Reflexões sobre o uso de tecnologias de áudio em pesquisas com crianças

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REFLEXÕES SOBRE O USO DE TECNOLOGIA DE ÁUDIO COMO METODOLOGIA DE ESCUTA DIRETA DE CRIANÇAS - A EXPERIÊNCIA DO “PROJETO JAÊ – CRIANDO A SÃO PAULO QUE A GENTE QUER”, NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO Grácia Lopes Lima1 Mariana Manfredi2 Milena Klinke3

Resumo

Num tempo de práticas sociais mediadas por tecnologias digitais cada vez mais populares e acessíveis no mundo inteiro, em especial no Brasil, este artigo se propõe a pensar sobre possibilidades de utilizá-las para a realização de pesquisas com crianças. Que diferenciais apresenta esse procedimento em relação ao uso de outras ferramentas que também buscam entender o que sentem e pensam as crianças sobre temas da vida individual e coletiva? Que conceito de criança estaria embutido na metodologia de escuta direta de crianças de que nos valemos para o trabalho, objeto deste texto? Quais desdobramentos vislumbram-se com a disponibilização dos áudios das gravações das crianças na internet? Que tipo de análise deriva desse modo de intervenção? Quais possibilidades dessa forma de pesquisa para a formulação de políticas públicas para grandes metrópoles como São Paulo? Tais considerações decorrem de reflexões sobre gravações realizadas com crianças de 6 a 12 anos, pelo “Jaê – criando a São Paulo que a gente quer”, um dos projetos de inclusão, cidadania e cultura digital para a cidade de São Paulo, durante o ano de 2015.

Palavras-chave: metodologia, tecnologia, cidade, direitos, criança. 1

Doutorado em Educação. Contato: gracia@cala-bocajamorreu.org

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Graduação em Ciências Sociais. Contato: mariana@cala-bocajamorreu.org Graduação em Psicologia. Contato: milena@cala-bocajamorreu.org As três autoras são corresponsáveis pelo “Projeto Cala-boca já morreu – porque nós também temos o que dizer!”/São Paulo, SP, Brasil e atuaram diretamente como mediadoras nos programas de rádio e coleta de depoimento, as duas ações componentes do Projeto Jaê. 3


“Jaê – criando a São Paulo que a gente quer” é um projeto de concepção e execução do “Projeto Cala-boca já morreu – porque nós também temos o que dizer!”, organização social sem fins lucrativos que, desde 1995, atua na criação de oportunidades para que as pessoas, independente da idade, origem e condição social, vivenciem, pautados por princípios de apoio mútuo, processos de formação de grupo, bem como presta serviços de assessoria e consultoria em Educomunicação. Selecionado no ano de 2015 como um dos 62 projetos de inclusão, cidadania e cultura digital, pelo Edital Redes e Ruas4, iniciativa da Prefeitura do Município de São Paulo, através da Secretaria Municipal de Cultura, da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania e da Secretaria Municipal de Serviços, o Jaê5 se configura como um trabalho de escuta direta sobre o que pensam, sentem e sugerem crianças e adolescentes, para a cidade onde moram. 1. Dados gerais do Projeto Jaê

Número de crianças ouvidas

319

Meninas

52%

Meninos

48%

Média de idade

10 anos

Total de áudios gravados, disponíveis no site do Projeto

96

4.

O Edital Redes e Ruas buscou fortalecer iniciativas da sociedade civil que dialogam com a agenda de direitos humanos e de promoção da cidadania nas ruas e nas redes: https://soundcloud.com/secretaria-de-cultura/edital-redes-e-ruas . 5.

