Revista Gotaz #02

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gotazkaen estúdio - galeria - loja grafite - fotografia música - ilustração diálogos - editorial fitas - filmes - workshop teatro - vinil exposições e revelações

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edi to rial diretores executivos e criação: daniel zuil (daniel@gotazkaen.com) e diana figueroa (diana@gotazkaen.com editor-chefe: elvis rocha (elvis@gotazkaen.com) | produção: daniel mendes e elianna homobono produção de conteúdo online: luiza cabral (luiza@gotazkaen.com) editora: gotazkaen estúdio (contato@gotazkaen.com)

A vantagem da beleza são suas infinitas possibilidades. Em quantas oportunidades não é aquele canto de olho, aquele acidente feito detalhe, ou mesmo a vírgula bem aplicada a responsável pela transfiguração do comum? Talvez por isso o belo tenha acrescentado, no registro de nascença, a diversidade ao sobrenome. Primeiro parágrafo cheio de pompa, não? Legal. mas Ir direto ao ponto também é. Chegamos ao segundo número. Meses queimando pestana, trocando ideias, recebendo alguns elogios e ouvindo com bastante atenção todas as críticas para chegar ao resultado que apresentamos agora: a edição número 2 da Revista Gotaz. ok, juntamos beleza e diversidade logo ali em cima, e não foi por simples retórica, já que Assim pensamos as próximas páginas, extraindo conteúdo dos mais diversos nichos para registrar outro humilde (no sentido da consciência sobre a existência de mil outras abordagens possíveis) instantâneo da produção artística local. Subimos até Macapá para conferir o que move a garotada do Catita Clube. Saímos às ruas de Belém para entender o pensamento do K-xorro Podre. Repatriamos de Sampa o traço belo e poético de Paloma Franca Amorim. Prestamos tributo à visão peculiar de mundo do old school Tadeu Lobato. Convidamos a galera do Qualquer Quoletivo a enlouquecer sem amarras... E quando estávamos encerrando o papo interno sobre esta edição, já nos 45 do segundo tempo, lembramos novamente da justificativa que fez, lá longe, este projeto nascer: “Que um universo de ideias e cores exploda bem no meio de nossas caras, pois isso se faz necessário.” Vira a página que Tem bem mais aí dentro.

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Capa revista gotaz#02 arte e design: Daniel Zuil fotografia: diana figueroa modelo: ícaro gaya agradecimento espacial: felipe wanzeler errata: A Revista Gotaz, contemplada pelo Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais, é um projeto sem fins lucrativos e não comercializa espaços publicitários em sua edição impressa e online. www.gotaz.com.br

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cola bo ra dores 1-Alexandre Sequeira, artista plástico

“Minha escolha é ‘Elis, essa mulher’ porque, para minha sorte, minha juventude foi ouvindo uma das melhores cantoras do mundo.” 2-Danielle Fonseca, artista plástica

“Foram me chamar, eu estou aqui o que é que há...” Essa música (‘Alguém me avisou’) de autoria de Dona Ivone Lara, interpretada pela Bethânia, Caetano e Gil no disco ‘Talismã’, de 1980, foi definitiva para minha paixão pela música.”

4-Felícia Bastos, ilustradora

3-Débora Mcdowell, jornalista

5-Filipe Almeida, Ilustrador

7-Leonardo Fernandes, jornalista

“Tem uma cena em ‘Manhattan’ onde Isaac, o personagem do Woody Allen, se questiona sobre coisas que fazem a vida valer à pena. A primeira resposta que me vem à cabeça é essa: ‘Revolver’, dos Beatles.”

“A invocação à luz dos terreiros e ao calor dos pandeiros, convergindo baião com rock psicodélico e mil outras proezas sonoras, faz com que eu tenha esse álbum sempre a postos quando preciso de uma injeção de alegria e brasilidade.”

“A repugnante capa do álbum de covers do Ratos de Porão despertou meu apetite por música de gosto duvidoso, tornando o hardcore a trilha da minha adolescência. Até hoje, sofro com uma azia danada por causa desses caras.”

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6-Gil Vieira, mestre em artes.

“Esse ‘Nine Lives’, lançado pelo Aerosmith, é uma viagem infinita. Me prende em seu círculo vicioso.”

“Gosto da ideia de usar o álbum do Belchior, no Projeto Fanzine, pra me definir. Uma coletânea: nada mais artisticamente despretensioso, caça-níquel e cafona, tanto quanto eu. Belchior é meu compositor preferido”.


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8-Lucas Gouvea (Qualquer Quoletivo)

“Acho que sempre tive um espírito de mulher, e daquelas que amam incondicionalmente, e se entregam de corpo e alma pro que fazem. Espero um dia ter a capacidade de vocalizar o amor como Nina Simone.” 9-Maksuel Martins, fotógrafo

“O Sepultura foi a banda que me fez ter a coragem de montar a AMATRIBO, banda de metal em que sou vocalista. O ‘Roots’ foi o que mais gostei dos discos lançados pela banda. É um álbum pesado que fala das raízes do nosso Brasil.”

10-Flavya Mutran, fotógrafa

12-Ramiro Quaresma, pesquisador

“É quase certo que quando essa edição da Gotaz estiver circulando eu já tenha mudado meus álbuns preferidos, pois sou absolutamente volúvel e plural no quesito escolha, mas hoje, no topo da pilha de CDs está ‘Babilônia’, da Rita Lee (1978).”

“Fuçando a vitrola da minha avó, escuto esta pérola da mais pura sacanagem que meus ouvidos infantis nem deveriam ouvir. O ‘Côncavo e o convexo’, onde pela primeira vez ouvi a palavra ‘sexo’ , é uma aula de geometria aplicada às relações humanas.”

11-Fábio Graf, grafiteiro

“Esse álbum se resume em uma reflexão de momentos que tenho vivido e aprendido com a rua. Não o lado ruim, onde a maioria vive no individualismo, mas sim no aprendizado constante com os ‘irmãos’ da rua, como costumo falar.” www.gotaz.com.br

13-paloma franca amorim, poeta

“Gal Fa-tal, minha primeira matinta, meu primeiro vermelho, meu primeiro mito desmistificado. A voz de labareda em liberdade de cabelos. A História da música brasileira em versão frio na espinha.” 7


- matinta-

-espelho feito de sombras-

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muito além da imagem-

- sussurro digital das águas-

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- o rubor dos embaraçados-

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ín di ce

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diletante hardcore-

-k-xorro, late e morde-

10 - qg catita-

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web de papel-

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- uma prancha ĂŠ um pedestal para o corpo-

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-mutati mutandis-

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fotos: diana figueroa

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A convite da Gotaz, Alexandre Sequeira foi sacar o pensamento de um dos maiores representantes da arte de rua de Belém

Conheci o K-xorro nos corredores do Atelier de Artes da Universidade Federal do Pará e meses depois entrei em contato com seu trabalho. Primeiro, no Salão Primeiros Passos, promovido pelo CCBEU; e depois, no Salão de Arte Universitária, promovido pelo SESC Boulevard. Seja nas galerias, seja nos corredores do prédio do curso de Artes Visuais, a irreverência – característica incontestável de seu modo de se referir às coisas que o cercam –, faz com que suas intervenções nunca passem despercebidas. Hoje, quase um ano depois do primeiro encontro, nos encontramos em meu estúdio de trabalho para conversar sobre arte, pichação, relação rua/ galeria, família, preconceito, educação... A fala sempre direta e contagiante revela um pouco das suas experiências de vida e sua crença no poder transformador da arte.

“K-xorro surgiu num momento em que a pichação era uma febre no Brasil. é tipo hoje você ter o Facebook”

Alexandre Sequeira - Vamos começar por uma curiosidade minha. Por que K-xorro?

K-xorro surgiu num momento em que a pichação era uma febre no Brasil. É tipo hoje você ter o Facebook. Todo mundo queria ser pichador. Mas o pichador ainda não era visto como um criminoso. Na adolescência tive um apelido que era “Biri”. Aí eu ficava riscando “Biri” nos bancos de igreja... Só que ainda era uma coisa assim meio “apelido carinhoso da mamãe”, né? Um dia, meu pai, muito puto com a minha vadiagem, me levantou aos berros, gritando “Cachorro vagabundo! Vai trabalhar!”. Imagina ter um filho que dorme até às 10 horas da manhã e tu sustentas o cara. Pensei: “Pô, cara, cachorro! Perfeito!”. Aí bolei a cara de um cachorro, que é o “Dog”. Depois dei uma lapidada e fiz o cachorro, mas K-x, como vocês conhecem. E ficou assim. Ficou mais Brasil, mais rua, mais lixo. Eu acho fantástico isso! Meu nome é Marivaldo. De repente eu chego numa sala de aula – dou oficinas também – e a criançada: “Tio, qual o teu nome?” E eu digo: “Marivaldo, mas se você não lembrar, pode chamar de K-xorro. Lembra do cachorro lá da tua casa”. Eu acho que essa história do K-xorro me aproxima mais da molecada. Me deixa mais humano. Essa é a real! Tem muito artista que muda de nome para ter sucesso, eu acho que eu vou mudar de nome também, mas para K-xorro. Alexandre Sequeira – K-xorro, tu falaste que escrevias teu nome em banco de igreja... O teu trabalho tem uma relação mais estreita com a pichação ou com o grafite? Como é que tu vês a diferença entre essas duas formas de expressão?

