Voltam a ouvir-se vozes cretinas que asseguram que a censura não foi assim tão grave neste país e que até servia de incentivo para «aguçar a inteligência». São vozes que procedem não tanto do franquismo reciclado (porque não se atreve a assumir a sua repressão, porque agora joga a liberal), como de sectores «modernos» que vendem a mãe para lançar uma frase escandalosa ou contracorente.
¿Con censura vivíamos mejor? termina com transcrições de cortes, não só às cenas de beijos, nas bobines d’A Dama de Xangai (Orson Welles, 1947).
Algo obsesionados estaban los censores con Rita Hayworth (Elsa), ¿no? – publicou na sua coluna – El Tema de Lara, reunida em Palabras sobre cine en «Cartelera Turia» (Vial Books, outubro de 2024) – Fernando Lara, em maio de 1984, antes de rumar à SEMINCI (que dirigiu durante duas décadas) onde criou a secção Tiempo de Historia (que em 2024, na direção de José Luis Cienfuegos depois de dirigir os festivais de Sevilha e, antes, de Gijón), me deu a ver em Valladolid, o filme do ano, coincindindo na mesma quinzena com o público que o viu no DocLisboa).
Quis conhecer a origem do cartaz el beso del celuloide e a leitura que fiz da censura não está escrita nas crónicas selecionadas por Fernando Lara. Ainda.
NO MELHOR PANORAMA CAI A NÓTULA (EM BUSCA ĐE TYPOS NA MANCHA GRÁFICA)
Provatipográfica José Machado
A extrema-direita governa a Áustria. Check. Lembrete: verificar gralhas e desejar boas-vindas a 2025. Reencontrei Francisco Valente em Nova Iorque; conversei dias a fio com Alexander Horwath em Valladolid e a gray-film rende a sua capa à estreia do cineasta, nascido em Viena, em 1964. Os beuax esprits convergem nos brindes que nos ofertam e ambos referem casualmente a vista para Vermiglio (Maura Delpero, 2024). Uma revista ligado por olhares para os EUA e aos lábios do ensaio inédito do Miguel Pinto. A revista conclui com Mário Espada e Nikolaus de Macedo Schäfer de Quando a Guerra Acabar (2024): entre 1947 e 1952, mais de 4500 crianças chegaram a Portugal para escaparam da fome, da destruição e das doenças que assolavam a Áustria. Se Horwath conhecia esta história, valerá a pena perguntar-lhe, num diálogo que é para continuar, como foi com Valente, sobre o seu livro, do 1.º para este 2.º número. 2024 foi um ano de livros de cinema. Em castelhano, distinguido com o Prémio de Investigação da plataforma de streaming FlixOlé, na cátedra da Rey Juan Carlos, para Carlos F. Heredero com o belíssimo Iceberg Borau, la voz oculta de un cineasta (7.º livro da coleção Imprenta Dinámica; imprensa dinâmica, chamou Ramón Gómez de la Serna ao cinema), pela ECAM [alma mater onde conheci o Colectivo Termita que acompanhou o seminário Doc’s Kingdom], em parceria com a revista Caimán Cuadernos de Cine. E no prelo, será preciso esperar por agosto: Film Critics and British Film Culture – New Shots in the Dark (EUP) editado por Robert Shail e Sheldon Hall. Procurei quem quisesse escrever sobre livros. O Desembarque das Ondas – Antologia para Ingmar Bergman (edição do amigo João Coimbra de Oliveira, Liv. Linha de Sombra Editora e coordenação de Raquel Nobre Guerra) apaziguou-me; o texto que publico não é meu. Agradeço à Academia de las Artes y las Ciencias Cinematográficas de España, à sua ex-presidenta que homenageamos, a atriz que nos deixou, fisicamente, a 17 de dezembro; à Elsa Fernández-Santos, que traduzi, a dádiva que é o registo de uma memória de uma vida na entrevista (audiovisual); e ao Ricardo Marques o poema inédito: Marisa Paredes, nascida em 1946, não morreu; do teatro ao cinema, recebeu o primeiro prémio em Valladolid, onde voltou sempre, con Pedro até Valladolid nos últimos Goya (e estará na 39.ª edição, em fevereiro; e, no Porto, na retroespetiva que projectará o Batalha, a partir de março). E voltará à SEMINCI, que começou em 1956, a Semana do Cinema Religioso de Valladolid e, aos seus directores Fernando Lara, em 1984 e 4o anos depois, com José Luis Cienfuegos, foi estilizada a pintura de Manuel Sierra: el beso del celuloide, beijo que o recebo como dela. Por uma vida singular e de conquistas colectivas, pela Memória Democrática nos nossos dias, o seu batom permanecerá nos nossos lábios. ��
Participamnestenúmero: Alexander Horwath, Colectivo Termita, Elsa Fernández-Santos, Francisco Valente, Mário Espada, Miguel Pinto, Nikolaus de Macedo Schäfer e Ricardo Marques
Capa: Imagem central, em Nova Iorque, Times Square, One Astor Plaza (n.º 1515 da Broadway): mascarado diante da sede da ViacomCBS (cisão em 1971, fusão em 2019; renomeada, em 2022: Paramount Global) no mesmo edifício onde, desde 2006, permanece no Minskoff Theatre o musical, da Disney, The Lion King. Grelha desenhada sobre três fotogramas de Henry Fonda for President (Alexander Horwath, 2024, Mischief Films / Medea Film Factory) de Michael Palm.
Distribuição digital e gratuita com periodicidade quadrimestral. Estatuto Editorial disponível em https://estatuto.gray-film.eu/
GRAY-FILM THE BEST OF 2024: HENRY FONDA FOR PRESIDENT, FROM ALEXANDER HORWATH,
IN HIS DEBUT, THE FILMAKER.
Interviewer
José Machado
The conversation took place for several days in Valladolid, during the 69th International Cinema Week, SEMINCI, in October and continued by email, in the last weeks of 2024. We talked about everything and this work that is a recommendation for programmers from all over the world.
DA BERLINALE À SEMINCI E DOCLISBOA
FOI ELEITO PELA GRAY-FILM O MELHOR DE 2024: HENRY FONDA PARA PRESIDENTE, DE ALEXANDER HORWATH,
NA SUA ESTREIA, O CINEASTA.
Entrevistador José Machado
A conversa, decorreu durante vários dias de outubro em Valladolid, na 69.ª Semana Internacional do Cinema, SEMINCI, e continuou por correio electrónico, nas últimas semanas de 2024. Falámos sobre tudo e desta obra que é uma recomendação para os programadores de todo o mundo.
José Machado — Starting this January: USA, the main theme of gray-film magazine and your first film (Henry Fonda for President, 2024) seemed to me right from the start, at SEMINCI (Valladolid, from October 21st to 28th) when we met and from our conversations during the screening days and your interviews, that this would be the cover we would give and dedicate our coverage. We are at the end of December and it will be impossible for this dating in our conversations, by e-mail, not to be reflected in the present time of what will await us in 2025. Let's start with a presentation, for those who don't know you, about your path in Vienna, Austria, your work as a writer, curator and film historian, from director of the Viennale – Vienna International Film Festival (1992–97) and the Austrian Film Museum (2002–17). To what extent did these factors allow you to create this essay film and at what point in your life did this challenge arise for you?