O Projeto Jaê atendeu 7 macrorregiões, totalizando 108 horas de atividades de produção de rádio semanais, em 18 telecentros da rede municipal. Definidos como Ponto de Inclusão Digital (PID), sem fins lucrativos, de acesso público e gratuito, com computadores conectados à internet, disponíveis para diversos usos, os telecentros têm como objetivo promover o desenvolvimento social e econômico das comunidades atendidas, reduzindo a exclusão social e criando oportunidades de inclusão digital aos cidadão, podendo oferecer diversos cursos ou atividades conforme necessidade da comunidade local, além de funcionarem como espaço de integração, cultura e lazer” (http://www.mc.gov.br/telecentros//http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/servicos/i nclusao_digital/telecentros). Quinzenalmente, somando 72 horas, o Jaê também realizou coleta de depoimento em praças do Programa Wifi Livre SP das cinco regiões da cidade: “Fruto de uma iniciativa da Prefeitura de São Paulo e de uma parceria entre a Secretaria de Serviços e a PRODAM, o programa WiFiLivreSP tem como objetivo levar internet gratuita e de qualidade disponibilizando um sinal WiFi nas principais praças de cada distrito da capital.” (http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/servicos/inclusao_digital/index.php? p=152219)


Para esse trabalho foram usados gravadores digitais para a captação da voz das crianças e dos mediadores participantes da proposta, bem como espaços virtuais, como site e redes sociais, para disponibilização dos materiais de áudio recolhidos, para o público em geral e, em especial, para os que se dedicam ao estudo das relações entre criança e cidade. O Projeto Jaê (em tupi, “nós dizemos!”) parte do princípio de que criança e adolescente são sujeitos de direitos civis, humanos e sociais, inerentes a todos os seres humanos. Entende, como asseguram a Constituição Brasileira e o ECA 6, ser preciso criar oportunidades para que, de acordo com suas condições, participem de forma ativa, da vida política, assim como os adultos o fazem, direta ou indiretamente.

O processo de escuta direta das crianças no Projeto Jaê

"A criança tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de procurar, receber e expandir informações e idéias de toda a espécie, sem considerações de fronteiras, sob forma oral, escrita, impressa ou artística ou por qualquer outro meio à escolha da criança." Artigo 13º – Convenção sobre os Direitos da Criança

Por que a escolha de um procedimento calcado no registro em áudio da palavra falada de criança, com idade entre 6 e 12 anos? Assumindo “o desafio de levar a sério a criança 7” (Demartini, 2001), temos como pressuposto que, por serem dotadas também da capacidade de interação social através da palavra falada, uma das variantes da linguagem, é possível conhecer o que sente e pensa a criança, esse sujeito concreto que vive na cidade, nessa “prisão do espaçotempo” (Lèfébvre, 1991), independente de sua vontade. 6

. Merecem destaque os Art. 15 e 16, do ECA – Estatuto da criança e do adolescente, que estabelecem, respectivamente, que “A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis” e que “O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: I – ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais; II – opinião e expressão; VI – participar da vida política, na forma da lei; 7

Essa expressão opõe-se à sociologia clássica, ao considerar a necessidade de incluir a criança nas análise científicas das dinâmicas sociais.


Essa criança, legitimada por força da lei como cidadã, antes mesmo de vir à luz, em função do trabalho de seus núcleos familiares, também tem uma agenda cheia de compromissos, querendo ou não: levanta cedo, chova ou faça sol, para deslocar-se da casa para a creche, escola ou outra casa; circula pelas ruas, conhecendo bem as condições das calçadas e dos mais diferentes meios de transporte, além do barulho do trânsito; frequenta igrejas e comércio em geral; convive na intimidade com diferentes níveis de humor dos adultos com os quais fica durante o dia ou a noite; participa, em graus bastante variados, de brigas na família, de desavença entre funcionários dos lugares que frequenta; sabe, de fato, que tipo de alimento e as condições com que lhe são oferecidos em casa e na escola. Em outras palavras, tal como os adultos, essa criança, porque vivencia todo dia os mesmos assuntos (ou quase todos) ligados à vida coletiva nas grandes cidades, reúne todas as condições de avaliar, do seu ponto de vista, o que é bom e o que é ruim, como deveriam ser a arquitetura e, em especial, as relações sociais nos espaços urbanos. No entanto, raramente, é chamada para fazer parte de conversa, para opinar, avaliar ou colaborar com algum tipo de planejamento sobre a vida privada ou pública. Expressões como Esse assunto não lhe diz respeito! ou Cala-boca! - esse assunto não é pra criança! ainda continuam a ser ouvidas por ela em quase todos os cantos por onde circula. Não bastassem essas constatações, outros dois pontos que, se por um lado nos incomodam, por outro nos incentivam a realizar ações como as do Jaê: por que os estudos sobre criança - um sujeito capaz de estabelecer relações de interação e de intersubjetividade, ainda continua sendo objeto de pesquisa, assim como foram as mulheres até bem pouco tempo? Mais: por que entre a criança, a pesquisa e o conhecimento gerado, a interpretação continua centrada na figura de um único especialista ou de um grupo seleto de pesquisadores? Posto que, desde a mais tenra idade, participa e sofre os efeitos de todos os problemas gerados pelas grandes cidades e, consequentemente, de todos os impactos do cotidiano criado pelos adultos, optamos por conhecer a criança, a partir do que ela própria pronuncia sobre a cidade de São Paulo. Por todos esses motivos, fizemos opção pelo uso de gravador digital, por reconhecermos essa tecnologia como capaz não só de captar som, mas, principalmente, por preservar e possibilitar divulgar a construção peculiar de sentidos e a entonação


