apetece. “sou um artista popular”, diz raimundo nonato, o mestre nato, 60 anos, mais da metade dedicada às diversas formas de expressão da cultura popular. de hippie bagulheiro nos 1970 a cenógrafo de algumas das principais companhias de teatro paraenses anos mais tarde, são décadas de pesquisa para a recriação de estórias consagradas no imaginário nacional, com atenção especial às lendas e mitos afro-brasileiros.


Morador do Guamá, onde mantém um atelier vizinho à movimentada feira do bairro, Nato aproveita os intervalos entre as encomendas – “faço de tudo aqui, de camisetas a leggings” – para tocar os projetos artísticos. Paixão atual: os estandartes, que começou a produzir a convite do Arraial do Pavulagem e não parou mais. Foram eles que o levaram ao encontro com Drika Cha-

gas, artista da nova geração e conhecida pelo trabalho utilizando o grafite como técnica, com quem dividiu a exposição “Sincretismo”, no Centro Cultural Brasil Estados Unidos (CCBEU) no primeiro semestre deste ano. A convite da Gotaz, Drika ouviu o Mestre sobre arte, sincretismo, cultura popular e projetos de ontem, hoje e amanhã. O resultado está nas próximas páginas.


mestre, quando o senhor começou os trabalhos com os estandartes? O trabalho específico com os estandartes eu comecei a pedido do pessoal do Arraial do Pavulagem. Eles me convidaram porque queriam uns estandartes para levar para as ruas, ainda estavam começando... Aí comecei a fazer alguns, meio acanhado... Depois de dois anos, eles me chamaram pra fazer novos estandartes, então comecei a pesquisar com blocos carnavalescos, principalmente de Pernambuco. Fiquei encantado com aquele estilo de trabalho: bordado de imagens. Quando apresentei o próximo projeto pro Arraial já foram bordados. Eles gostaram da ideia dos bordados por cima com reborde em pedras. Os estandartes do frevo são bem carnavalizados e eu queria que os do Arraial não fossem assim; é outra proposta, então trabalhei mais o bordado direto com a linha do que os rebordes, que eu usava mais para dar um charme. Só que as pessoas gostam de brilho, né? (risos) E todo mundo começou a ficar encantado com os brilhos que eu jogava.

“tem estandarte circulando até hoje nos ônibus de belém” o senhor realizou uma exposição itinerante nos ônibus de belém, não foi? Quando comecei o trabalho com os estandartes, reparei, andando de ônibus em Belém, aquelas cortinas que sempre ficam atrás dos motoristas. Pensei: “Vou fazer uma instalação itinerante, um projeto, mandar pro IAP (Instituto de Artes do Pará) e se for aprovado faço dez estandartes contando lendas amazônicas nos ônibus da cidade”. Aí comecei a fazer a pesquisa. Quando fiz o primeiro trabalho, tingi o tecido e mostrei pros motoristas e eles não acharam muito legal. “Ah, parece que tá sujo esse pano” (risos). Era aquela coisa da beleza do precário, né? Mas como era algo que iam usar nos ônibus eu queria fazer algo que eles curtissem, então fiz outro estandarte, mas usando cetim. Mostrei pra eles, que aí acharam belíssimo. e como foi a seleção pra definir quais ônibus receberiam os estandartes? Eu gostava muito de olhar pros motoristas pra ver quais tinham a ver com os estandartes. Se um deles era cabeludo, eu pensava: “Vou levar pra esse aí o estandarte do boto” (risos). Tinha uma moça que era motorista e fiz um inspirado na lenda das Amazonas. Então a escolha tinha a ver com os motoristas, que tinham que ter alguma semelhança com os estandartes. Não sei como, mas eu achava. “Ah, esse aí tem cara de fulano.” Eu entregava os estandartes e repassava a informação sobre a lenda, aí eles viravam agentes multiplicadores da lenda a partir dali. Eles ficaram muito satisfeitos. Tem estandarte circulando até hoje nos ônibus de Belém.



em que ano foi isso? 2005, acho. Por aí... e mestre, o senhor tem auxiliar... como é a sua produção, o senhor tem um atelier... Tenho um atelier de costura, aberto, numa feira localizada no bairro do Guamá, onde atendo todo mundo. Se você chegar e disser “Ah, eu quero uma legging”, vou e faço pra você. Essa camisa aqui (apontando para a própria camisa) fui eu que fiz ontem pra vir pra cá (para a entrevista). Faço as coisas lá, costuro, passo o dia inteiro ali.

eu me considero um “preparador de pessoas” e o senhor tem pessoas que o ajudam, assistentes? Eu me considero um “preparador de pessoas”. Minha formação é cenógrafo pela Escola de Teatro (da Universidade Federal do Pará). A minha assistente atual, por exemplo, fez a prova ano passado para figurinista e não passou. Fez bem a parte teórica, mas na prática se perdeu por não ter experiência. Então ela está comigo lá. Me propus a ensiná-la. Não cobro nada por isso.



queria que o senhor falasse um pouco mais sobre esse trabalho exposto no ccbeu, já que ele é voltado pro sincretismo... Em 2010 eu pensava um projeto abordando a questão do sincretismo, essa coisa dos santos católicos com os orixás. E por que eu queria fazer esse projeto? Porque eu tinha observado que os terreiros de candomblé são meio escondidos e as pessoas parecem ter vergonha de dizer “sou umbandista”. Eu não tenho religião. Sou uma pessoa que acredita em Deus e não gosta de preconceito. Então pensei: “Vou falar dessa relação dos santos católicos com o candomblé”. E comecei a ler. Como eu vinha das lendas amazônicas, que são belíssimas, percebi que há uma certa semelhança. As linguagens se encontram. A mitologia africana tem muita semelhança com a indígena. Os deuses africanos são humanizados. Comecei a ler sobre isso e fiquei encantado. Nesse trabalho, cada estandarte conta a história de um orixá. Como eu tinha necessidade de fazer uma relação sincrética entre esses dois, comecei a pesquisar os santos e descobri uma mitologia linda também.

Quando fui pesquisar Santa Bárbara, descobri que o pai era pagão e não aceitava de forma alguma que ela se casasse. Só que numa dessas viagens que o pai fazia ela foi seduzida por um padre. O pai, quando chegou, descobriu que a filha agora era cristã e não era mais virgem, ou seja: tudo aquilo que ele não queria que acontecesse. Ele resolveu levar ela em praça pública e degolá-la. Só que quando ele tava se preparando (para a degola) veio um relâmpago e matou os dois. Associa: Santa Bárbara é a Rainha da Natureza, dos relâmpagos, e Iansã tem o poder do vento, da tempestade... as coisas se interligam. Se você pesquisar os santos, eles não foram escolhidos pelos negros à toa. Então minha pesquisa foi isso: descobrir o santo, ver a semelhança com os orixás...


e como é que o público reage a esse trabalho? Como o senhor mesmo disse, a própria população muitas vezes tenta esconder essa manifestação popular...

“eu estou preocupado mesmo é em produzir, em contar as lendas”

Meu atelier é frequentado por muitos evangélicos. Eles gostam de conversar porque querem me levar para a religião deles, pensam que sou um pai de santo ou coisa do tipo (risos). Algumas vezes enfrento preconceito em relação à minha obra. Um quadro meu foi vendido pra uma mulher que visitou o atelier, achou muito legal etc. O trabalho passou dois meses na casa dela, mas depois de um tempo ela liga dizendo que estava enfrentando um problema com o marido, que era espírita e não aceitava aquele trabalho na casa deles. Queria um outro trabalho que não tivesse re-

ferências... Aí eu disse “não vou te dar outro porque meu trabalho tem muitas referências pornográficas também. Se teu marido não aceitou esses religiosos imagina algo pornográfico?” Pedi o trabalho de volta e devolvi o dinheiro. Até fiquei numas de “Égua, meus orixás não querem que eu venda minhas obras” (risos). Antes de fazer essa exposição (no CCBEU) fiz uma em terreiros de candomblé, então pensei em doar as obras, mas depois pensei que eu tinha que separar o lado espiritual da produção. Eu estou preocupado mesmo é em produzir, em contar as lendas.




e o senhor tem algum projeto para um novo trabalho, uma releitura com novos estandartes em outro contexto? Tenho sim. Quando comecei a fazer esse trabalho, escolhi fazer dezesseis orixás que são cultuados no Brasil. Só que, quanto mais tu vais lendo, te envolvendo, vais descobrindo novas coisas. Aí vês que na verdade são 400 e poucos (orixás)... Por exemplo, a Oxum é Nossa Senhora da Conceição... Aí aqui eu quis fazer Nossa Senhora da Conceição e Aparecida, que é negra, né? Fiz Nossa Senhora Aparecida na relação dela com Oxum, que acho uma das mais belas orixás. Oxum que também é Nossa Senhora de Nazaré, entendeu? Ela é senhora das águas claras e rainha das águas doces e aqui ela é cultuada como Nossa Senhora de Nazaré.