Alexander Horwath — I think all these earlier experiences of engaging with the cinema – in both a professional and passionate manner – were essential in my approach to the new endeavour, the choice to make a film. Or, rather, to make this kind of film. Of all the poetic forms that cinema has produced since its earliest days, the only one that I felt I might be able to handle well is the essay film. Simply because it’s by far the closest to my ‘training’, if you want to call it that. I come from writing, which is, in most cases, a prerequisite in essay filmmaking; and I come from curating, which – among other things – means to organize specific constellations of (moving) images or artefacts. Ideally, such a constellation is able to produce more than the sum of its parts. It can locate or construct certain kinds of meaning which, at first glance, may not be apparent in the individual artefacts that you work with. And there’s even a third ‘training ground’ for this type of film: both me and my partner, Regina Schlagnitweit, have had quite a bit of experience in dealing with archives, which was a necessary and fascinating element during our 16 years of work at the Austrian Film Museum. All of that went into the film, of course, and made me feel more at ease when I finally, after some resistance, accepted the invitation to try my hand at this.
I should also say that, as a viewer, the form of the essay film had become more and more important to me over the decades, since first engaging with the works of Farocki, Marker, Akerman, Kluge, Robert Kramer (1939–1999), Thom Andersen, or Guy Debord in the 1980s and 90s. In 2007, the filmmaker and university teacher Jean-Pierre Gorin curated a retrospective about the essay film for the Film Museum and the Viennale. It was called The Way of the Termite, and for me it was the most important instance in fully embracing this tradition. He had such a wide and original perspective on it – and he had these amazing works of his own, like Poto and Cabengo (1980) or Routine Pleasures (1986), which are essential representatives of the form. Gorin also included and discussed works by less obviously ‘essayistic’ filmmakers such as Vertov, Yvonne Rainer, Oshima, Buñuel, Forough Farrokhzad – and even Griffith and Apichatpong Weerasethakul! I loved how he wrote about the essay film, for instance that «it is a rumination in Nietzsche's sense of the word, the meandering of an intelligence that tries to multiply the entries and the exits into the material it has elected (or has
José Machado — A partir de janeiro: EUA, o tema principal da revista gray-film e o teu primeiro filme (Henry Fonda para Presidente, 2024) pareceu-me logo de início, na SEMINCI (Valladolid, de 21 ao 28 de outubro) quando nos conhecemos e das nossas conversas durante os dias das projeções e das entrevistas, que seria a capa, a que dariamos e dedicariamos a nossa cobertura. Estamos no final de dezembro e será impossível que esta datação nas nossas conversas, por correio electrónico, não se reflictam ao tempo presente do que nos esperará em 2025. Comecemos por uma apresentação, para quem não te conhece, sobre o teu percurso em Viena de Áustria, do teu trabalho como escritor, curador e historiador de cinema, desde dirigires a Viennale – Festival Internacional de Cinema de Viena (1992–97) ao Museu Austríaco de Cinema (2002–17). Em que me medida estes fatores te permitiram construir este filme de ensaio e em que ponto da tua vida te surgiu este desafio?
Alexander Horwath — Penso que todas estas experiências prévias de envolvimento com o cinema – tanto de forma profissional e apaixonada – foram essenciais na minha abordagem ao novo empreendimento, a escolha de fazer um filme. Ou melhor, fazer este tipo de filme. De todas as formas poéticas que o cinema produziu desde os seus primórdios, a única que eu senti que conseguiria manusear bem foi a do filme de ensaio. Porque é, simplesmente, de longe o mais próximo do meu ‘treino’, se assim lhe quiseres chamar. Venho da escrita, o que é, na maioria dos casos, um pré-requisito na realização de filmes de ensaio; e eu venho da curadoria, que – entre outros aspetos a ter em conta – signfica organizar constelações específicas de imagens (em movimento) ou artefactos. Idealmente, uma constelação destas é capaz de produzir mais do que a soma das suas partes. Ela pode localizar ou construir certos géneros de significado que, à primeira vista, podem não ser aparentes nos artefactos individuais com que trabalha. E há ainda um terceiro ‘campo de treino’ para este tipo de filme: tanto eu como a minha parceira, Regina Schlagnitweit, tivemos bastante experiência no tratamento dos arquivos, o que foi um elemento necessário e fascinante durante os nossos 16 anos de trabalho no Museu do Cinema Austríaco. Tudo isto entrou no filme, claro, e deixou-me mais à vontade quando finalmente, depois de alguma resistência, aceitei o convite para experimentar a minha mão nisto.
Devo também dizer que, enquanto espectador, a forma do filme de ensaio se tornou cada vez mais importante para mim ao longo de décadas, desde o primeiro contacto com as obras de Farocki, Marker, Akerman, Kluge, Robert Kramer (1939–1999), Thom Andersen, ou Guy Debord nas décadas de 1980 e 90. Em 2007, o cineasta e professor universitário JeanPierre Gorin fez a curadoria de uma retrospetiva para o Museu do Cinema e para a Viennale sobre o filme de ensaio. Intitulava-se O Caminho da Térmite e para mim foi o exemplo mais importante de abraçar plenamente esta tradição. Ele tinha uma perspetiva tão ampla e original sobre isso – e tinha obras incríveis da sua autoria, como Poto e Cabengo (1980) ou Prazeres da Rotina (1986), que são representantes essenciais da forma. Gorin também incluiu e discutiu obras de cineastas menos obviamente ‘ensaísticas’ como Vertov, Yvonne Rainer, Oshima, Buñuel, Forough Farrokhzad – e até Griffith e
been elected by). It is, in a word, thought, but because it is film it is thought that turns to emotion and back to thought. It flirts with genres (documentary; pamphlet; fiction; diary?) but never attaches itself to one. It flirts with a range of aesthetics but attaches itself to none. It is, both in form and content, unruliness itself.» When I re-read and quote these sentences to you, my mind immediately jumps back to the happy period of staging this show and to all the pleasures Gorin offered us. And to a moment when I might have felt for the first time, very subliminally, that this could be something for me to attempt as well. I’m saying all of this in full view of the fact that the essay film has become a somewhat trendy mode in art academies and biennials recently. It is now a sort of ‘fall-back option’ for art intellectuals who haven’t really studied the craft or histories of filmmaking (and I admit that I rarely like what comes out of these backgrounds). So I guess I’m as guilty as the next person in going that route and covering up my lack of actual filmmaking experience…
To answer your other question: the challenge – or opportunity – arose after my time at the Film Museum, in 2018. Irene Höfer, an acquaintance from the 1990s who was now running her own film production company, Medea Film Factory, wanted to meet me and pushed me towards at least contemplating the thought of making a film – something in relation to film (and) history, which is one of the fields she regularly works in as a producer, mostly for television.
JM — As you mentioned television, I’m convinced that it is not possible to approach the media history of the USA and the American family in the 70’s without talking about Norman Lear sitcoms, All in the Family (CBS, 1971–79) and it’s spin-of, Maude (CBS, 1972–78) as Archie’s antagonist with their opposing values and political positions. How did you discover that specific episode of Maude?