particular de cada participante das gravações, tanto criança quanto adulto/mediador, este último, o instigador das reflexões transformadas em conversas sobre temas da cidade. A esse procedimento metodológico demos o nome de escuta direta, esperando com essa prática ilustrar e contribuir com os estudos interdisciplinares que tomam a criança como sujeito de pesquisa. A expressão escuta direta, igualmente se explica pelo acréscimo do componente disponibilização dos áudios na internet8 ao procedimento adotado para a realização do Projeto. Consideramos de fundamental importância que os discursos proferidos por elas não chegassem apenas aos ouvidos dos mediadores responsáveis pelo Jaê. Quisemos envolver mais adultos interessados nesse complexo e necessário aprendizado de escuta do que as próprias crianças dizem conhecer da realidade que vivem em diferentes regiões paulistanas. Em suma, ao difundir todos os conteúdos dos áudios, via internet, pensamos ser essa uma forma de alargar o universo de interpretações (ou leituras dos textos sonoros), incluindo na análise dos conteúdos, um público especialista interessado em metodologias de pesquisa com criança, bem como arquitetos, urbanistas e educadores em geral afeitos aos temas da infância. Assim, ao possibilitar a audiência aberta a quaisquer pessoas dos materiais sonoros gerados pela escuta direta, julgamos criar e potencializar uma possível rede de interlocução. A quem se dedica às práticas de produção de rádio, na perspectiva da Educomunicação, por exemplo, a escuta de tais materiais sonoros não serviriam como incentivo para que mais pessoas dedicadas a essa área realizem em escolas onde atuam, ou fora delas, programas de rádio com crianças de outras regiões metropolitanas sobre a relação que mantém com o espaço urbano? Esse movimento ampliado não selaria o compromisso desse adulto de contribuir para o envolvimento das crianças numa proposta de comunicação não comercial (Kaplún,1996), invertendo a lógica inescrupulosa de serem usadas, desde os primeiros anos de vida, como alvo de campanhas publicitárias para o consumo de produtos e serviços? Já para os estudiosos da filosofia da linguagem, não estaria nesse conjunto aberto de gravações um farto material sobre a representatividade da palavra da criança como um signo social, portanto, um fenômeno ideológico? O conjunto de “comunicação da vida cotidiana” não estampariam os vínculos entre discursos e processos de produção das 8

Todas as gravações com as avaliações e sugestões de planejamento urbano para a cidade de São

Paulo, encontram-se disponíveis para consulta no site www.jae.org.br.