Eu me identifico mais com a pichação, cara. Porque a pichação te dá liberdade. É um crime, é uma situação delicada, é uma forma de expressão, é um problema sério, é um problema que... Não existem políticas públicas voltadas para isso, a sociedade virou as costas, e eu me vejo ainda um pichador. Só que canalizando essa energia hoje para o lado positivo. Admiro muito o grafite, gosto muito da aerografia também. O grafite descende da pichação; a aerografia descende do grafite. Passei pelas três fases e hoje eu vivo disso. www.gotaz.com.br

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Alexandre Sequeira – Tu falaste dos problemas legais da pichação, e é muito claro perceber que a potência da pichação está justamente numa certa subversão de uma ordem estabelecida. Aí como é que tu lidas com esse trânsito do teu trabalho da rua para as galerias? que a gente sabe que são duas instâncias muito distintas. Cada uma tem um código - a galeria representa, por exemplo, um mercado de arte. Como é que tu compreendes o teu trabalho indo para esse outro espaço sem perder a potência?

Eu vejo que é importante essa questão do underground se expandir. Se você fica no underground e começa a criticar, a meter o pau no sistema e reivindicar, mas permanecer no underground, como muitos querem, você não vai atingir o objetivo. Você vai quebrar a cara todo o tempo - que foi o que eu fiz por muitos anos. Eu no underground, levantando a bandeira de um submundo todo o tempo. Mas existem pessoas que precisam dessa mensagem. A sociedade inteira precisa disso. E não está num status social. A necessidade é geral. Então eu vejo que, se tens reivindicações, um problema, e não expressa isso, não se manifesta de uma forma em que todos vão ver, tu vais permanecer morto. A entrada da pichação e do grafite nas galerias é fantástica porque acaba levando toda uma problemática de uma classe social, do jovem – a necessidade do jovem –, para dentro de uma galeria e a sociedade vai passar a ter conhecimento disso. Outro dia eu estava falando a respeito de como a arte de rua pode influenciar em um processo acadêmico, e utilizei esse exemplo. O professor acaba tendo o conhecimento através do comportamento dos alunos dessa prática, através dessa arte, através dessa forma de expressão. E como ele vai ter conhecimento? Ele tendo acesso a isso. E como ele vai ter acesso a isso se o moleque se tranca no quarto e picha só o quarto dele? Tem que ter um objetivo! E hoje eu canalizo essa força para o lado positivo – que é educacional.

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Alexandre Sequeira – A tua entrada em um curso de graduação em arte trouxe, de certa forma (eu falo isso inclusive na condição de professor do curso do qual fazes parte hoje) um certo comportamento, uma atitude mais crítica e participativa do alunado. A gente vê hoje nos corredores do curso de arte muita produção tua e que se refere a professores, ao comportamento de professores, condutas – positivas ou negativas. E voltando ao assunto da galeria, tanto no Salão Primeiros Passos, do CCBEU, quanto no Salão Universitário, do SESC Boulevard, tu desenvolveste o trabalho na própria parede (no caso do CCBEU) e, no do SESC Boulevard, apresentaste um sofá e convidavas os visitantes a picharem o próprio sofá. Isso é uma atitude do K-xorro tanto na universidade quanto nas galerias desse caráter provocativo, instigando as pessoas a emitirem sua própria opinião?

Sim, eu acho que é importante. Porque eu creio que muitas pessoas não se manifestaram porque foram castradas. Quando criança você começa a riscar, você tem a necessidade de se expressar, e você começa a riscar a parede. De repente, o teu pai alí gastou uma grana para pintar a parede, e a primeira coisa que ele faz é te dar uma cortada. E aí acaba destruindo com toda uma trajetória no meio artístico. Primeiro que é cultural isso... A gente vive em Belém. Belém não tem essa... Tem os salões... É fantástico, é bacana ver isso. Mas a gente não vê o povo participando. E a minha intenção quando eu produzo uma obra é interagir com o povo. É interagir com as pessoas. É aguçar nas pessoas essa vontade, essa expressão. Eu quero que elas se expressem e compartilhem comigo. Porque a obra não é minha. A partir do momento que eu produzo e solto, já passa a ser da sociedade. Eu não me apego. Eu procuro sempre estar passando essa mensagem e compartilhando com a galera. Porque eu creio que as pessoas precisam de arte. As pessoas precisam encontrar esse caminho. Infelizmente elas não são induzidas a entrar nisso. Elas se perdem. Muitos jovens estão se perdendo aí. A gente precisa de arte!

“muitos jovens estão se perdendo aí. A gente precisa de arte!“

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“Foi o Punk-Rock que me embasou�

- Nas ruas, k-xorro aprendeu o melhor e o pior e traduziu isso dentro de sua obra 14


Alexandre Sequeira – Essa colocação que tu fazes da necessidade das pessoas terem essa relação com arte é talvez o que te levou a frequentar um curso superior de arte? Me fala um pouco dos teus anseios de ir para a universidade. O K-xorro, pichador, decidindo que queria fazer um curso de arte.

Cara, eu não imaginava entrar na faculdade. Nunca passou pela minha cabeça. Até mesmo salões de arte. Quando eu tive consciência de que é preciso estudar, é preciso batalhar pra ter acesso a certas coisas, nasceu esse pensamento que você não pode ficar atrofiado. Durante muito tempo eu me droguei, cara. Eu me chapei dos 13 aos 32. Literalmente foi uma vida de cachorro. Uma coisa de louco, sabe? Não querer ouvir ninguém, e chegar ao ponto da minha família se reunir e dizer: “Cara, basta! Sai fora. Ninguém te aguenta mais”. E isso doeu pra caramba. Mas hoje eu vejo que isso foi fantástico, porque me ajudou. Eu tinha apenas a 5ª série, fiz o DESU. De repente, entrei alí no 1° ano e me deparo com a disciplina Sociologia. Eu me lembro do Punk-Rock, sabe? Eu percebi que os alunos não entendiam o que a professora falava. A professora falava de sistema, e os alunos ficavam voando. Mas

o que é isso? E eu consegui assimilar a coisa porque eu escutei muito Punk-Rock na adolescência, em meio a toda essa loucura. Eu sempre fui embalado com Punk-Rock. E o Punk-Rock tem um conteúdo sociológico muito forte. É uma temática social fantástica! Então eu vejo que o meu ensino fundamental foi esse. Foi o Punk-Rock que me embasou.

“é preciso batalhar para ter acesso a certas coisas. você não pode é ficar atrofiado”

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nos muros da cidade ou em galerias de arte, a marca registrada do artista

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Alexandre Sequeira – Estás entrando num assunto que seria minha próxima pergunta. A gente sabe que o curso de Arte tem a Licenciatura e o Bacharelado. Ele forma o artista, mas forma também o educador. Então como é que te vês agora, depois de ter vivido toda essa passagem que relataste. Agora o K-xorro educando, formando alguém em arte.

Cara, isso é fantástico, porque eu não imaginava. Eu até me arrepio, sabe? As pessoas que me conheceram no passado quando se deparam com essa situação, para mim já não é tão chocante, mas para as pessoas que conheceram o K-xorro ficam chocadas! Nem acreditam, né? Porque, de repente, foi uma loucura... Eu vivi uma vida de mendigo. Eu pedia. E de repente conseguir produzir usando o mesmo material que tu usavas como cama, é fantástico, bicho! Isso para mim é fantástico: poder ajudar. Eu encontro crianças, adolescentes... Outro dia me deparei numa escola com um adolescente que estava na iminência de ser expulso por gostar de pichar. E a coordenadora pedagógica me chamou e disse: “Seu K-xorro, temos um aluno com um problema. Daria para o senhor conversar com ele?” Aí nós sentamos – a coordenadora, a diretora, eu e o pichador – e ela disse o

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seguinte: “Max, você só aparece aqui agora com sua mãe ou seu pai”. Aí eu olhei para a cara do moleque, de cabeça baixa, uma camisa toda pichada, e perguntei: “Cara, tu tens mãe?” Ele disse: “Não”. E eu disse: “Tu tens pai?” Ele disse: “Meu pai vive na rua. Ele bebe muito. É drogado”. Eu olhei para a cara das senhoras e disse: “Vocês estão vendo que o problema apenas se reflete na pichação?” Então é isso, cara. Existe um problema ao qual é mais fácil dar um pé, jogar pro lado, e dar um basta. Ao invés de abraçar