AH — The series had never been on Austrian or German television, so I came to it very late. During my ‘middle phase’ of Fonda research, when I began to prepare a program about him at the Film Museum, circa 2015, I just read in one of his filmographies that he had appeared as himself in that show – and I managed to get a DVD from the U.S. Maude’s Mood, the double episode from early 1976 that deals with Maude’s idea of a presidential campaign for Henry Fonda, proved to be perfect, of course – especially if you’re interested in how life, image, politics intersect in the persona of an actor. Beyond that, however, I became a fan of the whole series. It is a major document of the changing mores in Middle-class American life and of the left-liberal hopes that were prevalent in those years (late Nixon, Gerald Ford, early-tomid Jimmy Carter). It’s not a counter-cultural document – like the ones we mostly tend to discuss when we speak about late 1960s and 70s media in America. It’s a super-mainstream sitcom that gives a strong voice to all the strands in the American electorate that were not necessarily drawn towards a Reaganite culture. It’s too easy to think that Reagan’s electoral success in November 1980 was somehow predetermined.
JM — Henry Fonda for President had its premiere in the non-competitive Forum section of the Berlinale, where José Luis Cienfuegos chose the film for the 69th edition of SEMINCI, Valladolid International Film Festival (the one that most
Apichatpong Weerasethakul! Adorei como escreveu sobre o filme de ensaio, por exemplo, que «é uma ruminação no sentido que Nietzsche dá à palavra, o meandro de uma inteligência que tenta multiplicar as entradas e as saídas no material que elegeu (ou pelo qual foi eleito). É, numa palavra, pensamento, mas porque é filme, é o pensamento que se transforma em emoção e volta ao pensamento. Namorisca com os géneros (documentário; panfleto; ficção; diário?), mas nunca se prende só a um. Namorisca com uma variedade de estéticas, mas não se liga a nenhuma. E é, tanto na forma como no conteúdo, a própria indisciplina.» Quando releio e te cito estas frases, a minha mente regressa imediatamente ao período feliz da encenação deste espetáculo e a todos os prazeres que Gorin nos ofereceu. E para um momento em que poderei ter sentido pela primeira vez, de forma muito subliminar, que isto poderia ser algo que eu também deveria tentar. Digo tudo isto tendo em conta o facto de o filme de ensaio estar, de algum modo, na moda em academias de arte e nas bienais, recentemente. É agora uma espécie de “opção alternativa” para os intelectuais da arte que não estudaram realmente o ofício ou as histórias do cinema (e admito que raramente gosto do que resulta destas origens). Por isso, creio que sou tão culpado como a próxima pessoa a seguir este caminho e a encobrir a minha presente falta de experiência na realização cinematográfica… Para responder à tua outra pergunta: o desafio – ou a oportunidade –surgiu após a minha passagem pelo Museu do Cinema, em 2018. Irene Höfer, uma conhecida nos Anos 1990 que dirigia a sua própria produtora de cinema, a Medea Film Factory, queria encontrar-se comigo e impulsionou-me a, pelo menos, contemplar a ideia de fazer um filme – algo relacionado com Cinema e História (do Cinema), que é uma das áreas em que trabalha regularmente como produtora, principalmente para televisão.
JM — Como referiste a televisão, estou convencido de que não é possível abordar a história dos média dos EUA e da família americana nos Anos 70 sem falar das sitcom (comédias de situação) de Norman Lear, All in the Family (CBS, 1971–79) e do seu spin-of, Maude (CBS, 1972–78) como antagonista de Archie com os seus valores e posições políticas opostas. Como descobriste aquele episódio específico de Maude?
AH — A série nunca tinha sido emitida na televisão austríaca ou alemã, por isso cheguei a ela muito tarde. Durante a ‘fase intermédia’ da minha pesquisa sobre Fonda, quando comecei a preparar um programa sobre ele no Museu do Cinema, por volta de 2015, acabei de ler numa das suas filmografias que tinha aparecido como ele próprio nesse série televisiva – e consegui num DVD dos EUA Maude's Mood, o episódio duplo do início de 1976 que lida com a ideia de Maude para uma campanha presidencial de Henry Fonda, que provou ser perfeito, é claro – especialmente se estiver interessado em como a vida, a imagem e a política se cruzam na persona de um ator. Além disso, porém, tornei-me fã de toda a série. É um documento importante da mudança dos costumes na vida da classe média americana e das esperanças liberais da esquerda que prevaleciam nesses anos (finais de Nixon, atravessa os de Gerald Ford e de princípios a meados do mandato de Jimmy Carter). Não é um documento contracultural – como aqueles que tendemos a discutir
accurately fits my interests, in Spain and this is due to its programmers), where later, I was there until the end where your film was distinguished with the Time of History Special Award. During the same period in which I was lucky enough to meet you, in Valladolid, DocLisboa was taking place where the film was also selected. Throughout the year of 2024, what other highlights in selections and screenings would you highlight and how did you see the film being received?
AH — The world premiere at the beautiful Delphi-Kino in Berlin was definitely a highlight of my life. Especially since the two founders of the Berlinale Forum – Ulrich & Erika Gregor, both in their early 90s now – were there to watch the film (immediately after watching the other 3-hour film at the Forum, Romuald Karmakar’s great The Invisible Zoo). It felt like the next best thing to being there with my parents who had both passed away in the preceding two months. Since it is my first film, to experience festivals and screenings and audience reactions from the maker’s point-of-view is all new to me. In that sense, the conversations and Q&As and meetings I had (like the one with you) were all highlights! And since I like to talk about cinema and politics anyway, often at great length , it came pretty easy to me. My only regret is that, in most cases, these festival visits are so short that you have a hard time watching other films and having in-depth conversations with other filmmakers. It was a nice coincidence, during the long drive from Madrid to Valladolid, to be in the same car with Maura Delpero, the director of Vermiglio – and to speak with her in a ‘loose’ context that wasn’t defined by the usual settings – like panels, time-limited interview sessions, “red carpet” appearances, etc. This latter aspect is something I now find to be a bit too formalized at festivals, it makes for a more consumerist or business-like atmosphere… But I can’t speak about many festivals where the film was shown because I couldn’t attend them – like BAFICI, Jeonju, DocLisboa or the Midnight Sun Festival in Finland.
The fact that the film has already won several prizes at different kinds of festivals is the icing on the cake, I guess. Two of them, the ‘Chantal Akerman Prize’ in Jerusalem and the one in Valladolid, even came with a monetary reward. I know this is a subject that artists should keep quiet about, they should be ‘above’ such things. But considering that in low-budget filmmaking, even if it’s subsidized by public money, you never ever get paid according to the actual time and effort you invest, this kind of ‘bonus’ is certainly appreciated. Finally, the most gratifying thing was surely the immediate personal reactions from people who just watched and embraced the film. It’s been like a warm shower, a lot of good vibrations, and much happiness on my end, because we were not certain if this 3-hour ‘road trip’ would be able to hold people’s attention so fully and to elicit such emotional reactions. I’m even more surprised that the critics, the ‘professional’ viewers (I’m not sure I like that distinction), have been so appreciative of the work – at least so far! For a film of this type, where there’s not a lot of commercial gain to be had for producers and distributors, and where adoption by any sort of ‘mainstream’ is out of the question, the hope can only be that the film proves itself in the long run, that it acquires some ‘stamina’ in film culture. And I think the echo it receives from critics and curators is still an essential part of that.
quando falamos nos média da América no final dos Anos 1960 e 70. É uma sitcom super-massificada que dá uma voz forte a todas as vertentes do eleitorado americano que não foram necessariamente atraídas para uma cultura reaganista. É demasiado fácil pensar que o sucesso eleitoral de Reagan em novembro de 1980 foi de alguma forma predeterminado.