Então o próximo trabalho será focando nessa entidade, essas várias vestimentas... É. Como eu venho de teatro, da cenografia, pensei em algo que ronda minha cabeça há muito tempo, que é contar a história das mulheres de Xangô. Xangô teve lindas mulheres. Oxum, Obá, Iansã... Mulheres com personalidades totalmente diferentes. Tem a estória de Oxum, que servia sopa pra Xangô. Era um prazer. Um dia Obá perguntou: “Oxum, qual o segredo dessa sopa?” E Oxum respondeu: “Tiro um pedaço da minha orelha, ponho na sopa e ele adora”. No dia que Obá foi fazer a sopa, cortou um pedaço da orelha, botou na sopa e serviu pra Xangô. Só que Xangô detestava sangue. Era

um guerreiro com a maior bronca com sangue e quando ele viu aquilo ficou fulo da vida: “De onde saiu essa orelha?” Botou Obá pra correr, e Oxum achando graça, se divertindo... Aí as duas saíram pra porrada, até que Xangô saiu do trono dele, com uma lança de duas faces, e bateu no chão. As duas saíram correndo, cada uma pra um lado. Uma virou um rio de Obá, a outra um rio de Oxum. Na Etiópia até hoje esses rios são usados para rituais. Obá é um rio que corre pra um lado e Oxum para outro. Esses povos foram aprisionados, vieram pra cá e trouxeram junto seus orixás.


o sincretismo se explica na origem assim, né? eram negros vindos de vários lugares que se reuniam para cultuar seus orixás e cada um trazia sua dança, o deus que cultuava... como era o único quadrado que eles tinham pra interagir, acabavam ali misturando todas as referências. o mais engraçado é que eles guardavam os orixás embaixo da mesa. os de cima eram santos católicos. Exatamente. Porque os senhores não deixavam eles cultuarem seus santos. Os negros estavam lá dançando e os donos da fazenda mandavam acabar com a festa. Quando os feitores chegavam e viam que eles estavam cultuando os santos católicos, achavam que tava tudo bem. São Jorge, Nossa Senhora... Mal eles sabiam que lá embaixo da mesa estavam todos os orixás com as comidas, as oferendas... (risos)


“o grafite vem do gueto, nasce da periferia, e o mestre nato vem do popular também”

Quando a equipe do ccbeu me ligou pra falar do projeto, eu fiquei voando. Como a gente vai unir esse trabalho?” tinha ouvido falar dele, mas não o conhecia pessoalmente. ele me levou para conhecer o atelier dele no guamá e ver o trabalho com os estandartes. comecei a observar e vi que realmente havia uma ligação. a primeira é eu vir também de uma manifestação popular. o grafite vem do gueto, nasce da periferia, e o mestre nato vem do popular também. eu percebi que esbarrava porque eu tenho um trabalho que lida também com essa coisa da espiritualidade. meu trabalho não chega a mexer com candomblé, mas mexe com a nossa região, que é muito católica, que acaba se misturando com o trabalho dele nessa coisa do sincretismo. a partir daí aprendi algo que não estava muito ligado ao meu universo. Você acaba recebendo novas referências. é tão próximo de você e ao mesmo tempo tão longe, né? a gente tem uma cultura muito forte de candomblé, de terreiro, mas ao mesmo tempo tudo isso fica muito distante. é cultura, é válido as pessoas conhecerem, terem esse contato. foi um esquema maravilhoso. a gente vem de uma geração diferente, então é uma honra. o mestre tem toda uma história, e eu estou apenas começando. fiquei muito feliz com o projeto.”


texto: Jorge Eiró ilustração: Gabiru

ou como (não) ver a (atro)cidade...

S

opa no café da manhã no super. Sopa de verdade, não aquela Campbell’s do anêmico Warhol (aquilo é soap), mas esta, fumegante, de carne com tutano, sopa pra levantar defunto. Uma bela japonesinha me olha, baixinha, roliça, pernas torneadas, suculenta como a sopa, óculos Dolce & Gabanna fakes, com a logo em outdoor na armação, lentes grossíssimas como sua boca carnosa escarlate, glossíssima. Devo estar parecendo um zumbi, insone, ou o que resta de um vampiro amanhecido, fugindo dos primeiros raios do sol, escondido atrás do ray-ban wayfare, depois de uma aventura notívaga que não deu em nada, nem um pescocinho sequer... A companheira da japinha, uma loura (falsa, cara suburbana), percebe a estranha e magnética atração mútua de nossos olhares entrecruzados e me encara, pitbull de ciúme. O garoto pretinho e faminto que está com elas (adotado?, nossa culpa deslocada...) encarrega-se de dispersar nossa atenção derramando o chocolate na mesa. Mudo a visada para o “grande vidro” duchampiano da vitrine do supermercado que dá para a avenida. Sinto-me imerso naquela redoma do café na alta madrugada dos Nighthawks de Hopper. Mas já é de manhãzinha e a retícula do grande vidro parece agora lembrar mais um Domingo de Seurat, filtrando a luz-e-sombra das mangueiras lá fora, uma bela paisagem pixelizada pós-impressionista. No entanto, estas imagens nostálgicas e bucólicas da Belcity logo se dissipam e se embaralham na caótica pichação que polui visualmente a urbe. O grande vidro parece converter-se, então, naquelas urnas vitrais com que Bacon enclausura, oprime e esmaga seus retratados. Esta cidade já

“Mudo a visada para o ‘grande vidro’ duchampiano da vitrine do supermercado que dá para a avenida” não nos pertence, pois, dentre outras barbaridades, o flâneur há muito foi substituído pelo flanelinha. Faz tempo que a natureza foi embora para sempre e, dos escombros da pós-modernidade, agora o que nos resta é apreciar, desencantados, o paisagismo décor decadente dos nossos condomínios de segurança máxima. A bordo de um niilismo blasé, nos satisfazemos ao emoldurar a cidade exclusivamente através das janelas de nossos carros blindados – blind’n the windows, Dylan: quantas paisagens deve um homem apreciar até que perceba que está cego? Ou nos conformar a enquadrá-las por meio das janelas panorâmicas do busão, na contramão, “andando pelo mundo prestando atenção em cores, cores de Almodóvar, de Tarantino, de Frida Kahlo,...”, para tentar extrair dessa grande sopa urbana as migalhas de alguma poética visual que possa nos redimir. Posto via instagram a seguinte imensaimagem-paisagem acerca do imenso vidro: “My lonely landscapes in sunday superflat soup, domingo de manhã bem cedo, sopa no café da manhã do super...”, e a replico


para todos da minha agenda. Logo alguém responde: “tá ficando doido?! domingo, essa hora?! vai dormir que o teu mal é sono...”. Dou uma gargalhada, nem confiro quem responde, e deleto. Ele ou ela, quem quer que seja, tem razão. Sinto-me apenas um vampirodândi destinado a penar notívago e insone na eterna madrugada dos tempos pós-tudo. Levanto e pago a conta. Não sem notar que a moreninha do caixa é uma joia exótica, parece uma tailandesa (quero dizer: uma linda caboquinha de Tailândia, faroeste do Pará). Tento puxar uma conversa fiada, ela apenas sorri sem sequer levantar a vista e se limita a passar o troco. Acho que me tornei invisível (“Vê se te enxerga, vampiro!”, ela diria...). A japa já se mandou que eu nem vi. Na saída, já na rua, encontro-a mirando-se, tal qual uma “bonequinha japinha de luxo”, na vitrine do supermercado. Olhando melhor, saco que ela não passa de uma japa degenerada, mas sim, de uma deliciosa mistura de japonesa, índia, portuguesa, sei lá, lá das bandas de Tomé-Açu com Hiroshima Mon-Amour... Por conta disso, descubro que a “impressão” do lado de fora é outra: o “grande vidro” torna-se espelhado,

cujo efeito reflete e, ao mesmo tempo, repele a cidade. O que resulta é a imagem sequelada de uma Metropolis deformada expressionista e cubisticamente, com seus prédios distorcidos e decrépitos daquele velho Boulevard Baudelaire fazendo-os parecer uns Frank(stein) Gehry periféricos. Logo começa uma chuvinha fina que me remete àquela intermitev nte e ácida do Blade Runner, e então assisto a cidade espelhada no vidro dissolver-se na marxiana modernidade líquida e tardia de Bauman. Entro no carro, visto sua carapaça batmaniana blindada (que àquela hora está escaldante em razão do clima de Hellcity) e, imediatamente, ligo o ar-condicionado no máximo. Ahhh..., nada como um clima civilizado. O ar frio condensa o interior quente do carro e embaça todos os vidros, inclusive as lentes escuras do meu ray-ban. A cidade vai se esvanecendo lá fora, tudo se esfumaça no ar. Deixo o enevoado daquela i-cloud me cegar como uma noite branca. Ligo o som: “Hey! Mr. Tambourine Man, play a song for me, In the jingle jangle sunday morning…”. Dou a partida e vou. Let it be, let it blood. Let it blind!...


o fot贸grafo paraense ionaldo rodrigues vai sua vis茫o muito particular das


além dos limites do dicionário para apresentar áreas periféricas de belém e altamira.












no coração da cidade velha, atelier do porto dialoga com a comunidade e propõe olhares diversos sobre a produção local

