2016 - O histórico ano dos 25 anos da AJD

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Associação Juízes para a Democracia

2016: O histórico ano dos

25 anos da AJD André Augusto Salvador Bezerra (Organizador) 1ª edição

Grappa Marketing Editorial São Paulo 2017


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Associação Juízes para a Democracia CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO André Augusto Salvador Bezerra Presidente do Conselho Executivo

Eduardo de Lima Galduróz Secretário do Conselho Executivo

Dora Aparecida Martins Tesoureira do Conselho Executivo

Ana Cristina Borba Jônatas Andrade Rubens Casara Sandro Cavalcanti Rollo

SUPLENTES Alberto Alonso Muñoz Gerivaldo Alves Neiva

REPRESENTANTES REGIONAIS Bahia: Reno Vianna Soares e Gerivaldo Alves Neiva Ceará: Michel Pinheiro, Graça Quental e Inocêncio Uchôa Pernambuco: Carlos Magno Cysneiros Sampaio Rio Grande do Sul: Luís Christiano Enger Aires Rio de Janeiro: André Tredinnick Santa Catarina: Alessandro da Silva Tocantins: Milton Lamenha de Siqueira



APRESENTAÇÃO O ano de 2016 não foi fácil. A derrubada, por processo de impeachment baseado em malabarismos hermenêuticos, de presidenta da república que se encontrava no poder pela via democrática das eleições foi apenas um, dentre tantos outros, retrocessos presenciados pela sociedade brasileira. De fato, projetos legislativos de retirada de direitos e de ampliação da atividade repressiva estatal, realização de verdadeira desregulamentação da legislação trabalhista pela jurisprudência, crescimento jurisprudencial do endurecimento penal, atuação de tribunais a violarem a independência funcional de juízas e juízes e a efetivação de políticas públicas baseadas na repressão aos mais pobres e aos movimentos sociais pautaram considerável parcela da agenda política de todo o ano. Nem tudo, entretanto, foi espinho. A esperança por novos tempos adveio do fortalecimento da mobilização de setores da sociedade civil, tais como estudantes, mulheres e moradores das regiões periféricas, que não se intimidaram com o crescimento da repressão oficial e exigiram a manutenção e a ampliação de seus direitos. Foi voltada para essa esperança e contra todas as tentativas de retrocessos que a Associação Juízes para a Democracia (AJD) agiu em 2016. No exato ano em que comemorou 25 anos de existência – e resistência -, a entidade não se intimidou e atuou, de forma veemente, em favor de suas históricas bandeiras de efetivação dos Direitos Humanos e de independência judicial. As ações da AJD perante as lutas e os retrocessos de 2016 tiveram a divulgação de notas públicas como instrumento fundamental. Além disso, a entidade publicou jornais temáticos, contendo editoriais contundentes, manifestou-se perante as Organizações das Nações Unidas (ONU) e dialogou, pessoalmente, com representantes de entidades estatais e transnacionais acerca de suas demandas. Em tais termos, os mais diversos temas foram levados ao debate público pela AJD: defesa das garantias democráticas de mobilização social, contra o fortalecimento do Estado policial, em favor da independência funcional da magistratura, denúncias às violações contra os povos indígenas, em fa7


vor das lutas pela igualdade das mulheres, defesa do ensino crítico e contra os retrocessos no campo trabalhista. A AJD promoveu também eventos. Primeiramente, a comemoração dos 25 anos da entidade no Encontro Nacional do Rio de Janeiro em 13 e 14 de maio, tendo a participação da filósofa Márcia Tiburi, a representante do grupo Tortura Nunca Mais, Victoria Grabois, e a representante do Laboratório de Convivência, Silvia Vieira. Em 07 de abril, realizou o tradicional Diálogo & Alteridade, na sede da entidade, com a socióloga Esther Solano (Universidade Federal de São Paulo), que falou sobre a polarização das manifestações de rua. Em 26 de outubro aconteceu outro Diálogo & Alteridade, discutindo-se a crença da neutralidade do Juiz com a Professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Lídia Reis de Almeida Prado, o jornalista e fundador do site Ponte Jornalismo, Bruno Paes Manso, e o fotógrafo Cláudio Feijó. Por fim, o Encontro de Fim de Ano em Garopaba, Santa Catarina, intitulado Primavera nos Dentes, ocorrido entre 26 e 27 de novembro, tendo havido debate acerca do Direito Alternativo com representantes e estudiosos do movimento: Amilton Bueno de Carvalho, Lédio Rosa de Andrade, Paulo de Tarso Brandão, Rui Portanova e Vera Regina Pereira de Andrade. A AJD ainda apoiou a realização de outros eventos: debate com o ex-presidente da Corte Constitucional da África do Sul, Albie Sachs, ocorrido em 03 de novembro, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; o IV Congresso sul-mato-grossense de Ciências Criminais, com a participação dos associados André Augusto Salvador Bezerra e Luis Carlos Honório de Valois Coelho, sucedido no auditório da Ordem dos Advogados do Brasil de Campo Grande em 10 e 11 de novembro; por fim, o evento Desmedidas do MPF: enfrentar a corrupção sem renunciar a direitos fundamentais, com a participação do associado Marcelo Semer, realizado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em 17 de novembro. Sem prejuízo, membros do conselho da entidade bem como associadas e associados escreveram artigos, participaram de debates e atos públicos e ainda concederam entrevistas a respeito das causas defendidas pela AJD. Isso, em conformidade ao histórico da entidade em funcionar sob a permanente construção coletiva dos respectivos membros, de forma descentralizada e horizontal. 8


A ideia da presente publicação teve sua origem justamente a partir de debates, nas redes sociais, entre associadas e associados. Sentiu-se a necessidade de documentar a atuação da entidade no conturbado 2016: ano, como se viu, de retrocessos, mas também de grande mobilização em defesa da democracia; ano de comemoração de duas décadas e meia da AJD. Eis o objetivo desta publicação: reunir, em um único documento, considerável parcela da atuação da AJD em 2016. Evidentemente, diante de tantos membros espalhados pelo Brasil a propagar as demandas da entidade, não havia como documentar absolutantemente todas as ações realizadas; todavia, foi possível reunir algumas de grande repercussão e que evidenciaram, de forma clara, as bandeiras de luta dos 25 anos da associação. Com a presente obra, quer-se mostrar que, após um tenebroso inverno de retrocessos, uma primavera, a ser segurada entre os dentes, é possível, conforme poeticamente musicado pelos Secos & Molhados na década de 1970, inspirando o título do Encontro Nacional de Santa Catarina: Quem tem consciência para ter coragem Quem tem a força de saber que existe E no centro da própria engrenagem Inventa a contra-mola que resiste Quem não vacila mesmo derrotado Quem já perdido nunca desespera E envolto em tempestade decepado Entre os dentes segura a primavera André Augusto Salvador Bezerra Presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia (2014-2017)

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Sumário 25 ANOS DA AJD �������������������������������������������������������������������������������� 15 CARTA DO RIO DE JANEIRO

Manifesto dos 25 anos da Associação Juízes para a Democracia ��������� 16 ARTIGO

Os 25 anos da AJD ������������������������������������������������������������������������������ 18 Por André Augusto Salvador Bezerra e Eduardo de Lima Galduróz

PODER JUDICIÁRIO ���������������������������������������������������������������������������� 21 NOTA PÚBLICA

A defesa da Constituição não pode criminalizar magistrados ������������� 22 OFÍCIO À CORREGEDORIA DO TJSP

Contra representação apta a intimidar a independência dos Juízes �������������������������������������� 24 NOTA PÚBLICA

Repúdio aos ataques à independência e à liberdade de expressão da magistratura do trabalho ����������������������� 26 RELATÓRIO PARA ONU

Relato da situação da independência judicial e da liberdade de expressão dos juízes no Brasil para o Universal Periodical Review ������ 28 EDITORIAL

Por uma LOMAN democrática ������������������������������������������������������������� 35 EDITORIAL

Independência judicial ou morte da democracia ������������������������������� 37 ARTIGO

As decisões monocráticas nos tribunais e a independência judicial ���� 39 Por José Henrique Torres ARTIGO

A democratização do Judiciário: o momento para uma discussão racional ��44 Por André Augusto Salvador Bezerra ARTIGO

Práticas restaurativas: o desafio de transformar ��������������������������������� 48 Por Fernanda de Lima Carvalho 10


ARTIGO

“Juiz garantista bom é juiz garantista morto” ������������������������������������ 53 Por Marcos Peixoto ENTREVISTA

Algumas palavras com o lutador pela liberdade, Albie Sachs �������������� 58

DEMOCRACIA NO BRASIL ������������������������������������������������������������������ 61 NOTA PÚBLICA

Não se combate corrupção corrompendo a Constituição ��������������������� 62 NOTA PÚBLICA

Repúdio à conduta antidemocrática de apologia à tortura ������������������ 65 NOTA PÚBLICA

A defesa da livre manifestação exige o controle efetivo da atividade policial pelo Ministério Público ��������������������������� 68 NOTA PÚBLICA

Atentado institucional à liberdade de manifestação no âmbito do Colégio Pedro II - Campus Humaitá II/RJ ����������������������� 70 NOTA PÚBLICA

Em defesa da livre manifestação de estudantes ���������������������������������� 72 ATO PÚBLICO

Encontro da Presidenta Dilma Rousseff com juristas pela legalidade e em defesa da Democracia – Palácio do Planalto, Brasília, 22/03/2016. ��� 75 AUDIÊNCIA PÚBLICA

Carta do Núcleo AJD-PE entregue em audiência pública na Assembleia Legislativa sobre ocupações nas escolas ��������� 77 ARTIGO

A Constituição sob (constante) ataque: a resposta pela luta por mais direitos ������������������������������������������������ 83 Por André Augusto Salvador Bezerra e Alberto Alonso Muñoz ARTIGO

Na pós-democracia, os direitos e garantias fundamentais também são vistos como mercadorias ������������������������� 87 Por Rubens Casara 11


ARTIGO

O impeachment da presidenta Dilma Rousseff configura golpe de Estado? ��������������������������������������� 92 Por André Augusto Salvador Bezerra ARTIGO

As formas jurídicas na legitimação do golpe ��������������������������������������� 97 Por Sandro Cavalcanti Rollo ENTREVISTA

Un juez brasileño: “Sí, estamos ante un golpe de Estado” ���������������� 100

LIBERDADES PÚBLICAS �������������������������������������������������������������������� 104 NOTA TÉCNICA

Pela não privatização do sistema carcerário �������������������������������������� 105 NOTA PÚBLICA

Em defesa das liberdades públicas e contra o populismo penal �������� 111 NOTA TÉCNICA

Contra o PL N° 4.192/2015: não à tipificação do perjúrio ������������������ 112 ARTIGO

Entre a toga e a Constituição ������������������������������������������������������������ 114 Por João Batista Damasceno ARTIGO

O fim de mais um outubro sob o trauma do Carandiru reforça a relevância das lutas da AJD �������������������������������� 116 Por André Augusto Salvador Bezerra e Eduardo de Lima Galduróz

MULHERES ���������������������������������������������������������������������������������������� 120 OFÍCIO

Requerimento de concessão de indulto e comutação de penas no Dia da Mulher ������������������������������������������ 121 NOTA PÚBLICA

Pela aprovação do PL/Rio de Janeiro 2.195/2013: em favor da presença de doulas no momento do parto �������������������� 126 12


EDITORIAL

O sexo feminino ������������������������������������������������������������������������������� 128 ARTIGO

Indulto no Dia da Mulher romperia a injustiça contra presas ������������ 131 Por Kenarik Boujikian ARTIGO

E se fossem um juiz, um presidente e um professor? ������������������������ 134 Por Elinay Melo, Laura Benda e outras. ARTIGO

O que é Sororidade e por que precisamos falar sobre? ���������������������� 139 Por Célia Regina Ody Benardes, Daniela Valle da Rocha Müller e outras. ARTIGO

Pintemos o rosto de sangue: a barbárie de ontem não se repetirá amanhã ����������������������������������� 144 Por Célia Regina Ody Benardes ARTIGO

Juízes transgressores, mulheres encarceradas ���������������������������������� 148 Por Célia Regina Ody Benardes ARTIGO

Alimentos processados não são emancipadores da luta feminista ���� 154 Por Daniela Valle da Rocha Müller

EDUCAÇÃO ���������������������������������������������������������������������������������������� 160 NOTA TÉCNICA

Projeto de Lei nº 867/2015 “Escola sem Partido” ����������������������������� 161

POVOS INDÍGENAS ��������������������������������������������������������������������������� 183 RELATÓRIO PARA ONU

Relato da situação dos povos indígenas no Brasil para o Universal Periodical Review ������������������������������������ 184 13


DIREITOS TRABALHISTAS E JUSTIÇA DO TRABALHO ����������������������� 199 NOTA PÚBLICA

A tentativa de destruição da Justiça do Trabalho por meio do corte orçamentário ����������������������������������������� 200 NOTA PÚBLICA

Repúdio à Defesa da Desregulamentação e Precarização das Relações de Trabalho por parte do Presidente do TST �������������������� 204 NOTA PÚBLICA

Repúdio à Atuação do Presidente do TST ������������������������������������������� 209 NOTA TÉCNICA

A terceirização a ser apreciada pelo STF no RE 958.252 ��������������������� 211 EDITORIAL

Ataque aos direitos trabalhistas: um atalho para o aumento da exclusão �������������������������������������������� 214 ATO PÚBLICO

Alerta para efeitos da PEC nº 55 na Justiça do Trabalho – Sede do TRT4, Porto Alegre, 28/11/2016. ��������� 216 ARTIGO

Feliz 2027, 10 anos após o fim da CLT ����������������������������������������������� 218 Por Átila Da Rold Roesler ARTIGO

Mercantilização e desafios do Direito do Trabalho diante do paradigma ultraliberal ����������������������� 220 Por Sayonara Grillo C. L. Da Silva

HOMENAGEADO DO ANO ��������������������������������������������������������������� 223 COMUNICADO

Dom Pedro Casaldáliga foi o homenageado da AJD em 2016 ����������� 224

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25 ANOS DA AJD Comemorando duas dĂŠcadas e meia de lutas

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Carta do Rio de Janeiro

MANIFESTO DOS 25 ANOS DA ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA1 Os membros da Associação Juízes para a Democracia (AJD), reunidos no Rio de Janeiro, em Encontro Nacional ocorrido nos dias 13 e 14 de maio de 2016, em comemoração aos 25 anos de fundação da entidade, no exercício da liberdade de associação e da liberdade de expressão, consagrados constitucionalmente (art. 5º, IX e XVII), vêm a público dizer que: 1. Os recentes acontecimentos políticos no país, a influir na normalidade das instituições brasileiras, têm revelado a efetiva possibilidade de retrocesso anti-democrático que não se coaduna com o projeto de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, estampado na Constituição da República (art. 3º, I). 2. O afastamento da Chefe do Executivo, decorrente da degeneração do processo de impedimento em mero instrumento de disputa político-partidária de acesso ao poder, fomentada, por sua vez, por práticas fisiológicas e antirrepublicanas que estão assentadas na cultura dos grupos dominantes e dos elementos de representação que ocupam transitoriamente a situação e a oposição, é agora acompanhada de ameaças aos direitos e liberdades das parcelas mais vulnerabilizadas da população, bem como daqueles que não se abstêm de exercer seus direitos de reflexão, crítica e manifestação. As ameaças oficiais de repressão aos movimentos sociais e a professores e estudantes que defendem a resistência pelo exercício do direito ao protesto contra um governo que não enxergam como legítimo constitui prática inaceitável em um Estado Democrático de Direito. O vago discurso do “caráter relativo dos direitos”, que, ao longo dos anos, tem dado fundamento ao desrespeito às normas constitucionais, não pode servir de base à criminalização das vozes dissonantes. 3. A intolerância também tem crescido contra juízas e juízes que, no exercício da cidadania e da independência funcional, exteriorizam suas opiniões e interpretam o direito em vigor de forma contrária à pretendida por determinadas elites. Um Poder Judiciário democrático é um Poder Judiciário que aceita o pluralismo interno de ideias a aperfeiçoar o próprio funcionamento dos tribunais. 1 Documento elaborado como conclusão do Encontro Nacional do Rio de Janeiro, realizado entre 13 e 14 de maio, em comemoração aos 25 anos da AJD. O encontro foi intitulado “Anti-Fórum “Antropofagia Judicial: Para que Serve o Juiz?”, tendo sido realizado no Gabinete de Leitura Guilherme Araújo, em Ipanema, Rio de Janeiro.

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4. Lembra-se ainda que, sem um Judiciário garantista da democracia substancial, remanesce apenas a pálida figura do ventríloquo da linguagem do poder aristocrático. 5. Por sua vez, verifica-se o crescimento de um discurso a sustentar que os direitos de índole coletiva, arduamente conquistados pelos grupos social e economicamente subalternos ao longo da História, consistem em obstáculo à superação da crise econômica por que o país atravessa. A busca da solidariedade, exigida constitucionalmente, requer que qualquer medida de combate à recessão respeite valores juridicamente consagrados na busca da redução das desigualdades, inclusive os direitos sociais e os direitos destinados às populações originárias. 6. Em relação aos direitos dos trabalhadores, mais especificamente, cumpre salientar que o patamar civilizatório mínimo imposto pela regulação constitucional e infra-constitucional tem como efeito imediato evitar a queda mais acentuada da renda do trabalho. Trata-se de elemento de sustentação da atividade econômica do país, diversamente do que sustenta o dogma da desregulamentação completa da economia. 7. Além disso, fala-se, de modo cada vez mais frequente, que os históricos problemas da corrupção e da criminalidade têm sua origem nas liberdades públicas, como se a vigência destas configurasse uma paradoxal situação de “excesso de direitos”. Em um país como o Brasil, onde as instituições carecem de transparência e controle efetivo bem como pouco fazem para combater uma das maiores desigualdades sociais e econômicas de todo o mundo, é preciso lembrar que é a ausência de direitos que, na realidade, fomenta a corrupção e ações violentas tipificadas como crimes. Preocupados com o atual quadro que aponta para a maior inobservância das promessas constitucionais, os membros da AJD, reunidos no Rio de Janeiro, reiteram a necessidade de tolerância às manifestações divergentes, de cumprimento dos direitos consagrados em favor dos grupos sociais e economicamente subalternos, da observância do princípio da vedação do retrocesso e de respeito às liberdades públicas para que a sociedade ainda possa sonhar em viver sob os valores democráticos normatizados pela vigente Constituição da República e pelos tratados de Direitos Humanos subscritos pelo Brasil. Rio de Janeiro, 14 de maio de 2016. A Associação Juízes para a Democracia 17


Artigo

OS 25 ANOS DA AJD ANDRÉ AUGUSTO SALVADOR BEZERRA E EDUARDO DE LIMA GALDURÓZ* Artigo publicado na Folha de S. Paulo, 13/05/2016, seção on line do Tendências e Debates A AJD (Associação Juízes para a Democracia) completa nesta sexta (13/5) 25 anos de fundação. Entidade que congrega um grupo de magistrados de todo o Brasil, a AJD tem lutado incansavelmente, em todos esses anos, em defesa da democratização do Poder Judiciário, adaptando-o ao projeto previsto na Constituição de 1988, e da efetivação dos Direitos Humanos consagrados tanto no ordenamento jurídico interno como nos tratados internacionais subscritos pelo Brasil. Respeitando a atuação política de outras associações de classe, que costumam concentrá-la na defesa de interesses carreiristas, a AJD, porém, foi instituída para seguir um caminho diverso. Por deliberação consagrada em seus estatutos, a entidade pauta-se por uma conduta despida de qualquer motivação corporativista, recolhendo daí, aliás, toda a independência e desprendimento que é inerente ao seu agir. Entende que o Judiciário, como órgão que exerce, por delegação, uma parcela de poder, está a serviço e deve satisfações ao seu único e legítimo titular, o povo (artigo 1º, parágrafo único, da Constituição Federal). Em razão disso, empunha bandeiras de transparência, fiscalização e representatividade que nem sempre são bem vistas sob a estrita ótica corporativista. Foi uma entusiasta da criação do órgão de controle externo do Judiciário, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Defende a implementação de Ouvidorias Populares, com vistas a conceder à sociedade civil mecanismos efetivos de participação e vigilância sobre a atuação do Judiciário. Luta pela democratização no acesso à carreira, cujas fileiras ainda carregam um notável deficit de representatividade das minorias. 18


A AJD, nas relações de força e dominação que permeiam uma sociedade baseada no conflito, não hesita em tomar a trincheira do desfavorecido, do miserável, do proscrito. Luta pela efetivação de um direito que possa se colocar como fator de emancipação social e valorização das minorias, afastando-se de sua vocação histórica de mero legitimador, pretensamente neutro, de relações sociais em si injustas, porque opressivas e excludentes. Daí porque tem se posicionado, sempre de forma juridicamente técnica e crítica, nas mais diversas discussões acerca dos direitos dos trabalhadores, dos presos, da população pobre de periferia, dos movimentos sociais, da causa indígena, do processo eleitoral democrático, dentre tantos outros. Exatamente por isso, causa indignação àqueles que se acostumaram a tomar o lado mais fácil da história, andando de mãos dadas, acrítica e continuamente, com os poderosos. A postura da entidade, de respeito incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado democrático de Direito - que, por estritamente constitucionalista e republicana, deveria ser vista como algo natural em uma agremiação que congrega titulares de cargo que detêm a incumbência de velar por tais postulados -, é entretanto encarada, por alguns, com estranheza; raciocinam como se magistratura tivesse de ser movida por um pensamento único e hierarquicamente estruturado, tal como sucede nos típicos Estados totalitários, onde a voz dissonante é sempre calada. Mas o número de aliados superou o estranhamento de poucos: juízes de todo o Brasil tornaram-se associados ou simplesmente simpatizantes das causas defendidas pela AJD, somando-se àquelas poucas dezenas de magistrados que, 25 anos atrás, fundaram a entidade. Para além da magistratura, a AJD ganhou também parceiros oriundos da academia, dos movimentos sociais e de entidades de defesa de direitos humanos, que se aliaram às demandas da entidade em favor de uma democracia de alta intensidade fundada no respeito aos direitos humanos. 19


A todos que respeitam o espírito pluralista e republicano que se espera de uma comunidade democrática, a AJD afiança, do alto de seu patrimônio simbólico amealhado ao longo de 25 anos de história, que continuará lutando, de forma destemida, pela efetivação e manutenção das liberdades civis, dentre elas a de criticar e ser criticada. É por meio do livre debate de ideias, e não da neutralização de opiniões dissonantes, que se constrói uma sociedade livre, justa e solidária, tal como preconizado no artigo 3º, inciso I, da Constituição daRepública. À luta! *André Augusto Salvador Bezerra é presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Eduardo de Lima Galduróz é secretário do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

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PODER JUDICIÁRIO As lutas pela democratização e pela independência funcional

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Nota Pública

A DEFESA DA CONSTITUIÇÃO NÃO PODE CRIMINALIZAR MAGISTRADOS A ASSOCIAÇÃO JUIZES PARA A DEMOCRACIA, entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem por finalidade estatutária o respeito absoluto e incondicional aos valores próprios do Estado Democrático de Direito, vem a público externar preocupação decorrente das ações policiais empreendidas contra o Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas Luís Carlos Valois, em 09 de junho passado, nos seguintes termos. O Juiz de Direito Luís Carlos Valois tem, ao longo dos anos, realizado importante trabalho jurisdicional na garantia dos Direitos Humanos, especialmente em relação a uma parcela absolutamente excluída da população, que é aquela que lota o sistema carcerário do país. Sua postura garantista não é uma postura recente e nem tampouco dirigida especificamente a um ou outro custodiado. Trata-se de postura permanente e coerente com princípios de prevalência das liberdades públicas sobre um Estado policial que, em que pese as garantias previstas na Constituição Federal de 1988, tem mostrado preocupante crescimento, simbolizado pelo fato do Brasil ter alcançado a posição de quarta maior população carcerária do mundo. Essa mesma postura é a adotada na atividade acadêmica de Luís Carlos Valois. O doutorado em Direito Penal que conquistou na Universidade de São Paulo também focou a defesa das liberdades públicas imprescindíveis a qualquer Estado Democrático de Direito, seriamente ameaçadas pela irracional guerra às drogas, discutida na tese que publicou. Infelizmente, em plena democracia, muitos ainda enxergam com estranheza juízes que têm a coragem de não aderir ao populismo penal; que preferem a liberdade sobre a prisão; que se opõem ao tratamento da questão social como caso de polícia ou que fiscalizam, com o rigor exigido pelo vigente texto constitucional, a atividade punitiva do Estado. Diante disso, a Associação Juízes para a Democracia espera que a ação policial de busca e apreensão, ocorrida em 09 de junho de 2016, sobre 22


a autoridade judicial em questão, não tenha sido tomada com base em suas posturas libertárias. A defesa das liberdades públicas é dever constitucional atribuído a todo magistrado, não podendo servir de suporte, ostensivo ou oculto, para tornar um juiz suspeito ou investigado. Tal como constante em outros documentos já publicados, a Associação Juízes para a Democracia reitera que Judiciário adaptado à Constituição é o Judiciário que aceita o pluralismo de ideias a aperfeiçoar o próprio funcionamento dos tribunais. O livre debate e as opiniões divergentes, exteriorizadas em decisões judiciais, configuram exigências democráticas. São Paulo, 10 de junho de 2016. A Associação Juízes para a Democracia

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Ofício à corregedoria do TJSP

CONTRA REPRESENTAÇÃO APTA A INTIMIDAR A INDEPENDÊNCIA DOS JUÍZES EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR CORREGEDOR-GERAL DA JUSTIÇA – DESEMBARGADOR MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS. REF: AUTOS Nº 95.822/2016 - SEMA 1.1.1 (2ª e última parte) A ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA (AJD), entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem por finalidade estatutária o respeito absoluto e incondicional aos valores próprios do Estado Democrático de Direito, nos quais se inserem a independência do Poder Judiciário, vem, respeitosamente, manifestar sua preocupação referente à representação formulada em face do Juiz de Direito Roberto Luiz Corcioli Filho, nos autos do procedimento em epígrafe, conforme se passa a expor. Recentemente, a AJD tomou conhecimento de que seu associado Roberto Luiz Corcioli Filho, MM. Juiz de Direito deste Tribunal de Justiça de São Paulo, fora notificado para prestar informações em representação formulada por 23 (vinte e três) membros do Ministério Público. Tal fato, por si só, não configura qualquer anormalidade, pois, como se sabe, todo juiz, enquanto agente público, está sujeito à representação por qualquer do povo, conforme artigo 5º, inciso XXXIV da Constituição da República. Surpreende, porém, e daí o presente ofício, o fato dos ilustres Promotores de Justiça imputarem, como violação aos deveres funcionais do magistrado paulista, algumas decisões por ele proferidas, com cujo fundamento e conclusão não concordam. De forma mais específica, insurgem-se os membros do Ministério Público com fato de o referido Juiz de Direito paulista ter tomado decisões privilegiando: (i) o controle rigoroso sobre a atividade policial (para isso, relaxando prisões que entendia ilegais); (ii) o diálogo em conflitos sociais (designando, por exemplo, audiência de conciliação em caso de reintegração de posse contra sem-tetos, conforme, aliás, tem incentivado o TJSP) e (iii) a regulação da atividade econômica (vedando o uso de um aplicativo, que, segundo a imprensa citada pelos promotores, configuraria um “sistema que funciona”). 24


A independência do Poder Judiciário, para quem trabalhamos, consiste em importante conquista civilizatória do Estado de Direito, sendo considerado um de seus requisitos essenciais. É sempre importante anotar que a real independência da atividade jurisdicional implica na atribuição a todos os que exercem a magistratura – de um Juiz Substituto recém-ingresso na carreira a um ministro do Supremo Tribunal Federal – da possibilidade de decidirem conforme sua convicção jurídica, livres de qualquer instrumento de pressão indevida por parte dos demais agentes oficiais. Não há como não interpretar uma representação subscrita por 23 (vinte e três) Promotores de Justiça, em razão da fundamentação e da conclusão de decisões proferidas, senão como um instrumento de pressão indevida oriunda de agentes externos do Judiciário. Poderiam (e deveriam, caso discordassem) recorrer das decisões; mas, ao que parece, preferem a intimidação contra um magistrado, a ser interpretada, não como uma ameaça individual, mas como uma intimidação a todos os magistrados paulistas que proferirem decisões contrárias a teses jurídicas do Ministério Público. Em última instância, a representação ora debatida configura instrumento intimidação contra o Tribunal de Justiça de São Paulo, representante do Poder Judiciário paulista perante a estrutura federativa brasileira. Por tudo isso, a Associação Juízes para a Democracia, entidade que há 25 (vinte e cinco) anos defende, de forma intransigente, a independência funcional, tem a convicção que esta Corregedoria-Geral de Justiça atuará de modo a preservar a independência do Poder Judiciário paulista, arquivando, de pronto, a representação em questão. Aproveita-se a oportunidade para apresentar a Vossa Excelência os protestos de elevada estima e distinta consideração. São Paulo, 21 de junho de 2016. André Augusto Salvador Bezerra Presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia

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Nota Pública

REPÚDIO AOS ATAQUES À INDEPENDÊNCIA E À LIBERDADE DE EXPRESSÃO DA MAGISTRATURA DO TRABALHO A Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem dentre suas finalidades o respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito, vem a público repudiar os recentes ataques efetuados à independência e à liberdade de expressão dos juízes do trabalho, o que representa risco à independência do Poder Judiciário. 1. No último dia 21 de outubro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, ao palestrar em evento promovido pela Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abidib) e pela Câmara Americana Comércio (Amcham), achou por bem realizar um julgamento ideológico sobre as decisões proferidas pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), afirmando que tal corte desfavorece as empresas em suas decisões. Chegou ao ponto de concluir: “esse tribunal é formado por pessoas que poderiam integrar até um tribunal da antiga União Soviética. Salvo que lá não tinha tribunal”. 2. No mesmo dia, a Ordem dos Advogados do Brasil – Secção São Paulo e Conselho Federal - noticiou a apresentação de Reclamação Disciplinar, perante o Conselho Nacional de Justiça, em face de Juízes do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, por conta de esses terem aderido ao “Movimento Nacional de Defesa e Valorização da Magistratura e do Ministério Público”, ocorrido em 05 de outubro de 2016 e, por conta da participação de ato público, terem redesignado pauta de audiências anteriormente previstas para essa data. 3. Em um momento em que a Justiça do Trabalho é alvo de intenso sucateamento, representado especialmente pelo expressivo corte orçamentário havido no início de 2016, bem como de ataques proferidos pelo próprio presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), o próximo passo parece ser a coibição da livre manifestação dos juízes, seja em decisões judiciais, seja em atos de defesa institucional. E o que mais espanta é que a tentativa de mordaça advenha de ministro da mais alta corte da Justiça brasileira, assim como de membros da advocacia. 26


4. A Constituição Federal consagra, como cláusula pétrea, a autonomia e independência de cada magistrado – desde Juiz Substituto, recém-ingresso na carreira da magistratura, a um ministro da cúpula do Poder, o Supremo Tribunal Federal – perante o Executivo, o Legislativo e o próprio tribunal a que se submete administrativamente e no aspecto correcional. Prevê-se que um juiz somente pode ser demitido por decisão judicial definitiva, não pode ser transferido em razão de suas decisões e não pode sofrer redução de vencimentos (artigo 95) justamente para que se sinta livre para decidir conforme sua convicção jurídica, afastado de qualquer pressão que seja. 5. Se há independência judicial, há pluralismo de idéias, de modo a se garantir a liberdade de expressão para cada magistrado, que pode, nos termos do art. 5º, IX da Constituição, pronunciar-se sobre qualquer tema da forma como melhor entender, seja no exercício de sua função, seja na defesa de suas prerrogativas funcionais e, inclusive, na qualidade de cidadão comum. 6. Tais garantias, importante, ressaltar, encontram fundamento também nos Princípios Básicos Relativos à Independência da Magistratura, endossados pela Assembleia Geral das Nações Unidas (Resoluções 40/32 e 40/146, de 1985): “a independência da magistratura será garantida pelo Estado [...]” (item 1); “não haverá quaisquer interferências indevidas ou injustificadas no processo judicial [...]”(item 4); “[...] os magistrados gozam, como os outros cidadãos, das liberdades de expressão, convicção, associação e reunião” (item 8) e “a inamovibilidade dos juízes, nomeados ou eleitos, será garantida até que atinjam a idade de reforma obrigatória ou que expire o seu mandado, se existir tal possibilidade” (item 11). 7. Daí que, em recente julgamento do caso López Lone e outros versus Honduras, a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu a invalidade de sanção imposta a magistrados que, exercendo a liberdade de expressão, haviam se insurgido contra golpe de Estado ocorrido contra o governo hondurenho no ano de 2009. Por tudo isso, a Associação Juízes para a Democracia (AJD) vem a público repudiar os ataques havidos à independência funcional e a liberdade de expressão de juízes, prerrogativas irrenunciáveis da jurisdição e da independência do Judiciário enquanto Poder de Estado. São Paulo, 25 de outubro de 2016. A Associação dos Juízes para a Democracia 27


Relatório para ONU

RELATO DA SITUAÇÃO DA INDEPENDÊNCIA JUDICIAL E DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO DOS JUÍZES NO BRASIL PARA O UNIVERSAL PERIODICAL REVIEW A Associação Juízes Para a Democracia (AJD) vem, por meio deste, manifestar-se no processo da Universal Periodical Review (UPR - Revisão Periódica Universal) do Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU, apresentando relatório sobre a situação da independência judicial e da liberdade de expressão dos juízes brasileiros. I - Situação jurídica 1. A Constituição brasileira de 1988 contém projeto de instituição de democracia de alta intensidade fundada na promessa de construção de sociedade livre, justa e solidária, estampado no seu artigo 3º, I. Sob tal projeto, tem-se a instituição de um Poder Judiciário dotado de autonomia e independência, enquanto Poder de Estado. 2. Nesse sentido, dispõe o artigo 2o, da Constituição: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Determina ainda o artigo 95 que os juízes gozam das garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio. Por fim, o artigo 60, § 4o, III estabelece que não pode ser deliberada a proposta de emenda constitucional “tendente a abolir: [...] a separação de poderes”. 3. A Constituição legitima, assim, como cláusula pétrea (artigo 60), a presença de uma atividade jurisdicional autônoma e independente perante o Executivo e Legislativo, dotada da possibilidade de anular os atos praticados pelas demais funções estatais (artigo 2o). 4. Legitima, igualmente como cláusula pétrea, a autonomia e independência de cada magistrado – desde Juiz Substituto, recém-ingresso na carreira da magistratura, a um ministro da cúpula do Poder, o Supremo Tribunal Federal – perante o Executivo, o Legislativo e o próprio tribunal a que se submete administrativamente e no aspecto correcional. Tem-se, portanto, a independência funcional, garantindo-se que cada juiz possa decidir confor28


me sua convicção jurídica, livre de pressões dos demais poderes e de seu tribunal: por isso, os juízes somente podem ser demitidos por decisão judicial definitiva, não podem ser transferidos em razão de suas decisões e não podem sofrer redução de vencimentos (artigo 95). 5. Nesse ponto, a independência do Judiciário, consagrada constitucionalmente, caminha em paralelo a outro valor democrático: o pluralismo. Na atividade jurisdicional, o livre debate de ideias dá-se pela diversidade de entendimentos manifestados em decisões proferidas. 6. Em termos constitucionais brasileiros, portanto, garantir a independência funcional significa garantir o pluralismo de ideias no Judiciário. Significa, consequentemente, garantir a liberdade de expressão aos magistrados em geral, possibilitando que se pronunciem, em igualdade de condições aos demais brasileiros, sobre os diversos temas discutidos na sociedade, tanto no âmbito do exercício das funções quanto no âmbito cidadão. 7. Cumpre-se, assim, outro dispositivo da Constituição, o artigo 5o, IX, que consagra a livre a expressão, independente de licença ou censura. 8. Todas essas garantias encontram-se em conformidade aos Princípios Básicos Relativos à Independência da Magistratura, endossados pela Assembleia Geral das Nações Unidas, nas resoluções 40/32 e 40/146, de 19852 : “a independência da magistratura será garantida pelo Estado [...]” (item 1); “não haverá quaisquer interferências indevidas ou injustificadas no processo judicial [...]”(item 4); “[...] os magistrados gozam, como os outros cidadãos, das liberdades de expressão, convicção, associação e reunião” (item 8) e “a inamovibilidade dos juízes, nomeados ou eleitos, será garantida até que atinjam a idade de reforma obrigatória ou que expire o seu mandado, se existir tal possibilidade” (item 11). II - Características do Poder Judiciário 9. O Poder Judiciário brasileiro é composto por mais de 16 mil juízes, tendo em tramitação mais de 100 milhões de processos. Conforme censo realizado entre os juízes, 14% dos magistrados declararam-se pardos; 1,4% identificaram-se pretos; 0,1%, indígenas e 84,5% declararam-se brancos3. 2 Disponível em: https://www.unodc.org/documents/justice-and-prison-reform/projects/UN_Standards_and_Norms_ CPCJ_-_Portuguese1.pdf 3 Disponível em: http://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/censo-do-poder-judiciario

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10. O Brasil é uma federação (artigo 1o, Constituição), o que se reflete no Poder Judiciário. Há, assim, juízes e tribunais dos Estados-membros da federação bem como juízes e tribunais federais. As justiças estaduais e federais são submetidas, nacionalmente, ao controle pelo mesmo órgão externo ao Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça. 11. De aproximadamente 16 mil juízes do Judiciário brasileiro, mais de 11 mil estão nas justiças estaduais (isto é, dos Estados-membros da Federação). Estas são compostas de tribunais estaduais autônomos (chamados “tribunais de justiça”), que vinculam administrativamente e correcionalmente os juízes estaduais (diante da independência funcional consagrada constitucionalmente, tal vinculação não pode influir no teor das decisões). O controle administrativo é realizado pelas presidências dos tribunais e o controle correcional, pelas corregedorias internas. 12. Em termos populacionais, os dois maiores Estados-membros brasileiros consistem em São Paulo e Rio de Janeiro. No Poder Judiciário de São Paulo tramitam mais de 20 milhões de processo para cerca de 2500 juízes; no Poder Judiciário do Rio de Janeiro há mais de 10 milhões de processo para cerca de 800 juízes. III - Exemplos de violação à independência e à liberdade de expressão de juízes 13. Sem embargo da independência funcional e da liberdade de expressão atribuída aos magistrados, há frequentes caso de violações a tais garantias, perpetradas pelos tribunais que os vinculam administrativamente e em termos correcionais. Neste relatório, serão citados, a titulo de exemplificação, quatro casos recentemente ocorridos nos dois maiores integrantes do sistema de justiça do Brasil: o Poder Judiciário de São Paulo e do Rio de Janeiro. 14. Primeiro caso (processo n. 2012/00034923): em março de 2012, magistrados de 2a instância pediram a instauração de processo administrativo disciplinar em face dos juízes do Tribunal de Justiça de São Paulo Kenarik Boujikian, José Henrique Torres, Dora Aparecida Martins e Roberto Corcioli Filho porque estes assinaram manifesto para que uma operação repressiva do governo estadual (reintegração de posse) contra uma comunidade carente (conhecida como “Pinheirinho”) fosse denunciada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A 30


Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo não instaurou o processo, mas assim decidiu acolhendo parecer contendo advertências aos mencionados juízes: consta no parecer que “teria sido melhor que os Magistrados representados não tivessem assinado o indigitado manifesto”; que Constituição brasileira “[...] não está a dizer que esta liberdade de expressão, que se extrai da constitucionalmente assegurada livre manifestação de pensamento, possa desprezar, no caso específico daqueles que compõem o Poder Judiciário, nos termos do art. 92, VII, da Carta, alguma espécie de baliza […]”; o parecer ainda reclama que os referidos juízes fizeram “questão de se identificar como Juízes de Direito do Estado de São Paulo” e que “acabaram colocando-se, gratuitamente, sob suspeição, acaso, no futuro, pelos estreitos caminhos da ironia, venham a ser competentes para conhecer algum processo judicial cuja raiz esteja presa ao ‘caso Pinheirinho’”. 15. Percebe-se que, em razão de exercerem a liberdade de expressão, consagrada constitucionalmente e pela ONU, os juízes paulistas terminaram sendo advertidos pelo órgão correcional do tribunal a que se encontram vinculados, em que pese a aparente absolvição. Isso equivale a sanção administrativa de admoestação, apta a intimidá-los e a intimidar outros juízes conhecedores do caso. 16. Segundo caso (processo n. 72.379/2013): em maio de 2013, o juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo Roberto Luiz Corcioli Filho sofreu pedido de processo administrativo assinado por membros do Ministério Público porque estaria decretando a soltura de custodiados. Por esta razão, por decisão da presidência do referido tribunal, o juiz foi afastado da jurisdição criminal da Comarca de São Paulo, não podendo retornar nem mesmo quando o pedido foi arquivado. 17. Nota-se que o juiz teve sua inamovibilidade violada pelo exercício da independência funcional. O Conselho Nacional de Justiça determinou o retorno do magistrado à jurisdição criminal4, mas esta decisão foi suspensa pela suprema corte brasileira. Cansado, o magistrado pediu sua remoção para outra Comarca. 18. Terceiro caso (processo n. 2015-166722): em setembro de 2015, o Juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro André Vaz Porto Silva so4

Pedido de providências n. 0001527-26.2014.2.00.0000 – Conselheira Gisela Gondin Ramos.

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freu reclamação disciplinar por membros do Ministério Público, que se insurgiam contra decisões do magistrado de absolver sumariamente réus acusados da prática de chamados crimes de bagatela, a pretexto de que o fazia em momentos processuais inadequados; significa dizer que as violações funcionais apontadas contra o magistrado estariam no teor das suas decisões, produto do exercício da independência funcional, impugnáveis pelos recursos previstos na lei brasileira. Contudo, a Corregedoria do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro deu prosseguimento à reclamação disciplinar, determinando a oitiva dos membros do Ministério Público que assinaram a reclamação, de agentes da polícia e de representante de associação de comerciantes do Município em que atua. 19. Portanto, o referido juiz sofre os constrangimentos inerentes à exposição pública de um processo administrativo por exercer o dever de decidir conforme sua convicção jurídica. 20. Quarto caso (processo n. 2015/00122726): em agosto de 2015, a Juíza Kenarik Boujikian, do Tribunal de Justiça de São Paulo, sofreu pedido de processo administrativo assinado por magistrado de 2a instância porque determinou, monocraticamente, a soltura de onze réus; a juíza também exerce jurisdição em 2a instância, onde magistrados decidem monocraticamente (em casos urgentes) ou em colegiado (isto é, em conjunto com outros julgadores). Em sua defesa, a magistrada demonstrou que determinou monocraticamente a soltura porque os réus já haviam cumprido suas penas, tratando-se, pois, de matéria urgente; contudo, em que pese tal circunstância, referido tribunal instaurou processo administrativo contra a magistrada, atualmente em tramitação. 21. Percebe-se que a juíza é constrangida pelo processo administrativo porque, exercendo a independência funcional, entendeu que a prisão indevida de pessoas exigia atuação imediata, que não poderia esperar a mais demorada decisão do órgão colegiado. IV - Conclusões e recomendação sugerida 22. Os exemplos citados revelam a instauração de processos administrativos contra magistrados em razão do exercício da independência (isto é, do teor de suas decisões ou das suas práticas cidadãs); outros ca32


sos revelam simples requerimentos de instauração de processos formulados perante corregedorias internas dos tribunais, que, contudo, não foram arquivadas de plano, como se deveria, por também fundadas no teor de decisões ou de pronunciamentos. Em algumas dessas hipóteses, há decisões que, apesar de isentarem os juízes de responsabilidade administrativa, não deixam de conter repreensões contra os magistrados, configurando verdadeira penalidade de advertência e intimidação contra os membros da magistratura. 23. As perseguições, portanto, não ocorrem apenas por condenações administrativas. O simples dever de responder a procedimentos disciplinares é apto, por si só, a causar constrangimentos no próprio juiz acusado e em outros magistrados intimidados com a apuração. 24. O Supremo Tribunal Federal brasileiro já reconheceu que o processo penal contém uma série de atos que configuram verdadeiras cerimônias degradantes5. Os procedimentos investigatórios disciplinares também dispõem de tais cerimônias, porque podem resultar na aplicação de uma sanção, tal como sucede no processo penal. 25. Os casos citados como exemplos revelam também a presença de um elemento comum: as violações à independência funcional e à liberdade de expressão atingem magistrados que, no âmbito do seu dever de decidir e no exercício da cidadania, atuam em favor das liberdades públicas e do controle ao poder de punir do Estado. 26. Trata-se, portanto, de perseguições ideológicas. O que se tem é a aplicação de constrangimentos contra magistrados que, fazendo uso de uma opção ideológica na utilização dos direitos em discussão (em decisões ou no mero exercício da liberdade de expressão), sustentam a imposição de limites rigorosos ao Estado. 27. Lembra-se que o Brasil ostenta a quarta maior população carcerária do mundo, sendo que 38% dos presos não sofreram condenação definitiva. Grande parcela dos encarcerados é negra: a taxa de encarceramento dos negros alcança 292 por 100 mil habitantes; a taxa de encarceramento de brancos é de 191 por 100 mil habitantes6. Supremo Tribunal Federal, 2ª Turma. Habeas Corpus 88.914-0 São Paulo, rel. Ministro Cezar Peluso, j. 14/08/2007. Fonte: Mapa do Encarceramento da Secretaria-Geral da Presidência da República e da Secretaria Nacional de Juventude., 2015. Disponível em: < http://www.pnud.org.br/arquivos/encarceramento_WEB.pdf>. 5

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28. Portanto, a perseguição dá-se contra juízes que, em suas decisões ou na liberdade de expressão, atuam contra uma política de Estado que atinge a população negra, isto é, a população que, como reconhecido em relatório sobre minorias, publicado pelas Organizações das Nações Unidas, ocupa 70,8% da população brasileira que vive sob a extrema pobreza7. 29. Diante de todo o exposto, a fim de garantir a independência funcional e a liberdade de expressão de juízes, inerente à independência do Poder Judiciário, evitando-se perseguições que, ao final, prejudicam a população mais pobre do país, a Associação Juízes para a Democracia sugere a publicação da seguinte recomendação ao Brasil: Respeitar a independência funcional e a liberdade de expressão dos juízes, prerrogativas irrenunciáveis da jurisdição, colocando-as a salvo de qualquer espécie de constrangimento, inclusive pela instauração procedimentos de investigação e admoestações informais em razão do seu livre exercício.