JM — Henry Fonda para Presidente teve a sua estreia na secção, não competitiva, Forum da Berlinale, onde José Luis Cienfuegos elegeu o filme para a 69.ª edição da SEMINCI, Semana Internacional de Cinema de Valladolid (o festival que mais criteriosamente se enquadra nos meus interesses em Espanha e isso se deve aos seus programadores), onde depois, estava lá também, nesse momento, foi distinguido com o Prémio Especial da secção Tempo de História. Nesse mesmo período em que tive a sorte de te conhecer, em Valladolid, decorria o DocLisboa onde o filme fora também seleccionado. Ao longo de 2024, que outras destaques em seleções e projeções destacarias e como viste o filme ser acolhido?
AH — A estreia mundial no belo Delphi-Kino em Berlim foi definitivamente um ponto alto na minha vida. E, especialmente porque os dois fundadores da secção Forum da Berlinale – Ulrich e Erika Gregor, ambos com 90 e poucos anos – estavam lá para assistir ao filme (imediatamente depois de assistirem ao outro filme de 3 horas no Forum, o grande The Invisible Zoo de Romuald Karmakar). Parecia a melhor coisa depois de estar ali com os meus pais, que tinham morrido nos dois meses precedentes. Sendo o meu primeiro filme, a sensação de experienciar festivais e projeções e as reações do público do ponto de vista do criador era algo novo para mim. Nesse sentido, as conversas, perguntas e respostas e reuniões que tive (como aquela contigo) foram pontos altos! E como gosto de falar de cinema e de política, muitas vezes de forma longa , tornou-se muito fácil para mim. Só tenho pena que, na maioria dos casos, estas visitas a festivais sejam tão curtas que é difícil ver outros filmes e ter conversas aprofundadas com outros cineastas. Foi uma boa coincidência, durante a longa viagem de Madrid a Valladolid, estar no mesmo carro com Maura Delpero, a diretora de Vermiglio – e falar-lhe num contexto “solto” que não fora definido pelas convenções habituais – como painéis, sessões de entrevistas com tempo limitado, aparições na “passadeira vermelha”, etc. Este último aspecto é algo que agora considero um pouco formalizado nos festivais, cria uma atmosfera mais consumerista ou empresarializada… Mas não poderia falar de muitos festivais onde o filme foi exibido porque não pude comparecer – como BAFICI, Jeonju, DocLisboa ou Midnight Sun Festival na Finlândia.
O facto de o filme já ter ganho vários prémios em diferentes tipos de festivais é a cereja no topo do bolo, creio. Dois deles, o “Prémio Chantal Akerman” em Jerusalém e o de Valladolid, vieram mesmo com uma recompensa monetária. Eu sei que este é um assunto sobre o qual os artistas se devem calar, devem estar ‘acima’ destas coisas. Mas considerando que no cinema de baixo orçamento, mesmo que seja subsidiado por dinheiros públicos, nunca se é pago de acordo com o tempo e esforço reais que se investe, este tipo de “bónus” é certamente apreciado. Por fim, o mais gratificante foram certamente as reações pessoais imediatas das pessoas que acabaram de assistir e abraçaram o filme.
JM — As an antihistaminic for the everyday life, another example: I’ve just saw the Sight and Sound best essays list of 2024, with 47 international voters and, one of them, Ricardo Vieira Lisboa (from IndieLisboa, Cinemateca Portuguesa and À Pala de Walsh) wrote about Henry Fonda for President: «What a ‘video essay’ should be. […] by far, the best new film I’ve watched all year, period». I hadn’t spoken with him but I felt and realised the same when I saw it in Valladolid the first time. So, you already know, if people like us coincided on the jury of a festival this year, the first prize would go to a film that will stay with us… Is this a strong enough incentive, for you, to think about a new film?
AH — Well, if these were the only incentives that count, I would probably be able to give you a positive answer right away and tell you about my next project.
What you are quoting and saying – and the fact that the other Sight & Sound poll, “the best films of 2024”, also placed this work very highly – all these are extremely flattering experiences which, a year ago, I would have found preposterous to imagine. You might think that I’m acting like Henry Fonda now, “underplaying” my self-esteem, but that’s not the case. I have good self-esteem, I think, and I’m proud of what we – Michael Palm, Regina Schlagnitweit, and myself – achieved with this film. But I also know film culture a bit, the forces that are at play among festival programmers and “tastemakers”. How generational fault lines and the constant shifts that guide intellectual debates and curatorial principles can influence the reception of a film that comes from a somewhat “older” framework. It is in that sense that I’m so positively surprised. And because of that surprise, and since I’m not a young filmmaker starting his career, the notion of continuing without a break feels somewhat foreign to me. I’m enough of a sceptic (in this, I do feel close to Fonda) to see this as a potential stroke of luck. To jump into a follow-up project right away might mean that I’m risking my luck…
At any rate, I’m much too curious to see how this film will unfold for audiences in other parts of the world, and I want to accompany it as much as possible in 2025. There are the New York, Paris, and London premieres coming up, and there will even be theatrical distribution in Germany, Austria and the U.S. So it will be a year on the road, even more so than 2024.
From time to time, I do think about potential subjects for another film – but it would have to be something that grips me as intensely as the Fonda/ America nexus. A few months ago, I mentioned such a subject to an interviewer: the life of my parents, both on a very personal level and in relation to Austria and Vienna before and after 1940/41, when they were born. But I have no clue how I would approach that on a formal and practical level. Over Christmas, I read two books that produced strong feelings regarding this vague idea. Both of them were totally coincidental picks from my own and my mother’s library, Éric Vuillard’s L’Ordre du jour from 2017, and Der Engel mit der Posaune (The Angel with the Trumpet), a great popular novel written by Ernst Lothar in 1944, during his U.S. exile. It deals with several generations of a Viennese family between the 1880s and the “Anschluss” in 1938.
Tem sido como um banho quente, muitas boas vibrações e muita felicidade da minha parte, porque não tínhamos a certeza se esta ‘viagem’ de 3 horas seria capaz de captar a atenção das pessoas de forma tão plena e provocar tais reações emocionais. Estou ainda mais surpreendido que os críticos, os espectadores “profissionais” (não tenho a certeza se gosto desta distinção), tenham apreciado tanto a obra – pelo menos até agora! Para um filme deste tipo, onde não há muitos ganhos comerciais para os produtores e distribuidores, e onde a adopção por qualquer tipo de mainstream está fora de questão, a esperança só pode ser que o filme se prove a longo prazo, que adquira alguma “estâmina” na cultura cinematográfica. E penso que o eco que recebe dos críticos e dos curadores ainda é uma parte essencial disso.
JM — Como anti-histamínico para o quotidiano, outro exemplo: acabei de ver a lista dos melhores ensaios de 2024 da revista Sight and Sound, com 47 votantes internacionais e, um deles, Ricardo Vieira Lisboa (do IndieLisboa, Cinemateca Portuguesa e À Pala de Walsh) escreveu: «O que deveria ser um ‘vídeoensaio’, […] de longe, o melhor filme novo que vi durante todo o ano, ponto final». Não falei com ele, mas senti e percebi o mesmo quando vi Henry Fonda para Presidente em Valladolid pela primeira vez. Se pessoas como nós coincidissem no júri de um festival este ano, o primeiro prémio iria para o filme que fica connosco… Isto é um incentivo suficientemente forte para pensares num novo filme?