N

a floresta tropical, reina o fluxo orgânico da vida. A natureza estabelece o seu ritmo de sobrevivência e evolução, baseada em temperatura e umidade. Vê-se um mosaico de diferentes espécies de vegetação que forma belas paisagens e ainda esconde, sob as folhas, insetos e outros seres vivos, os quais “dialogam” e se “entredevoram”. Como escreveu o poeta e ensaísta britânico Francis Bacon, “a tarefa do artista é se aprofundar no mistério”. No caso, no mistério da natureza. Em plena Amazônia, na cidade de Belém do Pará, o Atelier do Porto pode ser considerado um recanto à apreciação e ao entendimento da produção artística do Norte do país. Tem estrutura organizacional análoga ao clima quente e úmido dos trópicos, sob a ótica de que, segundo o artista plástico Pablo Mufarrej, da mesma maneira que a umidade de Belém não permite preservar as coisas por muito tempo, não se deve viver num modelo fechado de produção. “A gente não tem estrutura climática nem organizacional para isso. Acho que o fluxo orgânico da vida, das relações, é que estabelece o nosso modelo de ação. É a metodologia da umidade”, teoriza, referindo-se ao trabalho colaborativo desenvolvido no espaço. No papel desde 2009, o Atelier do Porto se tornou realidade em 2011. Tudo começou em uma oficina de gravura na Fundação Curro Velho, instituição vinculada ao Governo do Pará, que promove ações educacionais relacionadas à arte e à cultura. “A nossa formação se deu dessa maneira coletiva, na oficina do Curro Velho”, explica a artista Elaine Arruda, citando Pablo Mufarrej e Armando Sobral, seus parceiros no Atelier do Porto. Montado primeiro no bairro da Campina, no centro de Belém, e por isso denominado originalmente Atelier da Campina, o projeto começou como um espaço individual de produção, pertencente a Armando e Elaine. Porém, não demoraria a ter suas portas abertas ao público. “Sentimos vontade de torná-lo um espaço ativo na cidade, para fazer gestão de projetos, expor os trabalhos, convidar


texto: arthur nogueira fotos: renan viana


artistas”, conta Arruda. Àquela altura recém-chegada no Brasil, a artista canadense Véronique Isabelle entrou para o grupo e começou a trabalhar na expansão do Atelier. A primeira providência foi a mudança para um espaço maior, que pudesse atender à demanda de produção coletiva e exposições. O Porto do Sal, onde hoje se localiza o Atelier do Porto, fica na Cidade Velha, o bairro mais antigo de Belém, repleto de belos casarões e ruelas de paralelepípedos. É um patrimônio histórico que abriga embarcações tipicamente regionais e indústrias de beneficiamento de castanha-do-pará e outros produtos do extrativismo vegetal da região Norte. Um lugar frequentado, sobretudo, por pessoas oriundas de regiões ribeirinhas. Universo complexo que, como escreveu Véronique, “concentra em si várias realidades características da cidade” e possui “forte relação com a pesca artesanal” e com “as culturas ribeirinhas que transitam nele”. Fazendo jus ao nome, a sede do Atelier do Porto fica

na Travessa Gurupá, a poucos metros do Porto do Sal, em um casarão onde, originalmente, Elaine e Véronique moravam. “O nosso trabalho sempre teve a influência de lá. É um lugar que faz parte tanto do meu projeto poético quanto do dela”, garante Elaine, que produziu, individualmente, gravuras em metal nas imediações do Porto do Sal. Intitulado “Elucubrações”, esse trabalho foi realizado em parceria com metalúrgicas sediadas no Porto e financiado com a Bolsa de Pesquisa e Experimentação Artística do Instituto de Artes do Pará (IAP), em 2010. “Elaine produzia no meio de um monte de operários e eles acompanhavam o processo, embarcavam na ‘viagem’ da arte. Depois que viram as gravuras prontas na galeria, disseram: ‘Não sabia que um metal poderia ser tão bonito!’”, conta Véronique, para explicar que as atividades que desenvolvem se baseiam, sobretudo, na construção de amizades e relações de parceria. Da maneira como funciona atualmente, o Atelier do Porto agrega cinco artistas: Armando Sobral, hoje re-

“dialogamos com o mercado local e recebemos obras de artistas de outros lugares” O trabalho do pintor profissional Luís Júnior é uma das pontes que ligam o projeto do Atelier ao entorno da comunidade do Porto do Sal, no centro histórico de Belém



Obras como do artista visual Alexandre Sequeira fazem parte do acervo permanente do Atelier do Porto. Na página ao lado, uma das peças de Armando Queiroz.

sidente em Brasília (DF); Elaine Arruda, residente em São Paulo (SP); Véronique Isabelle; Pablo Mufarrej; e Starllone Souza. Em resumo, o grupo trabalha a fim de consolidar um espaço próprio, onde seja possível tanto produzir quanto “resguardar obras já produzidas”. No Atelier, há ambientes para a confecção e comercialização de trabalhos, abertos ao público, visando aquecer o circuito de arte independente na cidade. “Por meio do Atelier, dialogamos com o mercado local e recebemos obras e artistas vindos de outros lugares”, explica Pablo Mufarrej. Nesse esquema de trabalho colaborativo, os cinco artistas dividem as contas e têm o uso do espaço irrestrito. As ações desenvolvidas com a assinatura do Atelier do Porto, segundo Mufarrej, partem das redes de relacionamento de cada integrante do núcleo mantenedor. “Juntamos o nosso capital social para poder trabalhar”, assegura. Dessa forma, com a recente mudança de Armando Sobral e Elaine Arruda para outros centros do país, o grupo ganhou novas frentes de atuação e influência.

Hoje é possível encontrar, na galeria do Atelier do Porto, tanto obras do núcleo que administra o espaço quanto dos paraenses Armando Queiroz e Alexandre Sequeira, da amapaense Elieni Tenório, do paulista Fabrício Lopes, do canadense Hugo Bergerun, entre outros artistas. Um acervo que está em constante movimento e aberto a novas parcerias. Com pouco mais de um ano de funcionamento, o Atelier do Porto já desenvolveu um número significativo de projetos. Por exemplo, a “Feira de Arte DEMOgráfica”, na qual o público tem acesso a gravuras, desenhos, pinturas e objetos com até 60% de desconto. “A Feira não tem somente o intuito de vender, mas, principalmente, de formar novos colecionadores”, explica Pablo Mufarrej. Segundo o artista e arte-educador, obras são feitas para circular, seja em instituições ou quando alguém se interessa e as guarda para si, tornando-se o fiel depositário daqueles trabalhos. “A gente conhece várias pessoas que têm interesse, mas os trabalhos de arte acabam sendo onerosos. Não que esse custo não seja justificado pela produção, mas no


dia da feira a gente faz um esforço coletivo de democratização”, explica. No entanto, é importante frisar que o Atelier do Porto não trabalha na perspectiva do mercado de arte. Essa função, segundo Mufarrej, concerne às galerias. “A venda do que a gente produz é importante porque possibilita a construção de novos trabalhos, sem depender, por exemplo, da política de editais”, diz o membro do Atelier, que, dentre as obras expostas na casa, tem a série “Tempo” (2006), na qual explora a construção formal da gravura e discute a passagem do tempo na execução de uma obra de arte.


Embora? Em boa hora... Há cerca de quatro anos, Véronique Isabelle recebeu um e-mail inusitado, que a convidava para participar de uma exposição no Brasil, mais precisamente, em Belém do Pará. “Primeiro não levei a sério, depois recebi a carta oficial do IAP e fiquei curiosa para conhecer a Amazônia”, conta a artista, natural de Québec, no Canadá. “Eu nunca tinha ouvido falar da cidade antes!”, confessa. Quando chegou ao Brasil, ela pôs em prática um projeto que sempre a perseguiu: criar uma residência artística, penetrando no cotidiano de uma casa, na intimidade de um casal. “A única pessoa para quem eu poderia pedir isso era a Émily, uma amiga de infância que morava no Rio. Liguei para ela e perguntei: ‘Posso fazer uma residência na sua casa e depois expor o resultado disso em Belém?’”, lembra. E foi assim a sua incursão no desconhecido, por meio de uma família metade brasileira, metade canadense. Véronique chegou a Belém em 2008, com o resultado desse trabalho debaixo do braço, para participar da exposição coletiva “Realidades Transitórias”. A estada no Rio, segundo ela, foi importante para se adaptar ao Brasil e se sentir à vontade na cidade que até hoje lhe dá guarida. “Foi engraçado, porque eu estava no

início de carreira no Canadá, com exposições legais, articulações de redes de contatos, mas esse encontro aqui me provocou tanto que foi ‘tudo ou nada’. Optei por ficar”, conta. O que causou em Véronique o desejo de fixar residência no Brasil foi a particularidade do mercado de arte no Pará. “Não é um mercado forte, mas que tem demanda.” Segundo ela, a diferença em relação ao Canadá é que em Belém se vive um momento de construção. “Lá, as construções já foram feitas. São estruturas fortes, com equipamento, equipes trabalhando demais, uma arte superprodutiva, mas o espaço é menor”, assegura, considerando-se “feliz da vida” por fazer parte do projeto no Porto do Sal. “O Atelier do Porto é uma forma de pensar e atuar, é um lugar de fluxo. Não é um espaço onde a gente se tranca para trabalhar. Pelo contrário. Construímos amizades e relações que se desdobram em projetos. E a arte é sempre a liga, a “goma” de tudo isso”, certifica. Sobre a possibilidade de voltar para o Canadá, Véronique não titubeia. “Me sinto realizada aqui e não penso em voltar. Estou encontrando pessoas fantásticas em Belém”, comemora.