7 Fonte: https://nacoesunidas.org/brasil-violencia-pobreza-e-criminalizacao-ainda-tem-cor-diz-relatora-da-onu-sobre-minorias/

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Editorial

POR UMA LOMAN DEMOCRÁTICA Editorial publicado na edição nº 68 do Jornal Juízes para a Democracia A luta pela democratização do Poder Judiciário – bandeira histórica da Associação Juízes para a Democracia (AJD) - implica, dentre tantas outras ações, adaptar a magistratura à realidade institucional brasileira pós-1988. A vigência, até hoje, de uma lei, como a Lei Orgânica da Magistratura Nacional de 1979, imposta pelo ditador Ernesto Geisel, revela o quão democraticamente deficitária encontra-se a carreira. Por isso, ao longo dos seus quase 25 (vinte e cinco) anos de existência, a AJD tem defendido insistentemente a promulgação de uma nova LOMAN apta a reger a vida funcional da magistratura de todo o país em conformidade aos fins emancipatórios da Constituição. Uma LOMAN que não se perca na instituição de privilégios corporativos; uma LOMAN que torne a hierarquização rígida da magistratura um problema do passado; uma LOMAN que horizontalize a carreira, permitindo o exercício de direitos de modo igualitário por todos os seus membros; uma LOMAN que promova a abertura do Judiciário à academia, à pesquisa e aos movimentos sociais. Na presente edição nº 68 da publicação trimestral Juízes para a Democracia, a AJD insere, para o debate público, algumas de suas ideias para a LOMAN. Apresentam-se textos temáticos, de autoria da própria entidade, acompanhados de uma minuta de dispositivo legal e de uma breve exposição de motivos. Muitas propostas já foram apresentadas pela entidade ao longo dos anos; os temas que aqui se encontram são os que se revelam de maior atualidade, tendo sido discutidos no Encontro Nacional realizado em Paraty (2013) e no Fórum Social Temático – Reforma Política em São Paulo (2015), onde a AJD participou como facilitadora na mesa de democratização do Judiciário, em conjunto com outros parceiros e representantes da sociedade civil. Das discussões, as proposições ora apresentadas: ampliação do direito de voto nas eleições para as cúpulas dos tribunais; absoluto respeito ao juiz natural, limitando o poder de designação de juízes pelos tribunais; plena liberdade de expressão aos magistrados; transparência, objetividade, 35


pluralismo e atenção aos Direitos Humanos nos concursos de ingresso à magistratura; instituição de políticas de cotas raciais no Judiciário; controle social por intermédio da instituição de Ouvidorias Externas; abertura do Judiciário à pesquisa acadêmica. Sem embargo da diversidade de temas, tem-se um eixo comum: uma magistratura democraticamente adaptada ao país regido pela Constituição de 1988. Uma magistratura politicamente fortalecida para o cumprimento de seu dever de fazer valer os Direitos Humanos consagrados pelo Estado brasileiro. Uma necessidade da democracia e um possível antídoto às (cada vez mais intensas) tentações autoritárias dos poderes governamentais e econômico.

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Editorial

INDEPENDÊNCIA JUDICIAL OU MORTE DA DEMOCRACIA Editorial publicado na edição º 71 do Jornal Juízes para a Democracia O recrudescimento conservador que tem atacado a sociedade brasileira nos últimos tempos, colocando em perigo as conquistas democráticas advindas a partir da redemocratização brasileira em 1988, também tem alcançado setores do Judiciário. Tal fato tem se revelado não apenas no processo de construção de uma jurisprudência que faz prevalecer a repressão sobre o conteúdo emancipatórios dos direitos oriundos da mobilização da sociedade civil ou de uma jurisprudência defensiva a evitar o ainda maior congestionamento da atividade jurisdicional oriundo das desigualdades sociais e econômicas do Brasil. A contribuição do Judiciário à intensificação do conservadorismo ainda sucede a partir de uma crescente intolerância de tribunais perante juízas e juízes que, na sua atuação funcional ou no exercício de sua cidadania, têm agido em favor da prevalência das liberdades públicas e, consequentemente, do controle mais rigoroso sobre a atividade repressiva do Estado. É desse quadro que magistradas e magistrados têm sido constrangidos a responder a procedimentos administrativos baseados nas decisões que proferem ou nas ideias que, enquanto cidadãos, expõem. Por incidirem sobre membros da magistratura que exteriorizam entendimentos rigorosos em relação à opressão estatal, tais casos proporcionam um caráter ideológico às perseguições. No final das contas, juízas e juízes são perseguidos em razão da exposição de seus valores políticos e morais, ou de suas visões de mundo, inexoravelmente contidos nas respectivas manifestações. Trata-se de fatos aptos, em tese, a intimidar, primeiramente, as próprias perseguidas. Mas não é só. Na realidade, todos os membros da magistratura são atingidos, tendo em conta que, ao menos em princípio, também podem intimidar-se pela mera possibilidade de sofrerem perseguições semelhantes. 37


Ora, a autonomia e a independência do Judiciário configuram requisito da separação de poderes, uma das essências do Estado Democrático de Direito. Por sua vez, Judiciário independente e autônomo significa não apenas atividade jurisdicional isenta de interferências indevidas por parte dos poderes Executivo e Legislativo; significa igualmente a garantia de magistradas e magistrados isentos de interferências indevidas dos demais poderes e do próprio tribunal a que pertencem. Destarte, as perseguições ideológicas a membros da magistratura que adotam, a partir de seus valores políticos e morais, postura funcional ou postura cidadã em favor da maior limitação da atividade repressiva estatal caracterizam verdadeiras violações à independência do Judiciário enquanto poder de Estado. Infringe-se gravemente o próprio Estado Democrático de Direito. Lembra-se, nesse sentido, o quanto a democracia brasileira encontra-se fragilizada no atual momento. A população carcerária cresce, a repressão à mobilização social intensifica-se e, neste ano de 2016, nem mesmo o pressuposto mínimo democrático – o voto popular – foi respeitado. Diante desse quadro, espera-se do Judiciário a defesa intransigente dos valores democráticos como resposta ao enfraquecimento das instituições. Todavia, o que se vê é, pelo contrário, o enfraquecimento de tal defesa, via perseguição a juízas e a juízes, apta a abalar a autonomia e independência do poder. É preciso que o recrudescimento conservador seja estancado. O ambicioso projeto democrático estampado na Constituição de 1988 não pode sucumbir. A garantia de um Judiciário composto por magistradas e magistrados independentes e autônomos pode configurar um importante instrumento de resistência ao processo, ora vivido, de ameaças de perda de direitos. Nos calor dos debates que ocupam as discussões públicas, nesse momento político tão difícil, o Judiciário não pode ser esquecido. Imperioso sempre lembrar que a alternativa à independência e à autonomia dos membros do Judiciário consiste na morte do pouco do que ainda resta de democracia no Brasil.

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Artigo

AS DECISÕES MONOCRÁTICAS NOS TRIBUNAIS E A INDEPENDÊNCIA JUDICIAL JOSÉ HENRIQUE TORRES* Artigo publicado no periódico on line Justificando, em 26/01/2016. “Cessa tudo que a antiga Musa canta, quando outro valor mais alto se alevanta” Camões No próximo dia 27 de janeiro, o Tribunal de Justiça de São Paulo, por seu órgão censor de cúspide, terá mais uma importante oportunidade para reafirmar a independência judicial como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito. Uma Desembargadora, no desempenho de sua função jurisdicional, atuando como Relatora em uma Câmara Criminal, em mais de cinquenta processos, ao constatar que os réus estavam presos, preventivamente, por mais tempo que aquele imposto para o cumprimento da pena infligida na sentença condenatória recorrida, determinou, monocraticamente, a sua soltura imediata. E, por ter assim decidido, está prestes a responder a um processo disciplinar, acusada de ter violado o “princípio da colegialidade”, ou seja, por ter determinado a soltura dos condenados, cautelarmente, sem antes submeter o recurso ao julgamento do colegiado. Certamente, no juízo de libação dessa acusação, o órgão disciplinador do TJSP lembrar-se-á do disposto no artigo 232 de seu Regimento Interno para reconhecer o cabimento de tais decisões monocráticas, pois esse dispositivo normativo afirma, expressamente, que “as medidas assecuratórias previstas no Código de Processo Penal (...), quando urgentes e de manifesto cabimento, serão processadas pelo Relator (...) do recurso pendente de julgamento no Tribunal (...)”. Aliás, não será olvidado, com certeza, que, exatamente com base nesse dispositivo normativo, 39


praticamente todos os dias, são proferidas decisões cautelares monocráticas pelos Relatores de recursos interpostos nesse tribunal, bem como em todos os demais tribunais deste país, sem qualquer alegação de violação ao princípio da colegiabilidade, tanto no âmbito da justiça cível como criminal, ad referendum do colegiado, inclusive para cassar benefícios concedidos aos réus em decisões de primeira instância. E, com a mesma certeza, também será lembrado que, em um Estado Democrático de Direito, aos juízes e juízas cabe zelar pelo império dos direitos fundamentais, pois, “nas sociedades democráticas modernas, submetidas ao império do direito, a proteção dos direitos humanos é tarefa que incumbe ao Poder Judiciário” (Dalmo Dallari, O poder dos juízes). Assim, mesmo que não existisse aquele dispositivo normativo do RI do TJSP, ainda assim caberia ao Relator decidir, monocraticamente, sobre questões urgentes que implicassem violação a direitos humanos. Aliás, inaceitável e merecedora de censura seria a omissão de um magistrado diante da constatação flagrante de uma evidente violação a um direito fundamental. Tal omissão não implicaria mera conivência, mas, sim, cumplicidade com a arbitrariedade. É por isso que o CNJ, no final de 2015, celebrou um convênio com a CIDH, comprometendo-se a implantar a temática de Direitos Humanos nos concursos e cursos de formação dos magistrados brasileiros. Há poucos anos, uma pesquisa nacional com os magistrados brasileiros revelou que apenas 2,7 % deles havia lido, por exemplo, o Pacto de San José da Costa Rica! Isso talvez explique o porquê da resistência dos juízes e juízas à aplicação das normas de direitos humanos, inclusive como fator preponderante de interpretação de nosso sistema jurídico. Decididamente, portanto, será lembrado, nessa histórica sessão disciplinar do TJSP, que a proteção dos Direitos Humanos constitui, sobretudo, um dever de todos os juízes e juízas. Todavia, a questão a ser enfrentada extrapassa o âmbito singelo da aplicabilidade ou não de uma norma regimental interna e é muito maior do que a discussão sobre o acerto, o cabimento ou a oportunidade das decisões de uma Desembargadora Relatora em face do princípio da colegiabilidade. Trata-se, na realidade, de ser garantida ou não a independência ju40


dicial, que é uma premissa da jurisdição, não uma prerrogativa dos juízes e juízas, mas um direito do próprio cidadão. A independência judicial é imprescindível para a mantença do Estado Democrático de Direito e não existe como um privilégio, mas para que os juízes e juízas possam ser garantes dos direitos fundamentais. Por isso, comprimir a independência, exigir submissão nos julgamentos ou punir administrativamente pelo exercício do julgar é o que se pode chamar de suicídio na magistratura. É mortal para a democracia retirar do juiz a independência. Esse proceder não afeta apenas o magistrado em sua prerrogativa funcional, mas, sim, e principalmente, o cidadão de quem se subtrai o direito a um foro que possa fazer cumprir e garantir os demais direitos. É por isso que não se pode admitir que qualquer magistrado seja disciplinarmente processado por decisão jurisdicional que tenha regularmente proferido em seu ofício. É preciso repelir qualquer tipo de ameaça de punição ou de exercício de poder censório contra atividade jurisdicional ou qualquer tipo de intimidação a qualquer magistrado por membro de qualquer dos Poderes, inclusive do próprio Judiciário. Aliás, do Manual para o Fortalecimento da Independência e Transparência do Poder Judiciário na América Latina, consta que o seu principal interesse é chamar a atenção sobre a maneira como a distribuição de funções de governo e administração da magistratura pode incidir sobre a independência dos juízes, alertando para o fato de que a concentração de um poder disciplinar excessivo nas cúspides dos tribunais pode recortar a liberdade de julgamento dos juízes e juízas, que, subjugados às esferas disciplinares, podem ser pressionados e deixar de lado a garantia de direitos para decidir conforme as preferências de quem exerce o poder de conduzir a instituição. Cabe ao Poder Judiciário, sim, no âmbito das instâncias jurisdicionais, analisar as decisões proferidas e aferir seus erros e acertos, mas são ilegítimas e descabidas, para tanto, providências de controle administrativo e disciplinar. A independência judicial exige que “o magistrado não estará submetido a pressões de poderes externos à magistratura, mas também implica a segurança de que o juiz não sofrerá pressões dos órgãos colegiados da própria magistratura”. 41


É por isso que a ONU, em seu 7º Congresso, em 1995, ao adotar os princípios básicos relativos à independência judicial, afirmou que (1) “a independência da magistratura será garantida pelo Estado e consagrada na Constituição ou na legislação nacional, pois é dever de todas as instituições, governamentais e outras, respeitar e acatar a independência da magistratura” e (2) que “os juízes devem decidir todos os casos que lhes sejam submetidos com imparcialidade, baseando-se nos fatos e em conformidade com a lei, sem quaisquer restrições e sem quaisquer outras influências, aliciamentos, pressões, ameaças ou intromissões indevidas, sejam diretas ou indiretas, de qualquer setor ou por qualquer motivo”. Como afirma Comparato,“os juízes individualmente e o judiciário como órgão estatal não estão subordinados a nenhum outro poder do Estado, mas vinculam-se, sempre, diretamente, ao povo soberano”, pois a garantia da independência judicial “é um mecanismo de proteção dos poderes públicos destinado a proteger os direitos fundamentais da pessoa humana”. Portanto, é preciso refutar acusações a juízes fincadas em ilegítima pretensão reducionista de cláusulas pétreas constitucionais de garantia da liberdade, evitando-se, assim, que sejam solapados os alicerces do próprio Estado de Direito Democrático e da independência judicial. Em uma sociedade democrática, como esta em que vivemos, é preciso preservar a independência judicial e respeitar o pluralismo, a diversidade de ideias e as divergências, mas, sobretudo, repudiar a punição ao dissenso e repelir a pretensão de se estigmatizar os divergentes com o sinete da subversão ou da indisciplina. Negar a independência judicial e a autonomia dos magistrados, que devem submeter-se, apenas, aos princípios de garantia constitucionais e aos direitos fundamentais, implica sepultar a democracia nas sombras dos ínferos, aniquilando o sentido do próprio Poder Judiciário, pois, sem essas imprescindíveis garantias, a sociedade ficará com as portas escancaradas para o totalitarismo e, em consequência, a própria atividade judicial, guardiã da independência e da liberdade, será anulada. É por isso que, no próximo dia 27 de janeiro, o Tribunal de Justiça 42


de São Paulo, por seu órgão censor de cúpula, terá mais uma importante oportunidade para reafirmar a independência judicial como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito. Afinal, como o inconformismo é sinônimo de esperança, “quero que a justiça reine em meu país” (Milton Nascimento). José Henrique Torres é Juiz de Direito e Professor de Direito Penal e Processual Penal. É membro e foi presidente da Associação Juízes Para a Democracia (AJD).

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Artigo

A DEMOCRATIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO: O MOMENTO PARA UMA DISCUSSÃO RACIONAL ANDRÉ AUGUSTO SALVADOR BEZERRA* Artigo publicado no edição on line da Carta Capital, em 22/06/2016. O atual momento do país evidencia a insuficiência da vigência, sem efetiva aplicação, de uma Constituição como a de 1988. A previsão de amplos direitos oriundos da mobilização social que acompanhou os trabalhos da Assembleia Constituinte não tem impedido retrocessos autoritários. O Judiciário, que poderia exercer papel protagonista na defesa da democracia e dos direitos humanos, não tem, de modo geral, conseguido impedir os retrocessos. Tal Poder nega-se, constantemente, por exemplo, ao diálogo com os movimentos sociais; por sua vez, age decisivamente no crescimento do Estado policial, lotando, via decreto de prisões, o sistema carcerário brasileiro. Cabe, assim, investigar os fundamentos pelos quais a leitura predominante das normas jurídicas em vigor, pela atividade jurisdicional, tem favorecido o uso repressivo dos direitos, em vez de privilegiar seus fins emancipatórios pela igualdade e liberdade. Situação paradoxal A tarefa acima colocada não é simples. O Judiciário trabalha sob uma situação paradoxal que deve ser melhor compreendida. De um lado, a Constituição de 1988 proporcionou autonomia do Judiciário, enquanto Poder de Estado, no mesmo plano do Executivo e do Legislativo. No âmbito desta autonomia, assegurou ampla independência funcional aos juízes, sob o correto entendimento de que independência do Judiciário significa também independência de cada juiz, inclusive perante o tribunal a que se encontra administrativamente vinculado. Por outro lado, a vigência da Constituição não impediu que a estrutura e 44


a composição do Judiciário brasileiro no pós-1988 não sejam distintas, na essência, da estrutura e composição do superado período ditatorial. Estrutura não democrática Lembra-se, nesse aspecto, que os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), ocupantes da cúpula da atividade jurisdicional, são até hoje nomeados sem qualquer participação da sociedade civil. No processo de escolha de cada ministro, os debates democráticos perduram substituídos pelas conversas de bastidores restritas às elites políticas. Aliás, a participação da sociedade civil é praticamente inexistente na administração e na fiscalização dos tribunais. As ouvidorias são, em geral, compostas somente por membros do Judiciário; o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de controle externo, tem sua composição formada apenas por pessoas oriundas das carreiras jurídicas; a destinação do orçamento também se dá sem a atuação de qualquer movimento social. Por sua vez, os juízes continuam tendo sua vida funcional regida por norma jurídica imposta pelo ditador Ernesto Geisel em 1979, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman). Seguindo a lógica da ditadura civil-militar da época em que entrou em vigor, a Loman trata a carreira da magistratura de modo hierarquizado, a impedir o debate democrático interno acerca dos rumos do Judiciário: por isso, em regra, os juízes de 1ª instância sequer podem votar para as cúpulas dos tribunais a que pertencem. Composição não democrática Se a carreira não se adaptou à Constituição de 1988, a composição da magistratura tampouco alterou-se. Basta lembrar que, segundo censo publicado pelo CNJ em 2014, apenas 1,4% dos juízes declararam-se pretos e 0,1% declararam-se indígenas. Tais dado revelam que mais de 98% dos juízes brasileiros não são pretos ou indígenas. Em outras palavras, 98% dos juízes brasileiros possivelmente jamais sofreram uma abordagem policial em razão da cor da sua pele; 98% dos juízes brasileiros possivelmente jamais sofreram o temor de perder um pedaço coletivo de terra que consideram sagrada. 45


Para além da experiência de quem não pertence às raças historicamente colonizadas – e que dão sustento ao que Aníbal Quijano chama de colonialidade do poder –, esses mesmos juízes são oriundos de um sistema de ensino jurídico absolutamente acrítico. Trata-se de sistema fundado no positivismo filosófico, originado no século 19, responsável por uma grave hierarquização dos saberes, que insere o conhecimento branco e ocidental no topo da pirâmide e o conhecimento, por exemplo, dos povos originários das Américas na base hierárquica. Pressão externa Para agravar o quadro acima descrito, o Judiciário tem sofrido forte pressão para legitimar o crescimento do Estado policial. Lembra-se a transmissão de programas policiais por emissoras de rádio e televisão, que festejam a violência estatal contra pessoas tidas por meras suspeitas da prática de crimes (em geral, não-brancas) e rechaçam o cumprimento do dever funcional de juízes que exercem controle rígido para coibir abusos. Tais emissoras desconsideram, portanto, sua qualidade de meras concessionárias de serviço público e seu dever de transmissão de programação educativa, na forma exigida pelo artigo 221 da Constituição. Por vezes, a pressão é mais direta. Por exemplo, recentemente um grupo de Promotores de Justiça representou, perante a Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo, o Juiz de Direito Roberto Corcioli Filho. O “fundamento” da representação reside, basicamente, no fato do magistrado exercer sua independência funcional em favor do controle rigoroso sobre a atividade policial (para isso, relaxando prisões que entendia ilegais), promovendo o diálogo em conflitos sociais (designando audiência de conciliação em caso de reintegração de posse contra sem-tetos) e impedindo o abuso do poder econômico (vedando o uso de um aplicativo com base na regulação legal à atividade econômica). O momento para uma discussão racional O atual acirramento dos debates políticos tem colocado o Judiciário no centro da discussão. O problema é que, em razão de acusações de práticas abusivas por um ou outro juiz no decorrer da atual crise política, alguns grupos historicamente defensores dos direitos dos excluídos têm clama46


do pela restrição à independência funcional dos magistrados, como se esta prerrogativa fosse um óbice para o Estado de Direito. É preciso ter cautela. Restringir a independência funcional é retirar, por completo, qualquer possibilidade de uma leitura jurisdicional emancipatória dos direitos. É também impedir, em definitivo, a possibilidade de decisões contrárias àqueles que Raymundo Faoro chamava de os donos do poder. O foco deve ser outro: combater déficits democráticos, como os acima apontados, para permitir que a leitura dos direitos privilegie a liberdade e a igualdade. Nesse sentido, convida-se o leitor a conhecer as propostas da Associação Juízes para a Democracia para uma Loman democrática. A tentação autoritária é grande em momentos de tensão. É preciso promover uma discussão racional para adaptar o Judiciário à democracia. André Augusto Salvador Bezerra é mestre e doutorando pelo Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e outras legitimidades da Universidade de São Paulo (USP). Presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

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Artigo

PRÁTICAS RESTAURATIVAS: O DESAFIO DE TRANSFORMAR FERNANDA DE LIMA CARVALHO* Artigo publicado no site da AJD em outubro de 2016. “A violência é conhecida; a paz é um mistério” J.P. Lederach “Violência é o comportamento de alguém incapaz de imaginar outras soluções para o problema em pauta” Bruno Bettelheim O presente texto busca retratar a forma como as práticas restaurativas são transformadoras e transformam formas de agir e ser dos próprios praticantes. Foi escrito após o término das atividades de 2015 do Grupo de Estudos de Justiça Restaurativa da Escola Paulista de Magistrados, coordenado pelo colega Egberto Penido. A partir dos ensinamentos de Edgar Morrin, que nos conta sobre o entrelaçamento de tudo o que existe, com a construção de sua teoria sistêmica, e dos escritos de Humberto Maturana, que nos lega o entendimento de autopoiese e interdependência de todos os fenômenos, buscarei exemplificar transformações ocorridas no olhar de Magistrados que ingressaram na carreira com determinada visão de mundo, inseridos em sua cultura particular, com suas próprias biografias e referências e estão, atualmente, em constante transformação de sua maneira de entender a conflituosidade humana e formas adequadas de aborda-la. Pequeno e simples Glossário antecipado dos Vocábulos Usados: Violência – Toda ação que provoca medo, exclusão, desempoderamento, constrangimento, silêncio, dor física ou moral. 48


Violência estrutural – as diversas formas de violência que permeiam a vida cotidiana e as relações entre as classes menos favorecidas economicamente/ hierarquicamente inferiores e as classes hierarquicamente superiores/favorecidas. Práticas Restaurativas – ações estruturadas, segundo os princípios restaurativos, com a finalidade de resgatar valores esgarçados e tecer redes de apoio a transformações tomadas como necessárias. Princípios Restaurativos - Voluntariedade, sigilo, simetria nas relações, escuta empática, acolhimento, reparação, equilíbrio. Justiça Restaurativa - abordagem do conflito que eleva o ofendido e suas necessidades à posição de destaque, por meio de escuta empática e empoderamento. Enfoca, simultaneamente, as necessidades do ofensor e as motivações de sua ação. Objetiva a transformação do padrão de atuação violento e o atendimento das necessidades do ofendido, com suporte de ampla rede de apoio no meio em que se encontra inserido. Ofendido - quem sofre violência Ofensor - quem pratica violência (ressaltando-se que a visão sistêmica implica em “descongelamento” destes papéis, uma vez que eles são alternáveis e dinâmicos) Escuta qualificada – Oitiva atenta da narrativa de outra pessoa, sem julgar, sem interpretar, sem interromper. Escuta Empática – Oitiva integral da narrativa de outrem, colocando-se em seu lugar, em seu contexto cultural, familiar, sócio econômico, emocional. Colocar-se “em sua pele”. Vestir seus sapatos”. Pois bem. Partindo do entendimento de violência, chega-se à seguinte reflexão: a atuação do magistrado que ignora a complexidade dos fatores envolvidos nos conflitos, que silencia e desempodera os seus necessários protagonistas, que impõe condutas que não se adequam à sua realidade, ignorando suas necessidades, que não busca algum tipo de reparação ou transformação de comportamento NÃO SERIA UM FAZER VIOLENTO ??? 49


Nós Juízes envolvidos com práticas restaurativas ingressamos todos na carreira movidos pelo desejo de contribuir, de forma positiva, na vida das pessoas. Contribuir com nossa visão de mundo, nossos valores, para RESOLVER conflitos. Iniciamos nossa atuação, porém, imbuídos de “autocentramento no Poder”, conforme expressado por um colega do Grupo, acreditando que nossas decisões seriam dotadas de força capaz de solucionar os problemas que nos são diariamente colocados. Com o passar do tempo, fomos entendendo que a complexidade das relações humanas demanda um entendimento de que somos detentores de um poder que necessita ser deslocado do centro de direção e entrar em composição com vários outros potenciais poderes, dentre os quais os dos próprios envolvidos no conflito. Necessitamos agir de forma empática, estabelecendo conexões mais humanas com os jurisdicionados, por meio das narrativas que nos são trazidas. Necessitamos estar equipados de escuta qualificada. Como afirma Jean Paul Lederach, em sua obra “ A Imaginação Moral”: “Poder sugere que a conversa faz diferença: nossas vozes são ouvidas e têm algum impacto sobre a direção do processo e sobre as decisões tomadas.” Uma colega desabafou, no Grupo de Estudos de Justiça Restaurativa que formamos na EPM que, depois de alguns anos de atuação, sentiu-se “engolida pelo sistema”, tendo ingressado na carreira com valores e princípios restaurativos, sem sequer ter tomado com eles contato. Sua angústia, sentida por muitos colegas, residia no aprisionamento em uma atuação meramente formal e distanciada da complexidade humana que se encontra no cerne os conflitos, cuja eficácia ora questionamos. Se, por um lado, trabalhar assim gerava conforto e segurança, por outro trazia, junto com a acomodação, enorme frustração em relação aos resultados efetivos de seu trabalho. Mesmo no ambiente cartorário, a relação verticalizada de chefia, sem qualquer espécie de empoderamento e voz dos serventuários, segundo a Magistrada, acabava por perpetuar conflitos Ora, introduzir instrumentos de participação em ambiências coletivas 50


não significa perder o controle, mas criar uma percepção clara de que “a voz conta e é contada”, nas palavras de Jean Paul Lederach. Relataram vários colegas que a utilização de círculos restaurativos para abordar novas questões e conflitos ocultos trouxe enorme motivação e senso de pertencimento dos serventuários à estrutura do Poder Judiciário. E, como Corregedores, passaram este Juízes a se sentir mais integrados, atuando conjuntamente, com suporte e apoio bastante mais íntegro, sentindo sua humanidade resgatada e seu Poder legitimado. Da mesma forma, ao permitirmos maior envolvimento com as questões que nos são trazidas, permitimos refletir e rever comportamentos nossos, no ambiente de trabalho e em nossas vidas pessoais, que não estejam pautados pela real intenção de criar relações íntegras, verdadeiras e harmoniosas. Identificamos com mais facilidade o que, em nossas vidas, está a contribuir com a criação de uma verdadeira Cultura de Paz. É certo que necessitamos de imaginação, criatividade, habilidade e casualidade para transcender a violência cultural e estruturalmente impregnada em todas as relações. Precisamos, antes, compreender que fazemos parte de um padrão violento, e que nossas opções e comportamentos afetam diretamente todas as relações que tecemos. Como Magistrados, passamos a entender que nossa missão profissional não é RESOLVER , conflitos, pois sem a participação daqueles diretamente envolvidos, tal tarefa revela-se impossível. As consequências do uso de tal Poder revelam-se, na grande maioria das vezes, catastróficas, mormente quando estamos no terreno das relações familiares ou continuadas, mas também quando nos deparamos com ofensas que geram em todos desestruturação psíquica e social. Ao invés de desejar POR FIM aos conflitos, por meio do instrumento formal da lei, passamos a ABORDÁ-LOS, encarando sua complexidade e fazendo uso do ferramental adequado, bem como os encaminhamentos necessários ao trabalho que reconhece a INTERDEPENDÊNCIA de tudo o que existe. Construir a rede de apoio e trabalhar em rede, fazendo os encaminhamentos necessários, de forma continuada e monitorada, revelou-se o caminho do entrelaçamento de saberes e capacidades, forma 51


mais rica e integrada de operacionalizar nosso trabalho cotidiano. A justiça restaurativa revela novas possibilidades e potências. Entendemos, sem embargo, que devemos estar preparados para ingressar no terreno dos riscos e incertezas, sempre nos pautando nos princípios que fundamentam tal prática, o que nos confere a segurança de que o caminho trilhado é o correto e que, ainda que o resultado final não corresponda à melhor solução para o conflito, transformações de comportamento definitivas certamente se produziram em todos os envolvidos. Nós, Juízes, precisamos lidar com a frustração e a verdade da impotência perante inúmeras situações que, para além da abordagem adequada, demandam intervenções de ordem econômica, social, psíquica e anímica. Mas a certeza de que entendimentos e aprendizados ocorrem a todo momento para todos que trabalhamos desta forma preventiva e curadora sempre nos alimenta nesse fazer. Reconhecemos que a confiança é necessária à quebra dos padrões de violência com os quais nos acostumamos a trabalhar. Descobrir esta vocação, lugar em que nossas capacidades e potências se entrelaça com as necessidades do mundo, faz-nos sentir muito mais confiantes e instrumentalizados para nossa atuação, contribuindo, de fato, para a construção de relações humanas mais dotadas de sentido e harmonia. Afinal, não foi com esse propósito que nos tornamos Juízes??? Fernanda de Lima Carvalho é Juíza do JECCRIM (São Vicente, São Paulo) e membra da AJD. *

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Artigo

“JUIZ GARANTISTA BOM É JUIZ GARANTISTA MORTO” MARCOS PEIXOTO* Artigo publicado no período on line Empório do Direito, em 12/11/2016.

Primeiro levaram os negros Mas não me importei com isso Eu não era negro Em seguida levaram alguns operários Mas não me importei com isso Eu também não era operário Depois prenderam os miseráveis Mas não me importei com isso Porque eu não sou miserável Depois agarraram uns desempregados Mas como tenho meu emprego Também não me importei Agora estão me levando Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém Ninguém se importa comigo. INTERTEXTO, Bertolt Brecht Quando eu era criança, uma certa música (hoje provavelmente considerada – com alguma razão – politicamente incorreta) ornava a abertura de determinada novela e dizia que “dez entre dez brasileiros preferem feijão”. Nos dias (estranhos) que correm, qualquer concessionária de (des)serviço público não se envergonharia de estampar uma versão atualizada da canção em outra novela: “seis entre dez brasileiros preferem… bandido morto”8. 8 “A maioria dos brasileiros (57%) defende a afirmação “bandido bom é bandido morto”. O índice de concordância sobe para 62% em municípios com menos de 50 mil habitantes, segundo levantamento feito pelo Datafolha a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)”, do site G1, na internet em http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/11/para-57-dos-brasileiros-bandido-bom-e-bandido-morto-diz-datafolha.html, consultado aos 07/11/2016;

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Não há espaço aqui para tentar desvendar o ódio que emergiu nos últimos tempos na sociedade brasileira – digo “emergiu” por entender que seria incorreto afirmar que “nasceu”, pois que estava somente submerso, sendo destilado em pequenos grupos envergonhados que a internet ajudou a tornar públicos e a disseminar ao se aperceberem, seus integrantes, que estavam muito distantes de qualquer isolamento ou estranhamento mas, isto sim, refletiam um sentimento comum a muitos e muitas: o ódio e intolerância contra a diferença. Esses sentimentos se encontram estreitamente vinculados à ideia e construção da figura do inimigo, profundamente analisada em matéria penal (prenhe em matéria de “inimigos”) por figuras tão díspares e antitéticas como um Jakobs ou um Zaffaroni. O inimigo, real (países em guerra possuem inimigos reais, ainda que alguns entrem em guerra contra inimigos irreais mesmo que por motivos reais porém, quase sempre, recônditos) ou fictício, é um fator facilitador no sentido de engendrar seja uma falsa sensação de unanimidade em torno de um alvo a ser debelado, seja um deslocamento de questões mais ingentes e danosas que o “inimigo” da vez poderia um dia quiçá almejar ser – e, assim, a ideia de inimigo guarda estreita convergência com a noção de ideologia; poderíamos mesmo ousar dizer que o inimigo forjado será sempre ideológico. Já o ódio ao criminoso é um fator à parte, tamanha a sua complexidade – até porque o criminoso é sempre o outro, o odiado, nunca aquele que o odeia enquanto baixa filmes em sites de compartilhamento ilegais, ou ao mesmo tempo em que passa com a muamba pela alfândega, ou antes/ depois de pedir um precinho camarada e sem nota fiscal ao dentista com quem comumente compartilha dos mesmos ódios. Ainda que o desvio seja algo intrinsecamente inerente ao ser humano (demasiado humano) – não à toa praticamente nasce com o homem a noção de pecado e, junto, os mandamentos, interditos, leis – o ódio ao desvio é facilmente alimentado mesmo pelos que desviam em outros sentidos, pois o desvio do outro é sempre o mais feio ou (a depender do interesse em jogo) o mais danoso, o mais perigoso, o mais ilegal, o mais vergonhoso, o mais pecaminoso. Daí porque é muito fácil potencializar e direcionar estes ódios: como, 54


muitas vezes, aquele que odeia externa um ódio contra o que tem dentro de si mesmo, e como o ódio encontra forte amparo na irracionalidade, não há grandes dificuldades em nutri-lo e direcioná-lo, pois a massa está pronta, basta levar ao forno, de preferência em temperatura elevada, e aguardar. Porém, o inimigo ideal é aquele despido de humanidade. O discurso de descolamento entre o criminoso e o humano vem de longa data, e perpassa por frases ignóbeis do tipo “direitos humanos para humanos direitos” até alcançar a famigerada ideia do “bandido bom é bandido morto”, que alimenta desde o linchamento da esquina até o estado inconstitucional de coisas alcançado pelo sistema penitenciário, declarado pelo Supremo Tribunal Federal sem que daí tenha advindo um mínimo de concretude – objeto de decisão liminar na ADPF 347 há mais de ano, o sistema prisional somente faz ampliar e tornar-se mais e mais desumano, à ponto de em novembro de 2016 o governo do Rio Grande do Sul ter anunciado que passará a manter seres humanos presos em contêineres (prática que já havia sido adotada em 2009 no Espírito Santo): afinal, quem se importa a não ser (em mais uma frase cheia de ódio) “aquela gente dos direitos humanos”? Desumanizado o criminoso fica “mais fácil” (para alguns…) espancar até a morte o jovem que furtou um cordão, amarrar a um poste e espancar o assaltante, apedrejar a mulher confundida com alguém que abusou de uma criança, afinal, o que veem os imoladores não é um ser igual, um ser humano, mas alguém que por ser desigual (desumano, ou talvez melhor: inumano) é “matável” sem que exista qualquer sinal de identificação ou compaixão – este mesmo raciocínio explica as touradas, “vaquejadas” e “farras do boi”, em que o animal é maltratado e levado à exaustão e morte sem qualquer sinal de piedade dos participantes, afinal… é um animal, não é humano… (aliás, não fica tão longe disto tudo o ato de atear fogo a moradores de rua). Nesta crescente desumanização e ampliação do ódio ao desviante, nutridos em grande parte por uma mídia irresponsável e profundamente danosa ao desenvolver do processo civilizatório em nosso país – que espera e pretende exatamente que os pobres se odeiem entre si para que não tenham tempo de odiar àqueles que realmente os espoliam – não demorou muito a se identificar à causa e aos defensores dos direitos humanos como empecilhos ao “melhor para a sociedade” (na visão daqueles). 55


“Aquela gente dos direitos humanos” passou então a ser vista como defensora de bandidos, i.e., de gente que merece morrer e de preferência da pior morte, logo, pessoas que precisam também ser eliminadas de suas funções ou no mínimo neutralizadas em suas ações – e isto perpassa desde o extermínio de lideranças indígenas, passando pelo assassínio de religiosos vinculados a causas humanistas, até ao homicídio e criminalização de líderes de movimentos sociais. Surfando nesta onda, profissionais jurídicos que vislumbram a ampliação massiva do encarceramento como “um bem para a sociedade” (e é patético quando cegos acham que enxergam…) deram, então, início a uma guerra silenciosa de combatentes únicos dentro do sistema de justiça criminal, que poderia ser resumida com o título deste despretensioso artigo: “juiz garantista bom é juiz garantista morto” (não “morto” em sentido estrito… ao menos por ora…). Em todo o país, do Rio Grande ao Amazonas, juízes identificados como defensores de direitos e garantias fundamentais (“aquela gente”) passaram a ser perseguidos, em alguns casos dentro de seus próprios Tribunais (por parte de algumas Câmaras, Corregedorias ou Presidências), mas na imensa maioria das vezes por membros do Ministério Público estadual ou federal que, mal acostumados com o trabalho ao lado de juízes que pensam idêntico não toleram aqueles que pensam diverso. Teve início, então, uma verdadeira caça às bruxas, que se encontra em pleno andamento e não demonstra mínimo sinal de exaustão ou quiçá esvaziamento – pelo contrário! Não obstante a meridiana clareza do artigo 41 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional9, Procedimentos Administrativos Disciplinares passaram a ser usados em profusão, sob os mais variados pretextos, contra “aquela gente” que ousa pensar fora da caixa e decidir em desconformidade com o ideário punitivista ora predominante, isto tendo em mira a menina dos olhos de todo esse processo em específico, qual seja, alcançar, como penalidades, remoções compulsórias destes magistrados de Varas Criminais, de Infância Infracional, de Execução Penal ou Infracional para outras, bem distantes de onde possam causar qualquer “dano à sociedade”(sic) e obstar Art. 41 – Salvo os casos de impropriedade ou excesso de linguagem o magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir.

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o processo de ampliação do hiperencarceramento a qualquer custo (ainda que da ordem constitucional – eu ia dizendo vigente, mas nem sem mais… –, como pretendem, por exemplo, várias das absurdas dez medidas propostas pelo Ministério Público Federal). Até o momento o bom senso tem prevalecido na maioria dos casos (infelizmente não em todos!), mas é importante que “aquela gente” – lideranças da sociedade civil, membros da academia, defensores de direitos humanos, advogados, defensores públicos, promotores, procuradores e magistrados democráticos – esteja atenta ao que está a ocorrer na surdina, atenta à essa guerra silenciosa que vem sendo travada dentro do sistema de justiça criminal com ataques vindos de um lado só, sob pena de, em nada sendo feito, muito em breve ser mais fácil encontrar juízes garantistas em Varas de Família, Cíveis ou aposentados, que em Varas Criminais ou Infracionais. Marcos Augusto Ramos Peixoto é Juiz de Direito do Rio de Janeiro e membro da AJD. *

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Entrevista

ALGUMAS PALAVRAS COM O LUTADOR PELA LIBERDADE, ALBIE SACHS ROBERTO LUIZ CORCIOLLI FILHO* Entrevista com o ex-presidente da Corte Constitucional da África do Sul Albie Sachs, concedida ao membro da AJD Roberto Luiz Corciolli Filho, publicada na edição 71 do jornal Juízes para a Democracia. Na manhã de 27 de junho deste ano, segunda-feira chuvosa do verão londrino, no saguão de um dos prédios do King’s College, vi adentrar a figura sorridente e simpática de Albie Sachs. Desacompanhado, vestia uma de suas indefectíveis camisas coloridas e seu chapéu. Foi se aproximando de cada um dos pequenos grupos de participantes do seminário, apresentando-se e trocando palavras amenas. Não tivesse já lido sobre a figura deste grande homem – e lido, também, seu The Strange Alchemy of Life and Law, arrebatador livro de memórias de casos judiciais que promete sair traduzido em breve aqui no Brasil –, provavelmente ficaria muito surpreendido com a mais absoluta ausência de afetação para um sujeito que ocupou por quinze anos uma das cadeiras de uma Corte Constitucional. Naquele dia, tive a honra de participar dos debates a respeito do livro de Albie (como gosta de ser chamado) e de assistir sua fala emocionante e absolutamente inspiradora a respeito dos direitos humanos, da vivência de julgar e da aspiração de vivermos em sociedades mais fraternas e solidárias. Seu Strange Alchemy compõe elegantemente uma tocante narrativa de casos judiciais importantíssimos para a afirmação da Constituição da África do Sul e dos valores do novo país em formação após o apartheid, mas também para a compreensão, por outras nações, a respeito do papel de uma Corte Constitucional na valorização dos direitos humanos. E a tal estranha alquimia da vida e do direito é explicitada ao longo de todo o livro por meio das relações apontadas entre razão e paixão, entre dignidade humana e proporcionalidade, com passagens absolutamente emocionantes sobre a história de vida de um lutador pela liberdade (que em sua trajetória de 58


jurista e militante pelos direitos humanos chegou a ser vítima de um terrível atentado a bomba) cujas experiências certamente ajudaram a moldar suas fortes convicções pela valorização de uma sociedade aberta e democrática, baseada na dignidade da pessoa humana, na equidade e na liberdade. Há os que consideram que o imenso trauma vivenciado pelo povo sul-africano também os possibilitou aderir com mais vigor aos valores de uma nova sociedade compromissada fortemente com a implementação da dignidade humana. De fato, segundo Albie, justamente no lugar que parecia para muitos o terreno mais inóspito no mundo para a justiça constitucional, as ideias mais avançadas a respeito da dignidade da pessoa humana, da equidade e liberdade firmaram forte raiz. Escrevendo sobre a experiência de ter sido alvo de um carro-bomba, que lhe ceifou um braço e a vista de um dos olhos, Albie conjecturou, em seu livro, que se a pessoa acusada de ser responsável por tal terrível atentado fosse processada e as evidências dos autos se mostrassem insuficientes para uma condenação, vindo a ser proferida uma sentença absolutória, então Albie teria experimentado sua suave vingança – porque estaríamos diante de um Estado de Direito. Já em sua fala no evento, talvez o que mais tenha me chamado a atenção foi a declaração segura de que “não há juízes neutros. A Constituição não é neutra – ela não admite a tortura”! De fato, carrega ela inúmeros valores fundantes de uma sociedade e que devem pautar o seu governo, inclusive no âmbito jurisdicional. Mais não é preciso dizer para que seja feito aqui o convite para a leitura da obra de Albie. Fiquemos, agora, com a breve entrevista concedida por ele especialmente para o jornal da AJD. Albie, após sua fantástica experiência em um período crucial na Corte Constitucional da África do Sul, como você avalia a situação atual dos Direitos Humanos no contexto do Judiciário de seu país? Eu costumo dizer brincando que faço visitas à Corte Constitucional e sempre fico feliz ao ver o quão bem eles estão cumprindo o seu papel, e consternado ao perceber o quão bem eles estão sem mim. O fato é que a Corte Constitucional tornou-se uma instituição importante na nossa vida pública. Ela impele a Presidência e até o Parlamento a prestar contas de 59


maneira a proporcional ao público em geral a confiança em toda a ordem constitucional. O Judiciário sul-africano permanece sensível a questões como a participação das mulheres na sociedade, o direito das minorias, a própria questão do racismo e da participação da população negra na vida pública, dentre outras? Sim, o Judiciário tem atuado com força e sensibilidade em todas essas questões, bem como a respeito da pena de morte e da punição corporal, sobre o direito ao casamento homoafetivo, e sobre o direito ao voto para pessoas presas. Ele abriu novos caminhos em três áreas: exigindo racionalidade como um elemento inerente a todo exercício de poder, negando, assim, a nomeação de pessoas manifestamente incapazes de altos cargos que exigem integridade especial; desenvolvendo o conceito de um direito costumeiro vivo, especialmente ao fulminar o patriarcado no tradicional direito de família; e valendo-se do conceito de razoabilidade para mensurar as medidas tomadas para realizar os direitos econômicos e sociais, e para ordenar e avaliar um engajamento sério dos envolvidos na busca por soluções justas e eficazes na área. Albie, você tem conhecimento, em seu país, a respeito de pressões externas ou mesmo internas, através dos órgãos diretivos dos tribunais, para que os juízes sigam uma determinada linha de decisão, especialmente em matéria de direitos e garantias penais e processuais penais, mas também em outros temas de direitos humanos? Não, eu não tenho conhecimento de quaisquer pressões diretas sobre os juízes e tribunais. Mas tem havido relatos consideráveis na imprensa sobre o que é chamado de “captura do Estado” por grupos políticos na área de investigação e persecução penal. Roberto Luiz Corciolli Filho é Juiz de Direito do TJSP e membro da AJD.