AH — Bem, se estes fossem os únicos incentivos que contam, provavelmente conseguiria dar uma resposta positiva de imediato e falar sobre o meu próximo projeto.
O que estás a citar e a dizer – e o facto de a outra votação da Sight & Sound, “os melhores filmes de 2024”, ter também colocado este trabalho numa posição muito elevada – todas estas são experiências extremamente lisonjeiras que, há um ano, eu teria considerado absurdas imaginar. Podes pensar que estou a agir como Henry Fonda neste momento, “subestimando” a minha autoestima, mas não é o caso. Penso que tenho uma boa autoestima e estou orgulhoso do que nós – Michael Palm, Regina Schlagnitweit e eu –alcançámos com este filme. Mas também conheço um pouco a cultura cinematográfica, as forças que estão em jogo entre os programadores de festivais e os “fazedores de gosto”. Como as divisões geracionais e as constantes mudanças que orientam os debates intelectuais e os princípios curatoriais podem influenciar a recepção de um filme que provém de uma estrutura um pouco “mais antiga”. É nesse sentido que estou positivamente surpreendido. E por causa desta surpresa, e como não sou um jovem cineasta em início de carreira, a ideia de continuar sem parar parece-me um pouco estranha. Sou suficientemente cético (nisto sinto-me próximo de Fonda) para ver isto como um potencial golpe de sorte. Entrar imediatamente num projeto de acompanhamento pode significar que estou a arriscar a minha sorte…
De qualquer forma, estou demasiado curioso para ver como este filme se revelará para públicos de outras partes do mundo e quero acompanhá-lo tanto quanto possível em 2025. Há estreias em Nova Iorque, Paris e Londres a chegar e haverá até distribuição em cinemas na Alemanha, Áustria e EUA. Portanto, será um ano na estrada, ainda mais do que em 2024.
JM — Specific literary references like the 60’s Norman Mailer's «dream life of the nation» to filmic parallels until 1982, the year Henry Fonda died, placed in a timeline, as the film does, help us to question common forms of historical perceptions, eventually skewed when viewed from abroad, with the historic highlights being written by those who declare victory, coming out of a war. History, fortunately, can be rewritten with new facts uncovered or from never-before-told angles. From the long research to filming in the USA, were there any discoveries that made you alter some of your previous perceptions?
AH — The discoveries mainly relate to specific places that I hadn’t seen before and historical figures that I hadn’t known about before developing the film. Places like Omaha, or New Salem, or Fort Apache, and figures like Margaret Fuller, or Curtis LeMay, or ‘St. Kateri’ Tekakwitha, who would become part of our large family of “satellite characters” in the film. But the approach to history that you indicate in your question, the angles from which I wanted to look at America and at Fonda, that was all there from the start. And I can’t say that my overall perception of America was radically altered by the process of researching and filming. I had been travelling to and thinking about America for decades, so there was already a lot of “stuff” that had coalesced by the time the project started. Beginning in 1983, when I was 18, each trip to the U.S. and each conversation with the people I met there added new elements to this pile of material. And along the way, historians like Richard Slotkin or Howard Zinn had helped me greatly in seeing certain shapes and rifts and continuities, also between fact-based historiography and how history is ‘taught’ and transcribed in popular discourse and popular culture. Slotkin’s Gunfighter Nation from the early 1990s was especially eye-opening in that regard, I think, as was Jim Hoberman’s book The Dream Life, about the 1960s and Hollywood cinema. It dealt with an era and with ideas that I had already worked on for a film retrospective some years earlier, and it gave me many new road signs. Hoberman took the title of his book from the Norman Mailer text about JFK’s presidential campaign, and I just went along using it for one of the film’s “theses”, if you can call it that. It also relates to another interest of mine: the ways in which history is constantly being re-enacted, and which particles of history are being re-enacted (instead of others), and finally the fact that, for better and worse, such re-enactments play a more decisive role than we generally admit for our understanding of history and for our political expectations – all of that has led me to take the “dream” layers in society just as seriously as its waking life.
After finishing the film, and after my parents’ death, I came across another concept and title which – in a poetic fashion, and maybe just for me –seems to substantiate the approach described above. Jonathan Rosenbaum, another American writer to whom I feel very indebted, announced his new book of essays entitled In Dreams Begin Responsibilities – it comes from a short story with that same title, written by the American poet Delmore Schwartz in the summer of 1935, on the eve of his 21st birthday. This was also the year when Henry Fonda first stepped on a movie set. And this is the synopsis of Delmore Schwartz’ story, as Wikipedia very precisely puts it: It «tells of an unnamed young man who has a dream that he is in an oldfashioned movie theater in 1909. As he sits down to watch the film, he starts
De vez em quando, penso em possíveis temas para outro filme – mas teria de ser algo que me prendesse tão intensamente como o nexo Fonda/América. Há alguns meses, mencionei este assunto a um entrevistador: a vida dos meus pais, tanto a nível muito pessoal como em relação à Áustria e a Viena antes e depois de 1940/41, altura em que nasceram. Mas não faço ideia de como o abordaria a um nível formal e prático. No Natal, li dois livros que produziram sentimentos fortes em relação a esta ideia vaga. Ambos foram escolhas totalmente coincidentes da minha biblioteca e da biblioteca da minha mãe, L'Ordre du jour (2017) de Éric Vuillard de 2017 e Der Engel mit der Posaune (The Angel with the Trumpet), um grande romance popular escrito por Ernst Lothar em 1944, durante o seu exílio nos EUA. Aborda várias gerações de uma família vienense entre a década de 1880 e o “Anschluss” [na, palavra alemã, Anexação] em 1938.
JM — Das referências literárias específicas, como a «vida de sonho da nação» de Norman Mailer, dos Anos 60 aos paralelos cinematográficos até 1982, ano da morte de Henry Fonda, situadas numa linha temporal, como faz o filme, ajudamnos a questionar as formas comuns de perceções históricas, eventualmente distorcidas quando visto de fora, sendo os destaques históricos escritos por quem declara vitória, saindo de uma guerra. A História, felizmente, pode ser reescrita com novos factos descobertos ou sob ângulos nunca antes contados. Desde a tua longa pesquisa até à rodagem nos EUA, houve alguma descoberta que te tenha feito alterar algumas das suas perceções anteriores?