esferas discursivas? (Bakhtin, 1981). Dentre tantos desdobramentos derivados da difusão dos referidos conteúdos, para pais e professores – educadores por natureza, essas gravações não permitiriam identificar os conceitos e valores já presentes na formação das crianças pelas quais são corresponsáveis? Mas, apenas ligar o gravador e espalhar os conteúdos para além do locus das gravações, atingindo um número incalculável de pessoas, não basta para apresentar essa forma de estudo da criança que estamos intitulando como escuta direta. Equipamentos são dispositivos indispensáveis para materializar ideias e pretensões, mas por si só não traduzem a complexidade dos encontros, quando os participantes – adultos e crianças – se acham envoltos nos liames da palavra falada. No Projeto Jaê, os processos de gravação aconteceram numa perspectiva relacional, ou seja, derivaram do encontro da criança com um outro (o mediador responsável pela condução dos trabalhos nas Praças Wifi Livre SP e nos Telecentros), mediado pela tecnologia de comunicação (o gravador digital), num ambiente favorável à interlocução, um espaço de confiança para falar, sem tolhimento ou censura. A escuta respeitosa e atenta desse mediador, somada ao fato de a criança saber que sua voz estava sendo registrada9 e seria colocada na internet para ser ouvida por muito mais pessoas10, concorreram, seguramente, para que cada uma delas se sentisse reconhecida como ser pensante, capaz de colaborar para o planejamento de uma cidade boa de se viver – e como tal se portasse durante todo o tempo da gravação, como afirmaram duas meninas de um dos telecentro que visitamos: “Eu achei legal essa aula de gravação porque a gente aprendeu muito sobre essas coisas do mundo. Foi muito legal. A gente fez o mapa da nossa cidade e a gente fez o mapa pra perceber que criança pode fazer a política, não é só os adultos. A gente fez...”11 Sem dúvida, a criação desse espaço afetivo colaborou para que o pronunciamento da criança acontecesse como numa conversa informal com esse ‘outro’ (o mediador) que, 9

No site do Jaê (www.jae.org.br) é possível fotos de cenas confirmadoras da postura altiva das crianças diante do gravador. 10 Antes de todas as gravações, às crianças e seus responsáveis foram apresentados os objetivos do Jaê, bem como solicitadas as devidas autorizações de ambos para a publicação dos conteúdos na internet. 11 . O áudio correspondente encontra-se no vídeo de apresentação do Jaê http://www.jae.org.br/#Apresentação-de-resultados-do-Jaê/c7l/56707c510cf274f69813a6a5


de modo intencional, que reagia ao que era dito, para instigar maiores reflexões. Nesse sentido, é possível afirmar que cada encontro de escuta direta, numa perspectiva relacional, caracteriza-se como um lugar de intervenção. A escuta, assim definida, se aproxima da ideia de diálogo, que “problematizando, critica, e criticando, insere o homem em sua realidade como verdadeiro sujeito da transformação”. (FREIRE, 2001 p.15), tal como podemos perceber em um dos depoimentos colhidos numa das Praças Wifi Livre SP da zona leste12: – Manoela, 11 anos: Eu montaria um hospital muito grande e ia ser público, não ia ser particular. E assim, quando as pessoas estivessem com muita, muita dor, assim, já seria atendido na hora, nem precisava de RG de que nascesse, já na hora... – Mediadora: E saúde é só hospital? – Manoela: Não, né. Assim: tem saúde que tem ajuda da família, ajuda do pai e da mãe, tem é... tem alegria também, né? Pra saúde. Porque um dia eu tava tão desanimada com uma dor de garganta. Aí, minhas amigas pegaram, começaram a me alegrar. Aí, do nada eu comecei a sentir uma, uma força, assim, de vontade de brincar, de fazer um monte de coisa. Então acho que a saúde também pode-se curar com amor também. – Mediadora: E o que tinha que ter numa cidade para que todo mundo tivesse saúde? Pra promover saúde? – Manoela: É, sabe? Alegria. Que os outros saíssem na rua, todo feliz, sem se preocupar com nada, assim com barulho[...] Acho que também seria legal que todo mundo se animasse. Eu acho que assim, todo mundo que tá assim desanimado, com uma dor assim, vê isso, entra na onda... eu acho que todo mundo já fica animado, já nem fica mais com aquela dor, já entra na onda e fica brincando lá...” Porque se constitui num procedimento de interação humana, via palavra falada, a escuta direta como ferramenta de pesquisa com criança apresenta marcas peculiares, não se conformando a um corpo de regras, ao menos ao que se convencionou como metodologia. Há detalhes dessa maneira de proceder, como já dissemos, estreitamente 12