“Se posso fazer alguma coisa como grafiteiro, como cidadão, eu faço” a causa e ter um pouco de trabalho, é mais fácil chutar. É mais fácil excluir. Eu fui expulso de uma escola pelo fato de ser um pichador. Isso em meados da década de 80. Eu fui expulso e minha mãe ficou alí perante a diretora e a minha professora... E minha mãe disse: “Poxa, eu trabalho em casa de família e é isso que você me dá? Senhora, por favor, deixa ele ficar aqui”. Aí ela olhou para a cara da professora e disse: “A professora não aceita

ele, e eu muito menos”. Então isso foi terrível pra mim. E hoje me deparar com a mesma situação em escolas dói pra caramba! E eu acho que, se eu posso fazer alguma coisa, eu faço. Se eu posso fazer alguma coisa como um pichador, eu faço. Se eu posso fazer alguma coisa como um grafiteiro, como um cidadão, eu faço. Se eu puder fazer alguma coisa como um professor, melhor ainda! Porque eu vou atingir um público, né? Tem uma classe... Claro que eles vão me dar a “cartilha”. Mas eu não vou rezar essa cartilha 100%. Eu pensei muito ultimamente a respeito da desistência da Licenciatura. Porque eu vejo um sofrimento tão grande, um descaso tão grande com a educação, que eu fiquei preocupado. Pensei assim: será que eu não vou ficar atrofiado? Será que eu não vou perder a voz? Mas não. Eu acho que isso tudo vai acabar me embasando para ter mais potência. Ganhar mais força nessa guerra. Claro que é uma guerra desleal. Tu não estás lutando contra um fulano, um ciclano. Tu estás lutando contra um sistema opressor. Que cria o miserável para depois punir. Então essa é a visão que eu tenho a respeito disso.


Alexandre Sequeira – E agora, o artista K-xorro, o professor K-xorro... Quais as tuas referências? Por estar vivendo uma experiência de universidade e de circuito de galerias, as tuas referências mudaram? Quais artistas que tu admiras, da área da pichação, do grafite? Existem referências para o K-xorro?

Eu gosto muito do trabalho de muitos pichadores que tem aqui em Belém. Gostei da volta da velha-guarda da pichação: o Rapa, o Smuke, Sistema. Gostei muito da volta dessa galera que trouxe à tona toda essa temática dos anos 80. Eu gosto muito do trabalho da Cely, George, Gaspar, que tem feito um trabalho social – eu acho fantástico o trabalho deles.

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espelho feito de so bras vv

texto: Flavya Mutran ilustração: brisa máxima

Pensar na rede mundial de computadores como um lugar que é muito mais que um espaço virtual tem sido um desafio para diversos campos do saber. Teóricos, críticos e artistas têm se ocupado em conceituar ou materializar a diversidade das comunidades em rede associando-as a utopias, heterotopias ou distopias, sem, no entanto, dimensionar conclusivamente a amplitude desses espaços nas atuais relações sociais. Mas eu quase sempre gosto de pensar na web, e principalmente nas redes sociais, como um território de atravessamentos, deslocamentos. Acho irresistível relacionar esse lugar de trânsito com o País de Espelhos de Alice Lidell, de Lewis Carroll, pois ambos são territórios interconectados e contraditórios que mesclam realidade e ficção. Em ciberespaços a imaginação opera de forma potente e, como no mundo de Alice, é possível experimentar (re) construir ou (re) inventar palavras, a imagem do outro e de nós mesmos. Janelas, portas e escadas podem ser cegas, pés e mãos são às vezes acéfalos, e mesmo diante da imensidão de rostos, o que mais se vê são sombras - quase sempre do próprio internauta, que parece não resistir à tentação de se autoinserir no mundo digital a partir do seu próprio vulto. Então, é para as sombras que prefiro olhar. Na psicologia analítica a sombra refere-se ao arquétipo que é o nosso ego mais obscuro, nosso duplo interior. E tão obscura quanto sua pouca exatidão histórica, a origem de todos os processos de representação estaria literalmente ligada à sombra, e para Philippe Dubois é no gesto inaugural de delimitar o contorno da forma humana em uma superfície que se reportam não só à alegoria da “Caverna de Platão”, como também a origem do desenho e da pintura no mito de Plínio, o Velho. Foi também a partir dos perfis de sombras que artistas do século XVIII decalcavam a imagem de alguém a fixando pelo desenho no anverso de seu verso, do outro lado da tela. Tal método, precursor de tantas mudanças na forma de representar a natureza, evoluiu para algo mais radical ainda com a impressão de sombras sem o auxílio das mãos de artistas, graças aos processos fotoquímicos para fixação da imagem pela ação da luz que deram origem à Fotografia no Século XIX. Em última instância, a história da Fotografia é também uma história feita de sombras, e não é de se estranhar que na internet, território onde a fotografia impera 22

como a linguagem mais poderosa, o mundo das sombras venha construindo a visualidade do nosso tempo. Sombras, espelhos, portas, janelas e escadas aparecem recorrentemente nas Redes Sociais remetendo-nos aos temas clássicos das representações e, mesmo fora do circuito da arte, demonstram que são muito mais que ícones mentais, ou índices autorreferentes, confirmando-se como símbolos do poder da imagem no mundo contemporâneo. O universo de Alice - em suas brincadeiras de entrar em buracos, perder-se por entre vultos da floresta mudando de tamanho e entrando em espelhos -, existe para nos lembrar da criança que guardamos ou perdemos dentro de nós. Curioso que é também na infância que Lacan identificou sua teoria sobre a “fase do espelho”, como sendo a propulsora das dificuldades que se enfrenta na construção da identidade e na relação com a alteridade, presentes em todas as fases da vida. Não é à toa que esse mundo mágico das personagens infantis tenha tanto a dizer de nós, e para nós. Nem sei se importa saber se a web é um desses lugares utópicos como o país das maravilhas ou o país dos espelhos, se é um heterotópico Foucaultiano ou um não-lugar da pós-modernidade, mas sei que são territórios que se projetam de dentro para fora da imaginação humana. Tornaram-se portais mediadores entre realidade e ficção, onde se é permitido o sonho e o (auto) conhecimento, onde se liberam condutas reprimidas ou normas culturais, e pode-se conviver entre “bichos” falantes das mais diferentes espécies. Ao final, das nossas entradas nesses territórios virtuais resta-nos a lembrança de passeios invisíveis, fragmentos da nossa passagem pelo país do espelho fotográfico, e como diria Roland Barthes, só existe para simular a “reminiscência feliz e/ou dolorosa de um objeto, de um gesto, de uma cena, ligados ao ser amado, e marcada pela inclusão do imperfeito na gramática do discurso amoroso”.

Ao final, das nossas entradas nesses territórios virtuais resta-nos a lembrança de passeios invisíveis


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texto: dĂŠbora mcdowell fotos: diana figueroa

dile tante hard core Robson Siqueira ou: como descobrir seu talento ao som de dead kennedys

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- Em álbuns, cartazes e fanzines, Robson vem construindo sua trajetória -

A figura do “tio malucão” já faz parte do folclore familiar e é fonte de piadas sujas em mesas de jantar mundo afora. É só lembrar do Tio Ted, em “O Fantástico Mundo de Bobby”, que gerava as fantasias mais psicodélicas na cabeça do jovem protagonista. Ou Charlie Sheen no papel de si mesmo em “Two and a Half Men”, fazendo do sobrinho pré-adolescente quase um aprendiz nos assuntos mulheres, bebidas e farras. E foi um destes exemplares o responsável por “desvirtuar” a vida de mais um infante, desta vez em Belém, no bairro do Guamá, na década de 90. Robson Siqueira, hoje com 27 anos, foi criado a vida toda com a avó, não tinha muitos amigos e tampouco curtia esportes. Passava o dia vendo desenho na TV e fazendo desenho no papel. O destino poderia ter sido cruel, não fosse o tal tio doidão apresentá-lo, aos oito anos, aos vinis dos Ramones e Dead Kennedys. Eles iriam, no futuro, levá-lo a bandas de hardcore e ao mundo das ilustrações surreais que faz hoje em dia. “Eu escondia os discos debaixo do sofá, minha avó não podia nem sonhar que eu tinha aquilo. Eu não os ouvia, mas adorava”, conta. Mas enquanto o prematuro gosto musical era tolhido, os rabiscos rolavam à vontade. Além dos dese26

nhos animados, as HQs da Marvel e da DC foram as primeiras inspirações de Robson. “Sempre gostei de desenhar os personagens dos quadrinhos, mas aos 11 anos vi que não conseguia reproduzir perfeitamente o que via alí e meio que me desesperei. Daí driblei essa dificuldade pegando o papel e cobrindo com lápis por cima do desenho. Acho que esse foi o estalo pra que eu me tornasse ilustrador, foi quando comecei a ter mais noção da coisa.”

o destino poderia ter sido cruel, não fosse a figura do tio doidão apresentá-lo, aos oito anos, aos vinis dos ramones