Véronique Isabelle e Pablo Mufarrej: objetivo do atelier é “dividir conhecimento e possibilitar acessos”

A linha de fronteira se rompeu Dividir conhecimento e possibilitar acessos. Metas em consonância nos depoimentos dos artistas vinculados ao Atelier do Porto. Em outras palavras, foram rompidas as barreiras de diálogo entre diversos núcleos de produção, brasileiros e estrangeiros, e também entre as imediações. Hoje, o espaço toma proveito, inclusive, do cenário tão particular do Porto do Sal. Pablo Mufarrej conta que foram Elaine e Véronique que deram o primeiro passo para a articulação do Atelier com as pessoas do entorno, por meio de líderes comunitários. Em uma dessas andanças pelo Porto, o grupo tomou conhecimento do trabalho de Luís Júnior. “Ele é um pintor profissional, que faz todas as pinturas dos barcos do Porto, abre as letras, faz os brasões. A gente foi conversando e propusemos para ele fazer o abecedário em papel, tirar isso dos barcos”, conta Mufarrej. O convite foi aceito e hoje as obras do artista estão expostas no Atelier do Porto. São letras gravadas em papel ou em pedaços de madeira das embarcações, com tipologia simétrica e original. Para os artistas do Atelier, é gratificante ter um membro da comunidade envolvido no projeto. “Não é um papel assistencialista que fazemos, mas de promover canais que possam divulgar esse trabalho”, esclarece Mufarrej, ao som do tecnobrega que ecoa nas ruelas da Cidade Velha, vindo do Porto do Sal. “É importante ele ter começado a encarar o seu ofício com outros olhos. Acho que essa é a tarefa do artista: reolhar”, finaliza Véronique.


O Cinema está morto, e foi a Família. Agora existe outra coisa, que parece retornar em espiral à primeira arte do cinematógrafo, mas que já é outra coisa. O Cinema, mesmo morto, ainda sobrevive, os zumbis sempre existirão; vagam e são belos, e ainda deixam rastros... Mas já há outra coisa, que existe também no agora, outra coisa que não é o Cinema, mas que não se nomeia de outra forma que não Cinema.

Diz:

Por que utilizo a linguagem verbal para pensar, também, a audiovisual? Porque é assim que o espírito em mim se movimenta. E posso ser infiel a tudo, jamais ao espírito... E falando em espírito, Espírito, quem fala aqui é uma voz/corpo id-entidade, Um anônimo membro-participador da Família. Esse não vem falar nada de novo, vem falar sobre o novo que tá aí; com palavras de um agora.

Eu: O que aconteceu é que a Família tomou as rédeas da cerimônia... Não é mais a passível receptora das imagens dos iluminados, não se inclina mais às vozes dos sacerdotes, não se espanta mais com o truque dos prestidigitadores, não se encanta mais com o delírio dos profetas... A Família profanou o culto, trans-auratizou a Entidade... A liturgia sacra metamorfoseou-se em festa popular... E é nesse momento que o índex parece receber sua vingança; os Livros, as Regras, as Estéticas, toda essa Tradição Maravilhosa que, não obstante, sufoca o Novo, está sendo queimada na fogueira de São João, espancada pelo porrete de Exu. A voz murmura, a vós?: Aqui é o distante do Brasil, não tem contexto econômico apropriado, não tem técnica ou maquinário avançado, não tem sobras de expediente temporal adequados para fazer o tal Cinema... Ótimo! Matemos o Cinema, o tal... Não fui eu, nem tu, foi a Família! Há Tao!

De fato:

Foi a Família que empunhou câmeras para filmar seu diário de impressões sobre a realidade, foi a Família que resolveu comunicar sentimentos a outrem na forma audiovisual, foi a Família que resolveu fazer denúncias do que considerava injusto a partir do rifle de captura do presente, foi a Família que despudoradamente registrou os seus momentos mais íntimos, mais perversos, mais sacanas, foi a Família que quebrou os tabus, a indústria, a elite, foi a Família que ousou conectar todo o mundo numa rede invisível para compartilhar universos. A Família é bagunceira, é espontânea, é barroca, é barraco, é canibal, é bárbara, é aberta, é pagã, é pã. Lincha o bandido sem culpa, degola a galinha, assassina o parente, invade a propriedade, inventa na miséria, ocupa a rua, corteja pelo centro, escarnece do imposto, avacalha o plausível, se embriaga de si. É a insurrecta incoerência lúcida do revolucionário, a sofisticada intimidade intuitiva do primitivo. Fusão entre o diletantismo militante e o militantismo diletante, o Cinema feito pela Família parte da necessidade primeira do prazer

metrópole da amazônia, gaya, não posso debater, me debater, mas amar, receber, ter. fazer o quê? nós, cidades, com açaí ou sem açaí, somos todas farinha do mesmo saco: a família.

e é do meu seio que bebem, e ao meu ventre que retornarão, é no meu corpo que habitam, e é nele que, levados, rolam, jogam, batem, abrem os caroços de tucumã; engendram minha imaginação. e se sonho todo o tempo, pois sou vida-prima assim, feita de órgãos Simaginários, é devido aos devaneios e ações destes seres, vários. se me chamam belém, santa maria do grão, cidade das mangueiras,

texto: mateus moura ilustração: leandro bender


“o cinema está morto, e foi a família”

interno de religamento com a existência e o ser. Seguindo os princípios da sevirosofia (sabedoria do “se vira”), a Família é uma entidade com fins criativos-destrutivos (enfrentativos). Erótica, ótica, ouvidos abertos, tapada, nós-outros. Somos todos atores do nosso complexo. Édipo. Transeunte. A poesia sonha, deus realiza, a máquina eterniza, o homem fabrica. Na dramaturgia do caos, atos. A Comédia Humana & Imortal, dissolvente de estereótipos, acredita acima de tudo no acaso. E como o Cinema não está no campo das artes, mas no campo das linguagens – como a língua escrita não é só feita de romances, dramaturgias e poesias, mas de ciência, filosofia, bula, diário – assim, aprendeu a Família esta linguagem, e hoje faz cartões, bilhetes, pixos, garranchos, manifestos, respostas, postais. A Família tá cheia de cinegraphistas, esses photógraphos dos vinte e tantos frames por segundo, vulgarmente não-conhecidos como os embusteiros do tempo. A Vida é uma ilusão, o Sonho é uma ilusão, o Cinema é uma Ilusão. Só a Respiração é Real: o movimento de sucção do Mundo para dentro de um Ente (inspiração), a pausa, e o movimento de expiração (quando o Ente de-

< E de enfim, e depois de tudo isso? Zero. Um. Vaga. Neste mar de potência, por que rio remarás, cabano, caboclo, urbano, humano? Quem és, a que foste destinado?, pergunta a cidade.

Não é tão somente acerca de Arte o que está acontecendo, mas de um novo Realismo, a partir da realidade e das ferramentas. Tecnologia nova, linguagem antiga (se reformulando: estética não estática, antes em busca do extático, é a ética de autodescoberta-do-outro). Porque a Família à Família grita: A-vida-deve-ser-um-dado-lúdico. Não deve haver diferença, na tela, entre o real e o imaginário; assim como não deve haver diferença, para a mente, entre a reflexão em conceitos e a ação em formas: todos devem caminhar para as essências. Entre-mentes: é o convite de entrar; viver, de novo e sempre, o que é o primeiro de tudo: a mentira – só esse atravessamento é verdadeiro. “Fazer arte” é se exprimir com a responsabilidade da liberdade sendo linguagem. É naturalmente um movimento ético e simbólico (estético), da alçada do delírio & do artifício. É onde, finalmente atravessado no/pelo mundo, o ente está pleno em sua solidão, e de fato é o Um integrado. A Família é o Zero. 0000000000000000000000000000000000 000000000000000000000000000000000000. Somos Um no Zero. A Família não tem infinitos olhos, mas infinitos olhares. Do meu olhar (é só minha forma de apontar a vida... flecha) do agora, saiu >

A Voz diz, a vós diz:

volve ao Mundo o que o Ser formatou no intervalo). Não é um movimento MEU, nem TEU, é um movimento da VIDA, que participamos ademais, às vezes. A Criação é algo extremamente individual & extremamente coletivo: é o símbolo da alteridade. O que chamam de “estilo” é figura retórica para expressar o que é da categoria do acidente (o ego em corpo que se configura enquanto identidade). A substância que NÓS somos é a Família, eu/tu/ele é um acidente dessa essência. Um no Zero. 0


texto: lorenna montenegro fotos: brunno regis

na cara e na coragem, são muitos os que apostam no cineSemma dinheiro, como o melhor caminho para compreender o próprio universo.

O cinema e suas possibilidades. Por mais clichê que a frase proferida por Glauber Rocha seja, “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” é um ponto de partida para a produção audiovisual que vem inspirando gerações desde que o Cinema Novo derrubou estigmas e apresentou ao mundo a capacidade artística dos cineastas brasileiros. De presídios e favelas, indo a Mosqueiro, e de lá voltando para o coração do bairro da Campina, viajamos em quadros animados e metros de películas para contar histórias de indivíduos e coletivos que, com as mesmas – ou ainda maiores – dificuldades, realizam atividades cinematográficas pela cidade para promover a cidadania, expressar suas ideias ou simplesmente reagir às imposições do sistema. Membro de uma família de artistas, Márcio Barradas pouco resistiu ao chamado artístico. Começou uma carreira como ator ouvinte na Escola de Teatro e Dança da UFPA, quando o tio famoso (Claudio Barradas) por lá lecionava. Escreveu esquetes para o grupo Cena Aberta, mas abdicou do fazer teatral pela música. Gravou um disco, mas logo se cansou dos melindres do cenário musical paraense e se encontrou no cinema. “Trabalhar com criação sempre me motivou. Eu trouxe toda essa carga de experiências distintas para fazer algo que é quase uma necessidade vital. Às vezes estou triste, mas quando entro num set logo me sinto melhor.”