AH — As descobertas referem-se principalmente a lugares específicos que não tinha visto antes e a figuras históricas que não conhecia antes de desenvolver o filme. Lugares como Omaha, ou New Salem, ou Fort Apache, e figuras como Margaret Fuller, ou Curtis LeMay, ou ‘St. Kateri’ Tekakwitha, que viria a fazer parte da nossa grande família de “personagens satélites” do filme. Mas a abordagem da história que indicas na tua pergunta, os ângulos a partir dos quais eu queria olhar para a América e para Fonda, tudo isso estava lá desde o início. E não posso dizer que a minha percepção geral da América tenha sido radicalmente alterada pelo processo de pesquisa e rodagem. Viajei e pensei na América durante décadas, por isso já havia muito “tralha” acumulada quando o projeto começou. A partir de 1983, quando tinha 18 anos, cada viagem aos EUA e cada conversa com as pessoas que lá conheci acrescentavam novos elementos a esta pilha de material. E, pelo caminho, historiadores como Richard Slotkin ou Howard Zinn ajudaramme muito a ver certas formas, fissuras e continuidades, também entre a historiografia baseada em factos e a forma como a história é “ensinada” e transcrita no discurso popular e na cultura popular. Penso que Gunfighter Nation, de Slotkin, do início da década de 1990, foi especialmente revelador neste aspeto, assim como o livro de Jim Hoberman, The Dream Life, sobre a década de 1960 e o cinema de Hollywood. Tratava-se de uma época e de ideias nas quais eu já tinha trabalhado para uma retrospectiva, alguns anos antes, e deu-me muitos novos sinais ao código da estrada. Hoberman tomou o título do seu livro do texto de Norman Mailer sobre a campanha presidencial de JFK, e eu simplesmente continuei a usá-lo para uma das “teses” do filme, se é que se pode chamar assim. Relaciona-se também com um outro
to realize that it is a motion picture documenting his parents' courtship. The black-and-white silent film is of very poor quality, and the camera is shaky, but nonetheless, he is engrossed. Soon the young man starts to get upset. He yells things at the screen, trying to influence the outcome of his parents' courtship and the other people in the audience begin to think he is crazy. Several times the character breaks down. In the end he shouts at his parents when it appears they are going to break up, and he is dragged out of the theater by an usher who reprimands him. In the end, the character wakes up from his dream and notes that it is the snowy morning of his twenty-first birthday.»
JM — In a polarized world with many nuances, the 2025 media-political circus will rerun in front of our eyes and cannot be oversimplified. There has always been disinformation to spread antidemocratic propaganda and the manipulation of photographs has always existed too, but in Henry Fonda’s lifetime it was not as easy (as Open AI's Sora recently launched on December 9th, the same day that Google announced its AI's latest state-of-the-art quantum chip, Willow) to generate deepfake videos by any individual. The verisimilitude of the moving images will be assimilated by believers, without a critical spirit and with screens everywhere running algorithmic logics for attention retention in the continuous scrolling of moving images in social media feeds. It will seem an obvious consequence that our relationship with moving images and their excesses will change due to exhaustion, which will make cinema exhibition spaces, which need to be preserved, even more special?
AH — That’s a big topic. And I won’t go into the issue of a society’s – or an individual’s – ability to practice critical, “enlightened”, non-addictive relationships with images, moving or not. I think the obligation to handle this issue has already passed into the disciplines of medicine and, of course, politics, lawmaking, jurisprudence.
Our (whose?) relationship with moving images and their excesses, as you call it, has constantly mutated, and so has the role of cinema in the midst of these changes. If the word “our” refers to a cinephile relationship, I’d say that the cinema space has already, for quite some time, acquired a – potentially – resistant function. I have talked about this at earlier occasions, but I’ll repeat it, very schematically: After the long period (1930–1985?) when most cultural gatekeepers left and right viewed the cinema as a “sellout” practice, a “dumbing-down” of our inherited aesthetic sensibilities by the cultural industry, or, in the case of the leftist Screen theory in the 1970s, as an “apparatus” that fixed the spectator in a physically, mentally and ideologically passive “dream” state, the last 3 or 4 decades have increasingly given us an inversion of that picture. The classical arts, at least in the shape of their larger institutions such as museums, have taken their lessons from the era of cinema’s dominance, from practices of the pre- and postwar cultural industries (the earlier ‘Society of the Spectacle’), and, of course, from more recent shifts in the larger economy – like the one towards flexibilization and globalization. Mass marketing, global reach, and communicative standardization have become the ordre du jour with these art institutions. And addressing the “touristic mind”, once associated with cinematic escapism, is now one of
interesse meu: as formas como a história é constantemente reencenada e que partículas da história estão a ser re-encenadas (voltam a ser representadas em vez de outras) e, finalmente, o facto de, para o bem e para o mal, tais re-encenações desempenham um papel mais decisivo do que geralmente admitimos para a nossa compreensão da história e para as nossas expectativas políticas – tudo isto me deu indícios para levar as camadas “sonhadoras” da sociedade tão a sério como a sua vida desperta. Depois de terminar o filme, e após a morte de meus pais, deparei-me com um outro conceito e título que – de forma poética, e talvez apenas para mim – parece fundamentar esta abordagem acima descrita. Jonathan Rosenbaum, outro escritor americano a quem sinto uma grande dívida, anunciou um novo livro de ensaios intitulado In Dreams Begin Responsibilities – advém de um conto homónimo escrito pelo poeta americano Delmore Schwartz no verão de 1935, na véspera do seu 21.º aniversário. Foi também o ano em que Henry Fonda pisou pela primeira vez um set cinematográfico.
[NOTA: o livro de Rosenbaum não foi ainda traduzido para português; o conto Nos sonhos começam as responsabilidades foi publicado pela editora Guerra & Paz, 1.ª edição: 2012, 2.ª edição: 2020, com préfácio de Lou Reed.]
JM — Num mundo polarizado com muitas nuances, o circo político-mediático de 2025 repetir-se-á diante dos nossos olhos e não pode ser demasiado simplificado. A desinformação para espalhar propaganda antidemocrática e a manipulação de fotografias sempre existiram, mas desde Henry Fonda não foi tão fácil (com o Sora da Open AI, lançado recentemente a 9 de Dezembro, o mesmo dia em que a Google anunciou o chip quântico de última geração, Willow) gerar vídeos deepfake de qualquer indivíduo. A verosimilhança das imagens em movimento será assimilada pelos crentes, sem espírito crítico e com ecrãs por todo o lado, a executar lógicas algorítmicas para retenção de atenção, na contínua rolagem de imagens em movimento nos feeds das redes sociais. Parecerá uma consequência óbvia que a nossa relação com as imagens em movimento e os seus excessos se altere até à exaustão, o que tornará os espaços de exibição de cinema, que precisam de ser preservados, ainda mais especiais?
AH — Esse é um grande tema. E não vou entrar na questão da capacidade de uma sociedade – ou de um indivíduo – praticar relações críticas, “esclarecidas” e não viciantes com imagens, em movimento ou não. Penso que a obrigação de tratar esta questão já passou para as disciplinas da medicina e, claro, de política, legislativa, jurisprudência.