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DEMOCRACIA NO BRASIL As lutas em favor do voto e das mobilizações populares

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Nota Pública

NÃO SE COMBATE CORRUPÇÃO CORROMPENDO A CONSTITUIÇÃO A Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental, de âmbito nacional, sem fins corporativos, que tem dentre seus objetivos estatutários o respeito aos valores próprios do Estado Democrático de Direito, tendo em vista propostas legislativas levadas à discussão e ações estatais realizadas, em nome do combate à corrupção, que afrontam os Direitos Fundamentais arduamente conquistados com a promulgação da Constituição da República de 1988, vem a público dizer que: 1. A gradativa superação do regime ditatorial instaurado pelo Golpe de Estado de 1964 acabou por revelar à sociedade a prática de diversos atos de corrupção, antes ocultos em favor dos detentores do poder político ou econômico, levados a efeito por corporações e agente estatais, independente de partidos políticos e das ideologias vigentes. Essas práticas ilícitas prejudicam a qualidade dos serviços públicos e a concretização dos direitos individuais, coletivos e difusos consagrados na Constituição da República, afetando a vida de toda a população, especialmente dos estratos mais pobres. 2. Todos os atos concretos de corrupção que têm sido revelados e provados ofendem o Estado Democrático de Direito. A chamada “Operação Lava Jato”, que ocupa as sempre seletivas manchetes dos jornais brasileiros, é um claro exemplo de uma ação que só poderia ter início no ambiente democrático, no qual se respeitam a independência das instituições e a liberdade de expressão, inclusive para que as respectivas qualidades sejam enaltecidas e os respectivos erros, apontados. Vale, sempre, lembrar que ilegalidade não se combate com ilegalidade e, em consequência, a defesa do Estado Democrático de Direito não pode se dar às custas dos direitos e garantias fundamentais. 3. O problema é que, tal como em outros momentos da História do Brasil, o combate à corrupção tem ensejado a defesa de medidas e a efetiva prática de ações não condizentes às liberdades públicas ínsitas ao regime democrático. 4. Nesse sentido, têm-se que as chamadas “10 Medidas Contra a Corrupção”, lançadas à discussão pelo Ministério Público Federal, não se mostram adequadas à Constituição da República. A despeito da boa intenção envolvida, medidas como a limitação ao uso do habeas corpus; a 62


distorção da noção de trânsito em julgado trazida pela figura do recurso protelatório (que, ao lado da possibilidade de execução provisória da pena, fulmina o princípio do estado de inocência); a relativização do princípio da proibição da prova ilícita; a criação de tipos penais que, na prática, invertem o ônus da prova que deveria caber à acusação; o desrespeito ao contraditório; a violação à vedação do anonimato que se implementa com a possibilidade de fonte sigilosa; dentre outras distorções democráticas defendidas no projeto de “iniciativa popular” (porém, promovido e patrocinado por agentes estatais) trazem o desalento de carregar, em si próprias, a corrupção do próprio sistema de garantias constitucionais, com o agravante de que, sempre que se alimenta a ideologia de que o Direito Penal é instrumento idôneo para sanar questões estruturais complexas, acaba pagando o preço a destinatária habitual do sistema: a população pobre e vulnerabilizada que lota as desumanas carceragens espalhadas pelo país. 5. No mesmo sentido, não se pode concordar com os shows midiáticos, promovidos em cumprimentos de ordens de prisão e de condução coercitiva (efetivada ainda que ausentes as situações previstas no artigo 260 do Código de Processo Penal), na mesma “Operação Lava Jato”. Tais fatos dão visibilidade a fenômenos que sempre alcançaram as parcelas mais vulneráveis da população brasileira: o desrespeito aos limites legais ao exercício do poder penal, com a violação de direitos elementares, como a intimidade e a imagem. A violação de direitos e garantias fundamentais, e isso vale para qualquer cidadão (culpado ou inocente, rico ou pobre, petista ou tucano), só são comemoradas em sociedades que ainda não foram capazes de construir uma cultura democrática, de respeito à alteridade e ao projeto constitucional de vida digna para todos. 6. Os atos concretos de corrupção no trato da coisa pública devem ser enfrentados pelo aprofundamento – e não pela supressão – dos direitos democráticos estampados constitucionalmente. A implementação de uma reforma política que reduza a influência econômica nas eleições e nas ações cotidianas da Administração Pública, a exigência de maior transparência na prática de atos governamentais, o incentivo ao controle pela sociedade civil sobre todos os Poderes de Estado (inclusive o Judiciário pela instituição de ouvidorias externas aos tribunais) e a consecução de plena autonomia orçamentária desses mesmos Poderes e ainda de órgãos participantes da persecução penal são algumas, dentre tantas outras, medidas que podem ser eficazes contra o patrimonialismo, de origem colonial, que persiste no Brasil nas mais diversas esferas estatais, em pleno século 21. 63


A corrupção, por definição, consiste na “violação aos padrões normativos do sistema”. Assim sendo, a AJD espera que, por imperativo lógico e ético, não se combata a corrupção com a disruptura do próprio ordenamento jurídico, ainda mais se isso significar desrespeito a avanços civilizatórios e democráticos arduamente conquistados e que hoje figuram na Constituição da República sob a forma de direitos fundamentais, garantidos por cláusula pétrea. São Paulo, 7 de Março de 2016. A Associação Juízes para a Democracia

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Nota Pública

REPÚDIO À CONDUTA ANTIDEMOCRÁTICA DE APOLOGIA À TORTURA A Associação Juízes para a Democracia – AJD, entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem por finalidade a luta pelo respeito incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito, vem apresentar sua manifestação de repúdio ao pronunciamento do Deputado Federal Jair Messias Bolsonaro (PSC-RJ) que, conforme amplamente divulgado pela mídia, no último domingo, 17 de abril de 2016, na sessão de votação sobre a admissão do processo de impedimento em face da Presidenta Dilma Vana Rousseff, justificou seu voto “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo”. Lamentavelmente é necessário lembrar que, durante a ditadura militar, o coronel Ustra chefiou o Doi-Codi, órgão de repressão do 2º Exército, em São Paulo, sendo responsável por 51 mortos, outros tantos desaparecidos e mais de 500 casos de tortura física e mental, conforme apontado pelo projeto Brasil Nunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo. Dentre esses, foi torturada a Presidenta Dilma Rousseff, então com 22 anos. Ao homenagear o algoz da Presidenta, o senhor Deputado traz à tona toda a dor das vítimas de tortura e de suas famílias. São conhecidos e frequentes os ataques preconceituosos, misóginos e homofóbicos do senhor Deputado, inclusive já repudiados em nota anterior. Dessa vez, no entanto, ao fazer apologia ao mais famoso torturador dos anos de chumbo, foram extrapolados todos os limites da imunidade parlamentar, segundo a qual é livre a expressão do parlamentar no exercício de sua função. Essa imunidade é uma garantia constitucional fundamental à independência do Poder Legislativo. No entanto, não é, e não pode ser, absoluta, pois também a discussão política deve observar os princípios e fundamentos da Constituição da República, dentre eles a própria democracia, a dignidade da pessoa humana, a prevalência dos direitos humanos. No caso, a apologia à tortura não ofendeu apenas a pessoa da Presidenta Dilma, muito embora o tenha sido em profundidade. A tortura não significa apenas obter informação; para ser “efetiva” ela deve ser um pro65


grama de destruição da personalidade da vítima, e deve ser sistemática e generalizada de maneira a espalhar o medo na população. Assim, a deplorável homenagem proferida pelo senhor Deputado atingiu não só a todas brasileiras e brasileiros, mas também à própria humanidade, num ato absolutamente degradante e antidemocrático. Ironicamente, é fato que, somente no Brasil democrático há espaço para, em tese, um parlamentar dizer sem receios um absurdo de tal monta. O Estado Democrático de Direito e as garantias constitucionais dele advindas, consagrados pela Constituição Federal de 1988, ganharam força exatamente em razão da superação do modelo ditatorial até então vivido em nosso país. Tolerar a homenagem ao maior torturador da ditadura militar, inclusive assim reconhecido por decisão judicial (Processo nº 0347718-08.2009.8.26.0000), confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, significa, portanto, permitir o retrocesso da sociedade brasileira em relação a todos os princípios democráticos. Não é demais destacar que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do célebre HC 82.424, quando manteve a condenação do editor Siegfried Ellwanger por crime de racismo, pois este havia publicado livros elogiando o nazismo e exaltando a discriminação contra os Judeus, enfatizou que a liberdade de expressão não é absoluta, mas possui limites jurídicos e morais, pois essa expressão não pode alcançar “em sua abrangência, manifestação de conteúdo imoral, que implicam em ilicitude penal”. Nesse sentido, em nenhuma circunstância e sob nenhum pretexto, o discurso de um parlamentar – que não fala por si e nem apenas por seus eleitores, mas por toda a sociedade – pode contrastar com os fundamentos e objetivos da República, valores imprescindíveis a um Estado Democrático de Direito, tais como a dignidade da pessoa humana (artigo 2°, III, CF) e a prevalência dos direitos humanos (artigo 4°, II, CF). Ademais, a não submissão à tortura é direito fundamental previsto no artigo 5º, III, CF. Mais uma vez, é evidente que a imunidade material dos congressistas por suas opiniões e palavras (artigo 55, II, § 1°, CF) não pode ser utilizada como salvaguarda a práticas atentatórias a valores caros ao Estado Democrático de Direito, sendo que o exercício de tal garantia encontra limitação na própria Constituição Federal, ao estabelecer ser incompatível com o decoro parlamentar “o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional”, (artigo 55, § 1°, CF), bem como no artigo 231, do 66


Regimento Interno da Câmara dos Deputados, e artigos 4°, I e 5°, III, do Código de Ética e Decoro Parlamentar daquela Casa. A Associação Juízes para a Democracia manifesta sua repulsa à declaração antidemocrática de apologia à tortura e de ataque pessoal à Presidenta Dilma Rousseff, reforçando seu posicionamento de integral solidariedade e respeito às vítimas de tortura e suas famílias, que se viram aviltadas em sua dignidade pela manifestação parlamentar. São Paulo, 20 de abril de 2016. A Associação Juízes para a Democracia

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Nota Pública

A DEFESA DA LIVRE MANIFESTAÇÃO EXIGE O CONTROLE EFETIVO DA ATIVIDADE POLICIAL PELO MINISTÉRIO PÚBLICO A ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA, entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem por finalidade estatutária o respeito absoluto e incondicional aos valores próprios do Estado Democrático de Direito, vem a público externar repúdio e contrariedade em face dos atos de violência e repressão que atentam contra o livre exercício do direito de livre manifestação, ocorridos nos dias que sucedem à deposição da presidenta eleita Dilma Vana Roussef, esperando do Ministério Público o efetivo controle da atividade policial, nos seguintes termos: 1. A livre manifestação do povo encontra guarida no seio do corpo democrático, conforme o art. 5º da Constituição da República, que estabelece ser livre a manifestação do pensamento, vedado o anonimato, podendo se reunir pacificamente em locais abertos ao público, independentemente de autorização, sendo desnecessário registrar, no presente instrumento, o alto custo social pago durante os regimes de exceção para que tal direito fosse erigido à estatura constitucional. 2. Diversos atos e fatos no pós 31 de agosto de 2016 demonstram o total despreparo do braço policial do Estado para a escorreita aplicação e preservação da Constituição da República. Nesse sentido, têm-se notícias de uso indiscriminado de balas de borracha contra manifestantes em geral em diversas cidades; tem-se a notícia de estudante que perdeu a visão do olho esquerdo em São Paulo; tem-se a notícia de advogado preso e agredido, em Caxias do Sul, quando se encontrava no exercício da função de defender cidadãos contra abusos oficiais; tem-se, ainda, a notícia de manifestantes presos mantidos incomunicáveis por várias horas e de agressão gratuita contra pessoas que participavam do ato pacífico ocorrido em São Paulo no dia 4 de setembro, o que foi testemunhado na pele por repórter da BBC Brasil, violentamente atacado por policiais. 3. O uso da força tem se mostrado desproporcional, por todo o Brasil. A violência praticada envolve lançamento de gás, bombas, disparo de balas, ocasionando lesões corporais indiscriminadas de natureza grave e prisões 68


arbitrárias, tudo em desrespeito primário à cidadania e aos direitos fundamentais. 4. A repressão que impede o exercício pleno de tal direito elementar milita contra a Democracia, contra a Constituição, contra o povo, muito especialmente contra os que tombaram na construção da ordem constitucional vigente. 5. É imprescindível, por tudo isso, que o Ministério Público exerça sua função prevista no artigo 129, VII, da Constituição da República, fiscalizando a atividade policial e exigindo, dos responsáveis pelo comando da polícia e dos próprios secretários da segurança e governadores estaduais, o pleno respeito às liberdades democráticas. Espera-se que o Ministério Público exerça tal função considerando que, em uma democracia fundada na promessa de construção de sociedade livre, justa e solidária, como previsto no art. 3º, I, da Constituição da República, o direito de manifestação é garantido não apenas à parcela da população que apoia um determinado grupo político; tal direito assiste aos manifestantes defensores das mais diversas ideologias e agremiações políticas que, sob um regime democrático, deveriam alcançar o poder apenas pelo voto popular. 6. A defesa das liberdades públicas é dever constitucional atribuído a todo sistema de Justiça, inclusive ao Ministério Público na fiscalização da atividade policial. A Associação Juízes para a Democracia reitera que o sistema de Justiça afeto à Constituição é aquele que respeita o direito constitucional de livre manifestação e aceita o pluralismo de ideias. Urge reorientação no sentido de uma inflexão na escalada ascendente de desrespeitos e rupturas constitucionais vivenciadas na quadra atual. São Paulo, 5 de setembro de 2016. A Associação Juízes para a Democracia

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Nota Pública

ATENTADO INSTITUCIONAL À LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO NO ÂMBITO DO COLÉGIO PEDRO II - CAMPUS HUMAITÁ II/RJ A ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA (AJD), entidade que tem por finalidade o respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito, vem expressar preocupação com a crescente onda de cerceamento das liberdades públicas, tendo como exemplo a censura à liberdade de manifestação de alunos, professores ou funcionários do Colégio Pedro II – Campus Humaitá II com “recomendação” subscrita por agente do Ministério Público Federal de que fosse retirada faixa, cartaz, banner ou planfleto com inscrição que denotava o sentimento de ilegitimidade do presidente da República após impeachment da presidenta democraticamente eleita. Por intermédio de tal “recomendação”, o agente do Ministério Público Federal advertiu da possibilidade de propositura de ação de improbidade administrativa, de representação por crime de prevaricação e da propositura de ação civil pública indenizatória por “dano moral coletivo” contra quem exerceu o direito de manifestar sua opinião. Confundiu-se, assim, o questionamento da legitimidade do ocupante da presidência da República, fundada na liberdade de expressão (art. 5o, IX da Constituição de 1988), com atividade político-partidária. A AJD, a exemplo da carta divulgada por um grupo de Procuradores da República no dia do 28º aniversário da Constituição da República visando a provocar uma reflexão sobre a missão dos membros do Ministério Público Federal, que deve ser “permeada com a defesa dos direitos dos indivíduos, da sociedade e do próprio funcionamento da máquina pública” e “para evitar que ações motivadas em objetivos nobres e legítimos terminem servindo para perseguições de qualquer natureza”, conclama os agentes públicos do sistema de justiça e educadores a rememorarem o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), do qual resultou a reforma do ensino após a Revolução de 1930 e o Manifesto dos Educadores (1959): que a educação precisa ser examinada do ponto de vista de uma sociedade em movimento e 70


que a escola é uma instituição social, um horizonte cada vez mais largo que deve atender à variedade das necessidades dos grupos sociais. A observância do pluralismo político, elencando no art. 1º da vigente Constituição da República, é essencial à sobrevivência da democracia brasileira. São Paulo, 06 de outubro de 2016. A Associação Juízes para a Democracia

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Nota Pública

EM DEFESA DA LIVRE MANIFESTAÇÃO DE ESTUDANTES A Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem dentre suas finalidades o respeito aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito, vem a público afirmar o direito à livre manifestação de estudantes que participam de movimentos de ocupação das escolas e universidades no Brasil, diante da violência institucional que vêm sofrendo e da omissão do Estado em garantir seus direitos. 1. No dia 03 de outubro de 2016 iniciou-se, no Estado do Paraná, um movimento de ocupação das escolas e universidades públicas. A partir de tal mobilização, diversos outros estudantes brasileiros aderiram à manifestação e também passaram a ocupar escolas e universidades em todo o Brasil. 2. O movimento de ocupação das escolas tem como principal escopo rechaçar a Medida Provisória 746/2016 e a PEC 241, que no Senado adotou a numeração 55, as quais trarão modificações substanciais na educação pública e que não foram abertas ao debate amplo de toda a sociedade. 3. Tem-se visto, no início do presente século, uma série de manifestações por todo o mundo que demonstram a indignação das pessoas perante as promessas não cumpridas do sistema político: a revolução da liberdade e dignidade da Tunísia, a revolução egípcia, as insurreições árabes, os Indignados de Espanha e o Occupy Wall Street nos Estados Unidos são exemplos desse quadro. 4. Na América Latina, em 2006, ocorreu a Revolução dos Pinguins no Chile, onde estudantes ocuparam mais de 600 escolas reivindicando a gratuidade do exame de seleção para universidade e o passe escolar gratuito. Em 2015, mais de 200 escolas foram ocupadas em São Paulo contra o fechamento de unidades pelo governo paulista. 5. É a partir desse contexto que se deve voltar os olhos às atuais ocupações. Na sociedade em rede, a dinâmica das mobilizações sociais e dos meios de controle do Estado pela sociedade ganharam uma nova 72


conformação e, consequentemente, o Direito deve acompanhar tais transformações a partir de releituras dos institutos jurídicos. 6. O direito à liberdade de expressão, estampado no art. 5º, IV da Constituição da República, permite que a liberdade de manifestar o pensamento, por meio da comunicação, ocorra entre interlocutores presentes ou ausentes. Na sociedade em rede, não é mais possível entender que vigore uma forma apartada de comunicação entre presentes de um lado e entre ausentes do outro, quando surgem, a todo momento, formas não usuais de manifestação, como é o caso das ocupações, que afetam um número considerável de pessoas, ganhando repercussão e gerando discussões sobre o evento. 7. Assim, partindo dessa constatação, é preciso considerar que as ocupações, na forma que sucedem em escolas e universidades, consistem em exercício de liberdade de expressão que permite, aos coletivos, grupos e movimentos sociais, a atenção do Estado e da sociedade para as suas demandas. Representam, em outros termos, legítimo direito tutelado pela Constituição da República. 8. Tais atos não configuram, portanto, esbulho sobre bens públicos. Conforme reconhecido judicialmente por ocasião da mobilização de estudantes ocorridas em São Paulo em 2015, o instituto possessório não guarda identidade com o ato de ocupação, uma vez que os alunos não pretendem ter a posse do prédio público, mas utilizá-lo para dizer à sociedade que a escola/universidade e a educação são temas que dizem respeito essencialmente aos alunos e que eles, enquanto sujeitos de direitos – amparados pela Constituição da República, pelo Estatuto da Juventude e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – podem manifestar-se acerca das pretendidas modificações na legislação pertinente. 9. Não se pode esquecer, ainda, que os estudantes das escolas e universidades trazem a esperança de um novo tempo com a intervenção da sociedade nas questões públicas, na medida em que buscam estabelecer um diálogo duradouro com o Estado. A democracia de alta intensidade, projetada em Constituição que promete a construção de sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), impõe a permanente participação social na gestão pública, não se limitando, pois, às formalidades eleitorais. 73


10. Por tudo isso, a Associação Juízes para a Democracia (AJD), no exercício da liberdade de associação também consagrado constitucionalmente (art. 5o, XVII), vem a público afirmar que as ocupações nas escolas e universidades, como forma de protesto, representam legítima expressão do direito à livre manifestação, clamando para que to Estado promova o diálogo efetivo com estudantes. São Paulo, 31 de outubro de 2016. A Associação Juízes para a Democracia

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Ato Público

ENCONTRO DA PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF COM JURISTAS PELA LEGALIDADE E EM DEFESA DA DEMOCRACIA – PALÁCIO DO PLANALTO, BRASÍLIA, 22/03/2016. GLÁUCIA FALSARELLA FOLEY* Excelentíssima Senhora Presidenta da República, na pessoa de quem cumprimento a todos e todas presentes neste ato. Eu represento a Associação Juízes e Juízas para a Democracia que recentemente lançou uma nota pública intitulada “Não se combate a corrupção corrompendo a Constituição”. Para nós, foi exatamente a superação do regime autoritário, a consolidação da democracia e a independência das instituições que permitiram a revelação de mecanismos de corrupção próprios de um sistema político que precisa ser reinventado e urgentemente reformado. Sob o manto do combate à corrupção, no entanto, estamos assistindo a emergência de um pensamento extremamente autoritário que vai na contramão da consolidação da democracia e influencia ações não condizentes com o espírito democrático. As chamadas dez medidas contra a corrupção protagonizada pelo Ministério Público Federal com um verniz de legitimidade popular implicam, a nosso ver, retrocesso de conquistas constitucionais, dentre elas, somente para exemplificar, limitação do Habeas Corpus, flexibilização do trânsito em julgado, ampliação das hipóteses de prisão preventiva – como se já não tivéssemos o suficiente prisões cautelares – aumento de penas e inclusão de tipos penais no rol de crimes hediondos. Essas iniciativas reforçam uma ideologia perversa de que o direito penal é o instrumento adequado para sanar questões políticas que são complexas e que são estruturais. Dada a seletividade do direito penal, quem irá sofrer com essas reformas todos nós sabemos: é a população ma is vulnerável do Brasil. Eu falo, em especial, do jovem, negro, pobre da periferia que lota as nossas desumanas prisões. 75


O enfrentamento da corrupção, que todos nós desejamos, implica aprofundar e não suprimir as garantias constitucionais. Isso significa reafirmar a urgência da reforma política para a redução do poder econômico e do poder da mídia sobre as eleições e sobre a política do cotidiano, essa política da arte de conduzir a polis promovendo igualdade social e justiça social. Isso também implica aumentar o controle da sociedade civil sobre os poderes, e aqui eu incluo o Poder Judiciário, que deve ser permeável ao controle da sociedade civil, às controladorias externas, deve estar aberto às academias para a pesquisa e aberto ao diálogo com os movimentos sociais. Para a Associação Juízes para a Democracia, por um imperativo ético, não se combate a corrupção corrompendo a Constituição, sob pena de sermos responsáveis por um retrocesso de conquistas civilizatórias arduamente conquistadas ao longo da história sofrida e ao mesmo tempo vitoriosa do nosso pais. Obrigada! Gláucia Falsarella Foley, juíza de Direito do TJDF, membra da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

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Audiência Pública

CARTA DO NÚCLEO AJD-PE ENTREGUE EM AUDIÊNCIA PÚBLICA NA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA SOBRE OCUPAÇÕES NAS ESCOLAS Estudantes, Professores e demais partícipes dessa audiência pública: A República Federativa do Brasil, constituída em Estado Democrático de Direito, tem como fundamento a cidadania(artigo 1º, II, CF) aqui compreendida em suas dimensões civil, política e social, sendo a última relacionada ao direito a um nível de bem estar cultural, econômico e social. Na sociedade contemporânea não se pode deixar de associar a democracia a um processo de discussão coletiva no sentido de que todos e especialmente aqueles mais afetados pelas decisões tomadas possam intervir e expressar sua opinião sobre o que está a ser decidido (GARGARELLA, 2007[1]). Por esse motivo, é importante que todos os grupos com necessidades básicas insatisfeitas contem com a possibilidade de fazer conhecer seus pleitos ao poder público. É o exercício da cidadania política. Na Democracia Representativa brasileira, o Poder é exercido indiretamente, por meio dos representantes eleitos pelo povo ou, diretamente, nos termos da Constituição (art. 1º. parágrafo único). Já entre os direitos fundamentais consagrados pela Carta Política está o direito à livre expressão do pensamento (inciso IV do art. 5º) e, como corolário, sua manifestação. Ao seu lado estão os de reunião e associação (incisos XVI e XVII do mesmo art. 5º). Ao exercer o direito de expressão por meio do protesto sob a forma de ocupação de escolas, os estudantes estão não só a exercitar uma garantia constitucional, como também no exercício direto do Poder Político. Enfim, os estudantes estão exercendo a cidadania política, nos termos da Constituição Federal. De outro lado, convém observar que em uma democracia representativa, se transfere o controle dos recursos econômicos e o controle das armas ao poder público e, justamente por isso há uma preocupação no sentido de que ele não abuse desses extraordinários poderes a ele transferidos. Essas 77


condições são agravadas pelo fato de a sociedade brasileira passar por um momento de ruptura institucional, com o Poder Executivo sendo exercido por um Governo meramente de fato, cujo Poder lhe foi transferido a partir da decisão parlamentar do dia 31 de agosto último. E mais: com a deposição do Governo de Direito, o de fato impõe um conteúdo programático não autorizado pelo sufrágio universal. Pois bem. É nesse contexto de ruptura democrática que o Governo de fato enviou ao Congresso Nacional Proposta de Emenda Constitucional que tomou o nº 241 na Câmara dos Deputados (hoje, no Senado Federal, PEC nº 55) objetivando, como é por demais sabido, o congelamento dos gastos públicos pelo período de 20 anos. Também foi enviada ao mesmo Congresso a Medida Provisória nº 746/2016, visando à reforma da base nacional comum curricular que, entre outras medidas, priva os estudantes a saberes como Artes, Sociologia, Filosofia, Língua Espanhola e Educação Física. Não só congelando os gastos públicos com a saúde e educação, a primeira matéria – cuja constitucionalidade é discutida – limita a participação popular na escolha de propostas econômicas dos próximos quatro candidatos a Presidência da República. Já a segunda retira a criticidade e autonomia dos estudantes na compreensão do mundo, limitando o exercício de sua cidadania. Em comum, a urgência utilizada no processo legislativo priva a participação popular em sua discussão. Buscando repelir esse estado de coisas, os estudantes ocuparam centenas de escolas médias, institutos federais e Universidades em todo o Brasil, na forma acima antecipada. Em desfavor dos estudantes são apresentados alguns argumentos: 1. Os estudantes têm violado a lei. Entre as violações à lei, apontam que os estudantes praticam o esbulho possessório e o dano ao patrimônio público. Entretanto as ocupações de escolas e faculdades tem sido uma forma de protesto político e, conforme assentado em decisão[2] “Não se trata propriamente da figura do esbulho do Código Civil, pois não visa à futura aquisição da propriedade, ou à obtenção de qualquer outro proveito econômico. A situação em tela não se amolda à proteção possessória prevista nos artigos 920 e seguintes do 78


Código de Processo Civil, especialmente aos critérios dos artigos 927 e 928 para a concessão da liminar. Inegável, por outro lado, que toda ocupação causa algum transtorno ao serviço público – se assim não fosse, pouca utilidade teria como forma de pressão. Há que se ponderar, dentro de um critério de razoabilidade, a importância do serviço público descontinuado pela ocupação, de um lado, e o resguardo dos direitos constitucionais supra mencionados, de outro.” Já em relação ao dano é necessário o enquadramento do agente ao tipo descrito na norma penal, de forma que a simples ocupação – expressão do pensamento e direito à reunião e associação – não é sinônimo dos ilícitos tipificados nos artigos 163 e 165 do Código Penal. Entretanto, utilizada essa lógica de aplicar aos ocupantes normas de direito civil ou direito penal, a ele favoreceria aquelas relacionadas ao estado de necessidade ou à legítima defesa (arts. 24 e 25 do CP) que poderiam justificar a justa causa dos manifestantes e a legitimidade de suas ações. Os conflitos sociais não podem ser resolvidos pela perspectiva da legislação penal, cuja função precípua é a distribuição de penas dentro da sociedade. Não há como criminalizar os movimentos sociais, mas prestar atenção à distribuições dos direitos constitucionais em jogo. 2. Os direitos dos estudantes não são absolutos. Há, de fato, um conflito de direitos: o de uma parcela dos estudantes na crítica ao governo e aquele de outra parcela da comunidade estudantil em frequentar as aulas. A partir daí surge uma ideia comum de que não se pode defender direitos violando os direitos das demais pessoas. Dito de outra forma: os direitos dos manifestantes terminam quando começam os direitos das demais pessoas. Ora, no conflito que se apresenta qual o direito mais importante, ou melhor, qual o direito que deve preponderar? Os direitos dos manifestantes a expressar-se livremente, protestar, reunir-se – todos protegidos pela Constituição – deveriam ser limitados ante um direito como o de frequentar aulas? Este último é um direito superior ou mais importante que os dos estudantes? A solução desse conflito pode ser obtida a partir das reflexões proferidas 79


pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América no caso New York Times co. vs Sullivan. Nesse case, a Corte respaldou o privilégio dos cidadãos em criticar o Governo porque “é sua obrigação criticar, assim como a dos funcionários é a de administrar”. Citando James Madison, a Corte concluiu dizendo que “o poder de censura está no povo sobre o governo, e não no governo sobre o povo”. No que se refere a sua visão sobre os direitos, a Corte deixou claro que o direito à livre expressão merecia uma proteção especial e que, dentro dessa esfera, as expressões políticas (e em especial as críticas contra aqueles que se encontram em exercício do poder) mereciam a proteção judicial mais firme. Enfim, a Corte Americana demonstrou de forma exemplar como atuar nesses pretensos conflitos de direitos. 3. Os objetivos dos estudantes não são genuínos. Segundo alguns críticos, os objetivos da comunidade escolar parece ter pouco a ver com a ideia de reivindicar sobre as questões públicas. Os ocupantes não se identificam; os líderes utilizam a base estudantil para levar a cabo objetivos sinistros; os manifestantes representam um braço de partidos políticos. Inicialmente convém registrar que o fato de os estudantes cobrirem o rosto ou esconderem sua identidade não deveria surpreender em um contexto de criminalização do movimento, onde a polícia e o próprio poder judiciário tendem a sistematicamente deter e processar os manifestantes. Ora, se a comunidade tem razões para protestar e também como resultados de suas manifestações a possibilidade de detenção e criminalização, parece razoável a alternativa de tornar sua identificação mais dificultosa para a polícia, para os órgãos administrativos (reitoria/direção das escolas) e Ministério Público. Já o discurso de que os ocupantes são utilizados como massa de manobra de partidos políticos é tentar retirar a legitimidade do movimento. Ora, os partidos políticos não são entidades ilegais, de forma que a ideia de participação dessas organizações junto aos manifestantes, pouco diz da validade dos pleitos. A ideia de que os protestos sociais deveriam ser assépticos ou situar-se atrás de todos os interesses identificáveis parece inaceitável: o pleito dos estudantes tem base em interesses difusos, de toda a sociedade; pleitos que são sensatos e que encontram respaldo na Constituição. 80


4. Os ocupantes poderiam e deveriam ter exercido seus direitos de maneira diferente, mais razoável. Ora, quando os estudantes organizam uma ocupação o fazem precisamente porque querem perturbar a ordem e criar um problema. Se o protesto fosse inofensivo, o Governo de fato não se sentiria forçado a analisar as demandas dos ocupantes. Acrescente-se que a necessidade de se proteger as manifestações públicas tem o objetivo de salvaguardar o direito das minorias. 5. Os manifestantes estão acabando com a democracia. Esse argumento é bastante fraco e, antes de mais nada, é revelador de qual concepção de democracia há por traz dele. Ora, em uma democracia representativa não se pode transformar, por princípio, as manifestações populares em motins ou rebeliões, porquanto se deve exigir respeito às opiniões dissidentes. Em uma democracia não se pode preferir a apatia política ao ativismo político, afastando a participação popular da política. Não existe qualquer razão para defender a democracia e criminalizar os movimentos sociais. Se se defende até de forma mais rigorosa a liberdade de expressão, essa concepção deverá ser também utilizada quando se trata de protestos sociais. Ademais essa forma de expressão do pensamento não é exclusiva da democracia brasileira. Apenas a título de exemplo, em 2011 no Estado de Wisconsin, EUA, o Capitólio, sede do governo, foi ocupada por 17 dias por trabalhadores e estudantes contra projeto que visava a redução salarial, diminuição de postos de trabalho em Universidades, redução de benefícios do seguro-desemprego[3]; na Espanha, a partir de 15 de maio de 2010, com ocupação de diversas praças públicas em várias cidades pelo movimento conhecido por 15-M (indignados) constituído por trabalhadores, estudantes e movimento popular buscando a reformas político e econômicas[4]; A revolta dos Pinguins, no Chile, em 2006, que mobilizou cerca de 600.000 estudantes chilenos, lutando pela reforma educacional[5]. Isso sem falar dos diversos outros protestos, inclusive em forma de ocupação, que assolam as democracias nesse século. 81


Assim, considerando a legitimidade do movimento e a necessidade de pacificação social, a Associação Juízes para a Democracia propõe a essa Comissão: A) Em caráter geral: 1. Oficiar ao Senado Federal sugerindo a suspensão do processo legislativo da PEC nº 55, possibilitando, assim, a participação da sociedade civil em sua discussão. 2. Oficiar à Câmara dos Deputados, sugerindo a rejeição da Medida Provisória nº 746/2016 para que a matéria seja analisada em sede de Lei Ordinária e, assim, possibilitando à comunidade acadêmica e sociedade civil organizada de sua discussão. B) Em caráter específico: 1. Recomendar ao Governo do Estado para que se abstenha de desenvolver qualquer medida, inclusive oferecimento da força policial, destinada a desocupação dos estabelecimentos de ensino, sem que passe por uma comissão de conciliação formada pela sociedade civil; 2. Recomendar aos órgãos diretivos das Universidades, Institutos federais e escolas de ensino médio ocupadas, para que evitem identificar, facilitar a identificação e informar o nome, a qualquer pretexto e a qualquer órgão, exceto por determinação judicial; 3. Constituir uma comissão de acompanhamento das ocupações dirigida por essa Comissão e formada por estudantes e entidades da sociedade civil. Recife, 18 de novembro de 2016. O Núcleo de Pernambuco da Associação Juízes para a Democracia (AJD-PE).

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Artigo

A CONSTITUIÇÃO SOB (CONSTANTE) ATAQUE: A RESPOSTA PELA LUTA POR MAIS DIREITOS ANDRÉ AUGUSTO SALVADOR BEZERRA E ALBERTO ALONSO MUÑOZ* Artigo publicado na edição impressa do Le Monde Diplomatique, ano 9, n. 104, março de 2016. A promulgação da Constituição Federal em 1988 representou uma promessa de superação definitiva do passado autoritário brasileiro. Tal compromisso encontrava-se fundado, sobretudo, pela ampla mobilização social que antecedeu a aprovação do respectivo texto final, opondo-se aos documentos constitucionais anteriores, desprovidos de participação popular. Daí a denominação Constituição-Cidadã. A vigência, a partir de 1988, dos mais variados direitos de índole coletiva (direitos dos trabalhadores, tutela ao meio ambiente, sistema público de saúde universal, proteção aos consumidores, respeito à identidade cultural dos indígenas, dentre tantos outros), somados a uma série de limites impostos à atividade punitiva do Estado (tais como presunção de inocência, acesso incondicionado à justiça, devido processo legal, maioridade penal aos 18 anos etc), revelavam possibilidades emancipatórias oriundas do ativismo social. Acordos entre as elites O problema é que as condições políticas que antecederam e sobrevieram aos trabalhos da Assembleia Constituinte (1987/1988) não foram e ainda não são favoráveis à efetivação desses valores coletivos. Pelo contrário, permitem a persistência de um amplo processo de supressão de direitos, ainda que muitos deles tenham recebido o status de cláusula pétrea (imodificáveis, portanto, até mesmo por emendas constitucionais). É necessário lembrar, nesse aspecto, que toda a mobilização social quando da elaboração da Constituição contrastou com o processo de circulação das elites políticas a portas fechadas do regime ditato83


rial pós-1964 para a chamada Nova República. Os acordos, desprovidos de participação popular, entre setores políticos possibilitaram, paradoxalmente sob o manto da democracia, a chegada à chefia do Executivo de um líder do regime anterior. A Nova República não levou o país ao que Mészáros chama de mudança de época. O tempo histórico da expansão do capital a todo custo, promotor do golpe de 1964, manteve-se quando militares deram lugar a civis na Presidência da República. Decorre desse quadro o ataque aos direitos já durante os trabalhos da Assembleia Constituinte. Tal ataque ocorreu tanto pelo grupo parlamentar mais conservador (conhecido como Centrão), como por interferências políticas diretas vindas do Executivo. A despeito de não terem logrado impedir a previsão constitucional de direitos de índole coletiva e nem limites à atuação punitiva estatal, o fato é que os conservadores conseguiram impedir a previsão de uma série de outros direitos dotados de potencial aprofundador do projeto de construção de sociedade livre justa e solidária, estampado no artigo 3º, I, da Constituição: o estabelecimento de uma reforma agrária tímida, a não consecução, dentre inúmeros direitos sociais e trabalhistas, da jornada de trabalho de 40 horas semanais e o não reconhecimento expresso do caráter plurinacional do Estado brasileiro (como demandavam os povos originários) são apenas alguns exemplos de derrotas da mobilização popular. Além do mais, vários direitos, apesar de consagrados, foram neutralizados já no momento da sua elaboração, como o que estabelecia a função social da propriedade (após muito confronto, a função social da propriedade foi introduzida com atraso de setenta anos, mas a redação final reduziu drasticamente sua envergadura). Vários outros simplesmente foram postergados, deixando-se para que o legislador ordinário, futuramente, regulamentasse o que a Constituição não conseguiu disciplinar (muitos deles não regulamentados até agora); ou ainda não ganharam efetividade, pois exigem políticas públicas do Estado e, naturalmente, previsão orçamentária satisfatória. Finalmente, a abrangência esperada de determinadas normas constitucionais terminou restrita ou fulminada pela interpretação que os tribunais acabaram por lhes atribuir. 84


O ataque neoliberal Para agravar, adveio o fenômeno do neoliberalismo. É certo que a onda neoliberal já inundara a Europa desde a década de 1970, impondo a “relativização dos direitos”, a “desregulamentação econômica” e a financeirização como processo fundamental de controle da economia. Em tal período, contudo, o Brasil ainda se encontrava em processo de mobilização contra a ditadura civil-militar e pela redação de uma nova ordem constitucional. Por conta disso, o desmonte das conquistas sociais atingiu o país com atraso de cerca de uma década. Foi na segunda metade da década de 1990 que o assalto aos direitos alcançados se tornou realmente feroz. Refletindo a ideológica neoliberal, o discurso predominante apontava no sentido de que os direitos que assistiriam ao Estado assegurar não cabiam no orçamento, que a eficiência econômica exigia a relativização ou supressão dos “pródigos” direitos sociais, que a justiça social passava pela transferência de responsabilidades aos indivíduos ou que a diminuição da violência exigia o encarceramento como principal medida de controle. O apogeu da intensidade do ataque ideológico e jurídico ocorreu durante o período Collor-FHC. Emendas constitucionais da época trouxeram drásticas modificações na proteção previdenciária e trabalhista aos trabalhadores privados e públicos, como a alteração reiterada na idade da aposentadoria e no cálculo do valor dos benefícios (com a limitação generalizada a um teto) ou a redução para exíguos dois anos da prescrição dos direitos trabalhistas. Demandas que levaram décadas para serem reconhecidas se viram pouco a pouco corroídas. A maré da conquista de novos direitos virou e, sob um processo que perdura até hoje, deu lugar ao esforço de defesa dos poucos que, com muita luta, foram conquistados. É o caso do ataque à garantia à maioridade penal aos 18 anos, que contrasta com a ausência de efetividade das políticas públicas de proteção à infância e adolescência (previstas na Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA). É também o caso da re85


lativização, via jurisprudência, da interpretação do princípio da presunção da inocência no momento em que o cumprimento da pena passa a ser autorizado mesmo que não haja decisão judicial definitiva condenando o acusado. A necessária mobilização O discurso neoliberal faz crer que a Constituição de 1988 trouxe direitos excessivos e é, assim, uma utopia inviável e ineficaz. Essa mesma ideologia contamina os setores populares, que se vêm acuados numa posição de defesa dos “muitos” direitos que a Constituição teria legado. É preciso desmontar essa armadilha ideológica. A Constituição de 1988 contém conquistas sociais, inegavelmente, se comparada com a ordem jurídica herdada do período ditatorial. Se comparada, porém, às muitas demandas frustradas ou neutralizadas durante e após sua redação, verifica-se que ela foi parcimoniosa, e não pródiga, na consagração de direitos. Impõe-se abandonar a posição defensiva e voltar à luta no sentido da expansão e aquisição de novos direitos. Luta que se dá no campo político e social, mas também pelas potencialidades no campo jurisdicional da Constituição de 1988. *André Augusto Salvador Bezerra é Juiz de Direito em São Paulo. Presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia - AJD. Mestre e Doutorando pelo Diversitas/USP. Alberto Alonso Muñoz é Juiz de Direito em São Paulo. Membro do Conselho da Associação Juízes para a Democracia- AJD. Doutor em filosofia pela FFLCH/USP e em direito pela Faculdade de Direito da USP.

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Artigo

NA PÓS-DEMOCRACIA, OS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS TAMBÉM SÃO VISTOS COMO MERCADORIAS RUBENS CASARA* Artigo publicado no periódico on line Justificando, em 09/07/2016. Para muitas pessoas, vive-se um momento de crise paradigmática do Estado Democrático de Direito no qual o “novo” não nasceu e o “velho” não mais se sustenta. Pode-se, porém, pensar a “crise”, não mais como desvio, mas como a principal característica estruturante do atual modelo de Estado. O significante “crise”, então, não mais retrataria um momento de indefinição, provisório, emergencial ou extraordinário, mas uma opção política que permite manobras e ações justificadas pela falsa urgência ou pelo falso caráter extraordinário do momento. Essa visão da crise como um embuste, uma armadilha argumentativa, com potencial de manipulação da opinião pública (e, por vezes, essa manipulação é feita pelos próprios atores políticos, juízes inclusive), produz efeitos graves no campo do direito e, em particular, no processo penal, espaço tanto de tentativas de racionalização do poder penal (do poder de impor sofrimento a quem o Estado declara autor de um fato definido como crime) quanto de lutas políticas (que, em apertada síntese, ampliam ou reduzem o poder penal). Diante desse quadro, impõe-se desvelar o que se esconde por de trás dessa afirmada “crise paradigmática” do Estado Democrático de Direito, desse ordinário travestido de “crise” que leva ao “Estado de Exceção permanente” daqueles inseridos na tradição dos oprimidos que já preocupava Walter Benjamin. A hipótese deste texto é a de que não há verdadeira crise paradigmática. O Estado Democrático de Direito, que se caracterizava pela existência de limites rígidos ao exercício do poder (e o principal desses limites era constituído pelos direitos e garantias fundamentais) não mais dá conta de explicar o funcionamento atual do Estado. 87


Hoje, poder-se-ia falar em um Estado Pós-Democrático, um Estado que, do ponto de vista econômico, retoma com força as propostas do neoliberalismo enquanto que, do ponto de vista político, apresenta-se como um mero instrumento de manutenção da ordem, controle das populações indesejadas e manutenção ou ampliação das condições de acumulação do capital e geração de lucros. Por “pós-democracia”, a falta de um nome melhor que no futuro servirá para designar o atual modelo de Estado, entende-se um momento em que o poder econômico e o poder político se aproximam, e quase voltam a se identificar, sem pudor (e, nesse particular, pode-se falar em uma espécie de regressão pré-moderna). Na pós-democracia o significante “democracia” não desaparece, mas perde seu conteúdo, ou seja, não há mais um modelo de Estado no qual existe participação popular para a tomada das decisões políticas somada ao esforço dos agentes estatais para a concretização dos direitos e garantias fundamentais. Ao contrário, na “pós-democracia” o que resta da “democracia” é um significante que serve de álibi às ações necessárias à repressão das pessoas indesejadas, ao aumento dos lucros e à acumulação. Pós-democracia, para dar nome à hipótese de que o Estado Democrático de Direito foi superado por um Estado sem limites ao exercício do poder, não guarda relação com a formulação atribuída a Rancière de que pós-democracia seria a percepção da democracia como um ambiente, como um cenário concreto submetido à ética, um espaço no qual a vida democrática está limitada pela lei. Aqui recorre-se ao uso da expressão “pós-democracia” a partir da apropriação de uma afirmação de Pierre Dardot e Christian Laval: “o neoliberalismo está levando à era pós-democrática”. De fato, o “pós-democrático” é o Estado compatível com o neoliberalismo, a transformação de tudo (inclusive das mentalidades) em mercadoria, na verdade um ultraliberalismo econômico que necessita de um Estado Penal cada vez mais forte, de uma estrutura estatal voltada à consecução dos fins desejados pelos detentores do poder econômico. Fins que levam à exclusão social de grande parcela da sociedade, o aumento da violência (não só da violência física, que aumenta de forma avassaladora em tempos de ultraliberalismo econômico, como também da violência estrutural, produzida pelo 88


próprio funcionamento “normal” do Estado pós-democrático), a inviabilidade do campo, a destruição da natureza e o caos urbano, mas que necessitam do Estado para serem defendidos e legitimados. A pós-democracia une os dois otimismos imbecilizantes que serviram à domesticação das populações do campo capitalista, capitaneado pelos Estados Unidos da América, e do campo do chamado “socialismo real”, protagonizado pela antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. O otimismo da “ideologia do êxito”, em especial na sua versão que prega a meritocracia (que poderia ser resumida na ideia-chave “fique tranquilo, se você fizer por merecer, alcançara o êxito e teus sonhos) e o otimismo da “ideologia do Estado total” (que se encontra na ideia-chave “fique tranquilo que o Estado, justamente por ser um Estado Total, sabe o que é melhor para você e, mesmo que para isso seja necessários restringir os teus direitos e teus sonhos, buscará o teu bem”). Esse otimismo “qualificado”, manifestação do pior que há nas ideologias que sustentaram a guerra-fria, é o que justifica que o mesmo Estado se apresente omisso no jogo predatório econômico (ultraliberalismo) e agigante-se no controle social, em especial na repressão, sempre seletiva e politicamente direcionada (Estado Penal). O Brasil, por exemplo, em que o “liberalismo” conviveu com a “escravidão” por vários anos, hoje apresenta uma nova variação de Estado liberal-autoritário: um Estado Pós-Democrático, isso porque sem qualquer compromisso com a concretização de direitos fundamentais, com o resultado de eleições, com os limites ao exercício do poder ou com a participação popular na tomada de decisões. A pós-democracia, então, caracteriza-se pela transformação de toda prática humana em mercadoria, pela mutação simbólica através da qual todos os valores perdem importância e passam a ser tratados como mercadorias, portanto disponíveis para uso e gozo seletivo. Na pós-democracia não existem obstáculos ao exercício do poder: os direitos e garantias fundamentais também são vistos como mercadorias que alguns consumidores decidem como usar ou descartar. A própria representação política, base da concepção formal de democracia, não precisa ser respeitada, isso em razão do desa89


parecimento dos limites éticos e legais para o afastamento dos governantes e parlamentares eleitos através do voto popular. Se na vida econômica há o reforço de tendências desigualitárias e desequilíbrios, no campo das liberdades públicas, as inviolabilidades tornam-se também cada vez mais seletivas: apenas o domicílio de alguns é inviolável, como demonstram os mandados de busca e apreensão “coletivos”, os quais, em contrariedade à lei, não individualizam os imóveis ou as pessoas que acabam por se tornar objetos da ação estatal e são expedidos para serem cumpridos em favelas, ou em ocupações de trabalhadores rurais sem terra; apenas a liberdade de alguns é inviolável, como revelam prisões desnecessárias ou conduções coercitivas em desconformidades com os requisitos legais; apenas a intimidade de alguns é inviolável, como se percebe dos vazamentos seletivos de interceptações telefônicas; apenas da integridade física de alguns é inviolável, como mostram as agressões aos manifestantes que defendem posições contrárias aos dos detentores do poder econômico; apenas a liberdade de expressão de alguns é inviolável, como sabem aqueles que são perseguidos por motivação ideológica e processados pelo que dizem; etc. O Poder Judiciário na pós-democracia deixa de ser o garantidor dos direitos fundamentais (função que deveria exercer mesmo que para isso fosse necessário decidir contra maiorias de ocasião), para assumir a função política de regulador das expectativas dos consumidores. Por um lado, a pós-democracia induz à produção massificada de decisões judiciais, a partir do uso de modelos padronizados, chavões argumentativos e discursos de fundamentação prévia, tudo como forma de aumentar a produtividade, agradar parcela dos consumidores, exercer o controle social da população, facilitar a acumulação e proteger o mercado. De outro, o Poder Judiciário passa a gerir/dirigir julgamentos que passam a seguir a lógica própria aos espetáculos, que agradam aos espectadores (também consumidores) do sistema de justiça. Tanto na hipótese da produção massificada (em que não há espaço para controles finos acerca da justeza das decisões) quanto na dos processos-espetáculos (em que o importante é agradar os espectadores), os direitos fundamentais – os quais, antes, serviam como gramática positivada dos direitos humanos e estratégia de realização da dignidade da pessoa humana – tornam-se descartáveis, tais 90


como qualquer outra mercadoria. Em espetáculos para audiências autoritárias (e a sociedade brasileira está inserida em uma tradição autoritária), os direitos fundamentais passam a ser demonizados, em grande parte, com o auxílio dos meios de comunicação de massa que constroem a imagem da “boa justiça” associada à repressão e uso da força em detrimento do conhecimento e das práticas restaurativas, enquanto que os discursos e práticas autoritárias tornam-se mercadorias atrativas. Com o desaparecimento do valor “justiça”, a palavra retorna para nomear algo que não passa de um produto, de uma mercadoria sem forma ou conteúdo estável, sem conexão com projeto constitucional de vida digna para todos. Uma mercadoria oferecida por mercadores especializados, que moldam a “justiça” ao gosto da opinião pública (a opinião do auditório em que se encontram os consumidores, com suas necessidades reais e artificiais), mesmo que para isso seja necessário suprimir direitos ou reforçar preconceitos e perversões. Rubens Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ, membro do Conselho de Administração da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