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- O vínculo com o hardcore e o punk fica muito claro no trabalho do ilustrador -

Por volta dos 12 ou 13 anos, Robson começou a ter acesso a HQs independentes e, na mesma época, integrou sua primeira banda. “Esse período foi um divisor de águas. Foi quando descobri com o que me identificava esteticamente, quando defini quais eram as minhas referências, para música e para ilustração. Foi então que passei a criar meus próprios desenhos e não mais copiar o que eu via nos quadrinhos.” Mas não demorou muito até essa identidade entrar em crise. “Daí as pessoas começaram a ver os meus desenhos e dizer que eram muito parecidos com os do Jim Lee (ex-Marvel, atual DC), mas eu não sabia se isso era bom ou ruim. Às vezes eu achava que ainda tava na cópia, então quis de novo me desvincular e criar um novo estilo. Mas, no final das contas, hoje em dia percebo que não tenho um estilo próprio. Tem gente que diz que é falta de personalidade, mas eu vejo como um grande apanhado de estilos. Daí parei de me preocupar com isso e percebi que a técnica é o que menos importa. O que vale hoje em dia é a ideia.” Ideias que, por sinal, vêm de onde menos se imagina. “Uma vez eu tava no ônibus e vi um cara saindo de casa com uma arma na mão. Fiquei me perguntando o que ele ia fazer com aquilo. E daí eu tento trans28

ferir o que eu imagino pro papel, ou então até um sonho que tive.” O estilo de Robson pode até não ser conciso, mas é fácil notar que o vínculo com o HC e o Punk é expresso em suas ilustrações, assim como filmes de terror lado B, o trabalho de Robert Crumb e tatuagens old school.. “Acho que ‘Evil Dad’, Black Friday (banda) e o punk podem resumir o que eu faço, mesmo que inconscientemente”, chuta o ilustrador. Por falar nisso, o punk e o HC transpuseram as barreiras do gosto musical e mesclaram-se ao talento da ilustração. Há quase 10 anos, em 2003, “um maluco de São Paulo” que Robson conheceu pela internet o convidou para ilustrar a capa de uma coletânea nacional de HC e punk chamada “Sinfonia da Destruição”. Assim, logo de cara, o jovem Robson pegou gosto pela coisa. “Achei o máximo. Além de ter sido uma coisa que me pegou de surpresa, eu achava bem louca a ideia de saber que algo que eu tinha feito ia ser utilizado por pessoas que eu nunca tinha visto na minha vida. Outra vez, em 2005, um cara do Chile apareceu me pedindo pra fazer uma logo pro selo dele e eu nunca nem tinha ouvido falar no ‘brother’. Ele me pediu uma ilustra com uma caveira e dois skates. ‘Contraorden’ era o nome do selo.”

“ainda acho louca a ideia de que algo que fiz seja usado por gente que nunca vi na vida”


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“certos trampos vêm do nada mesmo, eu até me assusto” Daí, a coisa engrenou. Vieram capas de outros álbuns, como da “Discórdia”, de Brasília; “Licor de Xorume”, de Ananindeua (Pará); “Adipocera” (Belém); “La Revancha” (São Paulo) e agora Robson produz para a “Criaturas de Simbad”, também de Ananindeua. Mas Belém e o Brasil não são o limite. Tampouco a América Latina. “Há dois ou três meses fiz a capa de um dos CDs de uma coletânea norte-americana chamada ‘Punk Across The Globe’. São vários volumes, cada um referente a um país. Esse era o ‘Introducing Brazil’, onde rolou do ‘Machete’ estar dentro”. “Machete” foi uma das tantas bandas que Robson fez parte. “Comecei a trocar uma ideia com o cara responsável pela coletânea na internet, ele viu uma ilustração que eu usava como foto de perfil e perguntou se eu havia feito. Eu disse que sim, ele perguntou se eu não tava a fim de fazer a capa da coletânea e rolou.” Como dá pra perceber, se não fossem a internet e o “acaso”, como ele gosta de definir, o currículo de Robson seria um tanto diferente. E logo na área em que ele descobriu ser sua predileta. “Quando acontece esse tipo de 34

trampo, é do nada mesmo, até eu me assusto. E é o que eu mais gosto de fazer, cartaz de show de hardcore, capa de disco, flyer de show... é o tipo de trabalho que eu não preciso ficar me regulando e que tem uma estética visual comum à minha. Pelo fato de eu estar envolvido com a coisa, fica muito mais simples.” Hoje, são mais de 150 ilustrações, espalhadas por paredes do quarto e HD’s , fora as tantas outras que se perderam por aí. “Tenho ciúmes dos meus filmes, quadrinhos e vinis, mas com as coisas que produzo, nem tanto. Tem um mural na faculdade (Robson cursa Artes Visuais na Universidade Federal do Pará) onde o pessoal cola umas cópias dos trabalhos que fazem. Eu sempre coloco o original do desenho e o pessoal me pergunta se eu não tenho medo que levem, como já levaram antes. Na real, o que eu acho mais legal é quando levam.”


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uma prancha é um pedestal para o corpo texto: danielle fonseca ilustração: fábio graf

Uma base é um substantivo feminino, a superfície inferior de um corpo, algo que serve de apoio, de princípio ou fundamento. Às vezes chamada de pedestal, para os músicos é a nota fundamental, a tônica. Para o artista italiano Piero Manzoni, uma base pode ser tão mágica a ponto de suportar em si esculturas vivas, mas, sobretudo, pode ser lugar de discussão para arte conceitual. Para os surfistas uma base é a prancha, objeto que proporciona o escorrego, a fricção entre o corpo e a onda. Espécie de tapete mágico onde o surfista-dançarino de uma cena líquida pode fazer jus à teoria do filósofo francês Gilles Deleuze e ser a própria dobra. “A dobra somos nós”, escreveram os surfistas a Deleuze. “Mormente, o surfista, ao contrário do nadador, dispõe de um material extra-humano: a prancha e a força motora extracorporal, isto é, a vaga. É claro que o trabalho, a técnica, o treino, a escuta do corpo, da onda e alianças desses dois elementos nutrem a sensação do surf-imagemmovimento, inserido numa filosofia vitalista, a imanência, uma vida.” Habitar a dobra da onda é a tarefa deles e, com efeito, os surfistas fazem isso muito bem. Eu, nessa imersão de 36

águas que é a Amazônia, descobri que (abro aqui umas aspas históricas) o surf foi criado por antigos povos peruanos que já se utilizavam de uma espécie de canoa confeccionada de junco para deslizar com seus caballitos de totora (1100 d.C) em ondas que atravessavam o Monte Mismi (onde está uma das nascentes do rio Amazonas) até chegarem quem sabe nas pororocas do rio Araguari (AP), de Chaves, na Ilha do Marajó, de São Domingos do Capim e nas ondas tubulares da praia do Marahú, na Ilha do Mosqueiro, paraíso dos surfistas de Belém e do poeta Max Martins. Além de Gilles Deleuze, o filósofo Pierre Levy também traçou algumas questões sobre o surf em seu livro “O que é o virtual”. Levy trata de um corpo súrfico, mas não sobre somente aquela ideia de corpos saudáveis e atléticos das revistas de esportes radicais, mas de um corpo que ultrapassa limites, conquista novos meios e intensifica sensações: “Os esportes em que mais se intensificam a presença física do aqui e do agora são os de prática de queda (paraquedas, asa delta, bungee jump) e deslizamento (esqui nas montanhas de gelo e aquático, surf, windsurf) são reações à virtualização, onde a pessoa reafirma o fato de ser mortal”. Em Pierre Levy o corpo de um surfista ad-

quiriu, através da prancha, extensão de pés, que o fazem andar sobre as águas. Na Polinésia e no Peru as pranchas eram fabricadas pelos próprios usuários ou surfistas. Acreditava-se que ao fabricar sua própria prancha se transmitia todas as energias positivas para ela e, ao se praticar o “esporte”, libertava-se das “energias negativas”. E eis que se deu, certo dia, que mandei fazer para mim uma prancha. Era a sério. Encomendei uma prancha especial, de pinho, construída em madeira de corpo único, feito um fundo de canoa, que é quase uma prancha sem as margens. Prancha é lugar para caber justo um remador ou um surfista. E teve que ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para o contato com a água uns muitos anos. Se João Guimarães Rosa tivesse conhecido algum surfista diria que são seres que executam a invenção de se permanecer em espaços de rio ou mar, de meio a meio, sempre em cima da prancha, como se dela não fossem saltar nunca mais.

“a dobra somos nós”, escreveram os surfistas a deleuze


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muito além da i agem vv

o universo repleto de significados de tadeu lobato

o paraense Tadeu lobato fez parte do grupo de artistas que, no começo dos anos 1980, usou a abertura política vivida no país para transformar a cidade das mangueiras, ainda distante dos grandes centros, num ponto de grande efervescência e discussão sobre os rumos das artes visuais no brasil e ao redor do mundo. educado artistica e filosoficamente na mistura entre dante alighieri e matisse, abraçou com convicção o desenho e a pintura como as bases de seu pensar e fazer artístico, que evidencia uma curiosidade infinita sobre o lado menos perscrutado do que é o ser humano. Nas próximas páginas, confira um pouco da obra e do pensamento do artista.