Na pele, “Mito e Metamorfoses das Mães Nagô”. Uma das pedras fundamentais que deram origem ao Cineclube Nangetu, um dos muitos que derrubam dificuldades para discutir temas comuns às comunidades nas quais estão inseridos


Fugindo do rótulo “cineasta”, Barradas se considera um realizador em busca de experiências autênticas de cinema, nas quais imagens e música têm o mesmo grau de importância. Trabalhando colaborativamente com outros interessados em produção independente, frisou que só escreveu um roteiro até hoje – o de “Comparsas”, uma adaptação da obra de Charles Bukowski. “Para mim o cinema é uma brincadeira, algo que comecei fazendo com uma câmera bem simples com o intuito de experimentar. Não tenho receita pronta de como fazer, mas sempre procuro transformar dificuldades em soluções criativas, tendo atitude para fazer praticamente tudo e me cercando de pessoas que tenham o mesmo impulso de fazer cinema sem amarras”, definiu o diretor de obras que têm uma forte ligação com a literatura e a poesia (outras formas de expressão artística usadas por Barradas), caso de “O Poeta da Praia”, “O Filho de Xangô” e “Coração Roxo”. Barradas percebeu como Belém, Mosqueiro ou Icoaraci (esta última a locação do novo filme que produz, sobre o poeta Antonio Tavernard), são ricas em elementos e pessoas a fim de desnudar os segredos escondidos, desbravar as verdadeiras histórias escritas por casas e ruas, e apropriou-se do audiovisual como a ferramenta para traduzir esses signos. A solidão, muito presente nessas obras, encontra o lirismo para expressar uma visão do cotidiano urbano da cidade através da janela de um prédio em “A Janela”.

“Comparsas”, uma adaptação da obra de Charles Bukowski, faz parte do conjunto de obras de Márcio Barradas, que foge do rótulo “cineasta” para definir a si mesmo e a maneira como encara o fazer artístico na realidade da capital paraense e arredores


Filhos de Santo Numa sexta-feira à noite, enquanto cadeiras começam a ser arrumadas num casarão, um projetor e um telão ganham espaços de destaque no meio da sala. As pessoas vão chegando e aqueles que lá trabalham e são identificados como da mesma família pela sua crença e vestimentas. Estes são os filhos de santo – sacerdotes Bantu –, que se reúnem em volta de Mametu Nangetu, a grande comandante do terreiro batizado com seu nome. O MansuNangetu Mansubando Kekê Neta tem suas atividades de atendimento e rotinas suspensas uma vez por semana para abrir espaço para um cineclube voltado à comunidade afro-religiosa. Para entender como tudo começou, é preciso voltar mais um pouco no tempo. Foi em 2005 que o Tatá Kinomboji Arthur Leandro trouxe em sua bagagem um indício forte. “A história desse cineclube é uma sucessão de acasos felizes. Eu comprei uma mobília num ferro-velho no Rio de Janeiro, e quando abri uma das gavetas encontrei dois rolos de filmes de 16mm. Depois descobri que tinham pertencido ao Centro Técnico do Audiovisual e obtidas em um leilão de alienação. Os dois filmes que ‘herdei’ foram “Egungun” e “Mito e metamorfoses das mães nagô” (Iya-Mi-Agbá), ambos produzidos pela Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil, e considerei aquilo como uma benção”, contou Leandro, programador do cineclube.



A exibição de “Iracema”, de Jorge Bodanski e Orlando Senna, foi o ponto de partida para o Cine Gempac, que atua junto às prostitutas no bairro da Campina, exibindo e produzindo filmes que tratem de temas ligados ao dia a dia das profissionais

Logo depois, Leandro organizou um evento para apresentar os filmes à comunidade afro-religiosa da cidade. “Conseguimos um projetor emprestado e projetamos os filmes numa parede do terreiro. Não teve um grande público, mas nos mostrou a necessidade de dar aos povos de terreiros acesso à produção audiovisual brasileira que retrata a nossa cultura”, assinalou. Com persistência, o Nangetu conseguiu, por meio de parcerias e movimentos como a Rede Paraense de Cineclubes, manter uma programação regular. Um filme emprestado ali, outro baixado da internet aqui, um alugado acolá, assim foi ganhando força, abrindo espaço para o debate sobre a intolerância religiosa, o racismo e outros temas arenosos. Foi então questão de tempo para que o reconhecimento viesse na forma do prêmio no Edital Cine Pará Mais Cultura e da titulação como Ponto de Mídia Livre pelo Ministério da Cultura. O cineclube ganhou equipamentos e adquiriu diversos pacotes de filmes da Programadora Brasil. Logo, estavam fazendo vídeos que, via internet, ganharam o mundo. “Colocamos eles no You Tube. Além de abordar temas do nosso universo e filmar coisas como a festa de Yaya Maré’, vamos expressando a singularidade da cultura afro e de outros temas que nos interessam, além de quebrar paradigmas e tabus exibindo filmes que abordam temas difíceis como o racismo e a intolerância religiosa”, acrescentou Arthur Leandro. Uma equipe da Programadora Brasil esteve no terreiro, interessada em ver como o peculiar cineclube funcionava. “Temos associados mais de 1.500 cineclubes que funcionam em escolas, terreiros e outros espaços coletivos, e selecionamos nas cinco regiões algumas iniciativas que têm público considerável e regularidade. Notamos que eles estão engajados em fazer o cinema gerar discussões diversas”, elogiou Leandro Baptista de Almeida, produtor de comunicação e circuitos da programadora. “É uma opção cultural importante para a comunidade. Temos mais de 20 filmes africanos raros no acervo, alguns já apresentados nas sessões”, enumerou Chico, o sacerdote artista gráfico da instituição. Segundo ele, também apresentam filmes premiados e inéditos na cidade, como fez com “A festa da menina morta” e o documentário “Quebradeiras”. “Nós estamos abertos à troca, a sugestões de sessões programadas por outros grupos e lançamentos de filmes locais.”


Puta cinema E é resistindo a estatísticas como a que aponta que no Pará existem apenas cinco salas de cinema para 143 municípios, segundo a Fundação Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que esse e outros cineclubes vão fazendo o papel de exibir e provocar discussões. Presentes em apenas 32% dos municípios paraenses, eles vão aumentando de número em Belém, mesmo enfrentando resistências. Caso do Cine Gempac, que surgiu para ajudar na legitimação política do Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará, entidade que atua há 22 anos na defesa dos direitos dessas mulheres. “Nós nos aproximamos delas propondo fazer um levantamento do acervo fotográfico e material da instituição, conhecer a história, e agregamos logo o cinema através da exibição de filmes nacionais cujos temas despertassem o interesse delas”, lembrou a estudante Luah Sampaio, que, ao lado de Eduarda Canto e Iuri Silva, assumiu a missão de introduzir o cinema na rotina do Gempac. O início foi desanimador, com filmes sendo vistos por poucas, mais interessadas em garantir o pão do que nos debates sobre a própria condição. Para surpresa dos três, logo não só elas, mas os moradores do bairro, como Seu Bené, passaram a frequentar as sessões assiduamente. “Fomos conquistando aos poucos, promovendo eventos como o Reggae das Putas e o Dia da Mulher Livre em 8 de março, nunca deixando os filmes de lado”, contou Iuri. Com os debates produtivos, rendendo inclusive narrativas de histórias de vida de algumas – inspiradas

pelo que viam, como “Iracema” de Jorge Bodanski e Orlando Senna, o primeiro exibido –, foi um pulo para que surgisse a ideia de uma oficina de produção audiovisual, cenografia e expressão corporal. “Elas queriam se apropriar de algumas ferramentas e como as oficinas ministradas acabaram funcionando de uma forma integrada, pensamos na produção de um vídeo como conclusão. Foi elaborado um roteiro ouvindo as sugestões delas e começamos a gravar, elas próprias atuando na frente e atrás das câmeras. Tivemos cenas no Ver-o-Peso e Praça da República, contando a história de amor entre a Rita e o Seu Bené”, explicou Duda, acrescentando que a produção deverá ter uma pré-estreia cheia de pompa no segundo semestre deste ano. O projeto, que saiu do papel graças a uma pequena verba advinda de bolsa da Proex/UFPA, englobou o 1º ciclo de programação do cineclube e alguns eventos como o “Puta Dei”, que trouxeram mais visibilidade para o Gempac e aprofundaram o debate sobre o papel delas na sociedade. Para Leila Barreto, diretora do Gempac e filha de Maria de Lourdes, presidente da entidade, a parceria evoluiu a tal ponto que continuou mesmo quando o projeto foi encerrado. “O envolvimento deles foi tamanho que gerou um movimento num momento em que atravessávamos um processo de mudança desafiador. Estamos desenvolvendo o núcleo de comunicação do Gempac, que responde por diversas ações e amplia a nossa função de enfrentamento da violência contra a mulher e resistência”, frisou.