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Artigo

O IMPEACHMENT DA PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF CONFIGURA GOLPE DE ESTADO? ANDRÉ AUGUSTO SALVADOR BEZERRA* Artigo publicado na edição on line do Le Monde Diplomatique, em 29/08/2016. A crise política pela qual o país atravessa traz a necessidade de se procurar responder à seguinte questão: o impeachment da presidenta Dilma Rousseff configura golpe de Estado? A busca pela resposta jurídica a tal questionamento é iniciada, no presente texto, não com citações doutrinárias ou precedentes jurisprudenciais. Inicia-se com o realismo fantástico de Gabriel Garcia Marques, no seguinte trecho de Cem anos de solidão: “Cansados daquele delírio hermenêutico, os trabalhadores repudiaram as autoridades de Macondo e subiram com suas queixas aos tribunais supremos. Foi ali onde os ilusionistas do direito demostraram que as reclamações careciam de toda validade [...]”. Como se vê, ao narrar a forma pela qual advogados de multinacional na imaginária Macondo livram a empresa da acusação de uso de trabalho escravo, Gabo sintetizou com duas expressões a histórica legitimação da violação dos direitos das classes subalternas por parte dos grupos dominantes da América Latina: delírio hermenêutico e ilusionistas do direito. O que se quer lembrar, com essa citação, é que as demandas sociais reconhecidas pelo Estado sob a forma de direitos são, historicamente, objetos de uma leitura cínica, por parte das elites latino-americanas. Em sendo assim, logra-se inverter as finalidades dos aludidos direitos em favor de projetos políticos ou econômicos dominantes. Eis uma lembrança imprescindível em um país, como o Brasil, que sofreu uma ditadura civil-militar por mais de vinte anos a partir de um golpe de Estado caracterizado por um verniz jurídico: foi assim que, para legitimar a derrubada de João Goulart, o senador Auro de Moura 92


Andrade declarou vaga a presidência da república no dia 2 de abril de 1964, embora Jango ainda estivesse em território nacional. No mesmo sentido, dias depois, quando o Marechal Castello Branco já ocupava a presidência da República, o então presidente do STF Alvaro Moutinho Ribeiro da Costa declarou que as Forças Armadas haviam restabelecido a democracia. Tais observações, por si sós, derrubam a tese corrente no sentido de que o processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, ao tramitar em uma casa legislativa (Senado Federal) após autorização de outra casa legislativa (Câmara dos Deputados), estando sob a presidência de membro do Judiciário (o presidente do STF), marcaria a legalidade de todos os atos praticados, pelo Legislativo, contra o voto popular. A História mostra que tais circunstâncias são insuficientes para caracterizar a legitimidade democrática de tudo que se tem passado. Uma leitura cínica dos direitos Dizia Tom Jobim que o Brasil não é para principiantes. Há que se complementar: o Brasil não é para ingênuos ou para inocentes, porque a ingenuidade e a inocência, que caracterizam o principiante, ao final, permitem a leitura cínica dos direitos. Por isso, algumas observações a mais devem ser realizadas. Necessário, então, prosseguir, citando, de pronto, a mais cínica tese “jurídica” que defende a legalidade do impeachment: “a medida está na Constituição”, afirmam seus defensores. De fato, está na Constituição, assim como estava o decreto de vacância da presidência da República realizado pelo senador Auro de Moura Andrade em 1964. Somente o principiante não sabe distinguir o que está previsto em tese, como medida excepcional, do que deve ser aplicado no caso concreto como produto da leitura do texto normativo. Essa argumentação poderia até deixar de ser inocente, caso o impeachment fosse um instituto meramente político. Mas não é. E no direito brasileiro, nunca foi assim considerado. Pedro Lessa, jurista do início do século passado e ministro do Supremo Tribunal Federal, já defen93


dia, em seus votos, o caráter misto do instituto ( jurídico e político), a exigir, portanto, a observância de regras previstas do direito em vigor. No âmbito dessas regras, está a exigência do crime de responsabilidade. Exige-se a prática de um crime – isto é, fato definido pelo direito como crime –, o que, desde o Iluminismo, impõe que o Estado deixe claro à toda sociedade que uma determinada conduta será tratada como uma conduta criminosa. Ora, desde quando se sabe que manobra orçamentária praticada por chefe de Executivo configura crime? Não se sabe, até porque se trata de prática corriqueira entre chefes de Executivo. Nunca foi crime. Passou a ser crime para uma única pessoa, valendo unicamente para ela. Tal como ocorria na inquisição pré-iluminista. Com essas observações, não se está a esquecer a expressão “responsabilidade” que qualifica o crime apto ao impeachment. Responsabilidade está a indicar que o julgamento será por senadores e não por juízes, que, portanto, não estão adstritos às mesmas regras de julgamento de um membro do Judiciário. Isso explica porque o presidente Collor foi condenado no Senado por práticas bem conhecidas como criminosas, mas absolvido pelo Judiciário. Desvio de finalidade Há, ainda, outra circunstância a ser esclarecida. A interpretação do direito, para não ser uma interpretação principiante, a permitir delírios hermenêuticos, não pode desconsiderar todos os fatos que antecederam um caso específico inserido à leitura da norma jurídica. É sob essa circunstância que o instituto do desvio de finalidade tem de ser aplicado. Trata-se do uso de um ato para satisfazer finalidade alheia a este mesmo ato (Celso Antônio Bandeira de Mello). Ora, recorda-se que a derrubada da presidente já era cogitada antes mesmo das eleições. O senador José Aníbal chegou a citar, em seu twitter, a famosa frase de Carlos Lacerda no sentido de que Getúlio Vargas não governaria caso vencesse as eleições; teve-se, ainda, o pedido de auditoria das urnas eletrônicas; recebimento de denúncia do impeachment como vingança à ausência 94


de apoio do partido da presidenta da República em processo que tramitava no Conselho de Ética contra o então presidente da Câmara dos Deputados; pressão pela renúncia fomentada por divulgação de gravações clandestinas; sucessivas proposituras de ações populares para se impedir a posse de ministros, dentre outras circunstâncias. Fica claro que a culpada já existia antes mesmo das eleições. O que faltava era o pretexto jurídico. Golpe de Estado O direito pouco trabalha com a noção de golpe de Estado. Está na hora de um tratamento sério a ser feito sobre o tema. Cita-se, nesse sentido, Noberto Bobbio, autor que trabalha no diálogo entre a ciência política e o direito. Em seu Dicionário de Política, Bobbio caracteriza o golpe de Estado a partir dos seguintes elementos, não necessariamente cumulativos: 1) ato efetuado por órgãos do Estado (em sua época, na maioria das vezes, pelas forças armadas, mas reconhece que outros componentes do aparelho estatal podem realizar a ruptura); 2) mudança da liderança política; 3) possibilidade de ser acompanhado por mobilização social ou política; 4) reforço da máquina burocrática e policial do Estado; 5) eliminação ou dissolução dos partidos políticos. Tem-se, no Brasil, uma derrubada de uma presidenta da República eleita, levada a cabo por agentes do próprio Estado, especialmente o Parlamento. Tal derrubada, por óbvio, objetiva a mudança da principal liderança política do país, que, em um presidencialismo, dá-se na pessoa do presidente da república. Está claro que a mudança de liderança objetiva a aplicação de reformas econômicas que jamais um governo dependente de eleições democráticas teria a coragem de realizar. A derrubada da presidenta democraticamente eleita foi, ainda, antecedida de intensa mobilização dos setores mais conservadores da sociedade, que, durante os anos de 2015 e 2016, tomaram conta das principais avenidas do país. 95


Tem-se, ainda, um reforço da máquina burocrática e policial do Estado. Amolda-se aqui o discurso do endurecimento penal, seja por projetos que contam com o apoio dos militantes pró-impeachment (a redução da maioridade penal é um exemplo), seja nos discursos dos agentes governamentais (lembra-se da recente fala do ministro da Justiça de que o Brasil precisa mais de armas do que de pesquisa). Por fim, não há, é verdade, eliminação ou supressão de partidos políticos, ao menos por ora, o que não elide a tese do golpe, já que, como se viu, os requisitos acima elencados não são cumulativos. De toda forma, já tramita no Tribunal Superior Eleitoral representação contra o partido da presidenta Dilma Rousseff, que pode resultar na cassação do respectivo registro. Parece que o delírio hermenêutico foi longe demais, alcançando agora o requisito mínimo de uma democracia representativa, o voto popular. Não há dúvida de que, no futuro, os manuais de direito chamarão toda essa manobra de troca de presidentes da república de golpe de Estado. André Augusto Salvador Bezerra é Mestre e doutorando pelo Programa Pós-Graduação em Humanidades, direitos e outras legitimidades da Universidade de São Paulo (Diversitas/USP). Presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

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Artigo

AS FORMAS JURÍDICAS NA LEGITIMAÇÃO DO GOLPE SANDRO CAVALCANTI ROLLO* Artigo publicado na edição 72 do Jornal Juízes para a Democracia. O processo de impeachment, em um regime presidencialista, para ser considerado legítimo, não pode prescindir de seu caráter jurídico, pois, do contrário, estar-se-ia deturpando o sistema de governo adotado pela Constituição da República de 1988. Em uma democracia presidencialista, o impedimento do presidente, por contrariar o resultado de uma eleição, não poderia ser banalizado e deveria ser tratado como hipótese excepcionalíssima. As formas jurídicas consistem no estratagema utilizado pelas organizações sociais humanas relativamente recentes, voltadas a inculcar no indivíduo a aceitação pacífica da imposição de uma conduta por vezes contrária a sua própria vontade. Na ausência de um fato claro e estreme de dúvidas para fundamentar o afastamento da presidente da República, algo como, mutatis mutandis, mentir a respeito da existência de contas na Suíça, recorreu-se, para tanto, aos expedientes contábeis de abertura de créditos suplementares por decretos e as chamadas “pedaladas fiscais”. A demonstrar a fragilidade da acusação no impeachment, formas jurídicas foram largamente utilizadas como instrumento de (tentativa) de legitimação do afastamento da presidente, tais como, entre outros, “juiz natural”, “formação da convicção”, “direito de defesa”, além da utilização (seletiva) do Código de Processo Penal e da presença da alta cúpula do Poder Judiciário no julgamento. Olvidou-se, entretanto, que um julgamento jurídico requer juiz imparcial (art. 254 e 255 do CPP), sem interesse na causa (art. 145, IV, do CPC, também aplicado aos processos penais), que não a pré-julgue (RMS 19477/SP), formando sua convicção através das 97


provas colhidas aos autos (art. 155 do Código de Processo Penal), correlacionando a sentença à acusação (art. 383 e 384 do CPP) e etc. Todo julgamento, inclusive o jurídico, possui também viés político, no sentido de que as escolhas perpetradas pelo indivíduo não partem de posições prévias de neutralidade. O indivíduo é forjado, entre outros, por seus valores morais, concepções acerca da sociedade e meio no qual vive. Todo esse conjunto de idéias e influências atuará decisivamente na formação da opinião do indivíduo a respeito das mais variadas questões. É ilusório e ingênuo acreditar que o prolator do julgamento é um ser neutro, destituído de conceitos muitas vezes pós e outros pré-estabelecidos. Por isso, em diversos julgamentos é possível verificar argumentos calcados nas impressões pessoais do julgador acerca da realidade. No entanto, ainda que a neutralidade seja um mito, o juiz tem a obrigação legal da imparcialidade, ou seja, não pode beneficiar ou prejudicar, de forma premeditada, qualquer uma das partes que compõe a demanda. A vasta utilização da expressão “juiz natural”, malgrado a intenção, não encobre a evidente parcialidade dos parlamentares, possuidores de outra característica vedada aos juízes: interesse na causa. Um juiz, a título exemplificativo, não pode vislumbrar no horizonte do resultado do seu julgamento a possibilidade de recebimento ou da indicação de cargos públicos, caso venha a pender para um lado. O “direito de defesa” em um processo jurídico - ao menos é o que se espera - é exercido com efetiva possibilidade de influenciar na formação da convicção do juiz, não podendo ser tratado como mera formalidade, como se notou no processo de impedimento. Neste caso, observou-se o adiantamento da decisão mesmo durante a tramitação do processo, demonstrando que qualquer argumento defensivo seria fatalmente desconsiderado. A propósito, o direito de defesa se revela tão essencialmente importante, que o senador Cristovam Buarque, ao ter afirmativamente respondida sua pergunta a uma testemunha sobre o respeito ao direito de defesa de Dilma Rousseff, afirmou, curiosamente, que, naquele momento, tinha decidido votar a favor do impedimento. Foi utilizada, também, a forma jurídica da correlação entre os fatos alegados na acusação e aqueles que seriam considerados na decisão de afastamento, nos termos do art. 383 e 384 do Código de Processo Penal, cuja inobservância, em processo jurídico, gera inexoravelmente a anula98


ção do feito. Na realidade, entretanto, houve até mesmo senadores (Acir Gurgacz e Telmário Mota) asseverando expressamente a inexistência de crime de responsabilidade, não obstante tenham votado a favor do impedimento. Não foram poucos os senadores que se valeram de argumentos não contidos na acusação – o “conjunto da obra” é um exemplo – para fundamentar seu voto. Repetiu-se, à exaustão, que a presença física, conforme determina a Constituição da República, do presidente do Supremo Tribunal Federal na condução do processo de julgamento, seria mais um elemento legitimador, trazendo a ideia de impossibilidade de cometimento de injustiça contra a acusada. Foi desconsiderado, entretanto, que o Supremo Tribunal Federal, ou pelo menos boa parte de seus ministros, deixou claro que a atuação da Corte Maior foi somente quanto às formalidades do julgamento, sugerindo-se que não haveria ou haverá análise em relação ao seu mérito. Diante da inexistência de incontroversos fatos a sustentar uma medida tão traumática na jovem democracia brasileira, a utilização retórica de formas jurídicas atuou como instrumento de tentativa de legitimação do processo de impedimento. Como era de se logicamente esperar, na continuação do processo ilegítimo, as formas, sob a roupagem política do, entre outros, equilibro fiscal, corte de gastos, credibilidade, continuam sendo utilizadas, agora para implementar um programa de governo arrimado na supressão de direitos, atingindo, por opção, as classes sociais mais desfavorecidas da população brasileira. Não se escolheu discutir imunidades e isenções tributárias que privilegiem camadas sociais já privilegiadas, redução das taxas de juros (responsáveis pelo comprometimento de praticamente metade do orçamento federal), tributação de lucros e dividendos, revisão da tabela de imposto de renda e instituição do imposto sobre grandes fortunas e etc. Resta saber até quando a população prejudicada aceitará. *Sandro Cavalcanti Rollo é juiz de direito do TJSP, mestre em Direito pela PUC/SP, membro do Conselho de Administração da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

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Entrevista

UN JUEZ BRASILEÑO: “SÍ, ESTAMOS ANTE UN GOLPE DE ESTADO” Entrevista com o presidente da AJD André Augusto Salvador Bezerra, concedida à jornalista Agnese Marra, publicada na edição on line do periódico espanhol Público, em 27/08/2016. POR AGNESE MARRA SAO PAULO.- El presidente de la Asociación de Jueces para la Democracia de Brasil, André Augusto Bezerra, explica a Público cómo la presidenta Dilma Rousseff se enfrenta a un juicio político “no por un crimen de responsabilidad” y sí por la pérdida de apoyo parlamentario, un motivo insuficiente para derribar a un mandatario en un sistema presidencialista. ¿Se puede decir que el ‘impeachment’ al que se enfrenta Dilma Rousseff es un golpe de Estado? Si entendemos que un golpe de Estado supone una toma del poder ilegítima, fomentada por agentes del Estado y en torno a un proyecto político-económico, sí que podemos decir que estamos ante un golpe. No hay ningún crimen de responsabilidad que se le pueda atribuir a la presidenta Dilma, lo que hay es un pretexto jurídico para derribarla, que ha sido planeado por grupos de la oposición desde que ganó las elecciones de 2014. Por lo tanto la toma de poder capitaneada por el vicepresidente de la República y la oposición, con apoyo del Parlamento es ilegítima y organizada por agentes del Estado. Con Dilma fuera del Gobierno se pretenden aplicar una serie de reformas neoliberales, anti sociales, que difícilmente habrían salido adelante con un presidente elegido por el voto popular. Por lo tanto alrededor del golpe hay un proyecto político y económico. Algunos juristas se niegan a hablar de golpe porque dicen que con crimen de responsabilidad el ‘impeachment’ sería un instrumento jurídico contemplado en la Constitución. El impeachment está previsto en la Constitución, como también lo están otras medidas excepcionales como el estado de sitio. El que esté contem100


plado no quiere decir que sea apto para hacer efectiva la aplicación de la medida. La Constitución exige que haya un crimen de responsabilidad para hacer el impeachment y no hay nada definido en la ley como crimen que se le pueda atribuir a la presidenta. Las “pedaladas fiscales” (uso de fondos de bancos públicos para cubrir programas de responsabilidad del Gobierno) no son un crimen, incluso son una práctica frecuente en los gobiernos de diversos estados del país, y ninguno de ellos ha sufrido ni una sola sanción por ello. ¿Salir de la presidencia del Gobierno por las ‘pedaladas fiscales’ sería un castigo desproporcional? Sin ninguna duda. Se están confundiendo actos reprobables o actos ilegales con actos criminales. Pero el pretexto de la “pedalada fiscal” demuestra mucho más. Lo que dice es que hoy en día la cuestión presupuestaria aparece como la principal preocupación de los Estados. Los derechos humanos y la participación popular en la gestión pública se encuentran en un segundo plano. Éste no es un problema exclusivamente brasileño, sino de la mayoría de las democracias representativas y que está generando una gran desconfianza en el sistema, como lo vemos hoy en países de todo el mundo. El abogado de Rousseff, José Eduardo Cardozo, dijo que este ‘impeachment’ sería un acto de “venganza”. ¿Qué opinión le merece esta afirmación? No sé si es un acto de venganza, no sé si la política brasileña trabaja con este concepto. Lo único que está muy claro es que se trata de una toma del poder desprovista de amparo jurídico. ¿Cuánto pesa lo político en relación a la formalidad jurídica del proceso? En el derecho brasileño el impeachment es un juicio mixto: político y jurídico. Debe seguir los requisitos jurídicos que piden que haya una existencia concreta de crimen de responsabilidad y el procedimiento debe seguir los respectivos procesos legales. A su vez el juicio se produce en el Senado, que sería la parte política. De este modo el peso político debería equilibrarse con el peso jurídico. Pero en el caso de la presidenta Dilma Rousseff esto no ocurre. Lo que vemos es que 101


prevalece de manera desproporcional el aspecto político. Al final de cuentas están haciendo de la pérdida de apoyo parlamentario, algo que es un hecho habitual en los sistemas presidencialistas y que debería resolverse a través del diálogo entre poderes, el principal motivo de pérdida del mandato de una presidenta elegida democráticamente por el pueblo. ¿Se están cumpliendo adecuadamente los ritos del proceso? No. No hay un crimen imputado a la presidenta de la República, por lo tanto no se están cumpliendo adecuadamente. Las conversaciones telefónicas que salieron a la luz en mayo entre el expresidente de Transpetro, Sergio Machado, y el exministro de Temer, Romero Jucá, decían que el Tribunal Supremo “ya estaba al tanto de todo” y que estaría “de acuerdo con el ‘impeachment’”. ¿El Tribunal Supremo en Brasil es independiente? En teoría el Tribunal Supremo Federal es independiente. Hasta ahora la nominación de sus respectivos miembros la realiza el Ejecutivo y es aprobada por el Senado. Los criterios de elección de sus jueces no suele ser claro; en realidad no hay mucha transparencia en ese proceso. Creo que la sociedad civil debería tener una participación más activa en la selección de sus miembros. En estas mismas conversaciones se hablaba como si se tratara de un complot para acabar con Dilma y evitar las investigaciones de Lava Jato. Jucá decía que había que “sacar a Dilma para evitar la sangría de las investigaciones”. ¿Estas declaraciones no serían un argumento para frenar el proceso contra la presidenta que aparece como algo orquestado? Sí, deberían ser un freno. Hay indicios de que hay un desvío de finalidad en el proceso. En otras palabras, se utilizaría esta medida contemplada en la Constituución, pero no con los fines previstos en la Constitución. Cuáles serían esos fines, todavía no está claro, la Historia lo esclarecerá. Por ahora lo único seguro es que todo lo que está sucediendo viene de la mera falta de apoyo parlamentario, lo que en un régimen presidencialista no permite la salida de un jefe del ejecutivo. ¿Qué legitimidad tienen los senadores que van a juzgar a la presiden102


ta cuando un 40% de ellos está acusado de escándalos de corrupción? El hecho de que senadores acusados de corrupción sean los que juzguen a una presidenta que no está formalmente acusada de corrupción, mancha todavía más la legitimidad del proceso. Hay que recordar que la denuncia del impeachment la hizo el presidente de la Cámara de los Diputados, Eduardo Cunha, quien está apartado de sus funciones por serias denuncias de corrupción que pesan contra su persona. ¿Qué tipo de precedentes puede sentar este ‘impeachment’ para el país? ¿A partir de ahora será más fácil sacar a un presidente del poder? El precedente de que la mera pérdida de apoyo parlamentario pueda derribar presidentes democráticamente elegidos. En Brasil ya no hay ninguna seguridad jurídica para salvaguardar el voto popular, éste será siempre rehén de la conveniencia parlamentaria.

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LIBERDADES PĂšBLICAS A AJD contra o populismo penal e o crescimento do Estado policial

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Nota Técnica

PELA NÃO PRIVATIZAÇÃO DO SISTEMA CARCERÁRIO A ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA - AJD, entidade não governamental, sem fins lucrativos ou corporativistas, que congrega juízes trabalhistas, federais e estaduais de todo o território nacional e de todas as instâncias, e que tem por objetivo primordial a luta pelo respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito, vem apresentar NOTA TÉCNICA a respeito do Projeto de Lei n° 513/2011, que regulamenta a celebração de parcerias público-privadas (PPPs) para construção e administração de estabelecimentos penais. 1. O Projeto de Lei de n° 513/2011, em linhas gerais, estabelece ao Estado a possibilidade de celebração de parcerias com o setor privado na área da execução penal, de tal forma a possibilitar que, às empresas selecionadas por meio de licitação, sejam delegadas as tarefas de construção e administração de estabelecimentos penais, que poderão abranger presos “condenados e provisórios” (artigo 2°). Em contrapartida, os atores privados serão remunerados mensalmente pelo Estado, com base na “disponibilidade de vagas do sistema penal, no número de presos e na prestação de serviços requeridas pelo contrato” (artigo 9°), sem prejuízo de disporem de “plena liberdade para explorar o trabalho dos presos” (artigo 10°), “diretamente pelo concessionário” ou de forma “subcontratada” (artigo 11), sem que isso implique estabelecimento de vínculo empregatício (artigo 10, § 1°) ou acesso, por parte dos detentos, a direitos sociais básicos, como o salário mínimo (artigo 7°, inciso IV, da Constituição da República). 2. De início, na justificação do Projeto de Lei de nº 513/2011, encontra-se o famigerado argumento da alegada incompetência estatal para administrar, no caso, o Sistema Penitenciário, olvidando-se tratar-se de opção política a não alteração da atual situação caótica dos presídios brasileiros, quando se observa, por exemplo, a destinação de grande parte do orçamento público para o pagamento de juros da dívida pública. Observa-se, portanto, a vetusta tática de prévio sucateamento do serviço público para sua posterior destinação ao setor privado. 105


3. Semelhante proposição esbarra, logo de saída, na impossibilidade de se delegar ao setor privado o monopólio da violência, consistente na imposição e acompanhamento de sanções de caráter aflitivo, por se tratar de potestade que advém diretamente da soberania do Estado. O artigo 144, da Constituição da República, estabelece expressamente ser “dever do Estado” a gestão da segurança pública, exercida “para preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. A avocação, pela Administração, do poder de punir (que engloba tanto a estipulação como a execução da pena), consubstancia conquista civilizatória inerente a uma concepção moderna de Estado, e não pode, sob os pontos de vista ético e jurídico, ser alienado a terceiros cujas finalidades nenhum compromisso guardem com os objetivos publicísticos declarados da pena (ressocialização, redução dos índices de criminalidade), senão com a exploração da política de encarceramento como forma de obtenção de lucro. A inserção de um novo elemento, qual seja, a geração de lucros, no regime penitenciário, portanto, desnatura por completo seus próprios desígnios. 4. A submissão da política prisional à lógica privatista de mercado gera também efeitos deletérios no campo da Criminologia e do Direito Penal. Segundo dados do Infopen, o Brasil possuía, em junho de 2014, a quarta maior população prisional do mundo, com mais de 600.000 detentos, com um crescimento de 161% desde o ano de 2.000. O relatório indica, ainda, que cerca de 8 a cada 10 presos possui, no máximo, o ensino fundamental completo, a revelar que a política de super-encarceramento atinge, primordialmente, parcela já vulnerabilizada da população. Não há qualquer indicativo de que a política deprisonização massiva tenha influído positivamente na redução dos índices de criminalidade. Por estas razões, a desaceleração do expansionismo penale da política desobre-encarceramento, com o implemento de meios e técnicas alternativas de solução de conflitos, deveria ser um dos principais compromissos éticos de um Estado Democrático de Direito fundado no princípio da dignidade humana (artigo 1°, III, da Constituição da República). Ao se condicionar, entretanto, o retorno financeiro das empresas conveniadas ao número de vagas e presos em cada estabelecimento, engendra-se 106


lógica inversa, serviente ao expansionismo penal; tanto mais elevados serão os lucros da parceira privada quanto maior o número de reclusos, cumprindo pena pelo maior período de tempo possível e com o máximo de redução de custos em investimentos na infraestrutura da unidade prisional. O exercício do poder punitivo que, como potestade, deveria sempre ser limitado ao máximo pela efetivação de direitos fundamentais, passa a se nortear pelo critério da obtenção de lucro, mercantilizando-se o direito fundamental à liberdade. 5. Neste ponto, revela-se falacioso o argumento de que a privatização não implicará ingerência direta da iniciativa privada em funções privativas do Estado, tais como a definição do tempo de pena e a obtenção de benefícios durante a execução penal. O artigo 5°, do projeto de lei em exame, estabelece que somente os cargos de diretor e vice-diretor do estabelecimento penal serão ocupados por servidores públicos de carreira, sendo que o restante do quadro de pessoal será formado e contratado pelo concessionário. Na prática, portanto, a fiscalização sobre a conduta carcerária dos detentos, com a apuração de faltas disciplinares, que repercutem diretamente no tempo de pena a ser cumprido e obtenção de benefícios os mais variados (LEP, artigos 37, p.u; 52; 118, I; 125; 127; 180, § 1°, d), será desempenhada por prepostos da própria administradora. Não fosse o bastante, o artigo 6°, inciso I, do PL, estabelece que a assistência jurídica ao preso – por meio da qual ao detento, dentre outros direitos, seria dado defender-se contra a eventual imposição de procedimentos administrativos arbitrários – será também prestada pela concessionária responsável pela administração do estabelecimento. O dispositivo, afora o manifesto obstáculo ético, decorrente da manifesta situação de conflito de interesses, viola frontalmente o artigo 134, da Constituição da República, que garante que a assistência jurídica aos necessitados seja realizada pelas Defensorias Públicas, órgão público dotado de autonomia funcional e administrativa. Também seguindo-se essa lógica de interferência do capital privado no cumprimento da pena, o artigo 12, do PL, estabelece ao concessionário, “considerando o desempenho laboral do preso”, a possibilidade de sugerir 107


ao Juízo da execução a possibilidade de plano mais vantajoso na remição de pena. Por fim, no campo legislativo, a privatização de função ligada diretamente ao exercício da soberania estatal atrai para a trincheira dos empresários morais do expansionismo penal também o interesse das empresas envolvidas na obtenção de dividendos com a exploração do trabalho e do infortúnio alheios, o que implica considerável fortalecimento econômico do lobbyem favor da criação de leis estabelecendo penas mais longas e menos benefícios. Cria-se, pois, situação em que a lógica do capital (inclusive o estrangeiro – artigo 15, do PL) – que evidentemente prepondera, em termos de representatividade junto aos núcleos de poder, sobre os direitos dos destinatários históricos do recrudescimento da legislação penal - passa a influir diretamente na política pública de gestão da segurança. 6. Acerca da mão-de-obra interna, os artigos 9°, 10° e 11, do PLS, conferem, à concessionária “plena liberdade para explorar o trabalho dos presos”, “diretamente” ou de forma “subcontratada” (artigo 11), sem que isso implique estabelecimento de vínculo empregatício (artigo 10, § 1° - o preso não se submete à CLT) ou acesso, por parte dos detentos, a direitos sociais básicos, como o salário mínimo (ao preso, é assegurada remuneração não inferior a ¾ do salário mínimo). A exploração, por atores do setor privado, de mão-de-obra vulnerável, barata, cativa e sem qualquer poder de barganha, captada por uma política de super-encarceramento da população pobre, com vistas à obtenção de lucro, inverte a lógica publicística da execução da pena, que, visando a recuperação e a formação profissional do indivíduo, enxerga-o como um fim em si mesmo, e passa a tratá-lo como mero instrumento voltado ao enriquecimento de terceiros absolutamente estranhos a este múnus público. O preso, em inaceitável retrocesso, passa da condição de sujeito de direito à de objeto de direito. Não por outra razão, as Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros, da Organização das Nações Unidas (ONU), estabelece expressamente, no item 72.2, que “o interesse dos presos e de sua formação profissional não deverão ficar subordinados ao desejo de se auferir benefícios pecuniários de uma indústria penitenciária”, proposição inconciliável com a própria 108


natureza, ainda que não declarada, da privatização preconizada pelo projeto de lei em análise. 7. A previsão segundo a qual o preso terá direito apenas a ¾ do salário mínimo nacional, embora se consubstancie em mera réplica de dispositivo já constante da Lei de Execuções Penais (artigo 29, caput), editada, vale dizer, antes da entrada em vigor da Constituição da República de 1.988, contrasta os princípios da isonomia (artigo 5°, caput, CR) e da dignidade da pessoa humana (artigos 1°, II e 7°, IV, da CR), revelando-se infensa ao ordenamento constitucional mesmo no contexto de execução de pena diretamente pelo Estado. A esse propósito, a Procuradoria-Geral da República ajuizou, perante o Supremo Tribunal Da República, a ADPF 336/DF,ainda em tramitação, de cujo parecer se colhe que a “condição de preso de um cidadão não pode ser utilizada como justificativa para afastar a exigência de observância do salário mínimo constitucionalmente preconizado”, uma vez que o “fator de díscrimen utilizado pela LEP não se coaduna com o princípio da dignidade humana nem com o da isonomia, porquanto a prestação de trabalho é a mesma, estando ou não o trabalhador com sua liberdade de ir e vir restringida”. Também as Regras Mínimas para Tratamento de Prisioneiros, da ONU, preveem claramente, em seu item 73.2, acerca do trabalho realizado por presos que não sejam fiscalizados pela administração, que, a “menos que o trabalho seja feito para outros setores do governo, as pessoas por ele beneficiadas pagarão à administração o salário normalmente exigido para tal trabalho, levando-se em conta o rendimento do preso”. Também neste contexto, o artigo 17, do PL, permite à parceria público-privada a não observância de outros direitos do preso, tais como aqueles previstos nos arts. 32 e 33 da Lei de Execuções Penais, que garantem ao detento, por exemplo, a consideração de suas condições pessoais e de suas necessidades futuras na atribuição do trabalho, bem como a jornada máxima de 8 horas diárias (garantida pelo art. 7, XIII, da Constituição da República), com descanso nos domingos e feriados. Neste contexto, é repudiável que o setor privado, amparado por norma manifestamente inconstitucional, exatamente por reduzir os presos em sua dignidade e direitos sociais perante os demais trabalhadores, valha-se 109


desta situação de vulnerabilidade acentuada para angariar mão-de-obra barata e cativa, em ordem a incrementar a lucratividade na exploração de suas atividades econômicas. 7. A Associação Juízes para a Democracia, por considerar o Projeto de Lei n° 513/2011, em razão de todos os fundamentos acima expostos, um grave, perigoso e inconstitucional retrocesso aos direitos humanos das pessoas em situação de cárcere, e entendendo que as péssimas condições do sistema prisional (mormente se decorrentes de sucateamento prévio, resultante de opção política deliberada) não podem servir de pretexto para que, com lastro em objetivos estranhos aos fins publicísticos da execução penal, legitimem-se, a um só tempo, a cruel política de expansão penal que atinge primordialmente a população pobre, e a situação de exploração de mão-de-obra cativa, barata e vulnerável com vistas à obtenção de lucro que se pretende implementar, vem a público repudiar veementemente semelhante proposta legislativa. São Paulo, 15 de fevereiro de 2016. A Associação Juízes para a Democracia

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Nota Pública

EM DEFESA DAS LIBERDADES PÚBLICAS E CONTRA O POPULISMO PENAL A Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem dentre suas finalidades o respeito aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito, vem a público manifestar extrema preocupação com o avanço do Estado policial, legitimado pelo fortalecimento de uma jurisprudência supressora dos Direitos Humanos. A AJD lembra que em um país social e economicamente injusto, onde as violações e o abandono das pessoas mais pobres são historicamente naturalizadas, não é a instituição de um verdadeiro estado de exceção a limitar as liberdades públicas, inclusive a presunção de inocência olvidada pelo STF quando entendeu pela possibilidade de cumprimento de pena antes do trânsito em julgado de decisão condenatória, que logrará reduzir a violência que amedronta a população. Tanto é assim que o Brasil ocupa hoje a vergonhosa posição de quarta maior população carcerária do mundo, produto de uma política de encarceramento em massa que, ao invés de reduzir, tem fomentado a violência. A AJD entende que Judiciário fortalecido é o Judiciário que garante o exercício dos Direitos Humanos previstos na Constituição Federal e nos tratados internacionais. É o Judiciário que limita a ação repressiva do Estado pela observância dos ditames do devido processo legal. É, em suma, o Judiciário que não se rende às tentações do populismo penal. São Paulo, 18 de fevereiro de 2016. A Associação Juízes para a Democracia

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Nota Técnica

CONTRA O PL N° 4.192/2015: NÃO À TIPIFICAÇÃO DO PERJÚRIO A ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA - AJD, entidade não governamental, sem fins lucrativos ou corporativistas, que congrega juízes de todo o território nacional e que tem por objetivo primordial a luta pelo respeito aos valores próprios do Estado Democrático de Direito, vem apresentar NOTA TÉCNICA a respeito do Projeto de Lei n° 4.192/2015, que altera o Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal - para fins de prever o crime de perjúrio. 1. A introdução do delito de perjúrio no ordenamento jurídico brasileiro atingirá as camadas mais vulneráveis da população, alvos da nefasta seletividade do Direito Penal, recrudescido com o escopo ilusório de diminuir a criminalidade. 2. Com a instituição de tal figura delitiva, a versão do acusado ou investigado poderá ser criminalizada com arrimo apenas e tão somente em outra versão subjetivamente tida por verdadeira, porquanto em muitos processos penais brasileiros, mormente naqueles envolvendo pessoas economicamente desfavorecidas – patrocinadas em muitos casos por uma defesa meramente formal – ou com menor apelo midiático, as condenações são arrimadas em depoimentos contrários ao do réu. Assim, a criminalização da versão, tida como falsa, do acusado ou do investigado escamoteará a ausência de aprimoramento, principalmente estatal, dos meios probatórios destinados ao encontro da verdade possível. 3. A ameaça de processo por delito de perjúrio funcionará como forte fator de inibição ao acusado ou investigado, que será constrangido a não apresentar sua versão dos fatos, a não ser que possua condições de irrefutavelmente prová-la, situação que, além de em diversos casos se revelar faticamente impossível, institui um ônus descabido ao réu ou investigado. Não se olvide, ainda, de posicionamentos que, ao arrepio da Constituição da República (art. 5º, LXIII) e do Código de Processo Penal (art. 186, parágrafo único), consideram negativamente o silêncio do acusado, e o colocarão em uma situação sem alternativa: se afirmar e não provar: perjúrio; se silenciar: valoração negativa de sua conduta. 112


4. No mais, o delito de perjúrio não resiste ao escrutínio dos princípios constitucionais do direito ao silêncio e não autoincriminação, na medida em que falsear a verdade não se distingue ontologicamente de calá-la – sendo, inclusive uma forma de fazê-lo -, tanto que o art. 342, “caput”, do Código Penal, em relação ao falso testemunho, não faz tal distinção. A Associação Juízes para a Democracia, por considerar o Projeto de Lei n° 4.192/2015 contaminado pelo vício da inconstitucionalidade e fomentador da seletividade penal que atinge as camadas mais desfavorecidas da população, vem a público manifestar-se contrariamente à mencionada proposta legislativa. São Paulo, 29 de março de 2016. A Associação Juízes para a Democracia

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Artigo

ENTRE A TOGA E A CONSTITUIÇÃO JOÃO BATISTA DAMASCENO* Artigo publicado originariamente no jornal O DIA, em 13/03/2016. “A independência judicial, com atuação dos juízes pautada pela ordem jurídica, é garantia para a sociedade; não é privilégio que os coloca acima do bem e do mal. A pior das ditaduras é a do Judiciário, pois nelas não se tem a quem recorrer. De um juiz se espera que respeite o ordenamento jurídico. Um cirurgião que sonega Imposto de Renda pode continuar sendo um grande médico, diferentemente de um juiz. Por isso, juízes não podem defender, em nome do corporativismo, o arbítrio judicial, a ascensão do fascismo, a supressão das garantias constitucionais e o sacrifício de direitos fundamentais”. A independência judicial, com atuação dos juízes pautada pela ordem jurídica, é garantia para a sociedade; não é privilégio que os coloca acima do bem e do mal. A pior das ditaduras é a do Judiciário, pois nelas não se tem a quem recorrer. De um juiz se espera que respeite o ordenamento jurídico. Um cirurgião que sonega Imposto de Renda pode continuar sendo um grande médico, diferentemente de um juiz. Por isso, juízes não podem defender, em nome do corporativismo, o arbítrio judicial, a ascensão do fascismo, a supressão das garantias constitucionais e o sacrifício de direitos fundamentais. Dispõe a Constituição que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente. Na periferia das grandes cidades, o direito de ir e vir é constantemente violado com prisões para averiguação. Neste contexto de violação à Constituição, comentaristas televisivos justificam arbitrariedades. Mas anterior atuação marginal ao sistema legal não é fundamento justo para novas marginalidades. Praças podem ser brutalizados para executar política de extermínio de direitos e de vidas, na crença de que estão lutando contra o mal. Mas juízes devem saber que são guardiães da legalidade, marco civilizatório que nos distingue da barbárie. 114


O editorial do jornal ‘O Globo’ de 22 de outubro de 1965 dizia que “Não pode haver um Executivo pró-revolucionário, um Legislativo variante e um Judiciário neutro quando é a continuidade da Revolução que está em jogo. Os três Poderes, no que for essencial à Revolução, devem marchar juntos. Não se alcançará o objetivo, que tem que ser comum, sem que todos caminhem num só sentido. A direção quem dá é o presidente Castello Branco, expressão política da Revolução e seu único e autorizado intérprete”. Alguns juízes aderiram ao golpe empresarial-militar e lucraram. Outros preferiram o difícil papel de intérpretes independentes da Constituição, para garantia da cidadania, e foram perseguidos ou cassados. O obscurantismo se alastrou e, com eles, os lucros das empresas de comunicação. De juízes há de esperar que atuem como contrapoder, em prol da sociedade e dos cidadãos, e não como parceiros do Estado Policial, que já dispõe de força suficiente para atrocidades. Entre a toga e a Constituição eu fico com a Constituição! João Batista Damasceno é cientista político, juiz de direito no TJ/RJ e membro da AJD.

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Artigo

O FIM DE MAIS UM OUTUBRO SOB O TRAUMA DO CARANDIRU REFORÇA A RELEVÂNCIA DAS LUTAS DA AJD ANDRÉ AUGUSTO SALVADOR BEZERRA E EDUARDO DE LIMA GALDURÓZ* Artigo publicado na edição on line da seção de Política de O Estado de São Paulo, em 08/11/2016. Mais um outubro chegou ao fim. Mais um outubro em que a sociedade brasileira relembrou – e dele não se desvencilhou – o trauma do Massacre do Carandiru, a violenta reação estatal ocorrida em 02 de outubro de 1992, em São Paulo, a um amotinamento de presos na penitenciária de mesmo nome, com o absurdo saldo de 111 detentos mortos e nenhum policial baleado ou ferido gravemente. Dias antes do aniversário de 24 anos desse símbolo máximo da política pública de neutralização de indesejáveis – que há séculos tem dizimado corpos pobres, negros e periféricos –, o episódio ganhou nova repercussão. A 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, conhecida por seu rigorismo penal, a ponto de ser o colegiado que mais rejeitou recursos interpostos pela defesa na corte paulista (índice superior a 80% de rejeição, segundo estudo da Associação Brasileira de Jurimetria -ABJ), anulou julgamento que, em primeiro grau, condenara 74 policiais acusados de envolvimento no massacre. A decisão não representou novidade. Em 2006, o comandante da operação, Coronel Ubiratan, já havia sido judicialmente absolvido. Da mesma forma, desconhece-se qualquer tentativa de efetiva responsabilização daqueles que, do ponto de vista da hierarquia administrativa, encontravam-se em posição de superioridade sobre todos os policiais militares envolvidos. A insuficiência do Direito Penal É necessário e urgente problematizar, preferencialmente com 116


base em estudos sérios e dados empíricos, essa aparente renitência do sistema de segurança pública em ser tão efetivo na investigação e responsabilização em casos de abuso estatal quanto o é na criminalização de pobres, negros e periféricos. Cumpre, de outro lado, não aceder ao discurso fácil que enxerga na atribuição de responsabilidades individuais, mormente por meio da aplicação de penas, a salvaguarda emancipatória de estratos sociais historicamente excluídos, ou a resposta definitiva ao problema da violência estatal. O Direito não cria realidades; regulamenta relações sociais e econômicas pré-existentes e já bem estabelecidas. Essas relações podem ser desiguais, opressivas e excludentes, como é próprio em uma sociedade de conflito. Assim também será, necessariamente, o Direito que as legitima. O apartheid, o nazismo, a escravidão, para ficar nos exemplos mais óbvios, eram todos perfeitamente legais. Os movimentos que contra eles resistiam, não. Neste contexto, o aprisionamento massivo, ainda que com base legal, tem sido historicamente utilizado ora como instrumento de disciplinamento e integração forçada ao mercado de trabalho, em tempos de escassez de mão-de-obra (ocasiões em que as teorias de ressocialização ganham força), ora como meio de simples neutralização do excedente de força de trabalho não absorvido pelo mercado, portanto inútil ao sistema de produção (quando passam a grassar as teorias preventivas, de dissuasão). A forma jurídica da prisão tem em seu DNA, portanto, a gestão diferencial da pobreza, por meio de exclusão e submissão, conforme as necessidades do sistema produtivo. O Direito Penal, enfim, não foi estruturado para a emancipação de estratos sociais excluídos e nem tampouco para garantir o empoderamento de minorias. Não há, realmente, como se esperar dele a superação do trauma do Carandiru. As demandas históricas da AJD O quadro acima desenhado reforça a relevância do enfrentamento de velhos problemas estruturais brasileiros, para que novos massacres, como o ocorrido 24 anos atrás, não continuem a ocorrer. Revela-se imprescindível, por isso, recordar demandas históricas da Associação 117


Juízes para a Democracia (AJD) que, em maio deste 2016, comemorou 25 anos de fundação. Não há, nesse sentido, como se conceber a superação do trauma do Carandiru sem pensar no fim da política de Estado de encarceramento em massa dos estratos mais pobres da população, abandonados em estabelecimentos penais que mais se parecem com masmorras medievais. O Brasil ostenta, atualmente, a vergonhosa posição de quarta maior população carcerária do mundo, cujo crescimento diário é superior a de qualquer outro país, sem, contudo, apresentar resultados práticos, a não ser a colocação dos encarcerados ao mando de organizações criminosas e o aumento da violência dentro e fora dos muros das penitenciárias. Da mesma forma, é imperioso reforçar a luta pela desmilitarização de uma polícia, como a brasileira, que, de acordo com o 10º Anuário de Segurança Pública, recentemente publicado, mata em seis dias o mesmo número de pessoas que a polícia britânica mata em 25 anos. Em seus anos de atuação, a AJD tem defendido a criação de uma só polícia, vinculada, de fato e de direito, ao poder civil de governos estaduais democraticamente eleitos, o que auxiliaria a sociedade a vencer resquícios da ditadura civil-militar pós-1964, que insistem em subsistir em pleno século XXI. É preciso ainda reforçar a luta pela adaptação o Judiciário aos tempos pós-Constituição de 1988, de tal forma a definitivamente se desgarrar de quaisquer resquícios ditatoriais. O Judiciário brasileiro mantém-se, no presente início de século, prevalentemente masculino e branco (em contraste com a população negra carcerária), cujos membros são, em sua maioria, oriundos de um sistema de ensino jurídico acrítico, que, por consequência, leva a construção de conhecimento que naturaliza as mais diversas formas de violações existentes em relação aos estratos excluídos da população, especialmente a componente do sistema penitenciário. Daí a necessidade da exigência do comprometimento para com os Direitos Humanos daqueles que, por concurso público ou por nomeação política, ingressam na magistratura. Recorda-se aqui a mobilização realizada pela AJD e por magistrados, sucedida cerca de um ano depois do caso do Carandiru, que conseguiu impedir que o titular da pasta da 118


Segurança Pública, por ocasião do massacre, fosse indicado para ocupar uma das vagas reservadas a membros do Ministério Público no então existente 2º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo. Demandas históricas da AJD, como as acima citadas, partem do pressuposto de que os avanços sociais dependem da restrição – e não da ampliação – do punitivismo estatal. A relação das minorias excluídas do sistema com o poder de punir deve sempre ser a de lutar por sua limitação através da aplicação efetiva das garantias constitucionais, como deve ocorrer em um Estado de Direito; jamais na direção inversa, no sentido de utilizar o poder punitivo como meio – canhestro, inidôneo – de obtenção de direitos e empoderamento de setores historicamente excluídos. Não se pode erigir um sistema que é estruturalmente seletivo e cujos pilares ideológicos justificam toda sorte de abusos aos direitos fundamentais das classes subalternizadas como móvel de emancipação social. A ser assim, muitos outros Carandirus ainda virão. André Augusto Salvador Bezerra é presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

*

Eduardo de Lima Galduróz é secretário do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

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MULHERES As lutas pela igualdade e contra o sexismo