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“A pintura, esta senhora de 35.000 anos, é tão generosa e elástica que perdura até os dias de hoje. É o meio que mais se permitiu experimentar, seja na forma, no conteúdo, no cromático, na matéria, no suporte. A pintura é um organismo vivo e independe da vontade do ‘artista’. É uma sobrevivente, dado o número de vezes que sua morte foi anunciada. Ela é tão primordial na cultura humana que qualquer arte-mídia passa em essência pela pintura. Podemos ver pintura nos vídeos, nas instalações, performances. É tão interativa como qualquer outro meio, pois a contemplação é uma forma de interação visual e mental.”

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“Esta exposição é um diálogo amplo com Edward Goery. Todo o material é tomado de empréstimo. Ela passa a ser autoral nos conteúdos, já que eu ‘lobatizo’ tudo nos conceitos. São histórias de suspense para crianças, quando contar contos era coisa para embalar o sono. Nunca entendi por que o medo chamava a sonolência, mas era assim que as coisas funcionavam. Isto foi o ponto de partida, a superfície do trabalho. O que vem por trás é perigoso: trata da maldade e da perversão, do humano e sua capacidade de produzir sofrimento. O trabalho fala por si.”

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“Meu trabalho é todo construído como um poeta trabalha seus poemas, principalmente na técnica da fragmentação, muito utilizada por T.S Eliot, que toma um material por empréstimo e o singulariza. Se pinto uma maçã, não é somente a imagem da maçã: são as múltiplas possibilidades conceituais que a maçã aglutina. Meu trabalho não se limita à imagem. Ela é somente um pretexto dentro do meu universo existencial.”

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“Sou um artista sazonal. Só trabalho quando tenho algo para dizer. Quando estou assim até esqueço que sou ‘artista’, um artifício mítico de divinização de alguém comum. Sou trivial. Não me sinto na obrigação de estar nos lugares, muito menos de gostar de algo que me motivava há tempos atrás. Gosto do que não entendo. Ser ‘artista’ 24 horas por dia deve ser um martírio!”

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“Criadores são seres raros, sempre em suspensão. A invenção é ‘breve’, ela esgota-se no instante em que deixa de ser invento para se transformar em fórmula e redundância. Prefiro ser um ‘artista’ em estado de convenções passageiras, brincando de dentro para fora, deslocando convenções, ora afirmando, ora negando. Acredito que tudo são sinapses disfarçadas de descobertas.”

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texto: luiza cabral fotos: maksuel martins

Em MacapĂĄ, jovens artistas piram em comunhĂŁo no catita clube

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Na pontinha de cima do país, uma cidade simpática, de geografia plana e arejada pelos ventos do rio Amazonas rompe sob o sol da linha do Equador. Macapá, capital do Amapá, tem potencial econômico e turístico indiscutíveis, justificados, talvez, pela história recente do estado, um dos últimos a serem instituídos na federação brasileira. Dado o cenário favorável para isso e aquilo, é notável uma lacuna no que diz respeito a espaços para produção e escoamento do pensamento e da prática artística local. Mas como para todo mal há cura, iniciativas autônomas vêm, há alguns anos, estabelecendo novos paradigmas e derrubando a rigidez dos muros institucionais do mercado da arte, cujos braços curtos mal alcançam a região norte do Brasil e pouco refletem o efervescente cenário tucujú. Nessa contramaré encabeçada por grupos performáticos como o Urucum - que nos anos 2000 apropriou-se do espaço público para intervenções político-poéticas - e do Coletivo Palafita (este último integrante da rede colaborativa Fora do Eixo), uma movimentação de jovens artistas vem sorrateiramente fazendo seu papel. Como expelidos da famosa música dos Titãs, os bichos escrotos do Catita Clube saem dos esgotos para enfeitar ruas, lares, muros e olhares com desenhos, grafites e ideias.

Nascido em 2010, o Catita Clube foi formado inicialmente por sete jovens artistas. O grupo se uniu quase por acaso, quando cada um deles foi convidado individualmente para participar de uma exposição no Sesc Amapá. O processo de construção do primeiro trabalho coletivo diz muito sobre a forma de produzir que mais tarde conduziria a turma: ao invés de eleger uma proposta definitiva para o espaço expositório, a galeria ganhou dinâmica com proposições renovadas a cada nova sacada. Assim, a mostra virou um lugar de interação que logo apontou diversas afinidades entre os trabalhos, essencialmente unidos pela técnica de ilustração, desdobradas em nanquins, aquarelas, tintas e sprays.

muros, olhares, ideias, desenhos e grafites para enfeitar o efervescente cenário tucujú

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os catitas -Rogério AraújoQuando produz é conhecido por Nomed. Começou a pensar arte em 1999, tendo como principal paixão a ilustração e as múltiplas possibilidades do design. Seu traço carrega técnicas diversas, da aquarela ao nanquim. Terror, erótico e terror erótico enchem sua cabeça. - www.flavors.me/nomedarts -

“A partir do momento em que o Sesc nos chamou, dados os passos iniciais da relação entre nós que começou alí , nos aprofundamos juntos para fazer a mostra, o que abriu muitas portas. As sincronias começaram a rolar e logo vimos que tínhamos em comum uma vontade de fazer diferente, fora do sistema. Daí foi tudo muito despretensioso e natural. Continuamos o contato e a coisa fluiu”, relembra Daniel Nec, um dos fundadores do grupo, artista e designer potiguar que mora em Macapá há cinco anos. Essa dinâmica nada burocrática, baseada na vivência e na prática artística que remete a um laboratório de trocas, fundamenta o percurso do clube. Desde o primeiro contato, ocorrido na exposição “DEZconstroem 30 dias”, o coletivo se propôs a instituir o espaço democrático e livre de produção, e a partir daí, pensar suas ações na cidade. Não demorou muito para que os muros de Macapá se tornassem quadros brancos em potencial, prontos para pinceladas nervosas e cheias de mensagens. “Intervenção urbana é um trabalho que tem a nossa cara mes-

mo. Já fizemos coisas bem legais, como as ilustras em um ‘murão’ na Avenida Padre Júlio, no Bairro Santa Rita, daqui de Macapá. O bacana da arte de rua é que todo mundo que passa pelo lugar inevitavelmente vai olhar e ler as coisas que estão escritas; Também tem as pinturas que fizemos numa esquina do Catita, num prédio abandonado, que também ficou muito legal e todo mundo para pra olhar”, diz Rogério Araújo, que na hora de atuar pelos becos da cidade com um spray na mão atende pelo codinome Nomed. Sem amarras burocráticas, juntando trocados e produzindo quando dá na telha e por prazer, o ‘Catita’ revela um caminho tortuoso e cheio de iniciativa - a fórmula que calcou a estética underground pelo mundo. Mas nem só de becos públicos, deixando marcas pela cidade, vive o clube.

“intervenção urbana é um trabalho que tem a nossa cara” www.gotaz.com.br

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os catitas -Moara NegreirosAos 21 anos, “Moka” é formada em Design gráfico e produto, mas pouco se interessa pelo universo acadêmico. Filha e esposa de artista, acha que não restaram muitas opções: tinha que gostar de desenho. É mãe do Felipinho, de 3 anos, membro mais novo do Clube. - www.moaranegreiros.blogspot.com.br -

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os catitas Igor Conrado Shit Head - ou S.H. começou a desenhar por causa do fascínio pelos quadrinhos. Com 19 anos, ainda não deixou de lado o vício pelos gibis, que nevitavelmente ajudaram a traçar seu caminho como artista. Apesar de cursar Arquitetura, não consegue ver outra saída para vida a não ser desenhar.

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Quem não fica feliz quando encontra a cara metade? Moara, Daniel, Nomed, Aline, Jenifer, Carla e Igor encontram logo meia dúzia de parceiros artísticos em uma mostra e isso não poderia parar alí. Além de endossarem trabalhos coletivos urbanos, tardes de pinturas conjuntas e outras histórias, era preciso ter um espaço próprio. Um ninho de amor; uma toca de rato. E assim pintou a ideia do QG. Desde janeiro de 2012, Daniel juntou mais dois amigos para dividir uma pequena casa na Avenida FAB, importante rua da cidade. O convite tinha por trás a intenção de fixar um espaço para produção e divulgação do que a galera vinha fazendo. Desde então, o ‘Catita’ passou a usar as dependências do imóvel para pirar: feirinhas de arte, venda de roupas e acessórios com ilustração, comidinhas e música. Tudo produzido livremente e organizado na medida do possível. Mas há regras básicas: sem sujeira no chão, vale se emocionar e nada de pisar na pata da Gaia, mascote do grupo e da casa.

os catitas -Daniel NecNasceu em Natal (RN), mas mora em Macapá há 5 anos. Experimenta um monte: vídeo, sonoridades, traços. Trabalha como diretor de arte/design e entendeu que gostava de arte aos 17 anos, pixando muros da capital potiguar. Não se prende em definir sua produção, mas sabe que sua pegada é psicodélica. - www.flavors.me/danielnec -

ao invés de serem absorvidos pelo mercado, os catitas ainda preferem a “arte pela arte” 60


os catitas -Jenifer NunesAos 23 anos, Jenifer já se divertiu em diversos segmentos artísticos. Fez faculdade de Artes Visuais, estudou desenho e tem um apreço declarado pelos experimentos e conceitos contemporâneos da arte. No Catita, deu vazão à ilustração e a arte urbana.