Visto inicialmente com desconfiança, hoje o cine Gempac faz parte da vida das mulheres que participam do movimento, das que estão trabalhando ou mesmo das que já se aposentaram. Um desafio semelhante ao vencido pela Central Única de Favelas – unidade Pará, que levou o cinema às áreas mais carentes da capital e deu voz aos moradores. “A ideia do Cine Periferia surgiu em 2009, com o propósito de fomentar e discutir o que estava sendo produzido por aí, e constatamos que não tínhamos material produzido pelos moradores das nossas periferias. Então, antes mesmo do festival nacional, que só conseguimos executar por aqui ano passado, realizamos oficinas em bairros e unidades prisionais”, contou Aline Monteiro, coordenadora estadual da Cufa. As primeiras oficinas audiovisuais aconteceram nos bairros da Marambaia e Guamá, e mobilizaram 20 e poucas pessoas em cada lugar. De acordo com Elrick Lima, coordenador de audiovisual da entidade, alguns desistiram ou perderam o interesse, mas os que continuaram foram aprendendo como se expressar e realizaram “Marambaia Consequências” e “Improvisation”, tratando de temas como o bullying e a invisibilidade social. “Fizemos uma pré-seleção dos interessados e passei a ensinar desde o básico a eles. Como desenvolver uma ideia, estruturar roteiro, o que é plano e contraplano, e eles foram fazendo os documentários que exibimos em abril no Cinema Olympia, para todo mundo se ver e aplaudir o trabalho conjunto.” Elrick recordou da dificuldade em conquistar a confiança dos encarcerados, que realizaram outros dois filmes somando aos quatro já produzidos nas oficinas da Cufa: “Quando entrei no CRF, elas questionavam, perguntavam como iam ter retorno da atividade, saber se algo ia ser realmente produzido, então fomos conversando e indo por partes. Primeiro estabelecemos a problemática, depois tratamos de linguagem e demos um dia para elas comporem uma narrativa, e elas foram selecionando personagens e captando imagens para o que seria o ‘A Vida no Cárcere’, e que despertou o interesse delas para uma oficina de fotografia”.

Vendo fotos como a que mostra um vidro de esmalte do lado de fora da cela, ou da mãe que enfeita o cabelo da filha, a sensibilidade das encarceradas ganha sentido através da lente fotográfica, interpretações de autoimagens que farão parte de uma exposição a ser produzida pela Cufa. Atrizes e atores de suas próprias liberdades, as mulheres do CRF e os homens do CRC (que produziram um documentário contundente denominado “É preciso ressocializar”) resistem ao confinamento deixando a veia artística aflorar. E se a palavra de ordem para os que fazem o supostamente impossível é resistência, o paraense Marcelo Marat configura como poucos a concepção de um cinema livre. “Necronomicon”, “Caligari”, “Vampiro” e “Um Dia Perfeito” são alguns dos experimentos audiovisuais que o também escritor de histórias em quadrinhos já “pariu”, graças à tecnologia digital que tornou o cinema mais acessível. “Posso dizer que a minha paixão encontra algumas limitações técnicas, mas nunca estéticas. Eu sempre fiz o que quis nas linguagens com as quais trabalhei, baseado na minha vontade, sensibilidade e criatividade”, enfatiza Marat.


“Quero falar do que me interessa, mesmo que ninguém entenda”, diz Marcelo Marat, que, à frente da Abuso Produções, participa diretamente do roteiro à edição final dos filmes que veicula na internet

À frente da Abuso Produções, ele vem realizando diversas produções na linha do “cinema possível”, que agregam linguagens e poéticas. “Tenho vídeos como ’Antitemplo’, que partem dessa dinâmica; inclusive o “Contos de Sangue” veio como uma história em quadrinhos que surgiu de um projeto para uma radionovela”, citou. Contando com “participações” de atores como Vincent Price, ícone dos filmes de terror, e inspiração do cinema expressionista alemão da década de 1920. Controlador como um Robert Rodriguez, o cineasta participa do roteiro à edição final e é totalmente dependente da música para compor suas imagens: “Me ressinto de não poder trabalhar com compositores para fazer um trabalho mais autoral. Quanto a estar em todas as etapas do filme, é cansativo, mas também é muito divertido, e não há outra saída quando se faz arte sem grana.” Ele manda um recado: é possível a qualquer um meter a cara e fazer cinema a custo zero. “É democrático, libertário. Dinheiro é sempre bom, mas se eu tivesse grana pra filmar, provavelmente estaria fazendo outro tipo de filme, bem diferente do que tenho feito. Com as leis de incentivo isso fica ainda mais complicado, pois elas trabalham com fórmulas prontas, temas pré-fabricados e inócuos, e eu fujo disso. Quero falar do que me interessa, mesmo que ninguém entenda”, finalizou Marat, sem medo de mergulhar no que acredita, traduzindo suas convicções em imagens para o mundo real.


Como nos versos de drummond, keyla sobral usa a simplicidade para tocar, com delicadeza, onde “a polícia dos adultos não adivinha nem alcança”









texto: adrieli silva ilustração: rodrigo cantalicio

Benedito Nunes – escrevendo sobre a fotografia, sobre a vida, sobre tudo que pode estar sempre entre presente, passado, leituras do futuro a partir de um único momento – diz: “O instante só se detém ao passar. Por isso o que se fotografa hoje já se torna um ontem, o que já foi e não é mais presente. Nenhum agora se fixa sem converter-se em outrora”. Então meu pequeno desafio é falar da fotografia paraense que já foi identificada por outros como uma produção rica de momentos, de encontros, de instantes que buscaram discutir, com maior ou menor ênfase e em diferentes tempos, a memória, a difusão, os projetos socioculturais, as políticas públicas, a formação, a linguagem. Vou atrás desse outrora e desse agora em que estamos para grafar alguns pequenos traços da luz paraense. A fotografia no Pará é, sobretudo, composta em um território de fronteira, como diz Fábio de Castro, “enquanto zona de contato, de encontro, enquanto hibridez, a fronteira é, sobretudo, um espaço permissivo. [...] um espaço onde a identidade é permissiva, deixando-se experimentar, testar, tentar”. Essa possibilidade/realidade da fronteira provocou e talvez ainda provoque, por motivações e tempos diferentes, a realização desses encontros para a experiência fotográfica no Pará. Em 1839 a fotografia é descoberta oficialmente e pouquíssimo tempo depois, em 1844, também é trazida ao Pará, a partir do olhar estrangeiro de Charles DeForest Fredricks, que deixou rastros para a história recuperar. Rastros que me levaram a constatar as primeiras e importantes experiências que funcionaram de maneira a deixar claras as articulações que pensam o território e seus sujeitos. Começo a identificar por isso em Belém um estado de latência possibilitado pela fronteira. Latência que pulsou e se mostrou em encontros significativos para a construção dessa experiência com a imagem fotográfica, dos quais destaco os das décadas de 1960, 1980, 1990 e 2010.

1960

Para falar de 1960 tenho que dizer ainda de 1955, pois esse caminho começa na criação do Foto Clube Pará, na casa comercial Fotografia Amazônia, na intenção de reunir amigos para discutir a fotografia (conceito e

técnica), organizar saídas e principalmente possibilitar mostras e exposições de seus integrantes. Apenas a partir daí é que posso rascunhar a força e importância da década de 1960, em que acontecem a Primeira Mostra Fotográfica (1964), I Salão Paraense de Arte Fotográfica (1965) e o II Salão de Arte Fotográfica (1965). Todos os eventos contaram com a colaboração do Foto Clube Pará. 1980 Possui papel importante justamente porque é a década que começa a apontar “para uma nova relação profissional e um posicionamento mais firme do fotógrafo em relação aos seus direitos”. Os eventos que aconteceram parecem ter sido sempre impulsionados pela possibilidade do encontro e da experiência da fronteira dos quais posso citar como principais o FOTOPARÁ 82 – I mostra paraense de fotografia (1982), FOTOPARÁ – II mostra paraense de fotografia (1983), FOTOPARÁ – III mostra paraense de fotografia (1984), IV Semana Nacional de Fotografia (1985) e o I Fotonorte (1987).

1990

A década de noventa é palco de destaque de diversas e consistentes produções que foram alavancadas ainda em 1980. O projeto Fotografia Contemporânea Paraense: panorama 80/90, coordenado por Mariano Klautau Filho e curado por Rosely Nakagawa, é uma importante fonte dessa produção de destaque nos anos noventa. No fim da década a FUNARTE, em nova iniciativa, promove o II Fotonorte – Amazônia o olhar sem fronteiras (1998), que se abre à Amazônia Legal mostrando uma fotografia não só do Norte, mas desse mundo exótico e amazônida.

2010

Ainda estamos no início da década, mas já podemos apontar o Encontro Norte/Nordeste de Produtores Culturais da Fotografia – ENNEFOTO (2012) como uma nova latência dessa mesma pulsação recorrente desde a década de 1960 no Pará. O ENNEFOTO aconteceu e se propôs tanto ao intercâmbio de experiências quanto a definições de estratégias para o desenvolvimento da fotografia, a partir das duas regiões que levarão as questões levantadas no evento para o encontro nacio-


“estamos em um lugar de privilégio e cuidado”

nal da RPCFB (Rede de Produtores Culturais da Fotografia no Brasil). De todos os eventos listados é curioso como apenas a IV Semana Nacional de Fotografia e as duas edições do Fotonorte, como iniciativas do governo a partir do Instituto Nacional da Fotografia - FUNARTE, acontecem a priori por uma necessidade de estabelecer uma política nacional da fotografia, mas que a posteriori acabam condicionadas a mudanças de governantes e, como em muitas outras situações de vida (portanto políticas), possuem diferentes momentos de importância nas pautas governamentais. Destaco nesse sentido a fala de Walter Firmo na apresentação do catálogo do I Fotonorte:

“Descentralizar se preciso for. Sempre é. Esse país não é um continente, mas um universo de olhos; daí a necessidade de ‘pé no chão’, desbravando sendas antes planejadas de um novo caminhar por uma política nacional de fotografia.”