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Ofício

REQUERIMENTO DE CONCESSÃO DE INDULTO E COMUTAÇÃO DE PENAS NO DIA DA MULHER EXMA. PRESIDENTA DA REPÚBLICA, SRA. DILMA ROUSSEFF EXMO. SR. MINISTRO DA JUSTIÇA, DR. JOSÉ EDUARDO CARDOZO. ILMO SR. PRESIDENTE DO CNPCP – CONSELHO NACIONAL DE POLITICA CRIMINAL E PENITENCIÁRIA, DR. ALAMIRO VELLUDO SALVADOR NETTO. INDULTO DIA DA MULHER O Grupo de Estudos e Trabalho “Mulheres Encarceradas” e as entidades que esta subscrevem vem à presença de Vossas Excias, para requerer seja expedido decreto de concessão de indulto e comutação de penas, em comemoração ao DIA DA MULHER. O GET “Mulheres Encarceradas”, que atua desde 2001, é uma rede que tem como objetivo primordial discutir a realidade da mulher presa, suas condições de encarceramento, seu acentuado perfil de exclusão social, a emergência de atendimento a seus direitos, a violência de gênero sofrida e apresentar propostas para que esta situação seja alterada. A exclusão e discriminação das mulheres encarceradas, iniciadas no seio da sociedade, nos dão a certeza que há um longo caminho a trilhar . Há necessidade de políticas efetivas e com este propósito, indicamos a urgência para que o indulto, instrumento histórico de política criminal, de previsão constitucional, seja aplicado de modo eficaz, para que de fato atinja as mulheres. Documentos internacionais e regionais recomendam que se preste maior atenção às questões das mulheres que se encontram na prisão, inclusive no tocante aos seus filhos. Neste sentido, dentre outros, a Convenção Sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher; o Conjunto de Princípios para a proteção de todas as pessoas submetidas a detenção ou prisão – adotada pela Assembleia Geral da ONU de 1988; a Recomendação da Assembleia Geral da ONU, Resolução 58/183, que determinou que se prestasse maior atenção às 121


questões de mulheres que se encontram em prisão, inclusive no tocante aos filhos; as Regras de Bangkok- normativa mais recente, da ONU, especialmente direcionada para o tratamento das mulheres presas. Documentos nacionais também indicam a necessidade de que se estabeleça políticas públicas diferenciadas para as mulheres encarceradas, que constituem um percentual pequeno da população carcerária (cerca de 8%); com alta porcentagem de mães presas (cerca de 70/80%); que se encarregam de cuidar dos filhos. Os dados apontam para um aumento do aprisionamento feminino, sendo que na última década e meia, este aumento é da ordem de 570%, que não se circunscreve a delitos violentos. De cerca de 610 mil presos, 38 mil são mulheres. A maioria está detida por delito que envolve pouca quantidade de droga. O último relatório do Infopen, publicado pelo Ministério da Justiça, estima que 63% das mulheres estão presas por delitos relativos às drogas, o que representa, proporcionalmente, um número três vezes maior que o de homens detidos pelo mesmo delito (Infopen- Mulheres, do Ministério da Justiça). Raça é elemento primordial na identificação do perfil da mulher encarcerada, já que o número de mulheres negras que estão presas é proporcionalmente maior do que a população de mulheres negras. Duas em cada três mulheres presas são negras, desta forma, representam 67% da população carcerária feminina, enquanto na população em geral a proporção é de 51%, segundo dados do IBGE. O aumento do encarceramento das mulheres produz consequências de diversas ordens, mas necessário destacar a perda ou fragilização das relações familiares, pois grande parte das mulheres são simplesmente abandonadas. Outrossim, facilmente constatável o esgarçamento no universo filhos e mãe presas, em que pese um expressivo percentual de filhos de presas estar sob a tutela de seus familiares. Todas as crianças padecem com o rompimento, mas em número maior as crianças negras, diante do encarceramento desproporcional de mulheres negras. Note-se que os dados provam que a política criminal referente ao indulto, estabelecida até hoje, não contempla , em termos concretos, as mulheres presas, como se vê pelos número de mulheres indultadas nos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Vejamos: 122


A Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo informou os seguintes números de indultos concedidos: INDULTO NATALINO ANO

MASCULINO

FEMININO

TOTAL

2010

617

5

622

2011

660

3

663

2012

700

16

716

2013

2198

56

2251

2014

2335

65

2400

TOTAL

6510

142

6652

A Secretaria de Estado de Defesa Social – SEDS, de Minas Gerais informou os seguintes números de indultos concedidos: INDULTO NATALINO ANO

MASCULINO

FEMININO

TOTAL

2012

1256

24

1280

2013

1257

50

1307

2014

1211

54

1265

A SUSEP – do Estado do Rio Grande do Sul, por sua vez, informou os seguintes números de indultados e comutados: INDULTO NATALINO ANO

MASCULINO

FEMININO

TOTAL

2010

574

16

590

2011

682

29

711

2012

700

16

716

2013

538

18

556

2014

622

19

641

TOTAL

3116

98

3241 123


COMUTAÇÃO ANO

MASCULINO

FEMININO

TOTAL

2010

905

22

916

2011

698

56

754

2012

937

7

944

2013

985

6

991

2014

1032

8

1041

TOTAL

4557

99

4649

São números pífios, que retratam a ineficácia do indulto concedido até então, já que os três estados da federação, que prestaram a informação diretamente à Associação Juízes para a Democracia, são os que concentram significativamente a população encarcerada do Brasil,. O indulto é importante instrumento de política criminal, mas não é aplicado com critérios eficazes, de modo a atingir número minimamente significativo de mulheres encarceradas. A restrição de concessão de indulto para as muheres condenadas nos termos do artigo 33 da Lei n. 11343/2006, redunda na ineficácia do indulto para as mulheres. É importante que novas alternativas em políticas criminais comecem a ser realizadas. Este foi o caminho em vários países. O Presidente Barack Obama iniciou em 2015 uma nova página no encarceramento massivo relacionado a drogas, antecipando a soltura de milhares de presos. Os EUA, se deram conta que uma nova abordagem é necessária; que os custos do sistema prisional são altíssimos, que o aprisionamento em massa não levou à superação ou diminuição do tráfico de drogas, que grande maioria da população atingida é de negros e hispânicos, que foi produzida uma superpopulação carcerária. Outros países, como o Costa Rica e Equador, também têm utilizado mecanismos alternativos para lidar com as mulheres envolvidas no tráfico de drogas. O Equador adotou em 2008 indulto que incluía pessoas presas pela primeira vez por transporte de drogas, com até 2kg de substância e que já tivessem cumprido pelo menos 10% de sua sentença. Mil e quinhentas pessoas foram contempladas. A Costa Rica incluiu o critério de gênero 124


para análise de proporcionalidade das penas e de atenuantes causados por vulnerabilidade das mulheres em lei de 2013, passando a aplicar redutores de penas em função da extrema pobreza, chefia de lar, responsabilidade sobre crianças e adolescentes, idosos ou pessoas com deficiência – uma iniciativa reconhecida pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) como boa prática a ser implementada por outros países. A urgência da medida no Brasil se impõe, para que se encontre um mínimo de equilíbrio na questão prisional das mulheres, em cotejo com as consequências no âmbito social e familiar e o alto custo do seu encarceramento. Diante do quadro acima, requeremos seja decretado indulto/comutação comemorativo ao DIA DA MULHER, contemplando-se nas suas hipóteses de concessão às mulheres condenadas nos termos do artigo 33, da Lei 11343/06, que pena de até cinco anos de reclusão. Colocamo-nos à disposição de Vossas Excelências na esperança que o ano de 2016 seja um marco efetivo de política criminal para as mulheres encarceradas e desde já registramos que pequeno material sobre o tema pode ser encontrado através do link: https://goo.gl/wcc6JV Atenciosamente, São Paulo, 04 de fevereiro de 2016. A Associação Juízes para a Democracia e entidades elencadas em: http://ajd.org.br/documentos_ver.php?idConteudo=197

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Nota Pública

PELA APROVAÇÃO DO PL/RIO DE JANEIRO 2.195/2013: EM FAVOR DA PRESENÇA DE DOULAS NO MOMENTO DO PARTO A Associação Juízes para a Democracia, entidade não governamental e não corporativa, vem manifestar APOIO integral ao Projeto de Lei (PL) de n° 2195/2013, que dispõe sobre a obrigatoriedade das maternidades, casas de parto e estabelecimentos hospitalares congêneres da rede pública do Estado do Rio de Janeiro, a permitir a presença de doulas durante o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, sempre que solicitadas pela parturiente, que se encontra em tramitação nesta nobre Casa Legislativa e cuja aprovação está na pauta do próximo dia 06 de abril. A presença da profissional Doula no momento do parto representa ação em prol da dignidade da pessoa humana, em especial a mulher gestante, humanizando o momento do nascimento, em práticas ancestrais e largamente empregadas no mundo. Certamente também contribuirá para a redução dos riscos à parturiente, retirando o Brasil da lista dos países com maior número de partos-cesariana (intervenção cirúrgica) desnecessários do mundo, considerado verdadeira “epidemia de cesarianas”. No Reino Unido, por exemplo, o National Institute for Health and Care Excellence (NICE) concluiu que as mulheres saudáveis com gestações simples são beneficiadas com a presença de Doulas. Nesse sentido, a renomada revista científica New England Journal of Medicine, por exemplo, publicou dois artigos atestando a melhoria da relação gestante-nascituro com a atividade da Doula- Sosa, R.;Kennell,J.H.; Robertson,S; Urrutia, J. “The effect of a Supportive Companion on Perinatal Problems, Length of labor and Mother-Infant Interaction.” New England Journal of Medicine 303 (1980): 597-600. e “A NICE Delivery — The Cross-Atlantic Divide over Treatment Intensity in Childbirth” Neel Shah, M.D., M.P.P., N Engl J Med 2015; 372:2181-2183. June 4, 2015. DOI: 10.1056/NEJMp1501461. 126


Por todos esses motivos, a Associação Juízes para a Democracia vem a público manifestar-se favoravelmente à aprovação da mencionada proposta legislativa. São Paulo, 05 de abril de 2016 A Associação Juízes para a Democracia

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Editorial

O SEXO FEMININO Editorial publicado na edição nº69 do Jornal Juízes para a Democracia “Zombem muito embora os pessimistas do aparecimento de um novo órgão da imprensa.... “O Sexo Feminino aparece, há de lutar e lutar até morrer: morrerá talvez, mas sua morte será gloriosa e a posteridade julgará o perseguidor e o perseguido. O século XIX, séculos das luzes, não se findará sem que os homens se convençam de que mais da metade dos males que o oprimem é devido ao descuido que eles tem tido com a educação das mulheres e ao falso suposto de pensarem que a mulher não passa de um traste de casa.... Em vez de pais de família mandarem ensinar suas filhas a coser, engomar, cozinhar, varrer a casa..... mandem-lhes ensinar a ler, escrever, contar, gramática da língua nacional perfeitamente, e, depois, economia, medicina doméstica, puericultura, a literatura (ao menos a nacional e a portuguesa), a filosofia, a história, a geografia...” É com esse bombástico editorial que a professora mineira, Francisca Senhorinha da Motta Diniz, inaugura o primeiro número da revista “O Sexo Feminino”, em 7 de setembro de 1873, um dos primeiros órgãos da imprensa que, no Brasil, cuidou das questões da mulher, além e aquém do seu papel de rainha desse território, algo sacro, algo mundano, que se chama lar. De lá para cá, muita coisa mudou e pouca coisa mudou. Com efeito, dona Francisca Senhorinha, vossa senhoria ficaria um pouco perplexa se cá estivesse, neste março de 2016. Pelo teor de seus textos, na dita revista, que logo após seu lançamento obteve mais de 800 assinaturas, podemos ler que a senhora apostava, e bem o fazia, que a educação seria o único e possível resgate da condição da mulher, então restrita ao lar, sob cuidados, sombras e indiferença, senão agressões, de seu pai, irmãos e marido. Estamos no século XXI. No Brasil, as mulheres, mais de 51% da população, são mais frequentes na vida escolar até o ensino superior (15,1% - os homens 11,3%), respondem pela menor taxa de analfabetismo (9,1% - homens, 9,8%) e abandonam menos a escola (52,2%) do que os homens (43,4%). 128


E, veja que coisa, cara dona Francisca, no Brasil, ainda com esse bom índice de escolaridade, no mercado de trabalho o salário das mulheres não encontra equivalência com os dos homens. E, pois, estamos ainda na luta renhida para fazer com que a ferramenta da educação seja um eficaz instrumento de libertação e empoderamento femininos. As mulheres já sabem o beabá, escrevem e leem, muito, produzem arte, fazem história, mudam as fronteiras geográficas e foram bem além da literatura nacional e portuguesa, mas muitos sonhos ainda claudicam. E fora do Brasil, saiba a dona Francisca, há milhões de meninas, que não vão e não irão, nunca, à escola. Nos países asiáticos e alguns da África, a Onu contabilizou que 16 milhões de meninas nunca terão chance de aprender a ler ou escrever. Sim, essa mazela atinge os meninos, também, mas a metade desse número. Se o dado é triste, no geral, é trágico para as mulheres. Dados estatísticos à parte, cara Francisca, fato é que a mulher escolarizada, minimamente, muita vez, e ainda, em sua maioria, pobre e precisando trabalhar duro fora do lar, para trazer comida para os filhos, tem várias jornadas em um dia, todo dia, qualquer dia. Se é certo que o homem deste século tem outras luzes, outros gestos e um outro pensar, ainda não pega no batente, não dá conta de fazer, e bem, “três coisas ao mesmo tempo”. Dona Francisca, em nossos tempos modernos, mulheres são presas porque atendem ao pedido/ordem de seu homem e, uma vez presa, a casa cai. Ela perde os filhos e os filhos se perdem e a vida perde o rumo. Há mulheres, dona Francisca, você pode imaginar?!, que dão a luz a seus filhos na prisão e depois de certo tempo filhos já não há. Saem eles dali para Deus sabe onde! Mulher presa não tem cara, coração, corpo, nada de direitos, não! E nestes tempos, e faz tempo!, tem mulher negra, que mora na favela, e vê o filho morrer sem precisão, de um jeito mentiroso, o menino que nunca pegou em arma, morreu em confronto com a polícia, veja só! Tem muita mãe que chora o filho morto, dona Francisca, e luta por justiça, todo dia. O Brasil anda complicado, que a senhora nem imagina! Tem mulher que faz aborto, a cada dia. E tem muita, muita mulher que faz aborto e morre. É que, dona Francisca, assim como no seu tempo, tem mulher rica e tem mulher pobre e isso, na hora do aborto, faz toda a abjeta diferença. 129


Bem, dona Francisca, leia este número de nosso jornal. Está todo feminino. Nossa associação é de homens e mulheres que estão juízes e juízas, que sonham com um Brasil melhor, democrático no possível, justo em inteireza, e com menos desigualdade. E, por fim, dona Francisca, vamos plagliar seu texto do segundo número de “O Sexo Feminino”: Igualdade, respeito e justiça para o sexo feminino, minhas caras patrícias e caros patrícios! Não cessemos de pugnar e clamar até que completamente consigamos esse desideratum”

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Artigo

INDULTO NO DIA DA MULHER ROMPERIA A INJUSTIÇA CONTRA PRESAS KENARIK BOUJIKIAN* Artigo publicado no períódico on line Uol , em 08/03/2016. O crescimento do número de mulheres presas no Brasil é assustador. O aumento foi de 567% na última década e meia, de 2000 a 2014. De acordo com o último relatório do Infopen Mulheres (Sistema Integrado de Informações Penitenciárias), publicado pelo Ministério da Justiça, de 610 mil presos no país, 38 mil são mulheres. A maior parte foi presa por crimes não violentos, especialmente o tráfico de entorpecentes, na proporção de 68%. Enquanto os homens, em sua maioria, estão detidos por roubo. No crime de tráfico, as mulheres exercem papéis menos relevantes. São as pequenas vendedoras as que realizam transporte de pouca quantidade de drogas. Nesse contexto, são as mais vulneráveis. O envolvimento delas na criminalidade relaciona-se com a sobrevivência, com a necessidade de manter o mínimo de subsistência para si e para a família. Às vezes como atividade única, e às vezes para complementar a renda. A maioria das mulheres presas é chefe de família, pobre, com filhos pequenos, muitas são vítimas de violência doméstica. E a cada 3 mulheres presas, 2 são negras. A exclusão a que são submetidas inclui a imposição de distância de suas famílias. Existem poucos estabelecimentos prisionais femininos, a maioria das presas está em estabelecimento misto. Normalmente, as prisões estão distantes das cidades de origem, e esse é mais um fator para o abandono. A prisão dessas mulheres causa danos pessoais, familiares e sociais. É preciso fazer uma reflexão séria: quais benefícios trazem essas prisões? Quem se responsabiliza pelos filhos das presas? Quais mulheres 131


estamos prendendo? A quem pode interessar essa política de massificação da prisão, que traz mais danos que benefícios? Há muito dinheiro envolvido no tráfico de entorpecentes, mas onde estão os grandes traficantes? Em qual banco, colocam o dinheiro? São milhões e milhões que circulam e ninguém vê e ninguém apreende, porque, propositadamente, só prendem o elo fraco. Hoje, não há uma política séria de combate ao verdadeiro tráfico. As ações que existem são para enganar a população e prender massivamente os periféricos. Quando uma mulher é presa, outra chega para substituí-la no papel subalterno, rapidamente. A política de combate às drogas está equivocada e começa a mudar internacionalmente. Nos Estados Unidos, em 2015, por exemplo, o presidente Barack Obama começou a antecipar a soltura de milhares de presos. O país percebeu que os custos do sistema prisional são muito altos e o aprisionamento em massa não significa a diminuição do tráfico de drogas. Sempre que possível, é necessário evitar o sistema prisional como resposta para um crime. Existem outras respostas mais eficientes. No Brasil, a sociedade, de uma forma geral, ainda não se deu conta do gasto enorme do encarceramento e dos danos sociais que perpetua. O STF (Supremo Tribunal Federal) tem várias decisões de aplicação de penas alternativas para esses crimes, mas o fato é que aproximadamente 45% das mulheres estão cumprindo pena em regime fechado. O Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas, que atua desde 2001, e mais 200 entidades defendem um indulto/comutação especial para o Dia Internacional da Mulher. Na perspectiva histórica da política criminal, o indulto, que está previsto na Constituição brasileira, pode ser concedido a qualquer momento, sempre que o presidente da República entenda ser o melhor. Em geral, é concedido em momentos festivos, como o Natal, 132


para pessoas que cumpram requisitos fixados pela presidência, que podem ser o tempo de cumprimento da pena, a primariedade e outros. Obrigatoriamente, cada caso concreto tem que ser submetido ao Poder Judiciário. Esse pedido está diretamente ligado à realidade das mulheres presas, que ainda não têm políticas públicas específicas e que são a categoria mais vulnerável. Ainda há resistência para a concessão de indulto para crimes relacionados ao tráfico de drogas, em que pese não haver limitação constitucional. Até o Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas existir, sequer tínhamos dados sobre as mulheres presas. Como é possível estabelecer políticas públicas sem saber os números? As mulheres não tinham direito às visitas íntimas. A reversão desse quadro foi uma de nossas primeiras conquistas. Também conseguimos visibilizar o problema do encarceramento de mulheres. É preciso muito mais. O indulto/comutação especial para o Dia da Mulher é uma medida urgente e um passo importante para que essa questão avance e para que se rompa com o plano de injustiça a que estão submetidas as mulheres encarceradas. Kenarik Boujikian é magistrada do Tribunal de Justiça de São Paulo e membra da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

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E SE FOSSEM UM JUIZ, UM PRESIDENTE E UM PROFESSOR? POR ELINAY MELO, LAURA BENDA, NÚBIA GUEDES, PATRÍCIA MAEDA E SOFIA LIMA DUTRA* Artigo publicado no períódico on line Justificando, em 07/04/2016. No último dia 30 de março, Tatiana Moreira Lima, juíza de direito responsável pela Vara da Violência Doméstica do Fórum Regional do Butantã, São Paulo/SP, sofreu um grave atentado. O autor dessa violência, Alfredo José dos Santos, seria julgado pela magistrada por agressões praticadas em 2013 contra sua então esposa. Dias antes do julgamento, ele invadiu o fórum, incendiou um corredor e, imobilizando Tatiana com uma “gravata”, jogou líquido inflamável em ambos. Ameaçou ainda acender um isqueiro e manteve-a como refém até ser detido por policiais militares. No último dia 02 de abril, foi divulgada capa da edição 2417 da revista Istoé montada a partir de uma foto antiga da Presidenta da República, trazendo a seguinte chamada: “AS EXPLOSÕES NERVOSAS DA PRESIDENTE: Em surtos de descontrole com a iminência de seu afastamento e completamente fora de si, Dilma quebra móveis dentro do Palácio, grita com subordinados, xinga autoridades, ataca poderes constituídos e perde (também) as condições emocionais para conduzir o País”. A distorção da imagem de Dilma com uma foto antiga, tirada em contexto totalmente diverso ao da reportagem de capa, revela, para dizer o mínimo, o caráter pouco investigativo da revista. Ademais, no texto da reportagem, há apenas relatos anônimos de atos que teriam ocorrido no âmbito privado da presidenta, sem comprovação robusta de nenhum dos fatos aduzidos. No último dia 05 de abril, a professora Janaína Paschoal passou a ser alvo de ataques misóginos nas redes sociais, após discursar em ato de apoio ao impeachment da Presidenta da República, realizado no Largo do São Francisco (USP), em São Paulo. As notícias e menções ao evento estão, em maioria, recheadas de palavras agressivas à sua postura, que é classificada como louca, desequilibrada, histérica. 134


Rapidamente, “memes” com a professora viralizaram na internet, inclusive com vídeos comparando-a à personagem principal do filme “O Exorcista”. O que esses acontecimentos, aparentemente desconexos, têm em comum? Nenhum, provavelmente, teria ocorrido se os sujeitos em questão fossem homens. De fato, todos os três expõem a virulência psicológica e física a que são submetidas as mulheres, em pleno século XXI, independentemente de serem elas a Chefe do Poder Executivo do País, um membro do Poder Judiciário ou um membro da Academia, o que nada mais é que reflexo de uma sociedade patriarcal que tenta ratificar a hegemonia masculina por meio da submissão da mulher. De acordo com o significado exposto por Carme Alemany, as violências “praticadas contra as mulheres devido ao seu sexo assumem múltiplas formas. Elas englobam todos os atos que, por meio de ameaça, coação ou força, lhes inflingem, na vida privada ou pública, sofrimentos físicos, sexuais ou psicológicos com a finalidade de intimidá-las, puni-las, humilhá-las, atingi-las na sua integridade física e na sua subjetividade.” Trata-se, assim, de violência de gênero. Ao falarmos de gênero, ou relações de gênero, tratamos da construção social das identidades feminina e masculina, assim como da forma de relação social que se estabelece entre mulheres e homens, entre mulheres entre si e homens entre si. A escolha das expressões “relações de gênero” ou “identidades de gênero” se deve à intenção de deixar bem claro que as desigualdades entre homens e mulheres são construídas pela sociedade e não determinadas pela diferença biológica entre os sexos. Assim, as atribuições sociais destinadas a homens e mulheres fundamentam-se em valores sócio-culturais estabelecidos por uma determinada sociedade, a qual atribui lugares distintos a cada um: há a expectativa de que a mulher ocupe o espaço privado, enquanto ao homem cabe o espaço público. Como resume Roswitha Scholz: “A esfera privada, consequentemente, é ocupada pelo tipo ideal “feminino” (família, sexualidade, etc.), ao passo que a esfera pública (“trabalho” abstrato, Estado, política, ciência, arte, etc.) é “mascu135


lina”. De forma ideal, a mulher seria assim o “recosto” social para o homem, que age na esfera pública.” Portanto, uma mulher que é professora universitária, juíza ou Presidenta da República estaria ocupando um lugar que não é o dela. E, a uma intrusa, resta ser retirada ou, se isso não é possível, ser, ao menos, silenciada. O caso da juíza Tatiana é um exemplo de silenciamento à força, de modo mais literal. Houve agressões físicas, como puxões de cabelo, ameaças à vida e xingamentos como “patifa” (que, entre outros significados, é pessoa indigna de confiança). Isso nos sugere que o homem que agrediu uma mulher não aceita a decisão de outra mulher que o condena, já que essa não seria digna de julgá-lo, evidenciando uma violência de gênero. O caso da Presidenta Dilma é ainda mais emblemático quanto ao aspecto simbólico da misoginia. Além do episódio mencionado, as inúmeras violências que ocorrem desde o início do governo, as quais têm se intensificado nas últimas semanas, expressam de forma contundente a vulnerabilidade social a que as mulheres brasileiras estão submetidas. Discursos são postos em ação, por inúmeros agentes e assumindo variadas formas, sempre no intuito de forjar um objeto: a mulher incapaz. São práticas que visam a cristalizar a hegemonia do masculino, perpetuando uma feminilidade subalterna, ou seja, uma condição de subordinação da mulher na sociedade. Objetivar o corpo da Presidenta Dilma como um corpo doente, anormal e desarrazoado, é uma estratégia de ataque ao seu lugar institucional, sobretudo quando se trata de uma distorção da realidade. Dessa feita, patologiza-se sua condição física, individualizando a loucura no corpo da Presidenta, para obscurecer as reais forças em jogo na disputa política e econômica que domina o Brasil. Como se não importasse que o corpo da Presidenta Dilma Rousseff, em vez de ser demente e desequilibrado, não fosse, ao contrário, um corpo marcado por lutas e resistências. É paradoxal que o mesmo tipo de ataque tenha acontecido com a professora Janaína, que vem a ser uma das pessoas de discurso mais contundente em face da Presidenta. A fala de tom elevado e o uso de recursos teatrais duvidosos pode ser criticado, especialmente quanto ao conteúdo, mas o que se vê, novamente, é a redução a um enunciado: mulher louca. 136


Existe um termo que vem sendo difundido pelo movimento feminista que dá conta justamente desse fenômeno: Gaslighting. A origem da nomenclatura é o filme “Gaslight”(1944), no qual um homem, com o intuito de roubar a fortuna de sua esposa, faz com que ela seja tida como louca e, consequentemente, internada em um sanatório. Em suma, gaslighting é basicamente o processo de desestabilização de uma mulher, em qualquer nível ou circunstância, taxando-a de louca, exagerada, dramática, histérica. Se houve uma conquista mínima de direitos, por exemplo: de maior acesso à educação e ao trabalho (ainda que, em média, os homens brasileiros recebam salários 30% maiores, conforme pesquisa do BID), a violência é digna do legado patriarcal mais comezinho. Sem especificar a questão das mulheres negras, que é ainda mais gritante, basta dizer que, se não matam as mulheres por meio do feminicídio e da negação aos direitos sobre o seu corpo, os homens as aniquilam com o silenciamento mais brutal, a desqualificação mediante a violência psiquíca. Sob esse olhar sádico e machista, as mulheres passam a ser ofendidas quase que cotidianamente, para mostrar que, por serem mulheres, não possuiriam equilíbrio emocional para comandar e, por isso, suas opiniões não mereceriam qualquer atenção, bem como seu riso, seu choro, sua fala, suas roupas, sua aparência física seriam justificadamente ridicularizados e desqualificados. Talvez mais perverso ainda seja a reprodução da misoginia pelas próprias mulheres ao encamparem esse papel agressor, destilando ofensas com tal conteúdo contra as “juízas”, “acadêmicas”, “presidentas” etc. Eventuais diferenças sociais, políticas ou ideológicas não afastam o gênero que as une. De modo que o uso desse tipo de violência por mulheres como argumento para desqualificar uma “adversária” não lhes traz nenhuma vitória ou vantagem, pois atinge a todas as mulheres como gênero, inclusive às agressoras, que se tornam vítimas do próprio veneno. Assim, que desses episódios infelizes reste a lição: empoderem-se mulheres e recusem veementemente a reprodução do discurso patriarcal, misógino e discriminatório com o gênero que as une. Afinal, a luta pela conquista dos direitos das mulheres é, fundamentalmente, a luta por permanecer viva – no corpo e na fala. 137


Elinay Melo é Juíza do Trabalho Substituta no TRT 8ª Região. Especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pelo CESIT/Unicamp. Membra da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

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Laura Benda é Juíza do Trabalho Substituta no TRT 2ª Região. Membra da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Núbia Guedes é Juíza do Trabalho Titular da VT de Monte Dourado no TRT 8ª Região. Especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pelo CESIT/Unicamp. Membra da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Patrícia Maeda é Juíza do Trabalho Substituta no TRT 15ª Região. Mestre em Direito do Trabalho pela USP (2013/2016). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (GPTC/USP). Membra da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Sofia Lima Dutra é Juíza do Trabalho Substituta no TRT da 15a Região. Especialista em Economia do Trabalho pela UNICAMP. Membra da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

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Artigo

O QUE É SORORIDADE E POR QUE PRECISAMOS FALAR SOBRE? PRIMEIRO ARTIGO DA COLUNA SORORIDADE EM PAUTA, COMPOSTA PELAS MAGISTRADAS CÉLIA REGINA ODY BENARDES, DANIELA VALLE DA ROCHA MÜLLER, ELINAY MELO, FERNANDA ORSOMARZO, GABRIELA LENZ DE LACERDA, JULIANA CASTELLO BRANCO, LAURA RODRIGUES BENDA, PATRÍCIA MAEDA, RENATA NÓBREGA E SOFIA LIMA DUTRA* Publicado no períódico on line Justificando, em 02/06/2016. Para começo de conversa… Ataques misóginos havidos recentemente provocaram-nos a escrever o artigo publicado no Justificando em 7 de abril deste ano com o título: “E se fossem um juiz, um presidente e um professor?”. Algumas de nós nem sequer nos conhecíamos pessoalmente, mas sabíamos que, além do ideal democrático, tínhamos em comum a tal da sororidade. Foi um trabalho virtual intenso e muito gratificante. Ao final, além do alívio de expressar nossa opinião sobre os fatos, para nós ficou a sensação de que poderíamos mais. Éramos inicialmente cinco juízas do trabalho, sem nenhuma experiência parecida anterior. O grupo aumentou. Expandiu seus horizontes para além do direito do trabalho. Hoje somos dez. Somos mulheres, mães, filhas, esposas, namoradas, irmãs. Somos também juízas. Inquietas, desacomodadas e inconformadas. Em tempos de mulheres invisíveis, decidimos nos unir para ecoar a voz daquelas a quem querem calar. O que é sororidade? Sororidade é uma aliança firmada entre mulheres, baseada na empatia, irmandade e companheirismo. A palavra não existe na língua portuguesa, oficialmente. No dicionário, a que mais se aproxima seria a palavra fraternidade, advinda do termo latino frater (irmãos), a qual, 139


não por coincidência, significa tanto solidariedade de irmãos como harmonia entre os homens. Do termo latino sóror (irmãs), nenhuma palavra tradicionalmente se originou, como se desde a formação da língua portuguesa já houvesse a intenção de naturalizar o fato de que, supostamente, relações harmoniosas e solidárias acontecem apenas entre homens. Assim, a sororidade, enquanto termo e enquanto sentimento, surge e se fortalece da necessidade das mulheres de compartilharem experiências subjetivas, a partir de relações positivas e saudáveis umas com as outras, formando e fomentando alianças pessoais, sociais e políticas, empoderando-se e criando elos importantes para combater e eliminar as diversas formas de opressão perpetuadas ao longo dos séculos pelo patriarcado. Não por acaso, um dos aspectos da sororidade é a crítica à misoginia, em um esforço pessoal e coletivo de demonstrar às próprias mulheres que alguns ou vários de seus comportamentos – fruto, é claro, da cultura historicamente machista – somente reforçam esse cenário, o que enfraquece o movimento feminista e, por consequência, todas as mulheres. Mas essa postura somente é possível a partir do momento em que as mulheres passam a perceber que o patriarcado, para manter o status quo, incentiva a desavença entre elas, para que estejam em eterna disputa, envolvendo-se em intrigas e comentários preconceituosos que destroem as subjetividades umas das outras. Trata-se, de fato, de uma estrutura de dominação e opressão que assume uma faceta cruel ao transformar as vítimas (mulheres) em suas próprias algozes, permitindo, com isso, que se deixe o campo livre para eles, os homens, ocuparem-se das questões que a elas dizem respeito. Enfraquecer a união entre as mulheres é impedir que, coletivamente, seja questionado o lugar a elas imposto. E, ao combater naturalizações que historicamente justificam desigualdades e endossam discursos de sua própria subjugação, as mulheres começam a perceber, juntas, outras amarras que pretendem oprimir e calar, arraigadas de preceitos classistas, racistas, lesbofóbicos e transfóbicos. Não se trata, assim, de um feminismo branco, burguês e cis (de mulheres cujo gênero equivale àquele 140


designado em seu nascimento), mas, sim, da sororidade que abarca todas as mulheres possíveis. Quebrar o ciclo de poder estabelecido é urgente. Cada vez mais, mulheres se unem aumentando a rede de afeto e empatia, (re)significando a irmandade enquanto espaço de força para uma luta que é árdua, mas, diante da singularidade feminina, elas sabem muito bem como enfrentá-la, vestindo do rosa às cores do arco-íris. A partir daí, as mulheres passam a ver o mundo sob nova perspectiva, respeitando a si mesmas e ao seu gênero e, portanto, a todas as outras mulheres. De maneira crítica, passam a recusar a supremacia do homem e a centralidade da masculinidade. Agora que conhecem o nosso projeto, venham pautar conosco a sororidade, para que possamos cada vez mais reverberar: Mulheres do mundo, Unamo-nos! *Nós por nós mesmas Célia Regina Ody Benardes é Juíza Federal em Tabatinga-AM e membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia), de cujo Conselho de Administração foi Secretária entre 2013 e 2014. Também integrou o Conselho Editorial da AJD, mas a atividade associativa que mais a apaixona é a militância no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. É Mestra em Filosofia pela UFPE (“Racismo de Estado: uma reflexão a partir da crítica da razão governamental de Michel Foucault”, Editora Juruá). Sonha com e luta por uma sociedade justa, fraterna e solidária, em que as pessoas experienciem a concretização de seus Direitos, mantendo no horizonte a divisa de Las Casas, “Todos os direitos para todos”, farol a iluminar a utopia de Victor Hugo, “Tudo para todos”. Daniela Valle da Rocha Müller é membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia). Foi advogada na área de Direitos Humanos e também trabalhista, já foi Juíza do Trabalho na 10ª Região e desde 2001 é Juíza do Trabalho da 01ª Região, Rio de Janeiro. Atualmente é diretora de Direitos Humanos da AMATRA-1, vegetariana, mas não todos os dias, mãe, cozinheira e entusiasta da produção orgânica, vai se virando no meio da luta de classes e sonha com a eficácia plena da legislação social. Elinay Melo foi juíza do trabalho no TRT da 14ª Região (Rondônia e Acre) e removida por permuta para o TRT da 8ª Região (Pará e Amapá). É especialis141


ta em Economia do Trabalho e Sindicalismo pelo CESIT/Unicamp, diretora financeira da AMATRA 8 (Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 8ª Região – biênio 2016/2018) e membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia). Mas seu título mais importante é ser mãe de dois meninos, João Pedro (09 anos) e Antônio (03 anos), que lhe exigem o exercício diário de educá-los com espírito de solidariedade e empatia com o outro, respeitando as diferenças e, principalmente, as mulheres. Fernanda Orsomarzo é juíza de direito no Paraná. Vegetariana há 8 anos. Tem por ideal viver a magistratura fora do gabinete, na busca por uma cultura de alteridade, respeito às minorias e livre da exploração de animais humanos e não-humanos. É pós-graduada em direito penal, pós-graduanda em filosofia e direitos humanos pela PUC-PR e membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia). Gabriela Lenz de Lacerda foi Juíza do Trabalho do TRT da 15ª Região e atualmente é Juíza do Trabalho da 4ª Região. Apaixonada por livros, música e poesia, acredita realmente que pequenas iniciativas podem tornar o mundo um lugar melhor. É associada à AMATRA 4 (Associação dos Magistrados da 4ª Região), à ANAMATRA (Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho) e à AJD (Associação Juízes para a Democracia). Juliana Castello Branco é mulher, mãe, foi juíza do trabalho da 12ª Região (Santa Catarina) e atualmente é juíza do trabalho da 53ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro. Associada à AMATRA1 (Associação dos Magistrados da 1ª Região), à ANAMATRA (Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho) e membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia). Adora programar e fazer viagens, ler poesias e ouvir MPB. Entusiasta do pensar e fazer coletivos, acredita que a sororidade não vai mais sair de pauta. Laura Rodrigues Benda foi Juíza do Trabalho do TRT da 15ª Região e atualmente é Juíza do Trabalho do TRT da 2ª Região. É diretora de assuntos legislativos e institucionais da AMATRA 2 (Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 2ª Região – biênio 2016/2018) e membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia). Gosta de política, de cinema e de gastronomia. Acredita que a luta é coletiva e que o amor é revolucionário. Patrícia Maeda é juíza do trabalho no TRT da 15ª Região (Campinas/SP) e membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia). Foi escrevente técnica judiciária no TJ/SP e auditora-fiscal do trabalho do Ministério do

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Trabalho. Mãede duas feministas mirins, esposa, corredora de rua e fora do estereótipo de “bela, recatada e do ‘lar’”. Defendeu sua dissertação de mestrado com o título “Trabalho no capitalismo pós-fordista: trabalho decente, terceirização e contrato zero-hora” recentemente na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. É pesquisadora do Grupo de Pesquisas Trabalho e Capital – GPTC/USP. Renata Nóbrega é mulher, membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia) e juíza do trabalho no TRT da 6ª Região. Foi agente de polícia, delegada e serventuária da justiça federal. Curiosa e precisando de poucas horas de sono para viver, vai deixar para dormir quando morrer. É casada com uma mulher que adora dormir. Mestranda em História Social pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Percebe que o capital rotula, pintando peles de cores e apelidando sexos de frágeis, mas acredita na paleta viva do arco-íris e na força da luta nada frágil do feminismo revolucionário para rearranjar a estrutura dinâmica de gênero e classe. Sofia Lima Dutra é juíza do trabalho do TRT da 15a Região, em Campinas/SP. Foi advogada trabalhista no estado do Pará, de 2007 a 2009. É especialista em Economia do Trabalho pela UNICAMP, membra da Comissão de Prerrogativas da AMATRA 15 (Biênio 2015/2017) e membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia). Dedica sua vida à filha Júlia, a viajar pelo Brasil e pelo mundo, além de colecionar poesias e filmes clássicos. Sua mais nova conquista é ser meia maratonista.

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Artigo

PINTEMOS O ROSTO DE SANGUE: A BARBÁRIE DE ONTEM NÃO SE REPETIRÁ AMANHÃ CÉLIA REGINA ODY BENARDES* Artigo publicado no períódico on line Justificando, em 22/06/2016. A história ainda vai dizer quanto de violência, quanto de preconceito contra a mulher, tem nesse processo de impeachment golpista. Nós sabemos o quanto existe de misoginia, de machismo em algumas visões. Mas nós vamos reafirmar a nossa perspectiva de gênero. Nós sabemos que um dos componentes desse processo tem como base o fato de eu ser a primeira presidenta eleita pelo voto popular do Brasil. Dilma Rousseff10 A Presidenta da República Dilma Rousseff foi afastada de suas funções depois de um longo processo marcado pela mais escancarada violência política de ordem sexista, que recrudesceu durante a campanha eleitoral de 2013 e atingiu seu ápice com a votação do impeachment e a tomada do poder executivo pelo interino e seu ministério monocromático composto de machos cis, brancos, ricos. Nenhuma mulher, nenhum negro, nenhum jovem. É a primeira vez, desde a sangrenta ditadura comandada por Ernesto Geisel, que o Poder Executivo é exercido sem nenhuma mulher. Completou-se, assim, o ciclo de desconstrução misógina do lugar da mulher na política, muito mal acompanhado pela intensificação do racismo e da LGBTfobia. A invisibilização das mulheres é, seguramente, um dos principais efeitos pretendidos pela composição do ministério do interino. De acordo com essa perversa “lógica da cozinha”11, “as mulheres vão preparar a festa para que os homens possam fazer seus discursos”, o que é insuportável, pois “Toda vez que nos tiram da fotografia do poder, mais mulheres são 10 Discurso de abertura da 4ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres. In: http://www.brasil247.com/pt/247/brasilia247/231283/%E2%80%98A-hist%C3%B3ria-vai-dizer-quanto-de-viol%C3%AAncia-contra-a-mulher-tem-no-impeachment%E2%80%99.htm. Acesso em: 21 jun. 2016. 11 Como explica Márcia TIBURI (Filosofia Feminista. Espaço Cult, Altos Estudos. Disponível em: http://espacorevistacult.edools. com/curso/filosofia-feminista-por-marcia-tiburi. Acesso em: 01 jun. 2016), essa lógica já aparece na “Política” de Aristóteles, para quem as mulheres deveriam permanecer na oikos, lugar que lhes cabe por natureza ao lado dos escravos de dos animais, os quais integrarão a ordem da zoé, essa vida nua, matável e insacrificável a que se referirá Giorgio Agamben, em Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002. 207 p. (Humanitas).

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vítimas da violência, porque nós nos transformamos em invisíveis”12. Repete-se o procedimento que desde sempre o dispositivo misógino fez atuar para tornar invisíveis as mulheres, a ponto de M. Perrot e G. Duby afirmarem ser a “História das Mulheres” uma história de esquecimento. Com efeito, sendo masculinas a memória e a história, enquanto ciência da memória, o esquecimento é fundamental para estruturar o machismo e a misoginia que o acompanha desde sempre, sendo misógina a própria filosofia em seu nascimento grego, porquanto concretiza, a partir de então, um projeto de humilhação, rebaixamento e desvalorização das mulheres. Entenda-se por misoginia, assim, o tipo de discurso cuja função é destruir seu objeto, por serem evidentes os lucros epistemológicos, éticos, políticos, estéticos e conceituais dentro de um determinado sistema de pensamento13. A democracia e a estabilidade política experimentadas pelos brasileiros nas últimas décadas tornaram possível a juridicização de vasto catálogo de direitos humanos, individuais e coletivos, e, em alguma medida, sua concretização. A internalização de direitos humanos e seu exercício por parcela da população que até então somente ingressava no sistema de justiça como acusada ou devedora, jamais como titular de direitos, foi a base para o estabelecimento de políticas públicas de eliminação das desigualdades de gênero e raça, dentre outras, determinantes para a construção de uma sociedade inclusiva e equitativa. Ocorre que um dos primeiros atos do governo interino foi justamente extinguir o Ministério das Mulheres, submeter a Secretaria de Política para Mulheres ao Ministério da Justiça e nomear como sua Secretária a uma mulher que – pasmem! – teve a luta contra os direitos das mulheres o núcleo de sua atuação como parlamentar, porquanto defensora do Estatuto do Nascituro e de outros projetos de lei que atacam os direitos 12 Afirmação da deputada federal Maria do Rosário na reportagem: MELO, Débora. No governo Temer, Secretaria das Mulheres ganha viés policial. Carta Capital, 4 jun. 2016. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/politica/sob-temer-fatima-pelaes-da-vies-policial-a-politicas-para-mulheres. Acesso em: 20 jun. 2016. Aos 21/6/16, a Primeira Turma do STF decidiu que o deputado federal Jair Bolsonaro se tornou réu e responderá à acusação de ter praticado os delitos de incitação ao crime de estupro e injúria contra a deputada federal Maria do Rosário. Para o Relator dos processos, Ministro Luiz Fux, “não se pode subestimar os efeitos dos discursos que reproduzem um rebaixamento da dignidade da mulher e que podem gerar perigosas consequências sobre a forma como muitos irão considerar essa hedionda prática criminosa, que é o crime de estupro, podendo efetivamente encorajar a sua prática”. O ataque criminoso à parlamentar foi entendido pelo movimento feminista como violência dirigida às mulheres e isso repercutiu na decisão do STF, demonstrando que, ainda que a passos largos, a Sororidade e o engajamento alcançam êxito, como bem afirmou nossa companheira de coluna Elinay Melo. STF RECEBE denúncia contra deputado Jair Bolsonaro por incitação ao crime de estupro. Notícias STF, 21 jun. 2016. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=319431. Acesso em: 22/6/16. 13 TIBURI, loc. cit..

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reprodutivos e sexuais das mulheres, dentre os quais o PL 5069/13, de autoria do presidente afastado da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, que dificulta o atendimento médico às vítimas de estupro. É sintomático que a primeira aparição pública da nova secretária tenha sido durante o anúncio, aos 31/5/16, de um plano de enfrentamento da violência contra a mulher concebido a partir de uma lógica policialesca e repressiva que se limita ao pagamento de diárias a policiais que atuem, em seus dias de folga, em regiões com altos índices de violência doméstica, como se somente um homem pudesse salvar as mulheres que são vítimas de violência praticada por outros homens... Logo em seguida, a Portaria n. 611, de 10/6/16, suspendeu por 90 dias os atos de gestão no Ministério da Justiça, o que significa que os serviços da Polícia Federal serão os únicos que continuarão sendo prestados, pois as secretarias que cuidam dos direitos humanos no Brasil estão absolutamente paralisadas. Algo absolutamente escandaloso e trágico para as pessoas mais vulnerabilizadas pela miséria e pelo ódio, como são as mulheres, os negros e os pobres. Mas de todos os vulneráveis, as mulheres negras pobres, que interseccionam na carne opressões de classe, raça e gênero, são as que mais sofrem com a destruição da estrutura institucional das políticas públicas brasileiras. Que fazer?, reverbera sem cessar a pergunta do camarada14 nesse tempo tenebroso de triste retrocesso. Acreditamos na sororidade15 como antídoto à misoginia. Como Foucault que, ao atualizar a antiga estilística da existência para oferecer um contramodelo supraindividual às estratégias contemporâneas de individualização, trabalhou a ideia de amizade enquanto forma de subjetivação coletiva que torna capazes os indivíduos a opor resistência aos poderes assujeitantes. É um primeiro passo, tímido, sim, mas necessário para minimizar os danos enquanto lutamos para reconstituir “subjetivações coletivas” fortes, para além das diferenças culturais16, que nos libertem, enquanto mulheres, do patriarca e do patrão. Pois, como juízas, somos garantidoras e defensoras dos direitos das mulheres e meninas; condenamos, indignadas, todas as formas de violência LÊNIN, V. I. Que Fazer? Problemas candentes do nosso movimento. 2ª ed. Lisboa: Edições Avante!, 1978. O QUE é Sororidade e por que precisamos falar sobre? Justificando, 2 jun. 2016. Disponível em: http://justificando. com/2016/06/02/o-que-e-sororidade-e-por-que-precisamos-falar-sobre/. Acesso em: 21 jun. 2016. 16 RANCIÈRE, Jacques. Como sair do ódio? Entrevista concedida a Eric Aeschimann em 10 maio 2016. Disponível em: https:// blogdaboitempo.com.br/2016/05/10/como-sair-do-odio-uma-entrevista-com-jacques-ranciere/. Acesso em: 21 jun. 2016. 14 15

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contra as mulheres, especialmente a violência política de ordem sexista. Pois nós, mulheres e meninas, temos o direito de estarmos onde quisermos, vestindo o que bem entendermos e falando sobre o que nos parecer importante, em casa E na rua, cuidando dos filhos E nos manifestando politicamente em praça pública, onde pudermos contribuir para a construção de um outro mundo, que é possível, sim. Nós compareceremos ao Banquete, acompanhadas por Diotima! Célia Regina Ody Benardes é Juíza Federal e membra da AJD, de cujo Conselho de Administração foi Secretária entre 2013 e 2014.

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Artigo

JUÍZES TRANSGRESSORES, MULHERES ENCARCERADAS CÉLIA REGINA ODY BENARDES* Artigo publicado no períódico on line Justificando, em 21/09/2016. Tive meu filho algemada pelos pés e pelas mãos, uma coisa assim, bem forte. E, aos três meses de vida, ele teve que ir embora. Aí, meu mundo desabou, você só fica com a parede. Desirre Mendes Pinto, chef confeiteira, ex-usuária de drogas presa por tráfico. Quando eu vim para casa, meus filhos estavam largados, com problemas no Conselho Tutelar, respondendo [fazendo pirraça], eles eram agressivos. Hoje estão mais tranquilos, não têm problemas na escola, eles se acalmaram. Raquel dos Santos Machado,presa por traficar uma pequena quantidade de drogas “para comprar fralda e leite”, saiu da cadeia dois dias antes do nascimento de sua filha mais nova17. No último dia internacional dos direitos humanos (10/12/15), fui promovida a juíza federal titular em Tabatinga/AM, onde o Amazonas brasileiro se encontra com Colômbia e Peru. Saí, então, da 10ª vara federal, em Brasília/DF, especializada em lavagem de dinheiro, onde havia pouquíssimos réus – ou condenados – presos, para prestar jurisdição na vara federal responsável, dizia-se, por manter o maior número de pessoas presas em todo o Brasil. Cheguei em Tabatinga com vários sonhos e alguns objetivos bem concretos, o primeiro dos quais consistia em rever a situação desses tantos presos, imaginando o quão perigosos deviam ser para que fossem mantidos presos antes mesmo de condenados. INFÂNCIA em risco: Audiência de custódia não tem garantido penas alternativas a grávidas, diz ONG. Revista Consultor Jurídico, 11 maio 2016. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-mai-11/audiencia-custodia-nao-garante-penas-alternativas-gravidas. Acesso em: 10 jun. 2016.