“No ‘Matinée o quê?’, evento que fazemos aos domingos, tem um tempero diferente porque garimpamos roupas em brechós, fazemos o ensaio fotográfico, cozinhamos, incentivamos o escambo ou venda de objetos (por preços baixos). Então aí tem a lógica de troca, menos consumo mesmo. A comida são frutas, sucos, rangos vegetarianos, não vendemos bebidas alcoólicas nesse dia, acontece à tardinha... é outra forma de socialização, mais aberto a idades e gostos diversos”, diz Jenifer. Ao invés de se preocuparem em ser absorvidos pelo mercado de arte, os catitas, como são conhecidos pela cidade, preferem o caminho natural das coisas: a arte pela arte. “Eu tenho me preocupado em fazer a arte pela arte, buscando apenas a recompensa inerente, que é a própria ação. Claro que um dinheirinho ajuda a perpetuar a prática, mas ele a gente vai conseguindo como pode, sem neura”, diz Daniel. É bom ficar ligado no que vem debaixo, dos esgotos nauseabundos das cidades. Taí o Catita para provar que o que não reluz também pode ser ouro. www.gotaz.com.br

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texto: RAMIRO QUARESMA ILUSTRAÇÃO: FiLIPE ALMEIDA

sussurro digital das águaS Quando os paus-de-chuva samplearam o toró amazônico na obra “Xumucuís”, de Valdir Sarubbi, durante a Décima Primeira Bienal de São Paulo em 1970, dava-se início à arte digital no Pará. Não ainda aquela arte de zeros e uns, mas outra arte binária de vermelhos e brancos, caroços e espinhos de buriti, sensorial e interativa, rizomática, que ocupou o espaço do cubo branco com uma atmosfera de floresta molhada, uma sensação táctil de ancestralidade e tradição. O Xumucuís se fez arte contemporânea em todo o seu sibilar de poética do imaginário amazônico.

Respostas são desnecessárias, as fronteiras se diluíram, os artistas se desterritorializaram e a arte amazônica agora é global, e, pela potência, a arte global acaba sendo um pouco amazônica. A caverna de Platão é o desktop e nele estão todas as ferramentas mentais de construção artística. E não foi um processo de substituição do “plástico” para o “visual”: foi de inclusão digital, pois tudo que era permanece, só que agora em múltiplas camadas (http://) de realidade.

“Apanhe um dos bastões, gire-o lentamente em várias direções, dando voltas completas. Você vai ouvir sons, após isso, invente outros movimentos, criando novos sons que deseje ouvir.”

Nos anos 1970 Bené Fonteles inicia suas obras audiovisuais em VHS e suas xerografias utilizando copiadoras para a montagem e reprodutibilidade de imagens numa fase pré-computador. Nos anos 1980/90 a produção de arte em vídeo ganha força através de videastas como Nando Lima, Dênio Maués, Jorane Castro, Orlando Maneschy e Mariano Klautau, que produziram uma obra relevante em formatos como VHS e Betacam, editando com grande dificuldade suas obras. Já nos anos 2000, com as plataformas de edição de filmes mais acessíveis, surgem obras como “Doris” de Alberto Bitar e Paulo Almeida; “Correspondência”, do artista (plástico) Acácio Sobral; e “Minutos de Silêncio”, de Roberta Carvalho e Keyla Sobral. Uma estética digital, de pixels, bitmaps, atraca no Port of Pará das artes. Nos anos 2010, no amazônico estado do Pará, as obras passam a transcender o formato videoarte, utilizando outros recursos da plataforma

(Cartaz da obra Xumucuís na Pré-Bienal de 1970)

A leitura da obra de Sarubbi foi o ponto de partida do work-in-progress que é o Xumucuís (xumucuís.wordpress.com), que se apropria do nome da obra. Um não-lugar, um sítio onde a arte ocupa o ciberespaço e as entranhas nas mídias sociais, abrindo espaço a megabytes em um circuito elétrico obsoleto e fechado de galerias e museus. Entre posts e tags surgem as perguntas: o início e o fim do blog é o ciberespaço, ou as infovias se materializarão em caminhos de paralelepípedos? Que arte é essa que se faz num mundo hiperconectado? Existe uma arte digital paraense/amazônica? Será que a tecnologia aplicada às artes visuais tem identidade/ alma ou é direcionada pela produção mainstream? 62

- Histórico?


computacional, e do ciberespaço, e surgem obras de artistas como Roberta Carvalho, que projeta rostos digitais em árvores em um cinemamazônico “Symbioses”; Luciana Magno utiliza o sistema de câmeras de segurança de uma loja pra se documentar numa vida-obra (Vit(r)al); Lúcia Gomes compartilha seu ativismo político e artístico em PDFs através de correntes de e-mails e pelo blog. Todos fazendo arte digital, intuitiva, sem grandes recursos e sem aparatos hi-tech. Parafraseando Rubens Fernandes Júnior: numa militância poética. Dentro desse momentum tecnológico da arte contemporânea, o Xumucuís se desdobra nas exposições I Salão Xumucuís de Arte Digital (2011) e Panorama da Arte Digital no Pará (2012), com obras de todo o Brasil (30 obras de arte mídia) e o upgrade das performances em vídeo-arte de Armando Queiroz carregadas do anima amazônico; da videoinstalação de Melissa Barbery onde a planta se desfolha enquanto seu signo permanece eterno no LCD; dos desenhos poético-visuais animados em Gifs de Keyla Sobral; das gravuras de Flavya Mutran e seu processo híbrido de retratar o além-do-olhar; do mapeamento de vidas no transporte público de Belém feito por Carla Evanovitch; das personas inventadas por Bruno Cantuária e Ricardo Macêdo e do georreferencimento de mangueiras de Val Sampaio. As águas sussurraram do ciberespaço para a galeria, pelo HD da mente criativa de uma geração de artistas e, numa nuvem de tags, choveu um toró digital de @rte.

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texto e ilustraçþes: paloma franca amorim

ma tin ta o traço, a poesia, o mito desmistificado de paloma franca amorim

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N達o n達o n達o nem se atreva a domesticar os carnavais dela.

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- Onde te encontro que não estás a voar? - Eu caí, mas basta pôr a queda do avesso para me encontrar.

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N찾o, n찾o era um abismo Ela caiu da pr처pria altura.

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Com esses olhos corrosivos de riscar a faca no chão, me convocavas a lutar. Eu não sabia manusear armas de fogo, eu não sabia atirar flechas ou navegar em tanques e helicópteros. Eu só podia escrever. E escrevi, escrevi noites e noites a fio, escrevi nos dias em branco, escrevi nas bordas do que ainda não era possível. Quando fiz das palavras o meu armorial, fui ao teu encontro À guerra De onde voltei faminta E sangrando.

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Uma vez sangrando, mergulhei. Mergulhei fundo até onde a carne não dói mais.

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Mas n찾o era dada a atrair os tubar천es, S처 seduzia medusas e medeias.

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Meu gênio forte acobertava meus pecados Meu espírito crítico fortalecia meus erros Minha mocidade Garantia o tom de exagero Substancial aos gritos e temores Mas eu tinha fé, eu tinha fé, eu tinha muita fé meu deus, Na envelhescência.