E mais curioso ainda como os outros encontros, mesmo sem possuir a bandeira de qualquer governo, foram realizados a partir da fotografia e suas tangentes para (re)construir identidades permissivas. O tempo líquido e amazônico permitiu as diferentes trocas em diferentes margens do mesmo elemento que se modificava a cada corrente e a cada novo olhar. A foto_grafia sempre tendo espaço para se achar e se perder em linhas-d’água. Estamos em um lugar de privilégio e cuidado.


Jornalista, urbanista, professora. apaixonada pelas nuances da mem贸ria. atenta ao hoje/amanh茫. a trajet贸ria da paraense flavya mutran, hoje radicada em porto alegre, em imagens.




“a fotografia é por natureza uma forma de cultuar o passado. meu trabalho tem uma ‘pegada’ memorialista sim, embora às avessas, pois sigo uma vertente antidocumental (se é que essa palavra existe), na linha mais abstrata. gosto mais de lidar com a ficção do que com o factual, pois acho que é na imaginação livre, na fábula e no sonho que as pessoas se mostram mais cruas, mais verdadeiras. a fotografia menos legível, para mim, é a que mais contém informação para se especular, sonhar.”

palimpsesto (1996)




“se há alguma distinção da fotografia paraense em relação a outros panoramas eu arriscaria dizer que é a diversidade, fruto da persistência, ou teimosia de várias gerações de apaixonados pela fotografia. não vejo uma estética única que defina a produção paraense, algo que pudesse ser apontado e dito ‘olha esse trabalho é do pará’, mas acredito numa certa ‘vibe’, uma postura pró-ativa dos artistas locais que inserem seus trabalhos em qualquer lugar. Daí sim, já ouvi alguém dizer ‘ah, então és do Pará, tá explicado, a fotografia é forte lá, né?’ É incrível isso, pois não temos um sistema de arte que justifique tanta visibilidade, e ela se deve mesmo é pelo talento e esforço de cada artista, mas é bem verdade que existe, pelo menos no meio da fotografia, uma camaradagem excepcional. não vejo isso em lugar nenhum, tanta gente tão diferente entre si reunida em volta do interesse comum: fotografia.”

quase memória (2000-2002)



pretérito imperfeito de territórios móveis (2009-2010)

“a ficção visual e discursiva que o internauta cria nas redes sociais é uma maneira nova de lidar com a realidade, todo mundo já sabe, mas tem muito mais gente preocupada apenas em comparar o que se vê nos meios digitais com os antigos modelos sociais ditos reais. acho que existe um potencial enorme justamente nas mentiras, na ficção e nos excessos, pois talvez nelas a gente encontre algo novo, lúdico. essa carga de meia-verdade é o que alimenta fortemente a maneira como eu retrabalho as imagens que seleciono da web, pois retiro estas fotos do meio digital e projeto em espelhos, misturando-as com reflexos invertidos dos meus ambientes, operando minhas próprias ficções.”



pretérito imperfeito de territórios móveis (2009-2010)

“usar meu autorretrato (mesmo parcialmente apagado) e vê-lo variar de tantas formas remeteu-me rapidamente às brincadeiras infantis frente ao espelho, os exercícios de automaquiagem da pré-adolescência e até mesmo às insatisfações pessoais da vida adulta: ‘ah, se meu cabelo fosse desse ou daquele jeito’, ‘se eu fosse negra, loura, magra, gorda... ’, ‘se eu fosse homem seria assim... ‘o certo é que os BIOSHOTs são criações imperfeitas que simulam vidas paralelas, do eu e do outro. fez-se de cada construção dos 52 perfis um exercício de conjugação verbal e temporal com muitas condicionantes poéticas. uma brincadeira de construir imagens no presente, passado e no futuro. esta série é outra forma de também mencionar a web 2.0, pois demonstra a vocação do internauta para criar ele mesmo seus deslocamentos, apropriações, paródias e outros tipos de procedimentos restritos antes ao campo das artes.”



mapas de rorschach (2011)


“a série ‘mapas de rorschach’, de 2011, trata dessa dupla condição de lembrar e esquecer lugares e rostos, ambos em constante conflito dentro de mim, já que estão sempre em transformação. mudar de cidade me fez experimentar um tipo diferente de saudade que não é a da lamentação, mas uma constatação de que a maioria das imagens que guardo no subconsciente se formou a partir daí deste lugar, de belém do pará. tenho um arsenal de fotos mentais que só passaram a aparecer para mim depois que saí de Belém, e o mais engraçado é que essas imagens/lembranças me assaltam nos momentos mais improváveis, no meio dos traslados corriqueiros, na distração das horas menos importantes, mas quase sempre na rua, flanando por aqui. sabe aquele ‘vupt’ em que se olha pela janela do carro e se tem a sensação de estar num lugar diferente do que se está? é comum também parar num sinal para atravessar uma rua e reconhecer traços familiares no rosto de um estranho, pode? umas maluquices assim... sei lá!”


dos quadrinhos ao teatro de bonecos, a trajetória de francisco leão, um artista de múltiplas paixões


texto: luiza cabral fotos: diana figueroa

Um homem vestido de preto, inquieto e observador, olha para os bonecos de isopor que criou e pensa no sentido da vida. A inspiração para a história que amarra os personagens vem de antagonismos filosóficos, conflitos da humanidade e estudos cabalísticos. De repente, uma arte aparentemente ingênua ganha contornos conceituais. E um boneco é mais do que parece ser. Francisco Leão é um artista de difícil definição e complexa trajetória. Ainda na juventude o tesão pelos quadrinhos o levou a uma produção compulsiva, com direito a horas e mais horas diárias de lápis em punho. Depois, ao longo de quinze anos, trabalhou com cenografia e figurino, abusando de materiais inusitados no espaço cênico. Agora, a bola da vez é a contradição existencial das marionetes, uma expressão artística secular que à medida que o perturba, também o fascina. Para entender o trabalho deste paraense de múltiplas paixões a regra essencial é esquecer nomenclaturas e enxergar a totalidade de um aficionado pela arte e seus mistérios. Nascido e criado em Belém, Francisco morou a vida inteira na capital paraense. Aos 43 anos, nada de academias ou instituições de ensino voltadas para o fazer artístico no currículo. “Acredito na experiência autodidata. Quando você aprende uma técnica sozinho fica muito mais fácil imprimir personalidade à obra. As escolas e professores inevitavelmente te fazem seguir um padrão. Gosto de total liberdade para criar, mas também sei recorrer aos estudos quando é preciso, só prefiro fazê-lo de forma independente”, considera o artista, que em vez de utilizar madeira para a construção das marionetes, opta por texturas como papel e isopor.



“todas as minhas ideias até hoje passam pelo rabisco” Essa natureza livre para a criação garantiu a construção de uma poética própria. A experimentação demarca o trabalho do artista tanto no processo de confecção como no discurso. Durante a década de 90, em que Fê, como é conhecido pelos amigos, produziu com mais intensidade para o teatro, os cenários e figurinos pensados por ele dialogavam com os argumentos das peças com inteligência. “Escolho um material de acordo com a mensagem que quero transmitir. Acho importante que tudo tenha coerência.” Assim, quando encomendaram objetos para um espetáculo que falava sobre formas de vida futuristas, Francisco optou pelo uso do silicone, material que considera “uma ótima representatividade do pós-moderno e da

necessidade humana de mutação.” Este emaranhado de referências – que mistura tecnologia, ficção, teologia e história antiga – está presente em todas as fases do artista.

E no princípio, se fez o traço Antes de qualquer coisa, o caderno e o lápis. No final da década de 80, Francisco era obcecado pelos mundos que saltavam das histórias em quadrinhos. O anti-herói, o pessimismo e as realidades de alta tecnologia comuns em gêneros de ficção das HQs dominavam a atenção do artista. “Fiz parte do grupo Ponto de Fuga no início dos anos 90. A gente se reunia para ler quadrinhos, desenhar e fazer roteiros. Só não sabia que depois eu iria entender que ali, na brincadeira, comecei a produzir arte.” O número de desenhos feitos é incalculável. “Eu desenhei demais durante minha vida. Passei uns bons anos da juventude pensando em quadrinhos e todas as minhas ideias até hoje precisam passar pelo rabisco.” As técnicas são diversas: nanquim, caneta esferográfica e lápis de cores para dar contornos a ilustrações, charges e quadrinhos, espalhados em fanzines e publicações alternativas. “Alguns desenhos ficaram com amigos, outros guardo em pastas. Minha produção com desenho passeia por muitos caminhos e muitas foram perdidas.” Entre as tantas séries que fez, algumas são consideradas especiais pelo próprio artista. “Acho interessante perceber meus gostos e a evolução do meu pensamento por meio do meu trabalho. Tenho uma série de desenhos que retratam seres disformes, uma interpretação de algo que martelou durante muito tempo minha cabeça, que é a potência da energia sexual na nossa espiritualidade e na nossa relação com o mundo material.”