.Gravação disponível em https://radioteca.net//audio/evento-na-praca-wifi-livre-sao-joao-

vicenzoto-zo-2.


vinculados à postura do mediador, sem os quais é impossível transformar em conversa 13 as questões norteadoras14 da investigação, e não num simples questionário gerador de gráficos e índices. Nessas condições, as variantes da comunicação entre criançamediador-pesquisa são de natureza humana o que fornece à metodologia de escuta direta um detalhe peculiar: o da imprevisibilidade, ou seja, não há como garantir regularidade no entrosamento entre as partes, pois tudo dependerá dos meandros próprios dessa relação interpessoal (LIMA, 2009). Não causa estranhamento que esse modo de intervenção, para além da ação direta, também origine inquietações quanto ao tipo de análise a ser feita do processo e dos produtos finais. Diferentemente das metodologias de avaliação de resultados nas quais o foco da interpretação recai sobre o entrevistado, nesta, a vivência intensa e, principalmente a escuta dos materiais sonoros também gera um movimento de reflexão constante no mediador/entrevistador. Como a sua voz, as suas palavras, pausas e entonações também ficam registradas durante todo o processo, analisar o discurso da criança desencadeia agudas observações sobre o seu jeito de atuar. Como formula suas perguntas? Tivesse organizado o pensamento de outro modo (mas, qual seria um outro modo?), a criança teria tecido consideração mais aprofundada? Como lidou num momento específico com sua ansiedade em busca de respostas objetivas para o que queria saber? Como reage diante de grandes pausas, silêncios ou a falta de objetividade do outro? Afora estar aberto para essa escuta apurada sobre como dialoga, a esse mediador, um outro pressuposto do que estamos propondo como escuta direta das crianças emerge com a mesma intensidade: a disponibilidade para formular ou reexaminar as próprias concepções sobre o tema de investigação. No caso do Jaê, cujo foco é a cidade, questões como “o que vem promovendo (ou não) vida digna às pessoas nesse lugar onde ele também vive? Como seriam, do seu ponto de vista, os espaços públicos para promover saúde social15?”. Ou seja, para dialogar com a criança sobre o espaço urbano, tais reflexões remetem o 13

Para evitar a exposição da criança, todas as gravações passaram por processo de edição, sendo sido delas retirados sobrenomes, pormenores de relatos envolvendo parentes, dados de localização de moradia e identificação da sala de aula, na escola que frequenta. 14 Situações reais ligadas à mobilidade urbana, educação, saúde, moradia, cultura e lazer. 15 “Saúde é o estado do mais completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de enfermidade” - este é o conceito de saúde defendido pela Organização Mundial da Saúde, em 1948.


mediador “(...) em última instância, à escolha de como viver, à escolha dos critérios com os quais o social se inventa (…) à escolha de novos mundos, sociedades novas.” (ROLNICK, 1989: pp.15-16)

Contribuições das crianças para a construção da São Paulo que a gente quer

Todos os pronunciamentos das crianças participantes do Jaê nos dão conta de que elas são, de fato, detentoras de conteúdos, autoras de pensamentos e desejos. Em que pesem todas as dificuldades enfrentadas no dia-a-dia, atreladas ou não a condições materiais, estas também explicitadas e à disposição no site do Projeto, predomina na maior parte das gravações a vontade de colaborar, de forma ativa, para que a cidade seja um lugar bom de se viver. Para elas, todo território, seja do centro ou das periferias (aliás, esses termos nem aparecem em suas falas) deveria ser regido por uma lógica muito simples: a de que tudo que nele existe deve servir para o usufruto de todas as pessoas, indistintamente. A cidade pertence à coletividade, e "porque público é público, de todo mundo, é do povo!"16 Por decorrência dessa lógica e graças à aguda capacidade de estabelecerem relações entre diferentes aspectos da vida coletiva na cidade "tudo vai ser de graça, pra não ter ladrão, nada de ruim (...) ninguém vai se sentir inferior (...) senão (...) os pobres ficam com inveja e começam a roubar"17. Dessa afirmação, depreende-se que associam violência e criminalidade como fruto de desigualdades sociais (só isso justifica uns quererem o que poucos possuem!) e também da incorporação de valores por parte dos menos favorecidos, como competição (não é a inveja um sentimento provocado pela prosperidade e felicidade de outros?). Merece igual destaque a formulação de propostas que, embora não dirigidas aos planejadores reais das cidades, apontam a eles, indiretamente, a necessidade de se ter visão global e planejamento articulado entre vários setores para melhorar os problemas 16