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AtĂŠ o dia em que vocĂŞ partiu antes de morrer

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E eu chorei tanto Que de t達o vermelhos os meus olhos Sorriram.

www.plmfa.wordpress.com

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texto: gil viera ilustração: felicia bastos

o rubor dos embaraçados Quando cavaleiros apocalípticos são convidados para exposições de arte Com uma altivez peculiar, típica de cavaleiros medievais no campo de batalha, um policial fardado desfila dentro do Museu Histórico do Estado do Pará. O eco dos cascos da sua montaria espalha-se pela sala pouco iluminada, atravessa o corredor e vai misturar-se a outros sons presentes no 31º Salão Arte Pará (2012) – um dos mais renomados eventos de arte do norte do país. Num andamento sem trégua, cavalo e cavaleiro estão, no entanto, confinados àquela sala: são apenas um registro em vídeo, que não protege nem incomoda a ninguém. Do policial pouco sabemos, mas da pessoa que o incorpora já possuímos algumas informações: é Berna Reale, artista paraense ganhadora do PIPA Online 2012, entre outros feitos. O vídeo, intitulado Palomo, é a obra que ela apresenta como convidada do 31º Arte Pará, e traz uma imagem bastante instigante para discussão. A começar pela montaria: um animal robusto e rubro como sangue. Vermelho que, aliás, nos leva a outra obra da artista: Entretantos Améns (2010), na qual a mesma aparece, de costas, vestida com uma espécie de camisa de força, ou talvez um manto, da cor em questão. Como um ídolo de carne morta e crua submergido aos poucos pelo mar que se aproxima. Diferente do vermelho em Palomo, um falo de 78

carne viva e pulsante que penetra e desbrava a avenida. E nos leva à espada do cavaleiro apocalíptico da guerra: o segundo selo foi rompido e surgiu aquele cavalo vermelho, e ao que estava assentado sobre ele foi dado que tirasse a paz da terra, e que se matassem uns aos outros. Palomo: masculinização de paloma, a pomba branca da paz. No lugar da delicada ave que, como o vento, sopra onde quer, temos um cavalo pisando forte, guiado pelo palomo humano. Pelo policial cumprindo seu maldito dever, defendendo o seu amor e a nossa vida. Hoje Deus anda de blindado. E a pomba branca tem dois tiros no peito. Além de fardada, a artista também traz a cabeça raspada e, na face, uma espécie de focinheira. O ritmo ditado pelo som dos cascos é angustiante, e contrasta com a cidade vazia que lhe serve de fundo. Como em outra de suas obras, Quando todos calam (2009), Belém surge como cenário e, ao mesmo tempo, personagem. O que poderíamos apreender de uma cidade que silencia e se curva aos cascos de um cavaleiro altivo? Na obra de Berna Reale um detalhe também chama atenção: um grupo de pessoas surge em determinada cena, estáticos na calçada, alienígenas talvez colados alí por meio de softwa-

res avançados. O grupo é composto por uma mulher e dois meninos, todos a olhar embasbacados para o policial que desfila na avenida. Aquele grupo resume, de forma magistral, o povo paraense ou brasileiro. Uma gente apática – desinteressada de teorias, fantasias ou algo mais –, quase personagens pintadas por Pedro Américo, puxando bois às margens do Ipiranga enquanto Dom Pedro I e outros cavaleiros apocalípticos deflagram heroicamente os rumos da nação. Um povo calado, motivo que nos faz pensar que a focinheira usada pelo policial é, também, grade e mordaça que simboliza a Lei. Talvez a lei do silêncio. A lei do cão, talvez. Mas tudo ok, os cães ladram, mas a caravana não para... - paradoxo Há certa incongruência em Palomo, e convém discuti-la com mais afinco, que é a respeito da rede de relações que os Artistas experimentam quando ocupam seu lugar de fala. Ou, trocando em miúdos: quem também fala por meio da voz do Artista? O paradoxo reside nos dois extremos que Berna Reale implicitamente agrega em sua obra: em primeiro lugar, uma crítica a instituições e poderes autoritários; depois, a utilização – e, de certa forma, a afirmação – de instituições e poderes, nos dispositivos de produção e circu-


com altivez peculiar, típica de cavaleiros medievais, um policial fardado desfila no museu histórico de arte do pará

lação do vídeo-performance Palomo. O primeiro ponto é bastante evidente. Já o segundo é mais revista gotazzzzc_Felicia.indd 1 complexo, requer um exame apurado do contexto e das relações ao redor da obra e da artista. Afinal, arte, hoje em dia, é também relacional. Vejamos a produção de Palomo: qual logística foi necessária para a execução do vídeo? Como conseguir um cavalo (vermelho)? Quem filmou? Com que câmera? Como conseguir uma farda policial (verdadeira ou falsa)? Como conseguir a Avenida Presidente Vargas (uma das mais movimentadas da cidade) quase inteiramente vazia? Sem trânsito de veículos, nem de pessoas. Montagem digital? Pedestres e motoristas respeitosos, esperando por trás das câmeras o momento em que a performance fosse concluída? Terá sido interditada a avenida, pelas esferas governamentais, para que as filmagens fossem feitas? Que poder é esse que os Artistas possuem para esvaziar avenidas e transformá-las em cenário de sua arte? O circuito utilizado para a exposição da obra também é exemplar nesse sentido: o evento Arte Pará é atualmente um dos principais dispositivos de legitimação das artes visuais aqui produzidas. É possível imaginar, porém, que a via é de mão dupla: Berna Reale, uma artista que ganha cada vez mais prestígio nacionalmente, ao expor como convidada do Arte Pará acaba por também legitimá-lo. E, por tabela, todas as instituições mancomunadas com o evento. Aí reside a questão: Palomo parece, justamente, criticar as medidas autoritárias de algumas destas instituições, que decidem os rumos da história paraense ao sabor de interesses escusos. Seria Palomo, lembrando Cildo Meireles, uma inserção

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27/11/2012 14:10:07


num circuito ideológico? Poderíamos falar em crítica institucional? Ou mero simulacro de crítica? Gostaria de relembrar ainda outra obra da artista, que consistiu em imagens de tijolos adesivadas como buracos no reboco dos muros de um antigo palácio (atualmente museu): Presença-Ausência (2005). Estes adesivos simularam ruínas, antecipando (ou expondo) a decrepitude institucional, as vísceras, o interior revelado. Semelhante ao que faz Palomo, de outra maneira. Parece ser de uma estranheza e de uma sagacidade enorme a obra escolhida por Berna Reale para expor no 31º Arte Pará. Afinal, tal evento possui relações institucionais bastante diversas e Palomo pode ter soado de maneira, digamos, embaraçosa para muitas destas institui-

ções parceiras ou realizadoras do evento. Embaraçoso, talvez, para Simão Jatene, atual governador do estado do Pará, que circulava pela exposição, como de praxe, durante sua cerimônia de abertura. O Pará traz em sua história um rastro de violências difíceis de apagar: o genocídio indígena, a tragédia do Brigue Palhaço, a guerrilha do Araguaia, o massacre de Eldorado dos Carajás, os assassinatos de Josimo Tavares, Paulo Fonteles, Dorothy Stang, entre tantos outros. Talvez seja embaraçoso, no período em que a Hidrelétrica de Belo Monte está sendo atravessada goela do Brasil abaixo, apoiar uma exposição que estampa as repressões policial, empresarial e – principalmente – governamental às vistas de quem puder e quiser ver. Mas, infelizmente, essa é uma terra míope.

uma inserção no circuito ideológico, crítica institucional ou mero simulacro? 80


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texto: leonardo fernandes

web de papel na era digital, fanzines se reinventam para seguir relevantes

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Primeiro vem o choque: rostos disformes, corpos em decomposição, caveiras e outros horrores indescritíveis. Mas assim como é difícil desviar o olhar de um acidente de trânsito, uma curiosidade mórbida o faz reparar nos desenhos de xBerecox. A riqueza de detalhes das ilustrações em preto e branco é quase barroca. Os traços são carregados, cheios de sombras e ranhuras. A morte também nunca pareceu tão divertida quanto em seu trabalho, uma legião de zumbis fãs de hardcore, cobertos de pústulas e tatuagens. Algumas das monstruosidades de xBerecox podem ser vistas na forma de grafite, pintadas nas paredes de Belém. Mas os seus desenhos no papel saem da gaveta direto para o fanzine “Ninho de Rato”. Com seu segundo número

lançado no dia 14 de novembro deste ano, a publicação é um álbum de recortes dos interesses de seu idealizador, que além do desenho e do grafite, recentemente assumiu o papel de cantor e compositor na banda de thrashcore Rejeitados pelo Diabo.

surgimento do Ninho vem também pra marcar uma retomada da produção na cidade, que está muito parada. Existem poucos zines, e mesmo estes, na maioria, não passam do primeiro número”, conta o artista paraense de 23 anos. Ele mantém a tradição do fanzine seguindo a mesma fórmula dos pioneiros. Os desenhos são feitos a mão. O esboço é feito a lápis e o acabamento com tinta nanquim. A diagramação das páginas é organizada direto no papel, recortando e colando papel. Títulos e chamadas são escritos na munheca. O processo artesanal por muito pouco não dispensa completamente o computador. “Uso computador apenas na hora de escanear, digitar alguma coisa. Quero manter a essência do zine, manter o espírito de quando começou.

desenhos feitos a mão, diagramação direto no papel: eis o fanzine “Tive contato com o mundo dos fanzines nos shows de hardcore. Aí comecei a correr atrás e descobri que não é só texto, só política. Tem zine de colagem, ilustração, quadrinho. Vi um meio diferente de divulgar minhas ilustrações e as bandas que eu gosto. O www.gotaz.com.br

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Os fanzines deixaram de ser uma necessidade para se tornarem uma escolha consciente de quem produz