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Estudando os processos, verifiquei que, em 99% dos casos, trata-se de “mulas” flagradas tentando trazer cocaína para o Brasil. Invariavelmente, são presas ao atravessar a fronteira, não conseguem levar a droga ao local indicado pelos traficantes que as contrataram e, como não integram organização criminosa alguma, são flagranteadas sem dinheiro algum, literalmente apenas com a roupa do corpo – e deixadas absolutamente indefesas. O que mais me perturbou foi perceber que as “mulas” são condenadas a penas muito leves, inclusive abaixo do mínimo legal18, porquanto em regra são jovens com menos de 21 anos que confessam a prática do crime e não se dedicam a atividades criminosas nem integram organização criminosa. Sendo assim, o regime inicial de cumprimento das penas de prisão é, necessariamente, o aberto, mas, pasmem, as “mulas” já tinham ficado presas por meses antes de serem condenadas a penas de prisão que começariam a cumprir em regime aberto! Pessoas presas preventivamente permanecem meses em situação equivalente ao regime fechado de cumprimento de pena, mas ao serem condenadas, o são ao regime inicial aberto, o que resulta em intolerável, inadmissível e bárbara utilização da prisão processual como antecipação de uma pena a que a pessoa jamais será condenada. É urgente pensar as condições de possibilidade de um processo disciplinar no qual uma juíza se defende da acusação de cumprir sua obrigação de libertar pessoas cujo fundamento de prisão cautelar já findara com o cumprimento integral da pena fixada na sentença de primeiro grau, a exemplo do que está acontecendo com Kenarik Boujikian19? É necessário fazer cessar imediatamente essa prática judiciária que coloca em contradição a medida cautelar e o desfecho processual. Registro, nesse ponto, que discordo do teor do enunciado n. 231 da Súmula do STJ e reputo absolutamente necessário refutar definitivamente “qualquer óbice à fixação da pena privativa de liberdade aquém do mínimo legal, resultante da incidência de uma circunstância atenuante sobre a pena-base assentada no mínimo.” Considero inadmissível que, por via jurisprudencial, se procure alcançar a finalidade político-criminal consistente em “impedir o arrefecimento penal pela atenuação”. A proibição jurisprudencial viola “o princípio constitucional da individualização da pena ao negar vigência aos arts. 59 e 65 do CP, produzindo desproporcionalidade e quebra de isonomia no tratamento entre aqueles que preencheram faticamente a hipótese de incidência da minorante e os que não lograram fazê-lo, favorecendo estes últimos. A atenuação da pena, presente uma hipótese autorizativa, constitui autêntico direito público subjetivo do acusado, do qual decorre o dever jurídico-constitucional da agência judicial de minimizar a afetação existencial produzida pela inflição da pena privativa de liberdade.” ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Aplicação da pena: limites, princípios e novos parâmetros. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 208. 19 CORTÊZ, Natacha. Julgue como uma garota. Entrevista com Kenarik Boujikian. Trip, 01 jun. 2016. Disponível em: http:// revistatrip.uol.com.br/tpm/kenarik-boujikian-desembargadoras-que-condenou-roger-abdelmassih-nas-paginas-vermelhas. Acesso em: 20 set. 2016. SEMER, Marcelo. A acusação contra Kenarik Boujikian e as ameaças à independência judicial. Justificando, 17 fev. 2016. Disponível em: http://justificando.com/2016/02/17/a-acusacao-contra-kenarik-boujikian-e-as-ameacas-a-independencia-judicial/. Acesso em: 20 set. 2016. 18

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A primeira “mula” que vi diante de mim em uma audiência de instrução e julgamento foi uma jovem de 20 anos, mãe de uma menina de 3 anos, de quem cuida sozinha e é a principal provedora. Afirmou durante seu interrogatório que aceitou transportar a droga porque precisava do dinheiro para sustentar a si e a sua filha e não conseguia vislumbrar, naquele momento, outras oportunidades lícitas de trabalho, então sucumbiu à “facilidade” que lhe custou meses de cadeia e nenhum centavo a mais, porquanto foi presa antes que o aliciador lhe tivesse efetuado qualquer pagamento. Essa jovem me apresentou à mulher encarcerada no Brasil: pobre20, jovem21, com baixo grau de escolaridade22, negra23, solteira24, mãe que cuida sozinha de seus filhos25, provedora de sua família26 e vítima de anterior violência doméstica27. Cerca de 58% das mulheres encarceradas são levadas ao inferno das prisões brasileiras, qualificadas como “estado de coisas inconstitucional”28, em razão da acusação da prática de tráfico de drogas “não relacionado a grandes redes de organizações criminosas”29, percentual muito diferente dos 23% de homens que são presos pelo mesmo tipo penal. 20 Segundo o Infopen Mulheres 2014, 41,6% das mulheres presas declararam ganhos de até um salário mínimo e 33,8% das mulheres, entre um e três salários mínimos. BRASIL/DEPEN/MJ. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: Infopen Mulheres 2014. Brasília: DEPEN/MJ, 2014. Disponível em: http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/relatorio-infopen-mulheres.pdf. Acesso em: 13 set. 2016. 21 De acordo com o Infopen Mulheres 2014, op. cit., 50% das mulheres encarceradas têm entre 18 e 29 anos, enquanto que os jovens representam apenas 21% da população brasileira total; a maioria absoluta das mulheres privadas de liberdade tem menos de 34 anos, ou seja, são mulheres no período mais ativo de sua vida, tanto econômica quanto reprodutivamente falando. 22 O Infopen Mulheres 2014, op. cit., informa que, das mulheres encarceradas, 4% são analfabetas, 50% não concluíram o ensino fundamental e apenas 11% concluíram o ensino médio. 23 Ainda segundo o Infopen Mulheres 2014, op. cit., de cada 3 presas, 2 são negras, o que resulta em grande desproporção de mulheres negras presas (68%) em relação à proporção de negros (51%) na população brasileira em geral. 24 Cerca de 57% das mulheres encarceradas no Brasil se declaram solteiras, de acordo com o Infopen Mulheres 2014, op. cit.. 25 Aproximadamente 80% das mulheres presas têm filhos, 57,8% dessas mulheres têm entre 1 e 2 filhos e, em 63,6% desses casos, moram com seus filhos. A realidade dos homens é sensivelmente diferente: 52,1% dos homens têm filhos, dos quais 75,6% têm entre 1 e 2 filhos, mas apenas 23,7% dos homens moram com seus filhos. Os dados referentes à dimensão da maternidade das mulheres encarceradas no Brasil foram extraídos de: INSTITUTO Terra, Trabalho e Cidadania; PASTORAL Carcerária Nacional. Tecer justiça: presas e presos provisórios na cidade de São Paulo. Coord. Heidi Ann Cerneka, José de Jesus Filho, Fernanda Emy Matsuda, Michael Mary Nolan e Denise Blanes. São Paulo: ITTC, 2012. Disponível em: http://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2013/02/rel_tecer_justic%CC%A7a_net.pdf. Acesso em: 13 set. 2016. p. 33-34. Para uma crítica contundente da maternidade solitária dessas “mães valentes” e da naturalização do abandono desses “pais covardes”, cf. ORSOMARZO, Fernanda. Mães valentes, pais covardes. Justificando, 13 jul. 2016. Disponível em http://justificando.com/2016/07/13/maes-valentes-pais-covardes/. Acesso em: 19 set. 2016. 26 Segundo o Infopen Mulheres 2014, op. cit., 60% das mulheres contribuem para o sustento de sua família, sendo que 30% delas são as principais provedoras. 27 Infopen Mulheres 2014, op. cit.. 28 “(...) Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como “estado de coisas inconstitucional”. (...) AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA – OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA. Estão obrigados juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão.” (ADPF 347 MC, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015). 29 Infopen Mulheres 2014, op. cit., p. 5.

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Mas como explicar a criminalização feminina e seu encarceramento massivo por tráfico de drogas? Por que as mulheres são instrumentalizadas como mulas e, por isso, cada vez mais encarceradas? Essencial, aqui, proceder à análise das intersecções de gênero, raça e classe que atravessam o corpo da mulher, o que começa por compreender que a “estrutura do mercado de drogas ilícitas reproduz um padrão muito similar ao do mundo do trabalho legal”, no qual as mulheres ocupam as posições mais subalternas e vulneráveis. Verifica-se que, na América Latina, a participação feminina no tráfico (mula ou microtraficante) assume “uma perspectiva laboral, na medida em que muitas mulheres inserem nas margens de sua sobrevivência tipos de trabalho considerados ilícitos”. Em um cenário neoliberal de aprofundamento da feminização da pobreza e de modificação da estrutura familiar, na qual se observa uma maior proporção de chefes femininas em lares pobres30, o gênero aparece como categoria fundamental para entender o modo como as mulheres passam a integrar o mercado de drogas ilícitas e violar a lei penal reproduzindo o papel social e cultural a elas atribuídos. Com efeito, a mulher recorre a modos ilícitos de sobrevivência para cumprir exatamente os papeis de mãe e cuidadora de outros vulneráveis, a ela atribuídos cultural e socialmente, o que nos remete à perversa e constante intersecção de classe, gênero e raça que experimenta a mulher, sobretudo a mulher negra pobre31. Demonstrada, assim, a “forte vinculação do sistema penal brasileiro a uma matriz histórica patriarcal32” , apresenta-se “estratégico abordar o problema primeiramente sob o viés da redução do encarceramento feminino provisório”33, para o que pode contribuir a condução eficaz da audiência de custódia. Trata-se de mecanismo Como bem pontuam as colegas de coluna Daniela Müller, Elinay Mello e Patrícia Maeda, já no século XIX há registros dessa forma de configuração familiar em que a mulher trabalhadora é arrimo de família, mas tal protagonismo feminino tem sido invisibilizado pela História, pois, sendo a Memória masculina, ou seja, administrada e usada pelos homens para construírem seu espaço na História, forjou-se o Esquecimento enquanto categoria própria do universo das mulheres como ausentes de um processo, no caso, o protagonismo nas relações familiares. Sobre o Esquecimento da mulher na História, cf. TIBURI, Márcia. Filosofia Feminista. Espaço Cult, Altos Estudos. Disponível em: http://espacorevistacult.edools.com/curso/filosofia-feminista-por-marcia-tiburi. Acesso em: 01 jun. 2016. 31 CHERNICHARO, L.; BOITEUX, L. Encarceramento feminino, seletividade penal e tráfico de drogas em uma perspectiva feminista crítica. Disponível em: https://www.academia.edu/9832437/Encarceramento_Feminino_Seletividade_Penal_e_Tr%C3%A1fico_de_Drogas_em_uma_perspectiva_Feminista_Cr%C3%ADtica. Acesso em: 17 set. 2016. 32 Infopen Mulheres 2014, op. cit., p. 5. 33 LEWANDOWSKI, Ricardo. Apresentação. In: BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas. Regras de Bangkok: Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras. 1. ed. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2016. p. 10. 30

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importantíssimo para interromper o ciclo de expansão do aprisionamento provisório das mulheres que mantém o Estado brasileiro em permanente violação ao direito internacional dos direitos humanos, mas, para tanto, é necessário que os atores do sistema de justiça estejam conscientes das especificidades que o recorte de gênero (e raça e classe) traz à realização da audiência de custódia. A falta de educação para a questão de gênero faz com que os estigmas e as discriminações socialmente sofridas pelas mulheres sejam reforçados nas audiências de custódia, a exemplo de “cobranças do papel feminino diante dos filhos, da família” e, também, pela falta de atenção a aspectos específicos como hipóteses de gravidez, de filhos e dependentes. Durante monitoramento realizado pelo IDDD durante dez meses de realização de audiências de custódia, não houve uma única vez em que um juiz tenha perguntado se a presa estava grávida.34 Mas por qual razão estaríamos nós, juízes, violando as leis que juramos cumprir? Por que não cumprimos a Resolução do CNJ que nos obriga a averiguar, durante a audiência de custódia, para analisar o cabimento da concessão da liberdade provisória, as hipóteses de gravidez e de existência de filhos ou dependentes sob cuidados da pessoa presa em flagrante?35 Por que não concretizamos o Código de Processo Penal, que nos autoriza a substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando se trata de gestante ou de mulher com filhos?36 Por que nós, juízes, não consideramos a audiência de custódia como a oportunidade ideal para cumprirmos uma das mais importantes regras de Bangkok, segundo a qual, “ao aplicar medidas cautelares a uma mulher gestante ou a pessoa que seja fonte principal ou única de cuidado de uma criança, medidas não privativas de 34 BRASIL/DEPEN. Implementação das audiências de custódia no Brasil: análise de experiências e recomendações de aprimoramento. Coord. Victor Martins Pimenta. Brasília: DEPEN, 2016. Disponível em: http://www.justica.gov.br/seus-direitos/ politica-penal/politicas-2/alternativas-penais-1/arquivos/implementacao-das-audiencias-de-custodia-no-brasil-analise-de-experiencias-e-recomendacoes-de-aprimoramento-1.pdf. Acesso em: 17 set. 2016. 35 Art. 8º, Resolução CNJ n. 213/2015: Na audiência de custódia, a autoridade judicial entrevistará a pessoa presa em flagrante, devendo: (...) X - averiguar, por perguntas e visualmente, hipóteses de gravidez, existência de filhos ou dependentes sob cuidados da pessoa presa em flagrante delito, histórico de doença grave, incluídos os transtornos mentais e a dependência química, para analisar o cabimento de encaminhamento assistencial e da concessão da liberdade provisória, sem ou com a imposição de medida cautelar. 36 A Lei 13.257, de 8/3/16, que estabelece “princípios e diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas para a primeira infância em atenção à especificidade e à relevância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento infantil e no desenvolvimento do ser humano, em consonância com os princípios e diretrizes” do Estatuto da Criança e do Adolescente, alterou o artigo 318 do Código de Processo Penal, que passou a estabelecer o seguinte: Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: (...) III - imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência; IV - gestante; V - mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos; VI - homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos.

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liberdade devem ser preferidas sempre que possível e apropriado”37? Estaríamos nós, juízes, sendo instrumentalizados para perpetuar a colonização da penalidade pela prisão, para manter o sistema penal como dispositivo de dominação de classe, raça e gênero cuja função é gerir diferencialmente os ilegalismos38, mediante seleção e gestão dos corpos indesejáveis e matáveis dessas mulheres politicamente irrelevantes39 e indóceis, além de economicamente inúteis, que ousaram romper com as leis da sociedade e da família? Não estamos aplicando, às mulheres, o Direito que juramos (fazer) cumprir. Estamos, os juízes e as juízas brasileiras, transgredindo a Lei. Até quando? *Célia Regina Ody Bernardes é Juíza Federal em Tabatinga-AM e membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia), de cujo Conselho de Administração foi Secretária entre 2013 e 2014.

Regras de Bangkok, op. cit.. FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir: naissance de la prison. Paris: Gallimard, 2003. 362 p. (Collection Tel, 225). p. 318. 39 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2002. 207 p. (Humanitas). Tradução de: Homo sacer – Il potere sovrano e la nuda vita I. p. 14, 91, 96, 131, 149. 37

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Artigo

ALIMENTOS PROCESSADOS NÃO SÃO EMANCIPADORES DA LUTA FEMINISTA DANIELA VALLE DA ROCHA MÜLLER* Artigo publicado no períódico on line Justificando, em 02/11/2016. A convite da minha querida amiga Elinay Melo40 fui visitar a Ilha de Marajó – PA, onde conheci a D. Jerônima41, cozinheira de mão cheia e especialista no preparo do Frito do Vaqueiro, iguaria típica daquela região. Ela conta que as mulheres preparavam esse prato quando os homens partiam para longas viagens: cortavam a carne de búfalo que era temperada e frita no fogão a lenha por muitas horas, depois, essa carne era misturada a uma farofa (humm!) e a mistura ia para dentro de um saco de couro, que era colocado entre a sela e o animal montado (cavalo ou búfalo) para acabar o preparo ao longo do caminho, onde o movimento da montaria triturava e misturava os ingredientes. Além de ser uma delícia, o Frito do Vaqueiro é um prato que conta uma história, fala das suas origens, do povo que a criou e dos produtos disponíveis naquele local. Aos 78 anos D. Jerônima é uma cozinheira que, além de dominar a técnica de preparo desse e diversos outros pratos, é guardiã de toda a história e tradição que ele representa. Infelizmente, encontrar cozinheiras como ela é cada vez mais raro. As últimas gerações foram abandonando suas tradições culinárias, na medida em que a indústria passou a ditar nossos cardápios, substituindo uma função tradicionalmente assumida pelas mulheres, desprezando seus conhecimentos e tradições. 40 Elinay Melo foi juíza do trabalho no TRT da 14ª Região (Rondônia e Acre) e removida por permuta para o TRT da 8ª Região (Pará e Amapá). É especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pelo CESIT/Unicamp, diretora financeira da AMATRA 8 (Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 8ª Região – biênio 2016/2018) e membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia). Mas seu título mais importante é ser mãe de dois meninos, João Pedro (09 anos) e Antônio (03 anos), que lhe exigem o exercício diário de educá-los com espírito de solidariedade e empatia com o outro, respeitando as diferenças e, principalmente, as mulheres. 41 Jerônima Brito – Fazenda São Jerônimo – Rodovia Soure-Pesqueiro, km 3, Soure, Ilha do Marajó – PA.

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Na mesma Soure/PA onde mora D. Jerônima, o supermercado ostenta exatamente os mesmos produtos dos supermercados do Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo, Montevidéu, Miami, Lisboa, Paris e de grande parte do mundo: biscoitos, achocolatados, leite em caixa e em pó, enlatados e congelados diversos, massas, arroz, manteiga, margarina, em suma, diversos produtos industrializados e processados. A variação, quando há, restringe-se aos alimentos frescos, um ou outro produto local, mas a verdade é que o interior dos supermercados está ficando cada vez mais parecido, seja lá onde eles estiverem localizados. Essa comida altamente industrializada e processada apareceu no decorrer da 2ª Guerra Mundial, durante a qual diversos alimentos pularam para dentro de latas e pacotes, liberando as tropas das cozinhas de campanha, pois possibilitava que cada soldado transportasse consigo um “kit” com alimentos não perecíveis e prontos para consumo. Finda a guerra, era necessário dar algum destino para as diversas fábricas de alimentos construídas no período e, assim, a partir de 1950 os alimentos industrializados começaram a rivalizar com as refeições que até então eram preparadas de acordo com a cultura, os produtos e a tradição local. O sistema capitalista, com sua incrível capacidade de transformar os problemas que cria em novas oportunidades de negócio, percebeu que havia espaço para aos produtos encalhados nas fábricas durante o pós-guerra, nos diversos lares em que as mulheres saíram para atuar no mercado de trabalho e já não conseguiam conciliar as longas jornadas de trabalho com os afazeres domésticos. A partir da liberação da mulher para atuar no mercado de trabalho, a comida industrializada se apresentou como uma confortável saída para contornar a desagradável (mas necessária) discussão sobre (re)divisão da tarefa de colocar a comida na mesa. Porém, confinar nossos alimentos em latas e pacotes não foi solução para a divisão das tarefas domésticas, e transferir para a indústria o preparo da refeição não representou valorização das atribuições femininas, nem configurou avanço na luta 155


feminista, e muito menos abalou o patriarcado, como constata Michael Pollan42: “Contudo, esse verniz de feminismo exibido pela indústria alimentícia mal conseguia esconder a mensagem antifeminista implícita. Tanto naquela época como agora, os anúncios de comida processada eram dirigidos quase exclusivamente às mulheres, reforçando assim a idéia retrógrada de que a responsabilidade por alimentar a família recai sobre a mãe. Os novíssimos produtos anunciados iriam ajudá-la na realização de um trabalho que cabia apenas a ela. (…) A mensagem transmitida pelo marketing da indústria de alimentos consegue ainda por cima tirar qualquer responsabilidade dos ombros dos homens, pois a questão necessária e desafiadora de saber quem deveria estar na cozinha, levantada de modo tão agressivo por Betty Friedeman em “A Mística Feminina”, acaba, em última instância, sendo respondida não por nós, mas pela indústria alimentícia: Ninguém! Deixe que nós cuidemos de tudo!” Mesmo as mulheres que não trabalhavam fora, ou que tinham como trabalho preparar a refeição de outras pessoas, como empregadas domésticas, merendeiras e cozinheiras, foram alvo da indústria alimentícia e suas propagandas. Aos poucos, a cenoura, o aipo, pescoço e pés de galinhas, doces tradicionais e caseiros foram sendo substituídos por quadrados e pozinhos repletos de glutamato, latas de leite condensado e de creme de leite saturados de açúcar, gordura e conservantes. Mais do que a substituição dos ingredientes nas receitas, a intromissão da indústria nas cozinhas foi apagando toda uma tradição relacionada aos alimentos, passada de geração em geração, pelas mulheres da família ou da comunidade que assumissem as cozinhas e, assim, cultivavam suas tradições, mantinham sua memória, contavam suas histórias, enfim, participavam da criação e evolução da sua própria cultura. Exemplo disso são as “Tias” do samba, mulheres negras, guerreiras, responsáveis pelo nascimento do ritmo/música/dança/festa que representa o Brasil perante o mundo. A primeira geração, formada pelas “Tias” Ciata, Madalena Xangô de Ouro e Esther, era responsável por manter os quintais que abrigavam os sambistas, então perseguidos pela polícia, de onde sur42

Pollan, Michael – “Cozinhar: uma história natural da transformação”, 1ª ed., Ed. Intrínseca, 2014.

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giram composições como “Pelo Telefone” (primeiro samba gravado) em rodas onde eram servidas iguarias que falavam da história dessas matriarcas, como a famosa Moqueca de Peixe da Baiana Ciata43, quituteira profissional e que todo mês de outubro montava sua barraca, onde acontecia44: “Uma alquimia harmônica de classes sociais: Tia Ciata e as mulheres que a auxiliavam na barraca cantavam desde o fim da primeira missa na Igreja da Penha, atraindo as pessoas com o canto e o aroma dos temperos, juntando a comunidade negra aos romeiros portugueses e à classe média devota da santa. (…) “A partir de Ciata e das outras tias, com forte influência dos negros baianos que vieram para o Rio, o samba carioca floresceu em regime matriarcado, em torno de mulheres de forte personalidade. (…) A morte de Ciata e o declínio da Praça Onze transferiram a fama dos quintais para outros lugares, sobretudo a região sob influência de Madureira e Oswaldo Cruz, já com a Portela criada (…) “É curioso notar que, além do traço comum da ligação com o samba o fato de todas serem excelentes cozinheiras” Essa primeira geração foi sucedida pelas tias Iara, Lourdes e Vicentina (esta última imortalizada por Paulinho da Viola na música “Pagode do Vavá”, onde exalta o “famoso feijão da Vicentina”), que, por sua vez, passaram o bastão para as tias Doca, Eunice, Neném e Surica, todas da Portela e verdadeiras guardiãs dos quintais, onde ainda hoje se reúnem as rodas de samba regadas pelas comidas preparadas de acordo com suas tradições, cultura, origem e experiência, como testemunhou Zeca Pagodinho45: “Comida não faltava nos quintais: era caldo verde, feijão, tripa lombeira, comida de malandro, comida de sambista. (…) As pastoras [tias] são muito afinadas, mas não é só isso. É um canto de senzala, de terreiro. (…) As tias são um Hilária Batista de Almeida, a Ciata, nascida em Salvador em 1854 chegou ao Rio de Janeiro em 1876, onde se casou e teve 15 filhos, faleceu em 1924. “Ela acabou se separando de Noberto e, para sustentar a filha, começou a trabalhar como quituteira na Rua Sete de Setembro, sempre paramentada com suas vestes de baiana. Era na comida que ela expressava suas convicções religiosas, ou seja, a sua fé no candomblé, religião proibida e perseguida naqueles tempos. Ia para o ponto de venda com sua roupa de baiana uma saia rodada e bem engomada, turbante e diversos colares (guias ou fio-de-contas) e pulseiras sempre na cor do orixá que iria homenagear. O tabuleiro era famoso e farto, repleto de bolos e manjares que faziam a alegria dos transeuntes de todas as classes sociais.” – https://pt.wikipedia.org/wiki/Tia_Ciata, acessado em 01.11.2016. 44 e 45 Medeiros, Alexandre – “Batuque na Cozinha, As Receitas e as Histórias das Tias da Portela” – Casa da Palavra : Senac Rio, 2004. 43

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caso sério, elas têm aquele pique ainda, né? (…) Tia Eunice é um amor, né? Gosto muito dela. Ela sambando tira onda, aquele miudinho dela. Canta muito também. Tudo isso me inspira. Aquele negócio de fogão de lenha no quintal, a panela fervendo. Essas imagens vêm na minha cabeça na hora de compor.” Esse conhecimento vem se perdendo na medida em que suas filhas e netas são convencidas de que cozinhar se resume a abrir pacotes e latas, acreditando que com isso se liberaram a opressão dos serviços domésticos. Acontece que essa terceirização da culinária nossa de cada dia tem um preço alto, como demonstram os índices alarmantes de doenças relacionadas diretamente à dieta contemporânea: obesidade, diabetes tipo 2 e hipertensão. Paralelamente, é crescente o interesse por programas, livros, cursos culinários, indício de que cozinhar tem alguma coisa de diferente, de que é muito difícil se distanciar dessa atividade repleta de força emocional, muito diferente das demais tarefas domésticas que delegamos, sem culpa ou saudade, às máquinas ou a terceiros, tais como lavar roupa, costurar, lavar o carro et caetera. Antropólogos acreditam que cozinhar nos define enquanto espécie; em 1773 o escritor escocês James Boswell já observava que nenhum outro animal é cozinheiro; de lá para cá, passando pelos franceses Jean Anthelme Brillat-Savarin e Lévi-Strauss, o primatólogo e antropólogo Richard Wrangham formulou a “hipótese do cozimento” segundo a qual46: “o advento da comida cozida alterou os rumos da evolução humana. Por proporcionar aos nossos ancestrais uma dieta com maior densidade energética e de fácil digestão, a nova prática permitiu que nossos cérebros crescessem (cérebros são notórios consumidores de energia) e os intestinos encolhessem (…) “Cozinhar, na realidade, assumiu parte do trabalho de mastigar e digerir, que passou a ser realizado fora do nosso corpo, valendo-se de fontes de energia exteriores. (…) Uma vez livres da necessidade de passar os dias reunindo grandes quantidades de alimentos crus e mastigando-os (…), os seres humanos poderiam agora empregar seu tempo e seus recursos metabólicos para outros propósitos, como criar uma cultura.” 46

Pollan, Michael – “Cozinhar: uma história natural da transformação”, 1ª ed., Ed. Intrínseca, 2014.

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Provavelmente foi ao redor do fogo que nossos antepassados se reuniram para compartilhar os alimentos, as informações de como consegui-los e prepará-los, desenvolveram habilidades e estabeleceram, inclusive, regras sobre a divisão da comida. Tudo indica que formos nos domesticando ao redor das grelhas, fogões e fornos primitivos e comunais. Resgatar nossas tradições culinárias é valorizar o trabalho de limpar, temperar, refogar, assar, ensopar e todas as demais técnicas pelas quais transformamos a comida crua em nosso alimento, trabalho tradicionalmente desvalorizado muito mais por ser considerado uma atribuição feminina do que por se tratar, realmente, de tarefa enfadonha, frustrante e desprezível. As mulheres reivindicam, acima de tudo, o reconhecimento e valorização dessa atividade. A cozinheira Bela Gil47, atenta ao perigo de perdermos os vínculos com o preparo de nossa própria comida e, assim, ficarmos reféns de uma indústria que nos adoece, recomenda dar “passinhos para trás e olhar para as tradições” como meio de melhorar nossa vida atual. Conversar com as mulheres da família e da comunidade, perpetuar suas receitas, técnicas culinárias e histórias é um ato de resistência à invasão que a indústria alimentícia vem fazendo em nossas cozinhas, corpos e mentes; aprender a cozinhar, conhecer a origem da nossa comida, incluir crianças e homens na confecção das refeições e manter o hábito de comer junto, trocando afeto e exercendo a sororidade, nos conecta às nossas origens e tradições, é atitude revolucionária, feminista e que pode mudar o mundo! Daniela Valle da Rocha Müller é Juíza do Trabalho da 01a Região, Rio de Janeiro e membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia).

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revista TPM – outubro/2016, ano 15 nª169, TRIP editora.

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EDUCAÇÃO A luta pelo ensino crítico

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Nota Técnica

PROJETO DE LEI Nº 867/2015 “ESCOLA SEM PARTIDO” “Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica” Paulo Freire A Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem dentre suas finalidades o respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito, vem apresentar a presente NOTA TÉCNICA sobre o Projeto de Lei nº 867/2015, conhecido como “Escola sem Partido”, nos seguintes termos: 1. Introdução. O projeto de lei n. 867/2015 e o movimento escola sem partido O Projeto de Lei n. 867/2015, de autoria do Deputado Izalci (PSDB/DF), gerado no ventre do “Movimento Escola sem Partido”, como está expressamente afirmado em sua própria “Justificação”, bem como o Projeto de Lei n. 193/2016, do Senador Magno Malta (PR-ES), que proíbe, inclusive, a discussão de gênero nas escolas, é inconstitucional, pois viola normas e princípios consagrados pela Constituição Federal e, também, pelo sistema de proteção dos Direitos Humanos. Com efeito, esse projeto viola o direito fundamental à liberdade de expressão e manifestação de pensamento, ignora a proibição constitucional à censura, impede o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, vulnera o princípio da igualdade, coloca os professores e professoras sob constante vigilância e censura, negando-lhes a liberdade de cátedra, nega aos alunos e alunas a possibilidade do exercício do direito constitucional a uma educação emancipatória, impossibilita a ampla aprendizagem, confunde a educação escolar, que é de responsabilidade estatal, com aquela que é fornecida pelos pais, ou seja, confunde espaço público com espaço privado, viola o princípio da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, contraria a exigência constitucional da laicidade do Estado e fere de morte, em sua essência, o direito constitucional à educação e o seu significado político e social. 161


2. Princípios constitucionais e de direitos humanos. Os princípios “encimam a pirâmide normativa, são normas jurídicas e não simples recomendações programáticas” (COMPARTO48). Princípios não são apenas “conjuntos de valores e tampouco meras indicações programáticas, mas normas jurídicas, no sentido de que são válidas e que são aplicáveis. E, mais, são ainda referências paras as regras, seja porque estão inscritos explicitamente na Constituição, seja porque dão coerência ao sistema que ela abriga. Princípios têm, como diz Canotilho, uma função estruturante no sistema jurídico, e, exatamente por isso, são fundamentos para as regras (apud Gomes, 2003:55). Princípios se diferem das regras, sobretudo, pelo alto grau de abstração, em contraposição ao comando objetivo daquelas. Embora a aplicação das regras seja direta e de mais fácil compreensão, é incorreto subordinar princípios às regras ou relegar princípios às lacunas da lei” (SEMER 49). É por isso que “a lesão ao princípio é indubitavelmente a mais grave das inconstitucionalidades, porque sem princípio não há ordem constitucional e, sem ordem constitucional, não há garantia para as liberdades” (BONAVIDES)50. Assim, em face da necessidade da garantia da mantença incólume da principiologia constitucional de nosso Estado Democrático e Social de Direito, não se pode adotar conduta cega, acrítica e asséptica diante de leis, prestigiando-se o positivismo legalista, inspirado em Monstesquieu e Napoleão, ou no dogmatismo hegeliano da racionalidade da lei, estrangulando o sistema legal nos seus limites formais. Mas os princípios constitucionais não se resumem àqueles consagrados explícita ou implicitamente pela Constituição Federal, pois devem ser respeitados, também, os princípios adotados pelo sistema internacional de proteção dos Direitos Humanos, os quais, de acordo com a nossa sistemática jurídica, têm natureza constitucional. O papel do juiz na efetivação dos direitos humanos. In Direitos Humanos – Visões Contemporâneas, edição de Associação Juízes para a Democracia, 2001, p. 22 Princípios Penais no Estado Democrático, Coleção Para Aprender Direito, 1ª edição, São Paulo, 2014, Estúdio Editores. com, p. 29 50 Curso de Direito Constitucional. 4ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 1993, p. 396 48

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Com efeito, quando o Estado Brasileiro ratifica Tratados ou Convenções internacionais de Direitos Humanos, seus poderes legislativo, executivo e judiciário ficam submetidos a eles, por força de imperativo constitucional, o que os obriga a velar, também, para que as suas normas, regras e princípios não sejam prejudicados pela aprovação e aplicação de leis contrárias ao seu objeto e fim. De acordo com o disposto nos §§ 1º e 2º do artigo 5º da Constituição Federal, todos os Tratados Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil têm estatura de norma constitucional e estão metidos a rol entre as garantias fundamentais, com natureza de cláusula pétrea, nos termos do artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV da CF/88. Como assevera Flávia Piovesan, invocando ensinamentos de Antônio Augusto Cançado Trindade e de José Joaquim Gomes Canotilho, “os direitos garantidos nos tratados de Direitos Humanos de que o Brasil é parte, integram, portanto, o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados. Essa conclusão advém ainda da interpretação sistemática e teleológica do texto, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, com parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do fenômeno constitucional” 51. E, como ensina SARLET, “a norma contida no § 2º do art. 5º da CF traduz o entendimento de que, além dos direitos expressamente positivados no capítulo constitucional próprio (dos direitos e garantias fundamentais), existem direitos que, por seu conteúdo e significado, integram o sistema da Constituição, compondo, em outras palavras, na acepção originária do direito constitucional francês, o assim chamado bloco de constitucionalidade, que não se restringe necessariamente a um determinado texto ou mesmo conjunto de textos constitucionais, ou seja, não se reduz a uma concepção puramente formal de constituição e de direitos fundamentais. Assim, a despeito do caráter analítico do Titulo II da CF, onde estão contidos os direitos e garantias como tal designados e reconhecidos pelo constituinte, cuida-se de uma numeração não taxativa. O art. 5º, § 2º da CF representa, portanto, uma cláusula que consagra a abertura material do sistema constitucional de direitos fundamentais como sendo um sistema inclusivo e amigo dos direitos fundamentais” 52. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, pg. 83, Ed. Max Limonad, SP, 1996 Ingo Wolfgang Sarlet, Comentários à Constituição do Brasil, Editora Saraiva, Almedina e IDD, São Paulo, 2013, p. 517.

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Com efeito, “interpretando-se o § 3º do art. 5º da CF no contexto onde se inserem os tratados de direitos humanos na Constituição, chega-se à conclusão que os tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil já têm status de norma constitucional em virtude do disposto no § 2º do art. 5º da Constituição, segundo o qual os direitos e garantias expressos no texto constitucional ‘não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela dotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte’, pois na medida e que a Constituição não exclui os direitos humanos provenientes de tratados, é porque ela própria os inclui nos seu catálogo de direitos protegidos, ampliando o seu ‘bloco de constitucionalidade’ e atribuindo-lhes hierarquia de norma constitucional 53”. Portanto, os Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil estão inseridos em nosso ordenamento jurídico entre as normas constitucionais de proteção dos direitos fundamentais, constituindo, assim, o seu bloco de constitucionalidade. Não se pode admitir, pois, qualquer antinomia entre as leis, as normas constitucionais e os Tratados e Convenções Internacionais de proteção dos Direitos Humanos, especialmente no que diz respeito aos seus princípios, que são normas e, por isso, devem ser respeitados também 54. Ingo Wolfgang Sarlet. op. cit. p. 520 É verdade que o Supremo Tribunal Federal tem afirmado, em suas últimas decisões a respeito da validade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, que estes não têm estatura constitucional, se não foram aprovados de acordo com as exigências do § 3º do artigo 5º da CF (aprovação em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros). Entretanto, tem decidido, também, a Suprema Corte, que, embora não estejam equiparados às normas constitucionais, os Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos são normas supralegais, ou seja, estão acima das leis, que aqueles não podem contrariar. Com efeito, no julgamento do Recurso Extraordinário 466.343, da relatoria do Ministro Gilmar Mendes, o STF, analisando a hierarquia das normas jurídicas no direito brasileiro, decidiu que os tratados internacionais que versem sobre matéria relacionada a Direitos Humanos têm natureza infraconstitucional e supralegal, salvo aqueles que, nos termos do artigo 5º, §3º da CF, tiverem sido aprovados em dois turnos de votação por três quintos dos membros de cada uma das casas do Congresso Nacional, ganhando, assim, caráter de norma constitucional, tal qual as emendas constitucionais. Também vale lembrar outra decisão do STF, nesse mesmo sentido, sobre a previsão legal da possibilidade de prisão do depositário infiel em face dos dispositivos e princípios da Convenção Americana de Direitos Humanos: “Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n° 911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002). […] (RE 349703. Relator: Min. Carlos Ayres Britto) – grifo nosso. Portanto, o STF tem decidido, reiteradamente, que estão os Tratados e Convenções de Direitos Humanos, no espectro vertical das normas, acima das leis, o que torna absolutamente inaceitável qualquer antinomia ou incompatibilidade entre as leis e aquelas normas, regras e princípios de proteção de direitos humanos. Decididamente, apesar do reducionismo hermenêutico dessas decisões do STF, está absolutamente consagrado, de modo incontestável, que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, como é o caso da Convenção Americana de Direitos Humanos, são, na pior das hipóteses, supralegais, ou seja, estão acima das leis e as submetem. 53

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Em consequência, cabe ao poder legislativo, bem como aos poderes executivo e judiciário, impedir a aprovação e a aplicação de leis que contrariem, não apenas as normas constitucionais, mas, também, aqueles que afrontam as regras e princípios dos Tratados Internacionais que versam sobre Direitos Humanos, como a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de São José da Costa Rica), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (PIDESC), bem como as orientações expedidas pelos denominados “treaty bodies” – Comissão Internamericana de Direitos Humanos e Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, dentre outros – e a jurisprudência das instâncias judiciárias internacionais de âmbito americano e global – Corte Interamericana de Direitos Humanos e Tribunal Internacional de Justiça da Organização das Nações Unidas, respectivamente. 3. Princípio constitucional de garantia do direito a manifestação do pensamento e liberdade de expressão. A Assembleia Constituinte, ao editar a atual Constituição Federal, coroando o processo de redemocratização iniciado no Brasil no final da década de 1970, e rompendo definitivamente com o regime ditatorial implantado pelo golpe militar de 1964, consagrou, em seu artigo 5º, IV, metido a rol entre os direitos e garantias fundamentais, a liberdade de expressão dos cidadãos e cidadãs como um objetivo de máxima importância para a garantia plena do Estado Democrático e Social de Direito. Aliás, no espectro constitucional, esse direito também é assegurado a todos os cidadãos e cidadãs nos incisos V, IX, XIV e XVI do artigo 5º, no inciso III do artigo 139, na alínea “a” do inciso VI do artigo 150, nos incisos II e III o artigo 206 e nos artigos 215 e 220 a 224 da Constituição Federal/88. No sistema global de proteção dos Direitos Humanos, a liberdade de expressão é garantida na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 19) e no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 19). E, no âmbito regional, esse direito fundamental é assegurado, expressamente, pela Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 13). 165


Além disso, a Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão55, por sua vez, afirmando que a consolidação e o desenvolvimento da democracia dependem da existência de liberdade de expressão e que é inadmissível obstaculizar o livre debate de ideias e opiniões, estabeleceu, entre outros, os seguintes princípios, que devem ser observados pelos Estados subscritores da Convença Americana de Direitos Humanos, entre os quais está o Brasil: 1. A liberdade de expressão, em todas as suas formas e manifestações, é um direito fundamental e inalienável, inerente a todas as pessoas; 2. Toda pessoa tem o direito de buscar, receber e divulgar informação e opiniões livremente; 5. A censura prévia, a interferência ou pressão direta ou indireta sobre qualquer expressão, opinião ou informação através de qualquer meio de comunicação oral, escrita, artística, visual ou eletrônica, deve ser proibida por lei; e 6. Toda pessoa tem o direito de externar suas opiniões por qualquer meio e forma. É por isso que, assegurando a inviolabilidade do direito à liberdade de expressão, o Supremo Tribunal Federal decidiu ser inconstitucional, por exemplo, a vedação legal de “proselitismo de qualquer natureza nos serviços de rádio comunitária” (ADI 2.566-0), todos os dispositivos da Lei de Imprensa - Lei nº 5.250/67 (ADPF 130) e a interpretação de quaisquer preceitos legais que inviabilizassem a “Marcha da Maconha” (ADPF 187). Aliás, nessas decisões da Suprema Corte ficou assentado que todo conteúdo de mensagem encontra-se prima facie assegurado constitucionalmente, ainda que considerado impopular, incorreto ou mesmo perigoso por parcela da comunidade, que, eventualmente, entenda ser tal conteúdo contrário aos seus interesses e convicções. Com efeito, como ensina SARMENTO, “um dos campos em que é mais necessária a liberdade de expressão é exatamente na defesa do direito à manifestação de ideias impopulares, tidas como incorretas ou até perigosas pelas maiorias, pois é justamente nesses casos em que ocorre o maior risco de imposição de restrições”56. Na sua expressão objetiva, “a liberdade de expressão deriva do reconhecimento de que, além de direito individual, ela acolhe um valor extremamente importante para o funcionamento das sociedades democráticas, que deve ser 55 Aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em seu 108º período ordinário de sessões, celebrado de 16 a 27 de outubro de 2000 56 Sarmento, Daniel, Comentários à Constituição do Brasil, Saraiva, São Paulo, 2013, p. 256

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devidamente protegido e promovido. Este valor deve irradiar-se por todo o ordenamento jurídico, guiando os processos de interpretação e aplicação das normas jurídicas em geral57”. Assim, não tem razão o autor do projeto em exame quando, no item 5 de sua “justificação”, afirma que a “liberdade de ensinar – assegurada pelo art. 206, II, da Constituição Federal – não se confunde com liberdade de expressão”. A liberdade de Ensinar há de ser garantida, sim, no espectro da liberdade de Pensamento e Expressão, o que garante àquela a sua real dimensão democrática e republicana. Mas, o projeto de lei em exame, sob o pretexto de impedir a manipulação do ensino para fins políticos e ideológicos, como consta de sua “justificação”, pretende, na realidade, coibir, de modo absolutamente inaceitável e inconstitucional, a liberdade de expressão e manifestação de pensamento, mediante inadmissível controle e censurada da prática educacional e da liberdade de ensinar. 4. A proibição constitucional à censura. A liberdade de expressão, na sua dimensão subjetiva, é, antes de tudo, um direito negativo, que protege os seus titulares das ações do Estado e de terceiros que visem a impedir, prejudicar ou limitar o exercício da liberdade de externar ou divulgar ideias, opiniões e informações, especialmente no processo de ensinagem, o qual compete, por obrigação constitucional, tanto à família como ao Estado. Assim, não se pode admitir qualquer violação desse direito fundamental, por lei ou por qualquer ato estatal, seja posterior à manifestação do pensamento, mediante a imposição de qualquer medida repressiva, seja previa, mediante a adoção de qualquer modalidade de censura. É por isso que, especificando tal garantia, sem receio de ser redundante, a Constituição Federal afirma, textualmente, no inciso IX de seu artigo 5º, que é “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica ou de comunicação, independentemente de censura”. Além disso, dispõe o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que o direito à livre manifestação de pensamento “não pode estar 57

Sarmento, Daniel. op. cit. p. 256.

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sujeito à censura prévia” e, ainda, que “não se pode restringir o direito de expressão” por qualquer meio hábil para impedir a “comunicação e a circulação de ideias e opiniões”. Como se vê, a proibição da censura é um dos aspectos centrais da liberdade de pensamento e expressão. Aliás, como lembra SARMENTO, “é natural a inclinação dos regimes autoritários em censurar a difusão de ideias e informações que não convém aos governantes. Mas, mesmo fora das ditaduras, a sociedade muitas vezes reage contra posições que questionem os seus valores mais encarecidos e sedimentados, e daí pode surgir a pretensão das maiorias de silenciar os dissidentes. O constituinte brasileiro foi muito firme nessa matéria, ao proibir peremptoriamente a censura” (op. cit. p. 275). A censura, portanto, seja ela praticada por atos administrativos, decisões judiciais ou no campo legislativo, é absolutamente incompatível com os princípios democráticos e constitui uma das mais graves violações à liberdade de expressão que se possa conceber. Todavia, o projeto de lei em análise, de modo flagrantemente inconstitucional, ignora essa proibição de censura ao direito de liberdade de expressão e manifestação de pensamento. Ao invocar o princípio da “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”, em seu artigo 2º58, e, ainda, ao vedar, em sala e aula, “a prática de doutrinação política e ideológica, bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”59, o projeto impõe censura à prática educativa, o que é inconstitucional. Inquestionavelmente, de acordo com a concepção constitucional da educação, a Escola há de ser um ambiente de prática libertadora, exatamente para que todos tenham a liberdade de exteriorizar o seu pensamento, a partir da pluralidade de temas e diversidade de enfoques, com criticidade e criatividade, sempre com respeito às minorias e combate a todo tipo de Art. 2º. A educação nacional atenderá aos seguintes princípios: I - neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado. Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes.

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discriminação seja de etnia, gênero, orientação sexual e religião. Em face dos mencionados princípios constitucionais, não se pode restringir determinados conteúdos por razões ideológicas ou por contraporem convicções religiosas ou morais, pois o objetivo da escola é, principalmente, transmitir conhecimento científico e formar cidadãs e cidadãos críticos. A escola, enfim, segundo a sua dimensão principiológica constitucional, é um dos poucos ambientes na sociedade em que as pessoas têm condições de conhecer várias visões de mundo. Mas, o projeto em análise, a pretexto de combater a “doutrinação política e ideológica”, pretende isolar as pessoas em uma única visão do mundo, o que constitui, aí sim, uma inaceitável ideologia de dominação, alienação e exclusão, mediante a instituição de inaceitável e inconstitucional censura. O projeto em menção, que espelha os princípios ideológicos formadores do movimento “Escola Sem Partido”, conforme admitido, explicitamente, em sua “justificação”, sob o pretexto de “garantir direitos”, pretende, na verdade, vigiar e cercear a liberdade de ensino nas escolas. Aliás, basta verificar que esse projeto propõe, no § 1º de seu artigo 5º60, que sejam afixados nas salas de aula cartazes com os deveres dos professores61, advertindo-os, inclusive, de que deverão, pena de serem submetidos a punições, respeitar “o direito dos pais a que seus 60 Art. 5º. Os alunos matriculados no ensino fundamental e no ensino médio serão informados e educados sobre os direitos que decorrem da liberdade de consciência e de crença assegurada pela Constituição Federal, especialmente sobre o disposto no art. 4º desta Lei. § 1º. Para o fim do disposto no caput deste artigo, as escolas afixarão nas salas de aula, nas salas dos professores e em locais onde possam ser lidos por estudantes e professores, cartazes com o conteúdo previsto no Anexo desta Lei, com, no mínimo, 70 centímetros de altura por 50 centímetros de largura, e fonte com tamanho compatível com as dimensões adotadas. § 2º. Nas instituições de educação infantil, os cartazes referidos no § 1º deste artigo serão afixados somente nas salas dos professores. 61 ANEXO. DEVERES DO PROFESSOR. I - O Professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária. II - O Professor não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas. III - O Professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas. IV - Ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, o professor apresentará aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e seriedade –, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito. V - O Professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. VI - O Professor não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula.