A nossa (de quem?) relação com as imagens em movimento e os seus excessos, como lhe chama, tem sofrido constantes mutações, assim como o papel do cinema no meio destas mudanças. Se a palavra “nossa” se refere a uma relação cinéfila, diria que o espaço do cinema já adquiriu, há bastante tempo, uma função – potencialmente – resistente. Já falei sobre isto em ocasiões anteriores, mas vou repeti-lo, de forma muito esquemática: depois do longo período (1930–1985?) em que a maioria dos guardiões culturais, de esquerda e de direita, viam o cinema como uma prática “esgotada”, a “estupidificar” as nossas sensibilidades estéticas herdadas por uma indústria cultural, ou, no caso da esquerdista teoria da Screen [revista britânica, marxista] na década de 1970, como um “aparato” que fixava o espectador a um estado
their primary aims. The spatial and temporal “flexibility” or “individual freedom” that people seemingly enjoy when strolling through a museum, an immersive installation, a shopping mall or a historical quarter – this pseudoactive consumerist model of aesthetic experience now inhabits the role of a social ideal (as if it were analogous to participatory activity in political, democratic processes). And it has become just as dominant in screen media, of course, where the mandate of “strolling”, of experiencing temporal and spatial “flexibility” and “individual freedom”, is most perfectly (and most perversely) fulfilled by the cultures of Streaming and Social media. You don’t even have to move your body anymore. This is the new ”dream state” – being awake, “active” and communicative 24/7 (Jonathan Crary’s polemic carries that title: 24/7 – Late Capitalism and the Ends of Sleep). In view of this, I think that the so-called passive role of a cinema spectator and the spatially/temporally fixed duration of a cinema séance have acquired a “resistant” potential, if only for the more reflective time and space this setting provides, as a place apart. But this remains crude theory as long as you don’t look at the details – of your own viewing practices and the ways in which even “resistant” moving image works exist in the world. What I mean is that they often exist beyond the cinema setting. The cinema has not been fully able or willing to define for itself (or fight for) a role in society where the above potential could really blossom. And its constituents – “we” – have regularly found and accepted other, complimentary, platforms where our film education continued in a crossover fashion. I grew up as a cinephile watching as many great films on TV (often in dubbed or corrupt versions) as in cinemas or cinematheques. And later on, some of my most important moving-image discoveries were made in art exhibitions, just as I’m making them now via online viewing.
Running a film museum, with exhibitions solely taking place on the screen, I tried as best I could to help carve a space for a more self-assured, more confident “culture of the projected image” – a culture which, socially and politically, might be recognized (and co-exist) at eye-level with the older cultures of exhibiting art works. And that endeavour obviously ran into some limits – not just those put up by cultural politicians or institutions from the other arts but also those coming from my own field, including archives and other film museums as well as the distribution and exhibition industries. There is still this strong notion of cinema’s “destiny” as a commercial realm of mass popularity – and that its survival depends on playing that role forever, no matter how much public subsidy is already in play, no matter how fake the “commercial” logic has already become, especially in Europe.
Let me end this rant by giving you two random anecdotes, one is somewhat pessimistic, one is slightly optimistic. Christopher Harris’ 16mm film still/here (USA, 2001, 61 minutes) is the most recent case, in my personal viewing history, of a truly great film that cinema culture has deprived me of. If I had put my trust in Viennese and European cinema culture, which I usually do, I would probably never have seen it. It has a high reputation in certain circles in America, as I’ve found out now; it was preserved by the Academy Film Archive some years ago and has shown at the most recent Whitney Biennial, a major art exhibition. I watched it a few days ago – online, because the “Media City Festival” in Windsor, Ontario, streamed its complete program for
“sonhado” física, mental e ideologicamente passivo, as últimas três ou quatro décadas deram-nos cada vez mais uma inversão deste quadro. As artes clássicas, pelo menos à dimensão das suas maiores instituições, como os museus, tiraram as suas lições da era do domínio do cinema, das práticas das indústrias culturais dos pré e pós-guerra (a inicial “Sociedade do Espetáculo”), e, claro, das mais recentes mudanças macroeconómicas – como as que se referem à flexibilização e à globalização. O marketing de massas, o alcance global e a padronização comunicacional tornaram-se a ordre du jour nestas instituições artísticas. E abordar a “mente turística”, outrora associada ao escapismo cinematográfico, é agora um dos seus principais objetivos. A “flexibilidade” espacial e temporal ou a “liberdade individual” de que as pessoas aparentemente desfrutam quando passeiam por um museu, uma instalação imersiva, um centro comercial ou um bairro histórico – este modelo consumista pseudo-activo da experiência estética desempenha agora o papel de um ideal social (como se fosse análogo à atividade participativa nos processos políticos, democráticos). E tornou-se igualmente dominante nos média baseados em suportes de ecrã, claro, onde o mandato de “vagabundear”, de experimentar a “flexibilidade” temporal e espacial e a “liberdade individual”, é mais perfeitamente (e mais perversamente) preenchido pelas culturas de streaming e das redes sociais. Já nem é preciso mover o corpo. Este é o novo “estado de sonho” – estar desperto, “activo” e comunicativo 24 horas por dia, 7 dias por semana (a polémica de Jonathan Crary transporta este título: 24/7 – O Capitalismo Tardio e os Fins do Sono (ed. Antígona, 2018). Perante isto, penso que o chamado papel passivo de um espectador de cinema e a duração espacial/temporalmente fixa de uma sessão de cinema adquiriram um potencial “resistente”, nem que seja pelo tempo e espaço mais reflexivos que esta configuração proporciona, como um lugar à parte. Mas esta continua a ser uma teoria grosseira enquanto não olharmos para os pormenores – das nossas próprias práticas de visionamento e das formas como até as imagens em movimento “resistentes” existem no mundo. O que quero dizer é que muitas vezes existem para além do panorama cinematográfico. O cinema não tem sido plenamente capaz ou desejoso de definir para si (ou de lutar por) um papel na sociedade onde o potencial que mencionei possa realmente florescer. E os seus constituintes – “nós” – encontraram e aceitaram regularmente outras plataformas, complementares, onde a nossa educação cinematográfica continuou num hábito transversal. Cresci como cinéfilo a ver tantos grandes filmes na TV (muitas vezes em versões dobradas ou corrompidas) como nos cinemas ou nas cinematecas. E mais tarde, algumas das minhas mais importantes descobertas com as imagens em movimento foram feitas em exposições de arte, tal como as faço agora através de visionamentos online. Ao gerir um museu do cinema, com exposições a ocuparem exclusivamente o ecrã, tentei o melhor que pude ajudar a criar um espaço para uma mais segura de si e mais confiante “cultura da imagem projectada” – uma cultura que, social e politicamente, pode ser reconhecida (e coexistir) ao nível do olhar com as mais tradicionais culturas expositivas para obras de arte. E este esforço esbarrou obviamente com alguns limites – não apenas os estabelecidos por políticas e instituições culturais de outras artes, mas também os provenientes da minha própria área, incluindo arquivos e outros museus do cinema, bem como das indústrias de distribuição e exibição. Ainda existe
a duration of 3 weeks. I would now count it among the most important American films of the 21st century, but to my knowledge it has not been shown in a European cinema venue more than 2 or 3 times over the last 23 years.
The other anecdote is something that Jean-Pierre Melville said in 1970 and that I just stumbled across. He said: «I don’t know what will remain of me in 50 years. I suspect that all films will have aged incredibly and the cinema will probably no longer exist. My estimation is that cinema’s final disappearance will happen around the year 2020. Thus, in 50 years, everything that will remain is televison.» – I think we should happily celebrate the fact that he was wrong, and that not even the events of 2020 ff succeeed in making his nightmare come true.
JM — Last days in Valladolid, during SEMINCI, one of the findings of MERCI, the Independent Cinema Market, which came out of 2024 in Spain: exhibitors asked distributors to release fewer films, which happened and in this way both win. This means fewer independent and European films in Spanish commercial cinemas. I’m mentioning Spain as one country in Europe and looking for the broader picture. In a desirable scenario: which kind of cinemas should we demand for the future, to serve the public who want to see independent European cinema?
AH — Part 1 of the answer is buried somewhere in my previous diatribe: I believe in the creation of a cinema public, not the serving of a public (which mostly amounts to self-serving and self-fulfilling prophecies on the part of commercial and fake-commercial producers, distributors, exhibitors and cultural politicians).