Foram mais de 15 anos dedicados às artes cênicas na capital paraense, nas quais sempre apostou na busca pelo novo

Depois, o tridimensional O caminho de estudos independentes levou Francisco para o universo das artes plásticas. “Eu precisava fazer com que meu trabalho ganhasse forma, ocupasse um lugar no espaço. Naquele momento, início da década de 90, eu estava obcecado por tecnologia, biodesign, enfim, sobre novas formas de pensamento e comunicação”, relembra. Argila, silicone, produtos e objetos descartados eram a matéria-prima preferida para a criação de peças bem pouco convencionais. Logo o artista descobriu no teatro o espaço ideal para divulgar seu trabalho. Após ser premiado no salão Primeiros Passos do Centro Cultural Brasil Estados Unidos, em 1993, Francisco, que se diz avesso aos espaços institucionais das artes, começou a estudar cenografia e figurino. “Você não tem (em Belém) muitas opções para escoar uma produção artística. Considero os salões espaços muito assépticos, homogêneos. Prefiro ocupar outros ambientes, como a rua mesmo. E nessa minha busca, cruzei com o teatro.” Foram mais de 15 anos dedicados às artes cênicas. O artista fez cenários e figurinos para peças de grupos como o famoso Experiência, entre outros. Nos palcos assinados por ele, experimentações com grandes estruturas e materiais inusitados. “Em meados da década de 90, quase ninguém se aventurava a fazer coisas excêntricas em palcos teatrais. Já eu não podia ter uma oportunidade para fazer algo diferente. Cheguei a confeccionar grandes esculturas de seres ocultos, de flores selvagens e outras loucuras”, diz. “Banquete dos Mendigos”, do grupo Experiência, em que assinou figurino e cenografia, e “Asmodeus, o Martelo das Bruxas”, do grupo Vivência, estão entre os trabalhos preferidos do artista e trazem a marca de Francisco: objetos desproporcionais, de estética grotesca e significados mil.



“o que mais me encanta no teatro de marionetes é a falta de vaidade. os holofotes são dos bonecos”



“gosto da apropriação de realidades, de brincar com mundos bem distintos”

Boneco é coisa séria Quase acidentalmente, o artista finalmente chegou ao teatro de bonecos. “No teatro de marionetes o que mais me encanta é a falta de vaidade, já que os manipuladores não aparecem e deixam os holofotes voltados para os bonecos.” Engana-se quem acredita que isso simplifica o trabalho de concepção. Para Francisco, é justamente o contrário. Em 2007, o artista montou a primeira companhia de teatro de bonecos de fio de Belém, a “BricBrac”, também fruto da necessidade pessoal de experimentação. “A manipulação dos bonecos e a própria trajetória histórica dessa arte são muito simbólicas. Primeiro foi criado o conceito de totens, a representação da divindade; depois a Igreja Católica se apropriou da imagem; mais tarde, toda essa força imagética foi considerada ‘tola’. Era o homem mais uma vez expressando suas contradições.” A adaptação das consagradas histórias de Esopo foi o primeiro trabalho assinado pela BricBrac, após quase cinco anos de pesquisas envolvendo tanto a concepção técnica quanto o roteiro. “Gosto dessa coisa da apropriação de outras realidades para falar da nossa, de brincar com mundos distintos. E gosto muito mais ainda de trabalhar com uma linguagem que é tanto para crianças como para adultos.” O espetáculo “Conto da Floresta” foi apresentado em 2010, no Instituto de Artes do Pará. Agora, toda a verve criativa de Francisco está voltada para a concepção do espetáculo “O Livro da Criaçao”. Dessa vez, os bonecos – manipulados pelo próprio artista e por Vanessa Teixeira, John Rents e Fernando Belucio – trazem Deus e suas criaturas para o palco de marionetes. “O estudo cabalístico me instigou a pensar a relação entre o poder divino e o homem. No palco, estas duas fortes representações se encontram para, digamos, ‘discutir a relação’”. Com cenário e bonecos feitos de papel e interações multimídias no palco, o novo espetáculo, que será lançado em novembro deste ano, condensa as pretensões do trabalho de Francisco: a união de épocas, pensamentos e formas de existência. E assim os mistérios são revelados.



Julho de 2012. Em uma das esquinas históricas de Belém, cidade das mangueiras de caroços preconceituosos, um risco se destaca contra o preto do asfalto e o cinza do cimento. O mural grafitado em frente à Baía do Guajará representa um cenário vintage, baseado em fotos de muitas décadas atrás, e é assinado pelo grafiteiro paulista Kobra, contratado pelo Hangar Centro de Convenções em 2009 e autorizado pela prefeitura da cidade a queimar o risco de outro artista. Falamos, é claro, de Osmar Pinheiro, com tela feita em 1985 no mesmo local, também autorizado pela prefeitura da cidade à época. Mesmo o risco tendo sobrevivido mais tempo que seu escritor (Osmar Pinheiro descansou em paz em 2006, aos 56 anos), mesmo que inúmeros pichadores-grafiteiros já o tivessem queimado anteriormente (sem

texto: gil vieira ilustração: daniel zuil

o patrocínio das prefeituras, obviamente) e mesmo que o painel estivesse em degeneração há alguns anos, ainda assim a crew de Osmar Pinheiro revoltou-se com o ocorrido. Respeito é pra quem tem, cantava o poeta marginal. Vacilou, já era. Grafite, pichação e outras artes urbanas deparam-se, em Belém, com um solo pouco fértil para uns – e seminal para outros. Belém-cidade-morena aprecia bastante o grafite bonito, bem feito, esteticamente planejado aos moldes da Arte, colorido, legível, texturizado, lindo, lindo! Rejeita, entretanto, tudo que fede a ofensa. Não aprecia alimentar as transgressões. Mas esta é uma cidade de muitas caras, graças a deus, e as transgressões são muito bem vindas à Belém-varejeira, aquela que dança e cisca a noite inteira sobre os restos fétidos de

culturas degeneradas. Essas duas cidades coexistem, assim como a garça e o urubu no Ver-o-Peso, como o grafiteiro e o pichador coexistem dentro das mesmas latas, em uma só pessoa. Tenhamos em mente, desde já, que muitas vezes a tela grafitada na parede de uma galeria de arte, o bomb feito num muro de uma rua movimentada e a tag riscada com caneta-piloto na porta de um banheiro público têm origem na mão da mesma pessoa. Ou não. Essa literatura urbana aparece, primeiramente, como um attack às páginas feitas de altos muros (reais e imaginados) que isolam as duas caras dessa cidade. Os escritores (do grafite, do pixo), usando ou não quiksilver, semeiam o vandalismo. Contra o descaso, a desordem. Estabeleceu-se a batalha: uma guerra de sangue e cores. As gotaz (de


tinta, suor e sangue) kaen e misturam-se nas ruas. A visibilidade e o reconhecimento é que dão o tom do desejo e da ousadia, do risco. De correr riscos pra deixar seu risco no canto mais inacessível – e ao mesmo tempo mais visível – do espaço urbano. Com o passar do tempo, aquilo que era assinatura, mero vestígio de uma inscrição na carne da cidade, ganha outro tom, contexto, visualidade, status. Vira tatuagem. O (neo) grafite ultrapassa suas próprias normas e incorpora intenções e linguagens diferentes: se tridimensionaliza, vira protesto político, proposição artística... Escapa dos muros e escorre pelas calçadas, ocupa camisas, toys, paredes de galerias. Mas grafite é, afinal, spray ou muro? Cada cabeça, uma sentença; cada sentença, uma resposta. A lei é cada um, cada um. Uma coisa é certa: nos muros onde se espreme a turma do sujão, grafite é terrorismo. Como as bicicletas grafitadas dentro do túnel, limpando a sujeira depositada nas paredes daquele buraco. Ou como o pau desenhado em vermelho na estátua do padre, logo abaixo do umbigo, que parece afagar os cabelos do índio agachado a sua frente. A escrita das ruas é necessidade de expressão, é capacidade de, quando todos calam, bradar GRAFITE OU MORTE! É vontade de potência, mesmo na cidade morena varejeira, com a chuva das duas e o calor infernal que mortifica os ânimos. E como é ruidoso o spray dos que se esgueiram pela madrugada,

ou daqueles kaxorros e ratos do barulho que riscam de manhã, na cara dura. Do ponto de vista de uma estética da existência, da vida como arte ou como obra, o grafite e a pichação (posto que sejam uma coisa só) abrem uma cicatriz desautorizada no corpo da arte contemporânea. São vivências mais radicais (porque muitas vezes ilegais) que as do Artista. Se for arte, é arte desguiada. Bad paint. Que mostra, quase sempre, o escárnio social de quem cospe tinta contra a padronização dos comportamentos e dos territórios. Com ou sem culpa internalizada – a culpa moralizante regurgitada pela Belém (tanto morena quanto varejeira). Mas como dizem por aí, pixar é humano.. Pichação, grafite e seus desdobramentos não podem ser vistos como essencialmente diferentes, e muito menos devem ser postos como numa linha evolutiva. Se por vezes um é escrita e o outro cor, um é vandalismo ilegal e o outro arte autorizada, a diferença dá-se mais na superfície que na essência. O âmago permanece: fortificando a desobediência. Por mais que tentem teorizar, moralizar e higienizar, a escrita das ruas torna-se sempre escorregadia. Fruto da união periférica entre a pele da cidade e o engasgo de quem tem muito o que dizer, pichação/grafite não dá sinal de desaparecimento, muito pelo contrário. Habitando hoje outros espaços e formatos, suas raízes continuam fincadas nos estratos em que estiveram desde cedo: não nos muros, que são apenas um meio, mas na capacidade criativa (inalienável) do ser humano. Que quer existir, ainda que por todo o resto ecoe um sonoro e veemente NÃO.


Caos e desordem: fatos cotidianos. no traço de xberecox, religião, política, quadrinhos e crítica social caminham juntas num espaço comum definido pela palavra apocalipse





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