Quanto mais tiver que sujar as mãos pra isso, melhor”, revela. O paraense não é o único a contrariar a impressão de que o fanzine está morrendo, como demonstra o “Anuário de Fanzines, Zines e Publicações Independentes”. O projeto idealizado pelo designer gráfico paulista Douglas Utescher, 35 anos, é uma espécie de catálogo com o que há de mais atual na produção. Fanzineiro na década de 1990, Douglas sentiu curiosidade de revisitar o passatempo de sua adolescência por conta de uma pesquisa de pós-graduação. Do estudo saiu à base do primeiro mapeamento, iniciado por uma convocatória em seu blog, em 2010. Mesmo familiar com o universo, tinha dúvidas sobre o que ia achar de relevante sendo feito no papel frente às facilidades de diagramação e distribuição no meio digital. Foi surpreendido com os 120 títulos que compõem o primeiro anuário, lançado em fevereiro de 2011. Publicado de forma independente por sua editora Ugra Press, com sede em São Paulo, o anuário já conta com duas edições, que juntas mapearam 280 84

publicações do Brasil e da América Latina. Devido ao aumento da procura por parte dos fanzineiros, para o terceiro volume, com previsão de lançamento para março de 2013, foram abertas inscrições inclusive para Europa, com inclusão dos países ibero-americanos. “Os fanzines deixaram de ser uma necessidade para se tornarem uma escolha consciente de quem produz. Na rede você pode trocar informações, fazer contatos, fazer suas ideias alcançarem qualquer lugar do mundo em tempo real. Mas justamente porque os fanzines passaram a perder relevância com a tecnologia, muitos se tornaram fanzineiros por uma questão de escolha deliberada pelo impresso. Não existe mais lógica e sim paixão”, analisa Utescher. Assim como a fotografia analógica vem ganhando status cult nas últimas décadas, devido às características únicas do filme para a composição de imagens, o fanzine conquista cada vez mais espaço como uma forma experimental de publicação de ideias. Lugar de excelência dos amadores, os zines vão gradualmente sendo tomados por projetos conceituais abrangendo artes visuais, fotografia e literatura. “Pode até ter diminuído a quantidade de fanzines se você for comparar com o começo da atividade no Brasil, mas um a coisa que tenho percebido é que a qualidade desse material produzido é cada vez melhor. Os zineiros estão aproveitando para fazer um produto diferenciado, fazendo uma costura à mão, intervenções. Tem nomes como Rodrigo Okuyama (ilustrador paulista editor dos zines “La Permura” e o “Estensas Estrias del EstenSiñor”) que chega a produzir zines inteiros só por estêncil. Pinta um a um, página por página. Chega ao ponto que aquilo vira um objeto de arte”, conta. A serviço do rock - Foi nos anos 1980 que os fanzines começaram a ganhar relevância no Brasil, quando passaram a ser adotados como meio de divulgação do movimento punk, como mostra a série


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de documentários “Fanzineiros do Século Passado”, dirigido por Márcio Sno. Dividida em três capítulos, em junho passado foi lançado o segundo vídeo, intitulado “O fanzine a serviço do rock, os fanzineiros desse século e os estímulos para a produção impressa”. O projeto criado para a web é pioneiro ao registrar o movimento de fanzines no país, contando ao todo com 76 entrevistados, entre eles, BNegão, Wander Wildner, Gabriel Thomaz e Marcatti. “Os fanzines surgiram como publicações independentes, uma alternativa aos assuntos tratados pela mídia convencional. Alguns pesquisadores apontam a década de 40 como a data de surgimento dos primeiros deles, divulgando temas da ficção científica no Brasil. Mas foram os punks que souberam aproveitar todo o potencial desse meio de comunicação. Como os punks só ganhavam espaço nos jornais como caso de polícia, foram os zines produzidos pelas bandas e fãs os primeiros relatos fiéis a surgir da cena. Quando chegaram os anos 90, os fanzines se estabeleceram como o veículo de divulgação por excelência do underground brasileiro”, revela o jornalista e videomaker paulista de 37 anos. 88

Para Jayme Katarro as páginas borradas e enegrecidas cuspidas em série pela máquina Xerox eram um milagre comparável à multiplicação dos peixes. “Vivíamos um período de revolução tecnológica. Por mais tosco que fosse um fanzine xerocado, uma gravação em fita K-7, essas ferramentas deram uma liberdade criativa que a gente nunca tinha imaginado. Depois delas, era barato gravar, publicar, copiar, difundir informação”, conta o cantor e compositor paraense de 42 anos, fundador do grupo de hardcore Delinquentes, em 1985. Na analogia de Jayme, era a internet antes da internet. Através de seu zine “Secreção Esporádica” – publicado entre 1987 e 1991, foi um dos mais duradouros de Belém, com 10 edições -, ele fez contato com o resto do Brasil e do mundo, divulgando a cena daqui ao mesmo tempo em que recebia informações do que acontecia lá fora. “Toda semana chegavam coisas pelo correio. Cheguei a receber dez, quinze zines por semana. Vinha coisa de Salvador, São Paulo, da Europa. Às vezes tinha fita demo junto, até vinil. A internet facilitou o contato, mas parece uma coisa mais efê-


se em quantidade as produções diminuíram, com o passar do tempo a qualidade melhorou

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mera. Alguns contatos daquela época até hoje eu mantenho. Eu nem conheço pessoalmente, mas tem um laço de amizade”, compara. A produção de fanzines no Pará seguiu alimentada pela cena metal e punk, com o surgimento de títulos como “Inferno Verde”, produzido pelo Teco Trovão, Ronaldo Passarinho e Claumir, de 1985, “Rock Brigade”, de Fernando Filho, de 1986, “Slammer”, de Ligia Lord e Pepe, de 1988, e “Crossover”, de Márcio Kalango, de 1988. “Aí veio o computador e a internet relegou o fanzine a peça de museu no final da década de 90”, vaticina Marcos Dickson Oliveira, 42 anos, publicitário, jornalista e professor universitário na área de produção gráfica. Editor do zine “Craw” nos anos 1990, a publicação era voltada para as novidades do cenário musical da época. “Com os blogs, já não tinha razão para existir zines de música, de resenha, crítica. Todo mundo migrou pra web e pro-

dução caiu pra quase zero. O que eu senti é que aquela geração não soube lidar com a internet, incorporar a ferramenta, se reinventar”, analisa. - Blog analógico Trinta anos depois, os zineiros finalmente parecem estar reconciliando suas diferenças com o mundo digital. As paraenses Rafaela Fontoura e Laíza Ferreira são outro caso de jovens de 20 e poucos anos que nutrem o mesmo sentimento nostálgico pelo fanzine. No começo do ano lançaram o “Cinisca”, zine de inspiração feminista. “O ‘Cinisca’ é a nossa versão do Clube da Luluzinha: menino não entra. Ele nasceu do interesse em comum de um grupo de amigas por punk, hardcore e tudo que gira em torno dessa cena”, diz Rafaela Fontoura. Publicação utiliza páginas A4 inteiras, fotocopiadas e grampeadas. As editoras pintam pessoalmente algumas das ilustrações. Tamanho empe-

nho só é possível pela tiragem limitada - a mais recente edição contou com 30 exemplares - bancadas pelas próprias garotas, que vendem a um preço simbólico de R$ 1 em shows de rock na capital paraense. Mas tudo isso é feito sem dispensar a versão virtual do zine. “A gente curte muito colagem, todo o trabalho manual que é publicar um zine. Você só aprecia esse esforço pegando o zine na mão. Até criamos um blog para divulgar fora do Pará, além de mostrar os originais, já que se perde muita coisa com a xerox. Mas a proposta é manter a coisa impressa, nem que seja pra um grupo mínimo de pessoas. Preferimos que a nossa mensagem seja assimilada por quem está interessado ao invés de diluí-la na internet. Mas uma coisa nunca exclui a outra”, define Laíza. Se ainda restar alguma dúvida, basta olhar no box com a sugestão de contatos: um doce pra quem achar um zineiro sem um pezinho na web.

Para conhecer - O zine “Ninho de Rato” pode ser conseguido através do e-mail: bereco-12@hotmail.com. - Se você quer enviar seu zine para a próxima edição do “Anuário de Fanzines, Zines e Publicações Independentes” ou adquirir um exemplar, vá no blog da Ugra Press: ugrapress.wordpress.com - Para assistir na Í=ntegra os dois primeiros capítulos da série “Fanzineiros do Século Passado”, de Márcio Sno, acesse: www.vimeo.com/marciosno - O site das meninas do Ciniscazine é: ciniscazine.wordpress.comvv -

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por: qualquer quoletivo

mutati mutandis - mudando o que tem de ser mudado corte, recorte, monte, desmonte, reescreva, remonte, refaรงa-nus, escolha o que podemos e merecemos carregar. re-pense, pense, nos olhe, nos procure, brinque com a gente. - www.vimeo.com/qualquerquoletivo -

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