Programa 2, realizado no Telecentro da Biblioteca Malba Tahan, disponível em http://www.jae.org.br/#!programaderadio/c1faw 17 O áudio dessa gravação realizada no Telecentro da Biblioteca Castro Alves, encontra-se no trecho 10'8' ', disponível neste endereço: http://radioteca.net/audio/telecentro-castro-alvesprograma-mayla-larissa-e-a


cotidianos, enfrentados não somente por pessoas em idade de formação, mas por todos os habitantes da cidade paulistana: “E também podia ter lugares pra pessoas deficientes: pra ir pro banco, essas coisas... porque tem muitas escadas que as pessoas não podem subir, quando querem usar (…) e também podia ter, tipo, um mapa só que pra cego. Pra ele saber onde é o açougue, onde é a farmácia, onde é o mercado, onde é as lojinhas que eles querem ir. Tipo, ele que ir no açougue, mas não sabe onde é o açougue. Ele é cego, então como é que ele vai achar? Não tem nenhum mapa ali!”18 Com relação à saúde, as propostas das crianças idealizadoras de uma cidade ideal seguem os mesmos princípios válidos para outros segmentos, ou seja, o de garantir os mesmos direitos para quem quer que seja. Daí, como se vê na sequência, ousarem conceber um modelo de atendimento médico que foge dos padrões vigentes, em que o doente comum só tem duas opções: ou procurar pelo especialista em uma unidade pública de saúde ou num consultório particular: – “Eu acho que poderia ter assim alguns médicos que viessem assim, digamos, nas praças pra ver como estão as crianças, os idosos, os adultos. – Mediadora: Como seria isso, conta um pouco mais. – Ah!... O governo, eu acho que deveria contratar esses médicos próprios da saúde e trazerem eles pra cada praça.”19 Quanto a trabalho ou responsabilidade, diferentemente de boa parte dos adultos, os pequenos não imaginam que mudanças resultem apenas de ações de autoridades. Ao contrário, planejam uma cidade em que todos, incluindo as pessoas mais novas, se envolvam em atividades produtivas de cunho coletivo, dividindo tarefas, colaborando umas com as outras: – No nosso mapa, que a gente criou 20, cada pessoa faz um grupo... Cada pessoa 18

O áudio dessa gravação realizada no Telecentro da Biblioteca Castro Alves, encontra-se no trecho 10'8' ', disponível neste endereço: http://radioteca.net/audio/telecentro-castro-alvesprograma-mayla-larissa-e-a 19 Gravação feita no Telecentro da Biblioteca Helena da Silveira, cujo áudio encontra-se no trecho 1'40'', disponível em http://radioteca.net/audio/telecentro-helena-silveira 20 Tomando como referência o Telecentro onde se encontravam, em subgrupos, e contando com a participação ativa do mediador, as crianças construíram um mapa da relação que mantém com o território e com os equipamentos e serviços de Saúde, Educação, Moradia, Mobilidade, Lazer e Segurança. Na sequência, criaram um segundo mapa, fruto da idealização de uma cidade que atenda necessidades e sonhos de seus moradores. Por fim, olhando para os dois mapas, produziam, coletivamente, um programa de rádio, para contar para os ouvintes o que gostam, o que não gostam e o que propõem para a cidade.