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filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”, o que constitui evidente violação à liberdade de expressão e cátedra. É verdade que, em sua “justificação”, o projeto em exame invoca, para fundamentar esse dever imposto aos professores, o disposto no artigo 12, 4 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que afirma que os pais e tutores “têm o direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções”. Entretanto, ao invocar tal dispositivo de garantia de Direitos Humanos, o autor do projeto utiliza-se de expediente hermenêutico tendencioso e, por isso, equivocado, invertendo, propositadamente, o seu significado e alcance, afastando-o, deliberadamente, e de modo fragmentado, do contexto de proteção em que está inserido62. Com efeito, o artigo 12 da Convenção de Direitos Humanos, que foi editado, especificamente, para dar proteção à liberdade de consciência e religião, não tem o alcance que lhe dá o projeto e não pode ser interpretado em antinomia com o artigo 13 da mesma convenção, que garante a liberdade de Pensamento e de Expressão, afirmando, expressamente, que esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, de forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha. E também não se olvide que o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos afirma, expressamente, que o direito à liberdade de Pensamento e Expressão não pode estar sujeito a qualquer tipo de censura prévia e, ainda, que esse direito não pode sofrer restrições63. Ademais, a leitura do disposto no artigo 12, 4 da Convenção Americana de Direitos Humanos não pode ser feita, como quer a “justificação” do CAPÍTULO I. ARTIGO 12. Liberdade de Consciência e de Religião. 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado. 2. Ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças. 3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita unicamente às limitações prescritas pelas leis e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou moral pública ou os direitos ou liberdades das demais pessoas. 4. Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções.

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projeto em menção, excluindo-se o artigo “a” que antecede a expressão “educação religiosa e moral”. Com efeito, esse dispositivo convencional não garante aos pais e tutores o direito a que seus filhos recebam “educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções”, mas, sim, “a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções”. É evidente, pois, que, quando houver educação religiosa, especialmente nas escolas confessionais, devem ser respeitadas as convicções dos pais ou tutores dos educandos, mas, isso não significa que haverá, em todo processo educacional, obrigatoriamente, educação religiosa e moral ministrada de acordo com as convicções dos pais e tutores. E muito menos significa tal expressão convencional que o direito de liberdade de pensamento e expressão dos professores está sujeito às convicções particulares dos pais ou tutores, o que seria, até mesmo na prática, absolutamente inaplicável, em face da imensa possibilidade de distintas convicções de todos os pais ou tutores de todos os aprendizes. Decididamente, o que se garante aos pais, na realidade, como está expresso no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), ratificado pelo Brasil, em seu artigo 13, item 6, é o respeito “à liberdade dos pais e, quando for o caso, dos tutores legais, de escolher para seus filhos escolas distintas daquelas criadas pelas autoridades públicas, sempre que atendam aos padrões mínimos de ensino prescritos ou aprovados pelo Estado, e de fazer com que seus filhos venham a receber educação religiosa ou moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. Mas não é só. PARTE I. Deveres dos Estados e Direitos Protegidos. ARTIGO 13. Liberdade de Pensamento e de Expressão. 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha. 2.- O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei a ser necessária para assegurar: a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral pública. 3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões. 4. A lei pode submeter os espetáculos públicos à censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2º. 5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.

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Lembre-se de que, na “justificação” do projeto em tela, está afirmado que “é fato notório que professores e autores de livros didáticos vêm-se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas; e para fazer com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente moral sexual – incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis (sic)”. Entretanto, com essa afirmação, feita de forma absolutamente leviana, inspirada por uma “paranoia delirante”, e sem nenhuma comprovação, com base em mero subjetivismo ideológico e raciocínio falacioso, o autor do projeto em menção, embasado em premissas falsas, subverte a lógica da atuação dos professores no processo de educação. É que compete, sim, aos professores, questionar, criticar e provocar a reflexão dos alunos a respeito dos ensinamentos de seus pais e responsáveis, especialmente no âmbito da moralidade e sexualidade, exatamente para dar cumprimento ao seu dever constitucional de promover o “pleno desenvolvimento da pessoa” e “seu preparo para o exercício da cidadania”, como dispõe expressamente o artigo 205 da CF/88. 5. Da educação como um direito fundamental. A educação, que é um direito fundamental assegurado a todos pela Constituição Federal, de acordo com o seu artigo 205, constitui um dever do Estado e da família, e deve ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando, além da qualificação para o trabalho, ao “pleno desenvolvimento da pessoa” e “seu preparo para o exercício da cidadania”. Lembre-se, portanto, antes de qualquer outra coisa, que a ação educativa deve, em decorrência desse preceito constitucional, ser desenvolvida pela família, sim, mas, também, pelo Estado, com a colaboração da sociedade. Não é possível, pois, por força desse dispositivo constitucional, admitir que à família seja deferido, com exclusividade, qualquer aspecto da ação educativa. Portanto, não tem razão o autor do projeto em exame, quando, na apresentação de sua “justificação”, afirma que “os pais têm direito a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias 172


convicções” (item 14) e, por isso, que “cabe aos pais decidir o que seus filhos devem aprender em matéria de moral”, excluindo, assim, às completas, quaisquer ações educativas do Estado e da sociedade com “conteúdos morais que não tenham sido previamente aprovados pelos pais dos alunos” (item 15). Cabe à família, inquestionavelmente, atuar no processo educativo, mas no espaço privado, enquanto ao Estado compete, obrigatoriamente, realizar a ação educativa no espaço público, com a colaboração e participação da sociedade, integrando o aprendiz aos conceitos e valores sociais, inclusive para que, como ensina Hannah Arendt, seja possível ao Estado e à sociedade estabelecer limites à eventual tirania da educação familiar, libertando os alunos e alunas de eventuais preconceitos, discriminações, estereótipos e concepções religiosas ou morais excludentes, racistas, homofóbicas ou ditadas por ideologia patriarcal, patrimonialista ou de viés político exclusivista, possibilitando o desenvolvimento autônomo, crítico e criativo de todas as pessoas. Ademais, como está expressamente previsto no artigo 13, § 1º do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, “a educação deve orientar-se para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade, e deve fortalecer o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais”. É por isso que, segundo dispõe o artigo 205 da CF/88, a educação, em sua concepção teleológica constitucional, deve assegurar o “pleno desenvolvimento da pessoa” e “seu preparo para o exercício da cidadania”. O direito ao pleno desenvolvimento da pessoa humana, segundo PIAGET, consiste “em formar indivíduos capazes de autonomia intelectual e moral e respeitadores dessa autonomia em outrem, em decorrência precisamente da regra da reciprocidade que o torna legítima para eles mesmos”64. E a democracia, segundo Konrad Hess, é “um assunto de cidadãos emancipados, informados, não de uma massa de ignorantes, apática, dirigida apenas por emoções e desejos irracionais, que, por governantes bem intencionados ou mal intencionados, sobre a questão do seu próprio destino, é deixada na obscuridade 65”. Para onde vai a educação?, p. 60 Elementos de Direito Constitucional da Republica Federal da Alemanha. Trad. Luíz Afonso Reck. Porto Alegre: Fabris, 1998, p. 133 64 65

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Como afirma Hannah Arendt, a autora das inexcedíveis obras “A condição Humana” e “As Origens do Totalitarismo”, não se pode aprisionar o sistema educacional ao tecnicismo de uma pedagogia acrítica e descompromissada com os valores constitucionais e com a formação da cidadania, violando-se o seu significado político e social (“A Crise na Educação). Portanto, a Educação, em um Estado de Direito Democrático, deve exercer, no espaço público, múltiplos papeis: a) é um instrumento permanente de aperfeiçoamento humanístico da sociedade; b) promove a autonomia do indivíduo; c) promove a visão de mundo das pessoas, superando as concepções marcadas pela intolerância, pelo preconceito, pela discriminação e pela análise não crítica dos acontecimentos; d) promove o sentimento de responsabilidade das pessoas com relação ao mundo em que vivem, o qual constitui, também, o resultado de suas próprias ações; e) promove a consciência de que viver em uma República não implica apenas desfrutar direitos, mas, também, assumir responsabilidades cívicas; e f) promove a consciência pelo valor dos direitos individuais e sociais. E é exatamente por isso que o artigo 206 da Constituição Federal/88 consagra, no âmbito da educação, entre outros, os princípios fundamentais da igualdade, da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e, ainda, do pluralismo das ideias e concepções pedagógicas, sempre no bojo do princípio fundamental garantidor da liberdade de pensamento e expressão. 6. O princípio da igualdade. Segundo o princípio da igualdade, a educação deve ser um instrumento de emancipação e, por isso, ao Estado cabe atuar para corrigir as chamadas de174


sigualdades fáticas, que ocorrem por elementos externos ao indivíduo e que interferem diretamente no seu plano de vida (CF/88, artigo 206, inciso I). Entretanto, o projeto em comento ignora que, no cumprimento desse dever, cabe ao Estado pautar-se por uma concepção plural da sociedade nacional, pois apenas uma relação de igualdade permite a autonomia individual, a qual somente será assegurada se cada cidadão e cidadã tiver a possibilidade de sustentar as suas muitas e diferentes concepções do sentido e da finalidade da vida. É por isso, por exemplo, que, segundo o Relatório de Ação da Conferência de Beijing, de 1995, todos os Estados devem, no âmbito dos direitos das mulheres, “adotar todas as medidas necessária, especialmente na área da educação, para modificar hábitos de condutas sociais e culturais da mulher e do homem, e eliminar os preconceitos e as práticas consuetudinárias e de outro tipo baseadas na ideia da inferioridade ou da superioridade de qualquer dos sexos e em funções estereotipadas atribuídas ao homem e à mulher” (§ 1242). Portanto, o dever do Estado de garantir a todos o direito à educação deve ser cumprido, não de acordo com os propósitos do projeto em menção, não de acordo com as concepções religiosas e morais exclusivas dos pais ou responsáveis pelos aprendizes, mas, sim, no espaço público da atuação do Estado, de acordo com os Objetivos Fundamentais da Republica Federativa do Brasil, previstos expressamente no artigo 3º da Constituição Federal: a) construir uma sociedade livre, justa e solidária; b) garantir o desenvolvimento nacional; c) erradicar a pobreza e a marginalização; d) reduzir as desigualdades sociais; e e) promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor idade e quaisquer outras formas de discriminação. Induvidosamente, toda ação pedagógica deve ser desenvolvida visando à mudança de mentalidade, com difusão de uma nova cultura de respeito às diferenças, o que é incompatível com a proposta do projeto em comento, em face de sua ideologia de exclusão e alienação, fundamentadora da desigualdade. 7. Princípio da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber. Segundo o princípio da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, previsto expressamente no artigo 206, 175


inciso II da Constituição Federal, a educação deve pautar-se pela liberdade de ensino dos professores, de acordo com o seu saber e a sua orientação científica e pedagógica, mas também deve considerar o direito do aluno à compreensão crítica dos conteúdos, o que impede que o Estado imprima ao processo educativo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas. Induvidosamente, o direito à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, corolário do direito fundamental à liberdade de pensamento e expressão, reveste-se de um elemento essencial no trato de questões que precisam ser debatidas no espaço público: o pluralismo, que somente terá significado e eficácia no campo da formação se for objeto de discussão no plano da liberdade das práticas pedagógicas, pois a escola é, também, um lugar de aperfeiçoamento do cidadão sob a égide dos valores protegidos pela Constituição. Portanto, é preciso garantir, sobretudo, aos professores e professoras, a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, na sua dimensão constitucional, sem submetê-la a restrições que violem os princípios e objetivos estabelecidos pela Constituição no âmbito do direito à educação. Aliás, para que a liberdade de ensinar seja efetivamente garantida, é preciso reconhecer que, no concerto constitucional, o professor é, sobretudo, um educador. Contudo, o movimento “Escola Sem Partido”, que dá lastro teórico e ideológico ao projeto em exame, sustenta que os professores não são educadores, mas apenas instrutores, que deveriam limitar-se a transmitir a “matéria objeto da disciplina”, sem discutir valores e a realidade em que estão inserido os alunos e alunas, o que é inaceitável diante da proposta constitucional de educação como direito fundamental. Com efeito, uma das principais referências bibliográficas desse movimento ideológico é o livro “Professor não é educador”, de Armindo Moreira, que sustenta a tese de que são distintos os atos de educar e instruir, afirmando que “educar” seria uma tarefa de responsabilidade da família e da igreja, enquanto aos professores, na sala de aula, caberia, apenas e tão-somente, “instruir” e “transmitir conhecimento”. 176


Entretanto, a nossa Constituição Federal, ao estabelecer os objetivos da educação, afirma que cabe ao Estado, no processo educativo, o preparo dos aprendizes para o exercício da cidadania. Assim, cabe aos professores, em face do princípio constitucional em referência, formar os alunos e alunas para a cidadania, visando ao seu desenvolvimento pleno, discutindo e questionando valores, expondo ideias e possibilitando a crítica e a criatividade diante do contexto social e político em que estão inseridos. É por isso que, na última Conferência Nacional da Educação (CONE), ficou assentado que “deve ser inserida, implementada e garantida na política de formação dos professores a discussão de raça, étnica, gênero, identidade de gênero, diversidade sexual, adotando práticas de superação de todas as formas de preconceitos”, o que evidencia que o professor tem, sim, no espectro constitucional, função educadora, direcionada à formação da cidadania, não apenas a de instruir e transmitir ensinamentos. Contudo, segundo os mentores do “Escola Sem Partido”, movimento que inspira o projeto em análise, o professor deve apenas “instruir” e limitar-se à abordagem da matéria de sua disciplina, especificamente, de forma isolada, sem tratar da realidade do aluno e do que está acontecendo no mundo, sem discutir o que acontece no noticiário ou na comunidade em torno da escola, afirmando, inclusive, que “o professor não fará propaganda política partidária dentro da sala de aula, nem incitará seus alunos a participarem de manifestações, atos públicos e passeatas”. Ora, é evidente e inegável que os professores não devem fazer propaganda partidária em suas aulas, mas, proibi-los de discutir política e de debater assuntos vinculados ao noticiário é algo absolutamente inconcebível, que viola, não apenas a liberdade de expressão e pensamento, inclusive dos alunos, mas, também, o princípio constitucional que estabelece como objetivo da Educação o preparo dos aprendizes para o exercício da cidadania. Na realidade, o projeto em exame, quando afirma que pretende defender a neutralidade na escola, visa, na verdade, anular a individualidade e o poder emancipatório do próprio aluno, ignorando sua condição de sujeito de direitos e questionando sua capacidade de formar opiniões próprias. Afirmar, como está afirmado textualmente no projeto em exame, que “o professor não incitará que seus alunos participem de manifestações, atos 177


públicos e passeatas” significa, à evidência, que se pretende proibir os professores de estimular os alunos a participarem da democracia. É por isso, também, que o Ministério da Educação, criticando o movimento “Escola Sem Partido”, afirmou, recentemente, que os seus projetos constituem verdadeiro cerceamento pedagógico e impedem “o cumprimento do princípio constitucional que assegura aos estudantes a liberdade de aprender em um sistema educacional inclusivo”, que “a liberdade dos professores é ferida e censurada” e que “um professor, ao abordar o preconceito e trabalhar o desenvolvimento de uma cultura de paz e o respeito e tolerância em sala de aula, cumpre os objetivos fundamentais da Constituição Federal, que pretende garantir um Brasil sem discriminação” (Ministério da Educação e Cultura: manifestação sobre o Programa Escola Livre, que, em Alagoas, exigia neutralidade aos professores em sala de aula). E não se olvide, ainda, que, segundo o Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos, elaborado pela ONU, em 2006, afirma que, para a garantia do império dos Direitos Humanos a Educação “vai além de uma aprendizagem cognitiva, incluindo o desenvolvimento social e emocional de quem se desenvolve no processo de ensino-aprendizagem.” Decididamente, o direito à educação, que exige ação educativa voltada para a formação da cidadania, de acordo com os preceitos constitucionais e de Direitos Humanos, não se resume ao direito de ir à escola, mas, exige, sim, uma educação de qualidade, capaz de promover o pleno desenvolvimento da pessoa, preparada para responder aos interesses de quem estuda e de sua comunidade. É exatamente essa a dimensão do princípio da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, conforme previsto expressamente no artigo 206, inciso II da Constituição Federal. Decididamente, a educação, de acordo com o compromisso social e político que lhe impõe a Constituição Federal, deve promover o respeito à diversidade (étnico-racial, religiosa, cultural, geracional, territorial, de gênero, de orientação sexual, de nacionalidade, de opção política, dentre outras), a solidariedade entre povos e nações e, como consequência, o fortalecimento da tolerância e da paz. 178


Ademais, consta expressamente da Declaração de Viena, de 1993, em seu item 80, que, para os Direitos Humanos, a educação “deverá incluir a paz, a democracia, o desenvolvimento e a justiça social, conforme definidos nos instrumentos internacionais e regionais de Direitos Humanos, a fim de alcançar uma compreensão e uma consciencialização comuns, que permitam reforçar o compromisso universal em favor dos Direitos Humanos”. A construção gradativa de uma sociedade efetivamente igualitária, democrática e justa exige a oferta da educação, a todos os seres humanos, como um instrumento constitutivo da humanidade e emancipatório. Além disso, lembre-se de que o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), ratificado pelo Brasil, afirma, em seu artigo 13, § 1º, que “os Estados-parte no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação”, que “concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais” e que “concordam, ainda, que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz”. É por tudo isso que o princípio da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, previsto expressamente no artigo 206, inciso II da Constituição Federal, exige que o professor seja, antes de tudo, um educador, não um mero transmissor de informações ou conhecimentos como pretende o movimento “Escola Sem Partido”, que pariu o projeto em análise. Como se vê, o PL 867/2015, assim como todas as suas variações estaduais e municipais engendradas no seio do movimento “Escola sem Partido”, não pretende, na realidade, garantir direitos constitucionais já estabelecidos, mas, sim, restringi-los e até mesmo negá-los, mediante uma tentativa de estabelecer uma interpretação equivocada da nossa constituição, amputando intencionalmente dispositivos constitucionais com base em uma concepção absolutamente deturpada do que seria o processo de educação. 179


8. O princípio do pluralismo de ideias e concepções pedagógicas De acordo como o que preceitua o principio constitucional do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, a ideia de liberdade implica o respeito à diversidade de pensamento, o que exige, no processo educacional, o reconhecimento das diferenças regionais e sociais (CF/88, art. 3º), passando pelas garantias do ensino religioso facultativo e das línguas indígenas maternas no ensino fundamental (CF/88, art. 210, §§ 1º e 2º), e pelo ensino da História do Brasil a partir das contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígenas, africana e europeia (LDB, artigos 26, §4º e 26-A) (inciso III). Mas, ignorando, também, que o princípio do pluralismo refere-se tanto às ideias como às concepções pedagógicas, o projeto em exame amputa o respectivo dispositivo constitucional garantidor desse princípio, reduzindo-o ao “pluralismo de ideias no ambiente acadêmico” (art. 2º, II). Aliás, o projeto também reduz a expressão principiológica “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” (CF/88, art. 206, II), limitando-a à expressão “liberdade de aprender, como projeção específica, no campo da educação, da liberdade de consciência” (Art. 2, III). Ao propor a neutralidade na escola, na verdade, o projeto em análise visa anular a individualidade e o poder emancipatório do próprio aluno, ignorando a sua condição de sujeito de direitos e desprezando a sua capacidade de formar opiniões próprias. E ao cercear a liberdade de ensinar e aprender, o Programa Escola sem Partido deixa de garantir que a escola seja um espaço plural de conhecimento e saberes, o que evidencia a sua antinomia com o sistema constitucional. As escolas devem garantir a todas as crianças e adolescentes a oportunidade de acessarem as diferentes ciências e concepções de mundo, suas contradições, antíteses e refutações, o que torna indispensável, porque fundamental, o debate sobre ética, política, religião e ideologia. E, para que o processo de educação seja efetivo e desenvolvido de acordo 180


com a proposta principiológica constitucional, há de ser garantida a liberdade de ensinar do professor. Entretanto, propositadamente, em evidente postura ideológica ditada pelo movimento “Escola Sem Partido”, o projeto em menção, ignorando o texto do inciso III do artigo 206 da CF/88, excluiu o “pluralismo de concepções pedagógicas” e a “liberdade de ensinar” de seu texto. O princípio constitucional do pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, ao contrario do que propõe o projeto em exame, exige que o processo educacional direcione as suas atividades e práticas para a formatação de uma sociedade aberta a múltiplas e diferentes visões de mundo. A escola, assim, de acordo com os objetivos e princípios constitucionais, deve ser um espaço público estratégico para a emancipação política e para por cobro às ideologias sexistas, racistas e religiosas, bem como para possibilitar o enfrentamento dos preconceitos, das discriminações e da desigualdade. 9. Conclusão. Decididamente, o Projeto de Lei n. 867/2015, de autoria do Deputado Izalci (PSDB/DF), gerado no ventre do “Movimento Escola sem Partido”, como está expressamente afirmado em sua própria “Justificação”, é inconstitucional, pois viola o direito fundamental à liberdade de expressão e manifestação de pensamento, ignora a proibição constitucional à censura, impede o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, vulnera o princípio da igualdade, coloca os professores e professoras sob constante vigilância e censura, negando-lhes a liberdade de cátedra, nega aos alunos e alunas a possibilidade do exercício do direito constitucional a uma educação emancipatória, impossibilita a ampla aprendizagem, confunde a educação escolar, que é de responsabilidade estatal, com aquela que deve fornecida pelos pais, ou seja, confunde espaço público com espaço privado, viola o princípio da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, contraria a exigência constitucional da laicidade do Estado e fere de morte, em sua essência, o direito constitucional à educação e o seu significado político e social. Esse projeto constitui um verdadeiro ovo de serpente, que o invocado 181


movimento “Escola sem Partido” tenta, ideologicamente, implantar em nosso sistema de educação, em flagrante violação aos preceitos constitucionais, à democracia e à cidadania. São Paulo, 04 de agosto de 2016. A Associação Juízes para a Democracia

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POVOS INDÍGENAS Denunciando as violações contra os povos originários

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Relatório para ONU

RELATO DA SITUAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL PARA O UNIVERSAL PERIODICAL REVIEW A Associação Juízes Para a Democracia (AJD) vem, por meio deste, manifestar-se no Relatório conjunto do CIMI, FIAN Brasil, JUSTIÇA GLOBAL e ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA para o terceiro ciclo de avaliação do BRASIL no âmbito do Mecanismo de Revisão Periódica Universal da ONU: a situação dos direitos humanos dos povos indígenas – um enfoque no acesso à justiça, na criminalização e entrave jurídicos para efetivar a demarcação de terras dos povos indígenas do Brasil (marco temporal), outubro de 2016. Introdução 1. As organizações da sociedade civil brasileira, focadas no trabalho com direitos humanos e com especial atenção aos povos e comunidades tradicionais do Brasil, dentre eles os povos indígenas, vêm apresentar ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas contribuição relativa ao 3º Ciclo de monitoramento do Brasil pelo mecanismo da Revisão Periódica Universal (RPU). 2. Houve pouco avanço do Estado Brasileiro nas questões relativas aos povos e comunidades tradicionais nos últimos anos. Pode-se falar em retrocesso de direitos, conforme fatos e dados que serão apresentados. 3. Dentre as variadas facetas deste processo de retrocesso, três fatores se destacaram nos últimos anos e são o foco deste relatório, dada a importância dos mesmos para o efetivo respeito, proteção e promoção dos direitos humanos de povos e comunidades tradicionais do Brasil, em especial dos povos indígenas, quais sejam: a) a violação ao direito dos povos indígenas de acesso à justiça; b) os entraves jurídicos para efetivar a demarcação de terras dos povos indígenas do Brasil, como o marco temporal; c) a criminalização dos movimentos sociais representantes de povos e comunidades tradicionais, bem como das organizações que provêm assessoria a estes movimentos sociais. 4. A importância do acesso dos povos indígenas à justiça se dá pela transversalidade de tal questão com todos os direitos humanos de tais povos, bem como a sua defesa frente ao sistema judiciário nacional. A teoria do marco temporal, por sua vez, basicamente impõe limites ao direito originário à ter184


ra e ao território, limitando, portanto, um direito basilar, de fundamental importância. Por fim, a criminalização de movimentos indígenas e organizações correlatas impede a realização de todos os direitos humanos de tais povos, dado que o Estado Brasileiro persegue lideranças e dificulta a atuação dos movimentos e organizações de apoio, inviabilizando não só a fruição de direitos como também a plenitude da vida democrática. 5. Recomendações estabelecidas no último ciclo de monitoramento do Brasil pela RPU, de 2012, tocavam pontos nos quais o presente relatório é focado (anexo 1) e com base nos fatos narrados a seguir, é obrigatório concluir que o retrocesso se confirma, uma vez que a maior parte das recomendações não foram efetivadas pelo Estado Brasileiro, especialmente as focadas neste relatório. O direito dos povos indígenas de acesso à justiça e violações: O direito de ser parte nos processos afetos aos seus interesses e o dever de serem chamados, nestes processos: 6. Os conflitos atuais envolvendo a terra e o território de povos indígenas no Brasil são, em grande parte, judicializados. Tais conflitos estão diretamente relacionados com fatos ocorridos no século passado, tempo em que as comunidades indígenas enfrentaram violências física, psíquica e cultural, seguidas de um ardiloso processo de espoliação do seu patrimônio e de suas terras, promovido sob a tutela estatal. Dois documentos oficiais: o capítulo sobre Violações de Direitos Humanos dos Povos Indígenas da Comissão Nacional da Verdade (CNV)66 e o chamado Relatório Figueiredo67 mostram bem as violações sofridas pelos povos indígenas, particularmente, no período da ditadura civil-militar. 7. Até a promulgação da Constituição Federal da República Federativa do Brasil, em outubro de 1988, os povos indígenas eram tutelados. Em outras palavras, os indígenas foram impedidos de registrar seu patrimônio ou mesmo de ingressar em juízo para resguardá-lo até a citada data, pois não eram considerados sujeitos de pleno direito. Dessa forDisponível em: http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/Volume%202%20-%20Texto%205.pdf. Acessado em: 4 de agosto de 2016. O Relatório Figueiredo foi encontrado em agosto de 2012 no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, após 45 anos desaparecido. Ele é composto por aproximadamente 7 mil páginas preservadas, contendo 29 dos 30 tomos originais. Disponível em: http:// www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=DocIndio&PagFis=0&Pesq=. Acessado em: 4 de agosto de 2016.

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ma, mediante diversos processos, o patrimônio indígena foi dilapidado e suas terras distribuídas a terceiros em processos irregulares. 8. Seguindo tais processos, os índios foram retirados de suas aldeias, confinados em reservas artificiais e transformados em pedintes, e chamados de “preguiçosos”. Junto à crescente discriminação racial percebida na sociedade brasileira, foi-se consolidando dentro do Estado Brasileiro o assim chamado “racismo institucional”, em que o próprio Estado e seus agentes tratam de forma discriminatória povos e comunidades tradicionais, dentre eles os indígenas. Por meio desses processos, povos milenares, produtivos, foram subjugados ou simplesmente eliminados. 9. Inicialmente, os indígenas estavam sujeitos ao chamado regime tutelar, nos termos do revogado artigo 6º, inciso IV, do Código Civil, de 1916: “Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, e que cessará à medida de sua adaptação”. Vivíamos sob a égide da integração, da assimilação, que encontrava respaldo nas Constituições brasileiras (CF de 1934, artigo 5º, XIX, ‘m’; CF de 1946, artigo 5.º, XV, ‘r’, CF de 1967, artigo 8.º, XVII, ‘o’). Mas a Constituição Federal de 1988 colocou fim ao regime integracionista pois estabeleceu no artigo 231 “[...] são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Inicia-se o tempo do direito à diferença e às especificidades culturais de cada etnia indígena. O Estado brasileiro deve respeitar as especificidades, diversidades e concepções de mundo – mundividências, ou cosmovisões. 10. Os povos indígenas têm o direito a participar diretamente dos processos que versam sobre seus direitos. Neste patamar, dispõem o artigo 232 da CF: “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”. Participar dos processos que lhe dizem respeito é um direito humano dos povos indígenas, vinculado a outros direitos, como ao devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório. 11. Os povos indígenas têm capacidade para estar em juízo. No ordenamento jurídico atual, os indígenas são sujeitos coletivos de direitos, através do reconhecimento de suas organizações sociais, deixando para trás a dis186


criminatória tutela e permitindo, assim, o acesso à Justiça, sem, por isso, deixarem de ser indígenas. É o que explica o jurista Carlos Marés68: “A Constituição de 1988 reconhece aos índios o direito de ser índio, de manter-se como índio, com sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Além disso, reconhece o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Esta concepção é nova, e juridicamente revolucionária, porque rompe com a repetida visão integracionista.” 12. Os específicos modos de ser e viver dos indígenas, portanto, dependem de um espaço territorial, no qual se desenvolvem a cultura, as crenças e tradições. Por estes motivos é que a terra, para eles, tornou-se o tema central de suas reivindicações. 13. Nesta esteira, a nova realidade dos povos indígenas desafia o Poder Judiciário Brasileiro, de certa forma, a superar o seu formalismo desmensurado e nem sempre eficaz. 14. Posteriormente, em 2004, houve a promulgação da Convenção 169/ OIT, através do decreto nº 5.051/2004, que impõem aos Estados a obrigação de proteção contra a violação de seus direitos, estabelecendo que os povos indígenas podem mover ações legais, individualmente ou por meio de seus órgãos representativos, para garantir a proteção efetiva de tais direitos. 15. Ao Poder Judiciário cabe não dar andamento a qualquer processo que tenha possibilidade de atingir a esfera de direitos dos índios, de qualquer natureza, sem que à eles seja possibilitado participarem do mesmo. Eles podem demandar em juízo, por si, e não serem necessariamente representados por quaisquer órgãos, como FUNAI, União, ou mesmo pelo Ministério Público Federal. 16. Uma das condutas rotineiras do Estado Brasileiro/Judiciário, que implica em violação de direitos humanos, é que na maioria dos processos, os povos indígenas sequer são chamados para integrarem os mesmos e apresentarem defesa ou manifestação. 17. A título de exemplo, destacamos um dos casos mais emblemáticosde SOUZA FILHO, Carlos Federico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. 1a Ed. (ano 1998, 5ª reimpr. Curitiba: Juruá, 2008.

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violação do direito ao acesso à Justiça. Trata-se do processo da Terra Indígena Guyraroká, do povo Guarani e Kaiowá, no Estado do Mato Grosso do Sul, comunidade que em 2015 foi surpreendida com uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que suspendeu os atos do Ministério da Justiça que, através da Portaria nº 3.219, de 7 de outubro de 2009, declarou de posse permanente do grupo indígena Guarani Kaiowá a Terra Guyraroká, com superfície aproximada de 11.401 hectares. Esta comunidade buscou o apoio de advogados especializados no direito indígena e requereu a nulidade de todos os atos processuais por não ter sido chamada a integrar a disputa. A comunidade fora, portanto, impedida de realizar a sua defesa, considerando que, até a decisão, os indígenas sequer haviam tomado conhecimento da ação judicial.Em resposta, o recurso da comunidade indígena foi negado com o argumento de que “a Funai é o órgão federal do Estado brasileiro responsável pela proteção dos índios e seus bens, ao qual cabem todos os estudos e levantamentos que precedem a demarcação, nos termos do art. 231 da Constituição Federal, bem como da Lei 5.371, de 5.12.1967”69. 18. Esta decisão de uma das turmas do STF contraria o ordenamento jurídico atual concernente aos povos indígenas, considerando que a Constituição de 1988 não recepcionou a malfadada tutela. 19. É imperioso que o Estado Brasileiro/Judiciário passe a incorporar em cada um dos processos judiciais os direitos humanos dos povos indígenas, permitindo e, mais especialmente, possibilitando a participação deles nos processos que são de interesse, mediante informação do trâmite processual. Tratando-se de uma questão de violação de direito humano, questão de nulidade, que pode ser reconhecida de ofício, seria recomendável que o Estado Brasileiro verificasse se nos processos em curso que tangenciem os interesses dos povos indígenas, de qualquer natureza, estes foram chamados à manifestação; em caso negativo, poder-se-ia alegar a nulidade dos respectivos atos processuais. A lentidão dos processos de demarcação de terras 20. Diversas organizações criaram a campanha “Eu Apoio a Causa Indígena”, em dezembro de 2012, que culminou com mais de 20 mil assinaturas colhidas em curto espaço temporal, subscrita por professores, entidades indígenas e indigenistas, intelectuais e artistas. Indicaram no referido documento que foi dirigido ao Estado Brasileiro, por seus três poderes: exe69 Mandado de Segurança 29.087 - STF. Inteiro Teor do Acórdão - Página 7. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6937880. Acessado em: 15 de agosto de 2016.t

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cutivo, judiciário e legislativo, que: “as terras não são demarcadas com a presteza fincada na CF; obras públicas são realizadas sem qualquer diálogo com as comunidades afetadas, descumprindo a necessidade de consulta e participação; órgãos oficiais permanecem vulneráveis às pressões dos poderes econômicos e políticos locais e/ou com estrutura precária. Assim temos o extermínio, a desintegração social, opressão, mortes, ameaças, marginalização, exclusão, fome, miséria e toda espécie de violência física e psicológica, agravada, especialmente, entre as crianças e jovens indígenas”. 21. A normativa nacional (artigo 5º, inciso LXXVIII da Constituição Federal), com o respaldo nos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, exige que os processos tenham tramitação em prazo razoável. A CF estabelece que o prazo para a conclusão das demarcações das terras indígenas (artigo 67 das Disposições Constitucionais Transitórias) é de cinco anos. 22. O processo de demarcação de terras indígenas é de responsabilidade do Estado/Executivo, que não cumpre o seu papel, pois não dá andamento aos procedimentos necessários. SITUAÇÃO ATUAL DAS TERRAS INDÍGENAS QUANTO AO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DE DEMARCAÇÃO SITUAÇÃO GERAL DAS TERRAS INDÍGENAS NO BRASIL

QUANTIDADE

%

398

35,75

15

1,34

63

5,66

46

4,13

175

15,72

Registradas

(Demarcação concluída e registrada no Cartório de Registro de Imóveis da Comarca e/ou no Serviço do Patrimônio da União)

Homologadas

(com decreto do Presidente da República e aguardando registro)

Declaradas

(com Portaria Declaratória do Ministro da Justiça, e aguardando demarcação)

Identificadas

(analisadas por Grupo Técnico da Funai e aguardando decisão do Ministro da Justiça)

A identificar

(incluídas na programação da Funai para identificação futura)

189


SITUAÇÃO ATUAL DAS TERRAS INDÍGENAS QUANTO AO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DE DEMARCAÇÃO SITUAÇÃO GERAL DAS TERRAS INDÍGENAS NO BRASIL

QUANTIDADE

%

349

31,35

61

5,48

6

0,53

1.113

100

Sem providências

(terra que não consta na listagem da Funai pra realização de estudo – reivindicada pela comunidade)

Reservadas ou Dominiais

(demarcadas como “reservas indígenas” à época do SPI) ou (de propriedade de comunidades indígenas)

* Com Restrição

(terra que recebeu portaria do presidente da Funai restringindo o uso da área ao direito de ingresso, locomoção ou permanência de pessoas estranhas aos quadros da Funai)

Total

Fonte: Cimi / Secretariado Nacional / agosto de 2016.

GOVERNO DILMA ROUSSEFF NA DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS GOVERNO DILMA 1.º ANO (2011)

GOVERNO DILMA 2.º ANO(2012)

GOVERNO DILMA 3.º ANO (2013)

Decretos de Homologação

03

07

01

Portarias Declaratórias do Ministro

06

02

03

Despachos do Presidente da Funai Aprovando Identificações

09

11

06

Decreto de Desapropriação

-

-

-

Portaria de Restrição de Área

01

01

02

Decreto de Retificação

-

-

-

190


GOVERNO DILMA ROUSSEFF NA DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS GOVERNO DILMA 4º ANO (2014)

GOVERNO DILMA 5º ANO (2015)

GOVERNO DILMA 5º ANO (2016)

TOTAL

Decretos de Homologação

-

07

04

22

Portarias Declaratórias do Ministro

01

03

11

26

Despachos do Presidente da Funai Aprovando Identificações

02

04

9

41

Decreto de Desapropriação

-

-

01

01

Portaria de Restrição de Área

-

02

02

07

Decreto de Retificação

-

-

-

-

Fonte: Cimi / Secretariado Nacional / agosto de 2016.

23. Registre-se que os processos demarcatórios de terras indígenas acabam por ser jurisdicionalizados. No que se refere ao Poder Judiciário, é inegável que a demora no julgamento dos processos, em todas as instâncias, relativos à demarcação de terras indígenas tem sido problema a ser combatido e que agrava ainda mais a notória situação de violência, pela qual passam os povos indígenas. 24. Nos casos de demarcação das terras indígenas, a razoabilidade do trâmite processual deve encontrar os seus limites nos parâmetros fixados para a União. A demora do Judiciário, nessa matéria, rompe com o trato dos direitos humanos, agrava a situação das comunidades indígenas, especialmente em razão da violação dos direitos consagrados no artigo 231 da Constituição Federal, que reconhece aos povos indígenas o respeito à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 25. Urge a agilização do processamento e julgamento dos mencionados processos e que seja determinada a prioridade absoluta para o Poder Judiciário de todo o Brasil, que poderá assim fazer através do Conselho 191


Nacional de Justiça, órgão da estrutura do Poder Judiciário, que tem fixado metas de cumprimento a todos os tribunais do país, em temas e recortes variados. 26. Também fundamental que este mesmo órgão proceda à coleta de dados, de todo o Brasil, como tem feito em diversas matérias, para que se tenha o mapeamento minucioso de todos os processos em trâmite, andamento e seu respectivo resultado. O CNJ tem ferramentas próprias para que esta alimentação de dados possa ser feita em termos nacionais. A Teoria Jurídica do Marco Temporal e Tradicional 27. O Poder Judiciário Brasileiro tem impactado direitos alcançados e positivados na Constituição de 1988, de modo a diminuir o seu conteúdo de garantia. Nesse sentido, a chamada Teoria do Marco Temporal e Tradicional tem sido apontada como uma grande ameaça aos direitos humanos dos povos indígenas. 28. A tese é relativamente recente, tendo sido adotada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Ação nº 3.388, relativa à Terra Indígena Raposa Serra do Sol. 29. Tal julgamento abriu precedente que põe em risco o direito originário dos povos indígenas. Apesar de o STF ter frisado que as terras que não estavam ocupadas em 1988, não perdem a tradicionalidade em razão de atos de não índios, outros tribunais e alguns ministros do STF vêm oferecendo uma interpretação a esta teoria que desconsidera o violento processo que levou várias comunidades indígenas para longe de suas terras, ao arrepio das constituições anteriormente válidas no Brasil. 30. A tese do Marco Temporal e Tradicional tem levado o Poder Judiciário a desconsiderar as gravíssimas violações de direitos ocorridas em pleno período de ditadura militar, que fizeram com que indígenas não pudessem estar em seu território no ano de 1988. 31. Importantes doutrinadores do direito nacional têm indicado a ilegitimidade de muitas das condicionantes do julgamento da Ação relativa à Terra Indígena Raposa Serra do Sol. José Afonso da Silva, por exemplo, indica a arbitrariedade da data estipulada como marco temporal pelo citado julgamento: 05 de Outubro de 1988, data da promulgação da Constituição 192


da República Federativa do Brasil70. O autor também elenca uma série de argumentos valiosos contra a tese do marco temporal, como, por exemplo, o fato de que a Constituição simplesmente reconheceu o direito dos povos indígenas ao seu território tradicional. Em outras palavras, tal direito já existia anteriormente à Constituição de 1988, não fazendo sentido lógico que ele passasse a valer somente com a promulgação desta71. 32. Outro fator fundamental de inconstitucionalidade da tese do marco temporal se refere ao chamado esbulho renitente: segundo a construção do STF, haveria uma exceção ao marco temporal nos casos em que a comunidade indígena não estivesse no território exigido devido à ação persistente de terceiros (esbulho). Contudo, a definição da exceção do esbulho renitente só veio a ser melhor delineada pelo STF posteriormente ao julgamento da Ação nº 3.388, com o ARE 803.462-AgR/MS, incluindo somente efetivo conflito possessório que se manteve no tempo até 5 de outubro de 1988. Sendo assim, caso a comunidade indígena já tivesse sido completamente expulsa de seu território antes de tal data, não se configuraria a exceção72. 33. A teoria do marco legal, principalmente quando considerado o histórico de atrocidades e violações de direitos envolvendo tais povos antes da promulgação da Constituição de 1988, que se pode observar, em parte, nos dois documentos acima referidos, viola o direitos dos povos indígenas de terem acesso às suas terras, se lhe foram retirados. A criminalização dos movimentos indígenas e organizações correlatas 34. A criminalização cometida pelo Estado Brasileiro e por outros atores sociais contra os povos indígenas vem se acentuando nos últimos anos, também como resultado de diversos processos sociais e políticos anti-indígenas. 35. Nos últimos anos, os parlamentares representantes do agronegócio (os chamados ruralistas) se movimentaram a fim de retomar a tramitação de instrumentos danosos aos povos no âmbito do Congresso Nacional, como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/00, aprovada por SILVA, José Afonso da. Parecer sobre a Tese Jurídica do Marco Temporal e Tradicional, p. 8. S.d. Ibid., p. 8. 72 Ibid., p. 11. 70 71

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Comissão Especial em outubro de 2015, que inviabiliza novas demarcações de terras indígenas e titulações de terras quilombolas e legaliza a invasão e a exploração das terras indígenas já demarcadas, que estão na posse e sendo preservadas pelos povos. 36. Na esteira da tramitação da PEC 215/00 e de outras proposições legislativas anti-indígenas, parlamentares da bancada ruralista, dirigentes de sindicatos rurais patronais e associações de produtores de commodities agrícolas espalham o ódio e o terror contra os povos e suas comunidades. Discursos de incitação ao ódio e à violência multiplicaram-se ao longo de 2014 e 2015. Os resultados desse processo foram colhidos, principalmente, na forma de assassinatos de lideranças indígenas que lutavam pela demarcação73 e na proteção de suas terras tradicionais74 e de sistemáticos ataques paramilitares contra comunidades indígenas ao redor do Brasil. 37. Neste sentido, a situação vivida pelos Guarani e Kaiowá, no estado do Mato Grosso do Sul, é emblemática. Em 2015, foram registrados mais de uma dezena de ataques paramilitares contra várias comunidades deste povo. Tais ataques, desferidos por milícias comandadas por fazendeiros, resultaram em liderança assassinada e dezenas de indígenas, inclusive crianças e idosos, feridos. 38. O ataque paramilitar desferido contra o Tekoha Nhanderú Marangatú é exemplar. A ação foi precedida por uma onda de mentiras espalhadas por alguns fazendeiros com o intuito de criar um clima de terror e animosidade da população regional contra os indígenas, numa tentativa pré-concebida de legitimar o ataque que estava sendo perpetrado75. 39. Segundo dados do CIMI, da SESAI e do Dsei-MS, entre 2003 e 2015 um total de 891 indígenas foram assassinados no Brasil; cerca de metade deles (426, oun 47%) somente no estado do Mato Grosso do Sul76. Isto representa, em outras palavras, 426 (quatrocentos e vinte e seis) indígenas mortos nos últimos anos somente em um dos estados da federação brasileira. http://cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=8294&action=read http://www.ihu.unisinos.br/noticias/542263-na-onu-secretario-do-cimi-denuncia-assassinato-de-indigena-kaaapor-no-maranhao e http://www.cimi.org.br/File/ONUCleberPortugues.pdf 75 https://www.diplomatique.org.br/print.php?tipo=ac&id=3141 76 CIMI, op. cit., p. 79. 73 74

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40. Pode-se concluir, pois, que se vivencia no Brasil atualmente um processo de genocídio dos povos indígenas. 41. A tentativa de criminalizar lideranças indígenas, profissionais de antropologia, organizações e pessoas da sociedade civil que atuam em defesa dos projetos de vida dos povos indígenas no Brasil também foi intensificada pelos ruralistas nos últimos quatro anos. Neste sentido, duas Comissões Parlamentares de Inquéritos (CPI) foram criadas e postas em funcionamento sob o controle de deputados representantes do agronegócio. Uma na Assembleia Legislativa do estado do Mato Grosso do Sul, denominada CPI do Cimi77, e outra na Câmara dos Deputados, denominada CPI da Funai/Incra78. 42. As invasões possessórias para exploração ilegal de bens naturais de terras indígenas, de modo especial a madeira, foram agravadas, em 2015, pela prática macabra de atear fogo intencionalmente no interior dessas terras. Essa ação criminosa foi posta em prática por madeireiros como uma represália ao fato dos próprios indígenas fazerem a proteção territorial79. A ação dos madeireiros resultou na ampliação em larga escala das queimadas e consequente destruição generalizada da fauna e da flora no interior de terras indígenas e ameaça grave a famílias inteiras de indígenas com a queima de suas casas. No caso da Terra Indígena Arariboia, do povo Guajajara, no Estado do Maranhão, as queimadas atingiram cerca de 50% dos 413 mil hectares da área demarcada80. Povos isolados sofreram permanentemente com as invasões e destruição dessas terras81. 43. Na mesma trilha de crimes, madeireiros passaram a ameaçar de morte e eliminar lideranças indígenas que se opõe à exploração de suas terras e que se organizam para evitar que isso ocorra82. O caso do assassinato do líder Eusébio Ka’apor, também no estado no Maranhão, se localiza neste contexto. 44. Nesses casos, a omissão do Estado brasileiro é verificada desde a falta de ações preventivas e efetivas na proteção das terras indígenas até a impunidade dos assassinos das lideranças indígenas. http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=8354 http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/499549-CAMARA-CRIA-CPI-PARA-INVESTIGAR-ATUACAO-DA-FUNAI-E-DO-INCRA.html 79 http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Noticias/Fogo-terras-indigenas-no-Maranhao-voltam-a-sofrer-ataques-/ 80 http://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2015/10/28/incendio-em-terra-indigena-no-maranhao-esta-controlado-diz-ibama.htm 81 http://g1.globo.com/fantastico/videos/t/edicoes/v/madeireiros-ameacam-tribo-indigena-na-amazonia/4037147/ 82 http://www.ihu.unisinos.br/noticias/532903-madeireiros-ameacam-indios-na-amazonia 77

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45. Dentre outras situações, o governo brasileiro manteve-se omisso no que diz respeito à sua responsabilidade de demarcar as terras indígenas e de promover a atenção adequada à saúde dos povos originários. Com isso, a demanda dos povos pela demarcação de suas terras continuou se acumulando, juntamente com o elevado e inaceitável número de óbitos indígenas, de modo especial na infância. 46. Setores do Poder Judiciário mantiveram decisões que restringem violentamente os direitos indígenas. Para além da Tese do Marco Temporal indicada anteriormente, anulações de atos administrativos de demarcação das terras indígenas Guyraroká, do povo Guarani Kaiowá, Limão Verde, do povo Terena, e Porquinhos, do Povo Canela-Apanhekra, foram mantidas nos últimos anos. 47. A própria tese jurídica do Marco Temporal pode ser elencada como modo de criminalização dos povos indígenas, dado que ela legitima e legaliza as expulsões e as demais violações e violências cometidas contra os povos indígenas no Brasil, inclusive no passado recente. Serve de combustível que potencializa a violência contra os povos em seus territórios, uma vez que sinaliza, para os históricos e novos invasores de terras indígenas, que o mecanismo da violência, dos assassinatos seletivos de lideranças e do uso de aparatos paramilitares para expulsar os povos das suas terras seria legítimo, conveniente e até vantajoso para os seus intentos de continuarem se apossando e explorando essas terras. 48. Os povos, por sua vez, diante destes ataques e tentativas de criminalização, não demonstraram intimidação e mantiveram-se coesos em ações sistemáticas de resistência e insurgência na defesa e pela efetivação de seus direitos e de seus projetos de vida. Nas retomadas83, nas autodemarcações84, na proteção de seus territórios85, na incidência política junto a diferentes instâncias dos três poderes do Estado brasileiro86 e junto a organismos multilaterais87 demonstraram a disposição e organização necessárias para vencer os projetos de morte e a própria morte que o Estado e outros atores sociais lhes imputam. http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=8235&action=read https://www.youtube.com/watch?v=o8uUa1kqlOM 85 http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2015/05/indios-ka2019apor-arriscam-a-vida-para-expulsar-madeireiros-de-sua-terra-6620.html 86 http://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes/noticias/acoes-dos-movimentos/3025-em-brasilia-indigenas-manifestam-se-contra-matopiba-usinas-hidreletricas-e-a-pec-215 e http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2015/04/indigenas-fecham-esplanada-e-fazem-ato-em-frente-ao-planalto.html 87 http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/10/151020_brasil_violencia_indios_jf_cc e http://www.cimi.org.br/site/ pt-br/?system=news&action=read&id=8084 83

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Recomendações 49. Diante de todo o exposto apresentamos as seguintes recomendações ao Brasil: 50. Recomendação 1: O Estado Brasileiro deve pôr fim à morosidade administrativa dos processos de demarcação das terras indígenas, fator que impede a realização dos demais direitos humanos de tais povos e é o fator principal na relação do aumento da criminalização e violência contra os povos indígenas de todo o país. 51. Recomendação 2: O Estado Brasileiro deve focar na efetiva investigação e punição dos culpados pelos violentos ataques a que têm sido submetidos os povos indígenas no país, bem como na proteção direta aos indígenas, quando se mostrem necessários. 52. Recomendação 3: As invasões de Terras Indígenas já demarcadas, bem como a retirada de bens comuns de tais territórios (a exemplo de madeira e minerais) demonstram a omissão do Estado Brasileiro, que deve oferecer proteção direta, imediata e real aos povos indígenas e às terras indígenas, sempre que se apresentar risco e tendo em vista a natureza destas invasões. 53. Recomendação 4: Assegurar aos povos indígenas o direito de participarem de todos os processos judiciais em curso e futuros, que possam impactar seus direitos, particularmente o concernente ao direito à terra, ao território e recursos tradicionais. 54. Recomendação 5: Assegurar que órgão próprio do Estado/Judiciário (CNJ) estabeleça metas de atuação para todo o Brasil, priorizando os processos que tratam dos povos indígenas, especialmente os referentes às demarcações de terras, tendo em vista, o evidente retardo na prestação jurisdicional. 197


55. Recomendação 6: Assegurar que todos os operadores do Sistema de Justiça, especialmente os magistrados, sejam capacitados a atuar na temática de direitos humanos dos povos indígenas, levando-se em conta a normativa internacional e regional, realizando capacitação permanente, através da Escola do Poder Judiciário, campanhas do CNJ, e outras vias e, especialmente, para que a aplicação do direito seja compatível com o regramento de proteção aos povos indígenas. 56. Recomendação 7: Recomendar que sejam realizadas campanhas, no mínimo anuais, de informação e esclarecimento à população do país, sobre os povos indígenas, com a participação deles, como contra cultura ao clima de ódio que se instaura e para combater o racismo estrutural e estruturante do Estado Brasileiro.