faz o seu grupo, vai ajudando os outros grupos a ajudar os outros também. No nosso canteiro, (canteiro é a nossa horta que a gente fez), que a gente planta alface, vai um grupo.... cenoura alface, batata, cebolinha, essas coisas. Aí vai um grupo... Aí vai um grupo recolher pras outras loja. Ai vão as outras lojas...vão passando pra cada um. Cada grupo vai se ajudando. – Aqui nessa cidade todo mundo tem que ajudar. É assim o dilema da cidade: é tudo grátis, tudo grátis... Só se ajudar. Entendeu?”21 A série de enunciados colhidos pelo Projeto Jaê torna inquestionável o uso das tecnologias digitais para assegurar às crianças o direito que possuem de não só receber informação, mas o de produzir comunicação, como prevê o já citado artigo 13º da Convenção sobre os Direitos da Criança. Ao mesmo tempo, demonstra que esses mesmos recursos de comunicação podem mostrar outros modos de olhar a vida e a convivência humana nas grandes cidades, mesmo numa época em que grande parte dos noticiários se encarrega de disseminar desesperança, desalento e medo. Nessa perspectiva, cada áudio de criança disponibilizado na internet, potencialmente significa a possibilidade de se conhecer ideias, vontades e propostas que, por si só, não mudam a realidade, mas podem contribuir para a construção de outro mundo, pautado no respeito ao outro e ao coletivo. No conjunto, a escuta direta desses discursos revela que quanto mais jovens, as pessoas estabelecem um modo de viver, mesmo em grandes cidades como São Paulo, por um sistema de valores não calcado na acumulação ou concentração de riqueza. Em outras palavras, “As crianças, todas as crianças, transportam o peso da sociedade que os adultos lhes legam, mas fazem-no com a leveza da renovação e o sentido de que tudo é de novo possível.” (Sarmento, 2004).

21

Áudio colhido no Telecentro da Biblioteca Helena da Silveira. A citação em referência encontra-se no trecho 9'26'', disponível em http://radioteca.net/audio/telecentro-helena-silveira


Referências Bakhtin, M. (1981). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Brasil: Editora Hucitec Constituição Federal do Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, Brasil: Senado Brasil. (2002). Estatuto da criança e do adolescente: Lei federal nº 8069, de 13 de julho de 1990. Rio de Janeiro, Brasil: Imprensa Oficial Freire, P. (2001). Comunicação ou extensão. São Paulo, Brasil: Paz e Terra Cohn, G. (org.). (1978). Comunicação e Indústria Cultural. São Paulo, Brasil: T.A. Queiroz Houaiss. (Sem data). Dicionário HOUAISS da Língua Portuguesa. Disponível em http://houaiss.uol.com.br . Acesso em 25 de maio de 2016. Kaplún, M. (1992). A la Educación por la Comunicación: la practica de la comunicación educativa. Santiago, Chile: UNESCO/OREALC Kaplún, M. (1996). El comunicador popular. Buenos Aires, Argetina: Lumen-humanitas Léfèbvre, H. (2004). A Revolução Urbana. Belo Horizonte, Brasil: EDUFMG Lima, G. L. (2009). Educação pelos Meios de Comunicação – produção coletiva de comunicação na perspectiva da Educomunicação. São Paulo, Brasil: Instituto GENS de Educação e Cultura, 2009. Disponível também em http://portalgens.com.br/livroeducomunicacao/educacaopelosmeiosdecomunicacaogracialopeslima-2009.pdf Rolnick, S. (1989). Cartografia sentimental, transformações contemporâneas do desejo. São Paulo, Brasil: Editora Estação Liberdade. 15-16, 66-72 Sarmento, M. J. (2004). As Culturas da Infância nas Encruzilhadas da Segunda Modernidade. In: M. J. Sarmento & A. B. Cerisara (Orgs.), Crianças e Miúdos: perspectivas sociopedagógicas da Infância e Educação. Porto, Portugal: Edições AS Sirota, R. (2001). Emergência de uma sociologia da infância: evolução do objeto e do olhar. São Paulo, Brasil: Cadernos de pesquisa, n.112, Mar/2001. < www.scielo.br/pdf/cp/n112/16099.pdf>. Acesso em 11/04/2016. Soares, D. (2015). Educomunicação – o que é isto. São Paulo, Brasil: Projeto Cala-boca já morreu Touraine, A. (1998). Poderemos viver juntos? Iguais e diferentes. Petrópolis, Brasil: Vozes


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