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DIREITOS TRABALHISTAS E JUSTIÇA DO TRABALHO A resistência contra o retrocesso

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Nota Pública

A TENTATIVA DE DESTRUIÇÃO DA JUSTIÇA DO TRABALHO POR MEIO DO CORTE ORÇAMENTÁRIO A Associação Juízes para a Democracia, entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem dentre suas finalidades o respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito, vem a público manifestar-se sobre o corte orçamentário da Justiça do Trabalho para o ano de 2016, bem como sobre a motivação externada pelo sr. Relator do PLN 07/2015, deputado federal Ricardo Barros, PP/PR, que revela, além de argumentos falaciosos, uma verdadeira arbitrariedade e ofensa à separação dos Poderes e à independência funcional dos magistrados, senão vejamos: 1. Um dos objetivos dos direitos trabalhistas conquistados ao longo de anos e consolidados na CLT de 1943 é buscar a promoção de justiça social, considerando a desigualdade material entre o trabalhador e o empregador. A Justiça do Trabalho foi criada com a primordial finalidade de solucionar os conflitos decorrentes da relação capital x trabalho, que em regra surgem do descumprimento da legislação pátria. Os direitos trabalhistas têm sua importância reforçada no texto da Constituição Federal, pois são alçados ao patamar de direitos fundamentais, servindo como mínimo de contrapartida à validade da exploração do trabalho humano. 2. Em que pese o relevante papel da Justiça do Trabalho no Estado Democrático de Direito, o sr. Deputado, no ato de leitura do PLN 07/2015, aduz que a instituição, que conta com 50 mil servidores, “daqui a pouco será a maior empresa do Brasil”, confundindo, propositalmente, um dos ramos de um Poder da República com uma empresa da iniciativa privada, como se fosse possível tal comparação. 3. Além disso, ao cotejar o orçamento da Justiça do Trabalho com a dotação orçamentária para o Programa Bolsa Família, o sr. Deputado promove uma desnecessária, porém conveniente, situação de aparente conflito dentro da sociedade, qual seja, ou o Estado garante o benefício social para os mais fragilizados ou arca com a estrutura da Justiça do Trabalho. 4. O conflito é aparente pois o benefício social do Programa Bolsa Família não possui nenhuma relação com um ramo do Poder Judiciário, a Justiça 200


do Trabalho. Esta foi concebida com a finalidade de, equacionando o já mencionado conflito entre capital x trabalho, permitir que a exploração capitalista ocorra de maneira civilizatória, permitindo a manutenção e a reprodução sociais. Ou seja, os direitos trabalhistas, garantidos pela Justiça do Trabalho, são parte essencial e contrapartida mínima para a exploração do trabalho humano. Como consequência, a Justiça do Trabalho é instituição destinada a garantir a manutenção da exploração respeitado um patamar mínimo civilizatório. 5. Por sua vez, o Programa Bolsa Família constitui benefício social e, como tal, decorre do reconhecimento de que o regime de produção econômica adotado necessariamente produz mazelas sociais, as quais, para serem minimizadas, necessitam de intervenção estatal, a fim de se garantir renda mínima para a sobrevivência de pessoas excluídas da divisão dos bens sociais. 6. O diagnóstico do sr. Deputado de que o problema da Justiça do Trabalho é a falta de “controle da demanda”, pois o trabalhador que ajuíza reclamação trabalhista “ganha ou não perde”, imputa a responsabilidade pelo crescente número de processos ao próprio Direito do Trabalho e não ao reiterado descumprimento de suas normas por parte de empregadores, de forma a legitimar tal descumprimento. 7. Conforme gráfico 5.43 do Relatório Justiça em Números de 2015, produzido pelo Conselho Nacional de Justiça (fl. 202 do documento), 43,99% (quarenta e três vírgula noventa e nove por cento) das ações que tramitam na Justiça do Trabalho tratam da cobrança de verbas rescisórias, ou seja, verbas devidas quando o contrato de trabalho é rescindido e elementares para a sobrevivência do trabalhador enquanto busca novo emprego. A evidenciar que a crescente quantidade de ações de decorre do pleno descumprimento de fundamentais normas trabalhistas. 8. Para além das críticas falaciosas proferidas ao direito e ao processo do trabalho, o sr. Deputado arrola uma série de alterações legais que, segundo ele, deveriam ser levadas a cabo pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, pelo Conselho Nacional de Justiça, pela Associação dos Magistrados Brasileiros e pelo próprio Tribunal Superior do Trabalho. As alterações propostas representam verdadeiro entrave ao direito constitucional de ação, de modo que ao trabalhador seria vedado o acesso pleno ao Poder Judiciário, o que é inadmissível. 201


9. Afronta ainda a separação de Poderes a atuação do sr. Deputado, que não pretende arcar com o custo eleitoral de promover essas medidas absolutamente contrárias à classe trabalhadora, mas utiliza a relatoria do projeto de lei do orçamento da União para pressionar as instituições relacionadas com o direito do trabalho a promover uma reforma trabalhista precarizante, com plena redução de direitos, e, enquanto isso não ocorre, para pressionar os juízes do Trabalho a não aplicar a lei vigente, em franco prejuízo aos trabalhadores. 10. Em nenhum momento de seu discurso o sr. Deputado trata da promoção da melhoria da condição social do trabalhador, expressamente prevista no art. 7o, “caput”, da Constituição Federal como um direito social. Muito pior, ao sugerir o “controle da demanda” na Justiça do Trabalho, com redução de direitos e aumento de dificuldades para que o trabalhador acesse o Poder Judiciário, fomenta o agravamento de tal condição, a contribuir com o já abissal fosso da desigualdade social brasileira. 11. No ato da leitura do PLN 07/2015, o sr. Deputado diz expressamente que, “como a Justiça do Trabalho não tem se mostrado cooperativa”, o corte orçamentário tem a finalidade de fazer os magistrados refletirem melhor sobre a quantidade de processos e de servidores, o que sinaliza a quais interesses serve o parlamentar; bem como o uso indevido de seu papel de relator e do próprio projeto de lei orçamentário como forma de pressionar os magistrados e a Justiça do Trabalho a realizarem uma reforma trabalhista por meio da jurisprudência, obviamente que em prejuízo da classe trabalhadora. 12. A deixar ainda mais clara a intenção do sr. Deputado de, por intermédio da lei orçamentária, tentar destruir a Justiça do Trabalho, o fato deste ter dentre a maioria de seus financiadores de campanha pessoas jurídicas, conforme informação constante no site do Tribunal Superior Eleitora. E, dentre tais empresas, figuram algumas na lista dos maiores litigantes da Justiça do Trabalho, quais seja, a JBS S.A., na 35ª posição, e a Usina Alto Alegre S.A. - Açúcar e Álcool, na 68ª posição, conforme listagem divulgada pelo Tribunal Superior do Trabalho. 13. O orçamento público representa um planejamento financeiro para o funcionamento adequado do Poder Público e não deveria ser objeto de barganha e tampouco deveria servir como meio de punir uma instituição voltada para a promoção da melhoria das condições sociais da classe trabalhadora. 202


14. É lamentável que, vinte e sete anos após a instituição da Constituição Federal de 1988 (a chamada Constituição cidadã), a independência e a harmonia entre os Poderes da República Federativa do Brasil sejam frontalmente ofendidas como nesse episódio. 15. É deplorável, enfim, que, após séculos de luta para que a humanidade se torne mais igual, o sr. Deputado, por meio de uma artimanha, tente desestruturar a Justiça do Trabalho, justamente o ramo do Poder Judiciária que diretamente atua no conflito capital x trabalho, com o objetivo de, exigindo o cumprimento das leis laborais, reduzir a desigualdade social, com o escopo de nos tornar mais iguais. A Associação Juízes para a Democracia vem a público para, de forma veemente, (i) repudiar a postura acima indicada do parlamentar e o uso arbitrário do orçamento como tentativa de manipular e destruir a Justiça do Trabalho, desrespeitando a independência e a harmonia entre os Poderes da República; e (ii) exigir a pronta recomposição do orçamento anual da Justiça do Trabalho para 2016, como forma de manutenção de relevante aparelho estatal destinado a garantir direitos sociais e, como consequência, reduzir a desigualdade social, objetivo da República. São Paulo, 26 de janeiro de 2016. A Associação Juízes para a Democracia

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Nota Pública

REPÚDIO À DEFESA DA DESREGULAMENTAÇÃO E PRECARIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO POR PARTE DO PRESIDENTE DO TST A Associação Juízes para a Democracia, entidade sem fins corporativos, que tem dentre suas finalidades o respeito aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito, lutando há anos em prol da manutenção e progressão dos direitos sociais e trabalhistas, vem a público manifestar-se sobre as recentes declarações prestadas pelo recém-eleito Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho, por ocasião de seu discurso de posse como tal em 25 de fevereiro de 2016 e da entrevista concedida ao jornal O Globo, no dia 28 de fevereiro de 2016, que não se revelam respeitosas à classe trabalhadora, à magistratura do trabalho nacional e à independência funcional dos magistrados, senão vejamos: 1. Um dos objetivos dos direitos trabalhistas conquistados ao longo dos anos e consolidados na CLT de 1943 é buscar a promoção de justiça social, considerando a desigualdade material entre trabalhador e empregador. A Justiça do Trabalho foi criada com a primordial finalidade de solucionar os conflitos decorrentes da relação capital X trabalho, que em regra surgem do descumprimento da legislação pátria. Os direitos trabalhistas têm sua importância reforçada no texto da Constituição Federal, pois são alçados ao patamar de direitos fundamentais, servindo como mínimo de contrapartida à validade da exploração do trabalho humano. Constituem o patamar mínimo civilizatório autorizador da exploração do trabalho humano por outrem. 2. Em que pese o relevante papel da Justiça do Trabalho no Estado Social e Democrático de Direito, o sr. Ministro, na entrevista em referência, aduz que a instituição de que é integrante é muito “paternalista” e que entrega, de “mão beijada”, indenizações de milhões de reais aos trabalhadores. Pois bem, as leis sociais, no que se incluem as trabalhistas, foram conquistadas após décadas de luta da população brasileira, de maneira que a aplicação das garantias contidas na Constituição Federal de 1988 e na Consolidação das Leis do Trabalho por parte dos juízes do trabalho não pode ser considerada “paternalismo”. 204


Trata-se, em verdade, de aplicação de direitos e garantias duramente conquistados em mais de um século de luta dos trabalhadores. 3. O Estado Social e Democrático de Direito, por meio da Constituição Federal de 1988, comprometeu-se a, para a manutenção do sistema de produção, garantir os direitos sociais ali constantes, a evidenciar um pacto social que não pode ser rompido em nenhum dos seus extremos, pois, caso contrário, tornar-se-ia inviável a manutenção desse mesmo sistema de produção. 4. Com relação às indenizações e reparações que são pagas aos trabalhadores, é imperioso frisar que elas decorrem de processos judiciais com pleno respeito ao contraditório e à ampla defesa, sujeitos ao duplo grau de jurisdição e analisados por juízes investidos por Lei. Todavia, o sr. Ministro faz em nenhuma menção ao fato de o Brasil ser um dos campeões mundiais em acidentes do trabalho, notadamente em mortes decorrentes desses acidentes, tema gerador de indenizações em maiores valores em razão dos graves danos ali discutidos. Além disso, o sr. Ministro nada menciona acerca dos grandes grupos empresariais que, apesar dos altíssimos lucros, que crescem ano após ano, possuem inúmeras e crescentes ações e condenações judiciais, extraindo, assim, seu lucro de maneira ilícita. 5. Ao defender a flexibilização, o sr. Ministro afirma que as pessoas contrárias à terceirização ficam “com briga ideológica” ao defenderem esta posição. Pois bem, o sr. Ministro parte do pressuposto de que tudo que é contrário ao defendido pelo “Deus mercado” e seus arautos é ideologia, como se estes possuíssem a suprema e indubitável verdade, e as demais posições fossem questão de ideologia; como se as posições dos defensores do “Deus mercado” fossem científicas e as demais, contrárias a estas, fossem questão de crença. Engana-se o sr. Ministro, pois todos somos dotados de uma ideologia que nos forma e conforma nosso mundo. Ao defender a posição exarada na entrevista em referência, o sr. Ministro demonstrou, de maneira clara, sua ideologia, aquela que defende um Estado ausente da regulação do conflito capital x trabalho, uma ideologia liberal-conservadora, distinta, pois, daqueles contrários a esta posição, defensores da intervenção estatal. Enfim, posição ideológica todos temos, apesar de alguns acreditarem que suas posições são eminentemente científicas e que apenas os outros defendem posições com base em suas premissas ideológicas. 205


6. Frise-se que o sr. Ministro defende a desregulamentação de garantias sociais-trabalhistas, ao passo que nada fala acerca da grande concentração de renda nacional, dos altos lucros obtidos há anos pelas grandes empresas que no país atuam ou sobre o regime de propriedade privada na forma historicamente construída no Brasil. Em nenhum momento defende que, para compensar a desregulamentação das garantias trabalhistas, desregulamente-se, também, a lei de greve, a fim de que os trabalhadores possam defender-se coletivamente com efetividade, sem as perniciosas interferências do Estado nos movimentos grevistas. Enfim, a ideologia defensora da ausência estatal apenas serve no sentido da redução das garantias sociais e trabalhistas, pois no aspecto repressor, admite-se a total presença do Estado. 7. Nada obstante, o sr. Ministro, sem nenhuma prova científica ou empírica, afirma que a reforma trabalhista “praticamente resolveria” a superação da crise. Primeiro deve-se deixar claro que a expressão “reforma” equivale à desregulamentação e extinção de direitos, todavia, como forma de escamotear a própria ideologia, utiliza-se a locução “reforma”. Segundo, ao defender essa ideia, o sr. Ministro evidencia que, em sua opinião, a crise decorre da existência de muitos direitos trabalhistas. Pois bem, não há nenhuma prova científica de que a crise decorra dos direitos trabalhistas da população nacional, tampouco que a redução desses direitos retiraria o país da crise. 8. Por qual motivo sempre a classe trabalhadora deve suportar os efeitos da crise a que não deu causa? Ora, o trabalhador é a primeira e maior vítima das crises econômicas, pois quem sofre o primeiro revés. Entretanto, não são os trabalhadores os responsáveis pela crise econômica pela qual passa o país. Com suas declarações, o sr. Ministro atende aos interesses do capital no sentido de culpar o Direito do Trabalho pela incompetência das forças liberais-conservadoras em gerir suas próprias crises que vêm se repetindo e assim continuarão, pois estruturais e inerentes ao modelo de produção adotado. Além do que, a retirada de direitos sociais ou sua flexibilização tende somente a agravar a crise econômica considerando a diminuição do poder aquisitivo dos trabalhadores, os quais são, também, potenciais consumidores. 9. Não é demais ressaltar que, quando se defende a redução de direitos para a solução de crises, costuma-se apregoar a redução do direito 206


alheio, nunca o próprio, e, em geral, o alvo é a população marginalizada, sem efetiva proteção estatal. Constata-se, dessa forma, patente infração ao pacto social em relação à população que vive à margem do Estado. 10. A terceirização trabalhista, como regra, equivale à locação de pessoas (sobretudo de mulheres pobres) para que o locador obtenha lucro e para que o beneficiário (conhecido por tomador dos serviços, geralmente uma empresa de maior porte) economize, pois os terceirizados recebem, também como regra, salários bem inferiores aos pagos aos empregados contratados diretamente. 11. É lamentável que, cento e vinte e sete anos após a sanção da Lei Imperial n. 3.353/1888 (conhecida como Lei Áurea), remanesça a locação de pessoas (ainda que com um nome menos ofensivo - terceirização) como forma de extração de lucro por outrem, tendo-se o “tomador dos serviços” como grande beneficiário. 12. Finalmente, as opiniões externadas pelo sr. Ministro não refletem a majoritária posição dos Juízes do Trabalho brasileiros, tampouco a posição majoritária dos Ministros do Tribunal Superior do Trabalho. Veja-se, pois, o ofício encaminhado por 19 (dezenove) dos 27 (vinte e sete) Ministros que compõem aquela corte ao sr. Deputado Décio Lima, em 27 de agosto de 2013, externando firme posição contrária ao Projeto de Lei n. 4.330-A/2004, que trata da terceirização trabalhista. 13. Quanto à promoção dos juízes em razão da maior quantidade de acordos, o sr. Ministro externa posição consentânea com o Documento Técnico n. 319 do Banco Mundial, que defende reformas sociais por meio do Poder Judiciário e não mais por intermédio de alterações legislativas, pois estas teriam impacto maior sobre a população. Isto porque, quando as reformas em detrimento dos direitos sociais ocorrem por meio do Poder Judiciário, a população tem a impressão de que se trata de posição neutra, sem ideologia, como se a decisão estivesse correta porque emanada de um Tribunal. Pois bem, essa reforma defendida pelo Banco Mundial, na tentativa de curvar os países “subdesenvolvidos” aos desejos do grande capital, tem por finalidade a redução de direitos sociais e, por isso, é contrária aos interesses nacionais e à população brasileira. Em razão disso, a quantidade de acordos celebrados não pode ser critério de promoção dos juízes. 207


A Associação Juízes para a Democracia, de forma veemente, (i) repudia a desregulamentação dos direitos trabalhistas, ainda que travestida da alcunha de flexibilização ou reforma trabalhista; e (ii) repudia a terceirização trabalhista, com a finalidade de que seja mantido e constantemente elevado o atual patamar mínimo civilizatório de exploração da mão de obra, garantindo-se os direitos sociais e trabalhistas com o objetivo de construir uma sociedade livre, justa e solidária, objetivo fundamental da República. São Paulo, 01 de março de 2016. A Associação dos Juízes para a Democracia

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Nota Pública

REPÚDIO À ATUAÇÃO DO PRESIDENTE DO TST A Associação Juízes para a Democracia, entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem dentre suas finalidades o respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito, dentre os quais a manutenção e a progressão dos direitos sociais da classe trabalhadora, vem a público manifestar-se sobre a gravidade da atuação do atual Presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho. No dia 04 de outubro de 2016, o Presidente do TST, por iniciativa isolada, foi à Câmara dos Deputados pedir a retirada da tramitação de 32 projetos de lei de interesse da Justiça do Trabalho, que dispunham sobre a criação de Varas do Trabalho, cargos e funções nos Tribunais Regionais do Trabalho e no Conselho Superior da Justiça do Trabalho. O ato do Presidente do TST é incompatível com a posição que ocupa na Instituição, já que constitui uma ofensa à magistratura do trabalho como um todo, aos membros do Conselho Superior da Justiça do Trabalho e a todas as pessoas que, historicamente, contribuíram para a construção da Justiça do Trabalho, inclusive a classe trabalhadora. Representa, ainda, uma afronta aos preceitos democráticos e à Constituição Federal. Não se trata de ato isolado, porém. Cumpre lembrar que já em seu discurso de posse, em 25 de fevereiro de 2016, e em entrevista concedida ao jornal O Globo, no dia 28 de fevereiro de 2016, o Presidente do TST estarreceu a Magistratura trabalhista quando afirmou que a Instituição de que é integrante é muito “paternalista” e que entrega, de “mão beijada”, indenizações de milhões de reais aos trabalhadores. Defendeu ainda a flexibilização das leis trabalhistas e afirmou que a reforma trabalhista “praticamente resolveria” a superação da crise. Em seguida, ao ser entrevistado pelo periódico Conjur, novamente defendeu a desregulamentação das leis trabalhistas em momentos de crise econômica, mencionando a necessidade de uma “reforma legislativa que dê maior flexibilidade protetiva ao trabalhador”. Ademais, o senhor Presidente do TST, em conjunto com o Ministro Gilmar Mendes do STF, criou, em 30 de maio de 2016, um grupo de pesquisa de Direito do Trabalho em instituição privada. Trata-se de grupo criado para a 209


defesa da ideologia neoliberal por meio da retirada de direitos trabalhistas, ainda que sob o uso de eufemismos como o da “flexibilidade protetiva do trabalhador” ou da “desregulamentação protetora do trabalhador”. Tal discurso põe-se em sentido contrário às evidências do mundo do trabalho e às preocupações da Organização Internacional do Trabalho, representada na Recomendação 204 editada em 15 de junho de 2015, em Genebra. Nunca é demais lembrar que, enquanto o Presidente do TST, afinado ao discurso neoliberal, defende que a flexibilização dos direitos dos trabalhadores “resolve a crise”, as estatísticas dos países que adotaram a flexibilização revelam um quadro muito deprimente de aumento do desemprego, da precarização, da imigração e das formas degradantes de trabalho, o que evidencia a falácia. No entanto, apesar de críticas oriundas da magistratura democrática trabalhista às afirmações de Sua Excelência, mesmo assim o senhor Presidente não retrocedeu. Ao contrário, intensificou sua investida contrária não só ao direito dos trabalhadores, mas, agora, à própria Instituição que preside - a Justiça do Trabalho. Essas atitudes colocam em dúvida, até mesmo, a compatibilidade que o Ministro Ives Gandra possui com relação ao cargo de presidência que ocupa. A Associação Juízes para a Democracia vem a público para, de forma veemente, (i) repudiar as atitudes e declarações do Ministro Ives Grandra Martins Filho, acima especificadas; e (ii) sugerir ao próprio Ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho que reflita acerca da conveniência de sua permanência na função de Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Instituição cujo objetivo é manter e constantemente elevar a condição social da classe trabalhadora, garantindo a efetividade dos direitos sociais e trabalhistas, de modo a construir uma sociedade livre, justa e solidária, nos estritos termos dos artigos 1º a 9º Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo, 17 de outubro de 2016. A Associação Juízes para a Democracia

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Nota Técnica

A TERCEIRIZAÇÃO A SER APRECIADA PELO STF NO RE 958.252 A Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem dentre suas finalidades o respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito, vem apresentar a presente NOTA TÉCNICA, manifestando sua posição diante do iminente julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Recurso Extraordinário nº 958.252 que questiona a limitação da terceirização apenas nas chamadas atividades-meio, nos seguintes termos: 1. A terceirização caracteriza-se pela permissão da introdução de um atravessador na relação entre capital e trabalho, criando uma falsa ideia de relação trilateral distinta do modelo clássico da relação de emprego. A terceirização quebra a noção de relação de trabalho, que tanto a Constituição Federal quanto a CLT albergam e que qualificam como uma relação entre dois sujeitos: empregado e empregador. No âmbito das relações de trabalho no Brasil essa compreensão vem muito bem definida pelos artigos segundo e terceiro da CLT. A existência de uma figura interposta entre trabalhador e tomador de serviços aprofunda a subsunção do primeiro ao capital, na medida em que a responsabilidade do empregador pelos riscos da sua atividade económica é transferida e anulada. 2. Evidencia-se que não há autorização legal que permita a prática da terceirização no Brasil, à exceção do contrato de trabalho temporário (Lei nº 6.019/1974) e de serviços de vigilância (Lei nº 7.102/1983). Por essa razão, o Tribunal Superior do Trabalho lançou o enunciado nº 256 considerando ilegal a contratação de trabalhadores por empresa interposta, formando-se o vínculo empregatício diretamente com o tomador de serviços, salvo nas hipóteses legais acima mencionadas. O enunciado foi revisto em 1993 e, depois, em 2000 com a aprovação da Súmula nº 331 que, na prática, ampliou as hipóteses de terceirização para as “atividades-meio” da empresa, desde não haja subordinação direta ao tomador de serviços. 3. O fenômeno da terceirização gera efeitos perversos não apenas para o trabalhador, mas para a própria comunidade. Segundo dados do Dieese, os trabalhadores terceirizados recebem salário 24,7% menor 211


do que o dos empregados diretos, trabalham 7,5% a mais (três horas semanais) e ainda ficam menos da metade do tempo no emprego. Os terceirizados raramente conseguem gozar férias anuais e sequer receber as verbas rescisórias ao término do contrato de trabalho visto que, em regra, as empresas tercerizadas não têm idoneidade econômica. Também estão mais propensos a doenças ocupacionais e acidentes de trabalho. De acordo com dados levantados pela CUT e pelo Dieese, de dez acidentes de trabalho no Brasil, oito acontecem, em média, com funcionários terceirizados. Em relação aos trabalhadores resgatados em condições análogas à de escravo, estatísticas do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait) mostram que em 82% dos casos referem-se a trabalhadores tercerizados. 4. É preciso reconhecer que a Súmula nº 331 do TST, em que pese tenha ampliado de forma indevida as hipóteses de terceirização, ainda representa uma forma de impedir a precarização total com a proibição da terceirização irrestrita nas chamadas “atividades-fim” das empresas. Negar por completo esse requisito, afastando sua eficácia regulatória,implicaria em retrocesso histórico no âmbito das relações trabalhistas. 5. A prática da terceirização irrestrita também causaria outros efeitos deletérios promovendo uma divisão mais acentuada entre trabalhadores contratados diretamente e terceirizados. O Direito do Trabalho e, portanto, as relações trabalhistas, foram construídas no tempo pela organização e resistência. Pulverizando os trabalhadores através da terceirização da “atividade-fim”, atrelando cada setor da fábrica a uma empresa prestadora diferente, o capital conseguiria aniquilar essa “sensação de pertencimento” a uma mesma classe de trabalhadores, promovendo a concorrência interna e, com isso, eliminando qualquer possibilidade de resistência coletiva organizada. 6. A função do Estado, e do STF em particular, é zelar pelo cumprimento da Constituição Federal, conferindo existência real ao projeto social ali contido, especialmente o objetivo de reduzir as desigualdades sociais, elevando os princípios do valor social do trabalho e da dignidade da pessoa humana. Nessa medida, a decisão de chancelar a terceirização irrestrita, nos moldes do PL 4330/PLC 30, no âmbito público ou privado, precarizando as relações de trabalho, revela-se completamente oposta ao projeto de sociedade insculpido na Constituição Federal e avessa à função democrática que o Estado deve desempenhar. 212


7. Por tudo isso, a Associação Juízes para a Democracia (AJD), no exercício da liberdade de associação consagrado constitucionalmente (art. 5º, XVII), reafirma ser contrária à terceirização em qualquer atividade empresarial, clamando para que o STF exerça a sua função de guardião da Constituição Federal e julgue a questão nos estritos termos da legislação trabalhista e atendendo aos princípios constitucionais do valor social do trabalho e da dignidade da pessoa humana, de modo a não permitir retrocessos. São Paulo, 7 de novembro de 2016. A Associação Juízes para a Democracia

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Editorial

ATAQUE AOS DIREITOS TRABALHISTAS: UM ATALHO PARA O AUMENTO DA EXCLUSÃO Editorial publicado na edição nº 70 do Jornal Juízes para a Democracia O mundo atravessa por uma crise estrutural do sistema de produção desde ao menos 2008, a qual atingiu o Brasil há alguns poucos anos. Nos períodos de crise, o capital, como forma de não reduzir suas margens de ganhos e manter o seu poder, costuma atacar as classes despossuídas com maior sanha. Está sendo assim que o projeto neoliberal tem retomado no país com toda sua força. Para tanto, as elites mantenedoras do grande capital tentam vender a ideia de que a crise é culpa dos parcos direitos garantidos à classe trabalhadora e aos demais despossuídos. Incute-se na mente das pessoas a ideia de que a retirada desses direitos (que na prática são pouco efetivados) é um caminho inexorável, por supostamente necessário à economia do país. Esquece-se, ou finge-se esquecer, que, na realidade, não foram os trabalhadores que deram causa a mais uma, dentre tantas outras ao longo da História, crise estrutural do sistema de produção. Na verdade, os mais pobres são os principais atingidos – e prejudicados - por tal situação. No presente momento, vários projetos de lei ameaçam a classe trabalhadora e economicamente subalterna ao poder do grande capital, do que se tem como exemplos: (i) projeto de lei 4193/2012, que insere na CLT a previsão de prevalência do negociado sobre o legislado; (ii) projeto de lei 30/2015, que permite o uso irrestrito da terceirização; (iii) projeto de lei 3785/2012, que visa extinguir a figura do tempo à disposição; (iv) projeto de lei 208/2012 (do Senado Federal), que visa ampliar a jornada de trabalho dos rurais; (v) projeto de lei 3842/2012, que modifica o conceito de trabalho degradante, dentre outros. A postura do Estado também demonstra que seu objetivo é a implantação de medidas destinadas a enfraquecer ainda mais a classe trabalhadora. Vejam-se alguns exemplos: (i) corte orçamentário que visa o desmonte da Justiça do Trabalho; (ii) contínuo desmonte do Ministério do Trabalho e Em214


prego; (iii) descaso com o Ministério Público do Trabalho; (iv) repressão às greves; (v) repressão aos movimentos sociais; (vi) retirada das políticas de conscientização de gênero; (vii) tentativa de piorar as condições de aposentadoria, entre outros. Constata-se, desse modo, que os ataques aos trabalhadores e excluídos não serão brandos. É preciso, mais do que nunca, resistir, ir às ruas, exercer os direitos à livre expressão e manifestação. Nos dias 13 e 14 de maio passados, associados da AJD reuniram-se no Rio de Janeiro em encontro nacional para comemorar os 25 anos da entidade. Ficou reiterado que a entidade honrará sua História, lutando para preservar os direitos arduamente conquistados pelos mais pobres ao longo dos anos e que demandará por mais direitos, eis que os ora vigentes são ainda insuficientes a condições dignas de vida. A presente edição do periódico trimestral Juízes para a Democracia configura mais um ato de resistência à ponte para o abismo que as elites políticas, a serviço do sistema econômico dominante, tentam impor aos trabalhadores e despossuídos. Nenhum retrocesso pode ser admitido.

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Ato Público

ALERTA PARA EFEITOS DA PEC Nº 55 NA JUSTIÇA DO TRABALHO – SEDE DO TRT4, PORTO ALEGRE, 28/11/2016. ÁTILA DA ROLD ROESLER* Senhoras e senhores, boa tarde! A ASSOCIAÇÃO JUIZES PARA A DEMOCRACIA - AJD, entidade não governamental e sem fins corporativos, fundada em maio de 1991, que tem por finalidade estatutária o respeito absoluto e incondicional aos valores próprios do Estado Democrático de Direito, (agradece o convite) e participa (com muita satisfação) desse ato de resistência contra a retirada de direitos sociais e contra o corte orçamentário no âmbito da Justiça do Trabalho. Nesse momento, a entidade reafirma o seu compromisso com os fundamentos e objetivos da Constituição Federal de 1988, entre eles: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir a dignidade da pessoa humana; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos; e, ainda, ressaltar especialmente o valor social do trabalho. Importante registrar neste ato que a AJD se posiciona contrária à proposta da PEC 55 que congela por vinte anos os gastos públicos em áreas essenciais e por entender que a referida emenda viola os alicerces da Constituição Federal prejudicando os objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito, desconstruindo direitos sociais, como educação, saúde, investimentos em serviços públicos essenciais e prejudicando até mesmo o funcionamento do Poder Judiciário e demais órgãos de Estado. Cumpre ressaltar (neste Plenário) que o direito do trabalho contribui para o acréscimo de civilidade da pessoa humana, uma vez que atua de forma direta em favor de melhores condições de vida garantindo direitos mínimos ao trabalhador. Portanto, subordinar o direito do trabalho aos movimentos da economia seria o mesmo que submeter o trabalho, que é 216


indissociável da pessoa do trabalhador, ao capital, o que significaria sujeitar o homem aos meios de produção. Foi por essa e outras razões que a Associação Juízes para a Democracia veio a público lançar nota de repúdio para condenar a tentativa de destruição da Justiça do Trabalho por meio do corte orçamentário sofrido em 2016. Novamente, essa situação se impõe para o ano vindouro. É preciso resistir a esse ataque brutal que se faz contra a Justiça do Trabalho, instituição essencial para a manutenção do próprio sistema econômico capitalista, mantendo a exploração do homem-trabalhador dentro de limites éticos e do mínimo essencial garantido constitucionalmente. Por tudo isso, a Associação Juízes para a Democracia, no livre exercício da liberdade de associação e de expressão consagrados constitucionalmente, reafirma aqui neste ato sua posição contrária à PEC 55 e à tentativa de destruição da Justiça do Trabalho por meio de seu corte orçamentário, o que viola – sob todos os aspectos – os princípios constitucionais do valor social do trabalho e da dignidade da pessoa humana. Senhoras e senhores, é chegado o momento, é chegada a derradeira hora de trocar nossa eventual divergência por efetiva resistência aos retrocessos sociais! Átila Da Rold Roesler é juiz do trabalho na 4ª Região e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

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Artigo

FELIZ 2027, 10 ANOS APÓS O FIM DA CLT ÁTILA DA ROLD ROESLER* Artigo publicado no periódico on line Justificando, em 11/07/2016. “Precários nos querem, rebeldes nos terão” (autor desconhecido). Brasil, 2027. Já se passaram mais de dez anos desde que precarizamos os direitos trabalhistas nesse país de tamanho continental e de graves desigualdades regionais. Estávamos absolutamente certos de que era o melhor a ser feito. Na época, a crise econômica era grave e não havia outra solução: o desemprego era grande e só aumentava, mês após mês, tampouco tínhamos qualquer expectativa de melhora. O “pato” chegou à conclusão de que a culpa de tudo isso era do direito do trabalho, da “velha CLT” e daquela “justiçazinha atrevida” que se dizia “especializada” e ousava se postar corajosamente em defesa dos chamados “direitos sociais”. Ah, é claro… havia uma Constituição rígida que dificultava a retirada desses direitos ditos “fundamentais”. Mas ela já não valia mais nada, era um sonho que nunca vingou, um espectro a nos iludir, um pedaço de papel que ninguém conhecia. Estava lá e não estava lá. Importava menos do que uma lei ordinária qualquer, muito menos do que um acordo coletivo. Nós dizíamos que a “liberdade” de contratação libertava o indivíduo e revelava a sua plena autonomia nas relações sociais e jurídicas. Acho que esse era o “espírito” da época. Na verdade, nem consigo lembrar direito como retiramos todo o direito do trabalho ou driblamos a Constituição Federal. Não sei se foi aos poucos, não sei se foi com uma ruptura abrupta ou se foi um golpe. Mas não importa. Conseguimos, enfim. Mas algo deu errado. Nesse tempo, vimos surgir bancos sem bancários, hospitais sem médicos, escolas sem professores, companhias aéreas sem pilotos/comandantes, empresas sem empregados, fazendas sem trabalhadores rurais, Estado sem funcionalismo público. Após sucessivas reformas, acompanhamos inertes a Previdência Social ser reduzida ao mínimo existencial. A educação e a saúde pública foram privatizadas. O salário dos trabalhadores baixou a um nível indecente por conta da precarização sem limites. Crianças e adolescentes voltaram a trabalhar 218


para complementar a renda da família. No campo, se trabalhava apenas por comida e teto. Os pobres se tornaram miseráveis, desfalecidos. Depois, assustados, vimos a classe média despencar para o fundo do abismo e o consumo de bens e serviços cair vertiginosamente. O emprego foi reduzido a nada. Fizemos de tudo e a crise econômica não diminuiu, só aprofundou. Trabalhadores e pequenos empresários acabaram sendo triturados diante da investida do capitalismo selvagem do tipo “walmartismo”88 praticado por grandes empresas multinacionais. A era da precarização tinha chegado ao fim. Iniciava-se outra. Nesse período, o aparato policial do Estado aumentou assustadoramente, a segurança privada ganhou espaço significativo, milícias foram legalizadas, leis penais mais rígidas foram aprovadas no Congresso, processos criminais ganharam prioridade de julgamento, o devido processo legal foi mitigado, advogados perseguidos, prisões foram construídas e privatizadas e o controle social da população se tornou necessário para impedir a desordem e garantir o progresso do país. Vigilância em nossas ruas e avenidas, drones, policiais-robôs. Ainda assim, aplaudíamos. Apesar de tudo isso, a violência continuou a aumentar significativamente: furtos, roubos, contravenções, drogas, intolerância, atentados, revoltas, tumultos, crimes cibernéticos. A situação era caótica nas cidades e no campo. Tudo parecia estar fora de controle. O desespero tomava conta da sociedade, pois não havia crescimento econômico, a crise se agravava e grande parte da população brasileira passava fome como outrora. Então, quando festejamos as reformas trabalhistas pensando que avançaríamos, na verdade, acabamos retrocedendo mais de um século em nossas relações sociais. Nesse contexto desesperador, outro espectro há muito desaparecido rondava o Brasil de 2027. E ele parecia incontrolável. Foi aí que começamos a indagar: “onde erramos?” Átila Da Rold Roesler é juiz do trabalho na 4ª Região e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD). *

88 Expressão de Pietro Basso, no artigo “O walmartismo no trabalho no início do século XXI”. Revista Margem Esquerda n. 18, Boitempo Editorial, 2012, p. 25.

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Artigo

MERCANTILIZAÇÃO E DESAFIOS DO DIREITO DO TRABALHO DIANTE DO PARADIGMA ULTRALIBERAL SAYONARA GRILLO C. L. DA SILVA* Artigo publicado na edição nº 70 do Jornal Juízes para a Democracia Neste início de século, as transformações globais, politicas e econômicas, impulsionadas por uma hegemonia neoliberal, promovem a ampliação dos espaços e dos processos de mercantilização da vida humana, de modo a engendrar a mercadorização de tudo , com a abertura e criação de novos mercados, que estão na base da lógica de funcionamento dos mecanismos atuais de acumulação por espoliação e que corroem os princípios da justiça social e as regras construídas do Direito laboral. Da mercantilização da terra e do trabalho, promovidos na institucionalização da economia de mercado capitalista, assiste-se a novos impulsos de remercadorização do trabalho e de avanço no processo da criação de novas mercadorias. Se a crise estrutural do capitalismo de fins do século XX foi alimentada pelo pensamento neoliberal, que flexibilizou e desregulamentou proteções institucionais construídas pelo trabalho ao longo de um século, a crise financeira de 2009 - apesar de ter características próprias relacionadas à lógica intrínseca do mercado de crédito e do endividamento público e privado – está por criar uma ambiência de fortalecimento dos princípios ultraliberais, com a expansão de políticas de austeridade, alimentada pelos processos de culpabilização e aninhada por uma cultura de medo. Como observa Supiot, a contrarrevolução ultraliberal se manifesta por um neoconservadorismo, pelo desfazer metódico da herança social da resistência, pelo desmantelamento das instituições e limitação da democracia, e pela vontade de despolitização. O neoconservadorismo econômico opta “por uma política de confrontação com os países que não partilham sua maneira de ver o mundo e de concretizar a concorrência” inclusive de trabalhadores. A privatização, a desregulamentação do trabalho, a livre circulação de capitais e o discurso apologético sobre a 220


infalibilidade do mercado são recursos propalados que sustentam o que denomino de morfologias do retrocesso. No Direito do Trabalho, a desconstrução se opera com novas características, o que exige uma reflexão sobre as especificidades do processo em curso. Para tanto, compartilho breves leituras. Com Supiot, observo uma privatização do estado-providência; certa “degenerescência corporativa na função pública”, uma desconstrução do Direito; uma “pulverização do Direito em direitos subjetivos”, que desconstrói a dúvida metodologicamente erigida em torno do consentimento dos vulneráveis envolvidos em relação jurídica de poder, a expansão do paradigma da concorrência para atingir o próprio legislar, a competição entre as regras sociais e fiscais, com darwinismo normativo e dogmatização da liberdade de trocas econômicas e práticas de law shopping e de “mercados de produtos legislativos”, que devem levar à eliminação progressiva dos sistemas normativos menos aptos a satisfazer as expectativas financeiras dos investidores.” Com Casimiro Ferreira, aprendo sobre como a sociedade de austeridade se afirma por uma lógica dupla de atuação do Estado que assume o discurso da proteção contra a bancarrota, de combate à crise, ao mesmo tempo em que promove a individualização dos riscos sociais e sua mercadorização. Um direito emergente que apresenta a exceção como incontornável, à qual a soberania popular não pode se opor. Uma nova gramática de poder, no qual a excepcionalidade se instrumentaliza por uma racionalidade assentada em cálculos de custos, que liquidificam os obstáculos colocados pelo direito vigente. Para Casimiro Ferreira, na esfera laboral o direito de exceção se constitui em ruptura paradigmática com os pressupostos do Direito do Trabalho - eliminando o conflito, enquanto elemento dinâmico das relações laborais, e a proteção do trabalhador mantenedora de sua condição de liberdade - que questiona suas funções protetoras, tornando-se o Direito Laboral, ele próprio, um produto de mercado. Neste contexto regulatório, observa-se a apropriação do discurso para criação de novos dispositivos, ao mesmo tempo de legitimação e dominação, no espírito novo do capitalismo. A negociação coletiva ampla é uma reivindicação histórica e importante da classe trabalhadora no processo 221


de sua constituição e afirmação como classe. O Direito do Trabalho é do Trabalho e não do Capital na medida exata em que traz em si a dimensão utópica da autonomia. Todavia, quando se propõe uma fissura total entre os sistemas jurídicos e se dá às partes a opção de escolher entre qual o ordenamento jurídico que lhe será aplicável, não temos autonomia, temos “mercado de produtos legislativos”; um law shopping chegando a um direito, que deixaria de ser ambiguamente um direito capitalista do trabalho para se afirmar como um direito do capital sobre o trabalho. Ou seja, para um direito que não precisa ser revogado, pois se suspende. Afinal já se disse que é da lógica (perversa) do próprio Estado Democrático de Direito a admissão da exceção (para os vulneráveis). Os mecanismos de culpabilização e neutralização da nova/velha gramática do poder brasileiro estão a caminho, trazendo os estreitos limites da austeridade e do ultraliberalismo. Cabe aos democratas alargar, e reorientar as setas e placas diretivas. Afinal, a ponte para o futuro, nada mais é que a ponte para a exceção e para o infortúnio para a classe, que vive do trabalho. *Sayonara Grillo C. L. da Silva é Professora da UFRJ, Desembargadora no TRT-1. Membra da AJD.

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HOMENAGEADO DO ANO O exemplo da coragem de Dom Pedro Casaldรกliga

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Comunicado

DOM PEDRO CASALDÁLIGA FOI O HOMENAGEADO DA AJD EM 2016 Desde 1994, a AJD homenageia personalidades ou entidades que realizaram ações em favor da democracia e dos Direitos Humanos, conforme escolha dos associados. O primeiro homenageado foi o jurista Goffredo da Silva Telles (1915-2009). Em 2015, os homenageados foram os coletivos Mães de Maio, de São Paulo, e o Reaja ou será Mort@, da Bahia. No ano de 2016, os associados da AJD escolheram homenagear Dom Pedro Casaldáliga. “Bispo emérito Natural da Catalunha, Dom Pedro foi o primeiro bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia (cidade a 1.159 km de Cuiabá), ofício que ocupou até 2005, e ficou conhecido pelo trabalho pastoral ligado a causas como a defesa de direitos dos povos indígenas e contra a violência dos conflitos agrários, bem como por suas posições políticas. O engajamento do bispo emérito lhe transformou em referência, mas também já lhe colocou em risco de morte na região do Araguaia, leste de Mato Grosso. Exemplos são dois dos últimos episódios em que ele se envolveu: em 2013, recusou dar seu nome para um prêmio de jornalismo por se opor à nomeação da então secretária estadual de Cultura, Janete Riva; em 2012, recebeu ameaças de morte devido ao apoio prestado aos índios xavantes, reinseridos na terra indígena Marãiwatsédé após anos de embate judicial contra latifundiários e produtores rurais.” (Fonte: Wikipedia).

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