Part 2: Maybe the situation in the German-language world is very different from the one in Spain or Portugal, but I don’t think there is a lack of “independent” European films nor of “European” films on our European cinema screens. Practically all European films think of themselves as “independent” – an undeservedly proud synonym for being “not American”. On average, I find them easily as – if not more – conformist than their American counterparts, “independent” or not. For the 90 percent of European films that I’m talking about, the streaming platforms and TV screens (which are their secretly desired landing places anyway) should be the first and only destination – in order not to be mixed up with what cinema could be (and what it, often enough, already is; 10 percent of the total production volume in Europe, that’s not such a small number…). The cinema venues which could represent this approach would need to view themselves – and be viewed by society and cultural politics – like theatres, art museums, concert halls, but also be able to behave like dance clubs, university seminars and unplanned social gatherings. Instead of adhering to 19th century bourgeois ideals and, in one and the same breath, affirming the dominant economic and touristic principles of the 21st century, they would try and establish a mental, visual, aural testing ground for all the remnants, memories, and half-broken social & democratic promises that are still usable from the 20th century. I’m smiling as I write this, of course. This is what my inner-child utopias have trained me to do: to imagine a wonderful world and smile while everything falls apart.
esta forte noção de “destino” do cinema como um domínio comercial e de popularidade junto das massas – e que a sua sobrevivência depende de desempenhar esse papel para sempre, independentemente de quantos subsídios públicos se encontrem atualmente em jogo, não importa, especialmente na Europa, quão falsa já se tornou a lógica “comercial”.
Permite-me terminar este discurso contando duas anedotas fortuitas, uma é algo pessimista, a outra é ligeiramente otimista. O filme em 16mm de Christopher Harris still/here (EUA, 2001, 61 minutos) é o caso mais recente, na minha história pessoal de visionamentos, de um filme verdadeiramente grandioso que a cultura cinematográfica me privou. Se eu tivesse confiado na cultura cinematográfica vienense e europeia, o que costumo fazer, provavelmente nunca o teria visto. Tem uma grande reputação em certos círculos da América, como agora descobri; foi preservado no Academy Film Archive há alguns anos e foi exibido na mais recente Whitney Biennial, uma importante exposição artística. Assisti há alguns dias – online, porque o Media City Festival em Windsor, Ontário, transmitiu a sua programação completa durante um período de 3 semanas. Considerá-lo-ia agora um dos filmes americanos mais importantes do século XXI, mas, tanto quanto sei, não foi exibido em salas europeias mais de 2 ou 3 vezes nos últimos 23 anos.
A outra anedota é algo que Jean-Pierre Melville disse em 1970 com que me deparei agora. Ele disse: «Não sei o que restará de mim daqui a 50 anos. Suspeito que todos os filmes terão envelhecido incrivelmente e o cinema provavelmente já não existirá. A minha estimativa é que o desaparecimento definitivo do cinema acontecerá por volta do ano 2020. Assim, daqui a 50 anos, tudo o que restará será televisão.» – Acho que devemos celebrar com alegria o facto de ele ter errado e de nem mesmo os acontecimentos de 2020 e dos anos seguintes terem conseguido tornar o seu pesadelo realidade.
JM — Nos últimos dias em Valladolid, durante a SEMINCI, uma das conclusões que saiu do MERCI, Mercado de Cinema Independente, de 2024 em Espanha: os exibidores pediram aos distribuidores que lançassem menos filmes, o que aconteceu e desta forma ambos ganham: menos filmes independentes e europeus nas salas espanholas. Menciono Espanha, como um país na Europa, à procura da maior abrangência. Num cenário desejável: que tipo de salas futuras para servir um público que quer ver cinema europeu independente é que deveríamos exigir?
AH — A 1.ª parte da resposta está soterrada na minha diatribe anterior: acredito no criador e não no serviçal de um público (o que equivale em grande parte a profecias egoístas e auto-realizáveis por parte de produtores comerciais e falsamente comerciais, distribuidores, exibidores e políticos de cultura).
2.ª parte: talvez a situação no mundo de fala germânica seja muito diferente da espanhola ou portuguesa, mas não creio que haja falta de filmes europeus “independentes” nem de filmes “europeus” nos nossos ecrãs de cinema na Europa. Quase todos os filmes europeus se consideram “independentes” – um sinónimo imerecidamente orgulhoso de ser “não americano”. Em média, considero-os facilmente tão – se não mais – conformistas do que os seus homólogos americanos, “independentes” ou não. Para os 90 por cento dos filmes europeus de que estou a falar, plataformas de streaming e ecrãs de televisão (que, atabalhoadamente, são os seus locais de aterragem
JM — What is most important today to attract the interest of a new generation that, apart from the precariousness of work, could become film programmers?
AH — I think I would again refer to the paradigm of creation vs. service. There are now many academic training programs for curatorial work all over the world, even a few that are specifically dedicated to film curatorship. But if the graduates of such programs just fill the existing jobs that open up in the various institutions, the danger is that the “servicing” approach will remain the dominant – or only – one. Don’t misunderstand me: I do think it is the actual, perceptible need in a city, or in a small community of people, that counts – and filling that need, acting upon that strong desire may then be called “a service”. But in this case it means that you yourself, as someone who starts being a programmer or curator, are part of that community, that it was the community and its perceptible need from which your activity or “career” has sprung. So, in order to imagine yourself as an actor in this field, you must not only look at the existing institutions and accepted models, practices and tastes (even if you need them, as a viewer, to start and expand your own education in film and its history) – you must also learn to sense (and to desire) what’s missing. That’s the “attraction” – and it will be instigated by experiences you make elsewhere, in other cities and communities. Creation will follow. New institutions, new “programmatics” will be founded, even if they start very small and very precariously. All this, of course, is based on my understanding of film programming & curatorship as a set of crafts and aesthetic practices and, therefore, as opposites to the algorithmic, trend-based, numbers- and data-driven ways in which the majority of our moving image “program services” are now functioning.
JM — I have always been lucky to have people as referents. Carlos F. Heredero gave me to read, from Film Culture (n.º 27, Winter 1962–63), a text by Manny Farber, White Elephant Art vs. Termite Art. As you mentioned at the beginning that you are not sure that you like the ‘professional’ / viewers distinction from the critics (in a restrict sense of Godard’s boutade (César, 1987): « les professionnels de la profession ». I wonder, in countries where there are still film industries and free press, an illiteracy that makes spectators passive and permissible to what a streaming catalog has to offer them on the first screen, if it wouldn't be an interesting exercise to encourage the writing of personal notes (not necessarily to share them immediately online) later to see something. And to reread ourselves, even because memory betrays us, to ask us questions… What focus for film criticism do we need nowadays?
AH — With the (avoidance of a) distinction between “professional” and “non-professional” viewers I was maybe also referring to the fact that the profession formerly known as “film criticism” has been: a) so diminished, if you think of paid jobs in the media and of the space that the ‘legacy media’ dedicate to written reflections about cinema; – or b) so expanded, if you think of the quantitative rise, since the 1990s, of academics and university students who refer to their practice as a film- or media-critical one; – or
secretamente desejados) deveriam ser o primeiro e único destino – para não se confundirem com o que o cinema poderia ser (e o que, muitas vezes, já é; 10 por cento do volume total de produção na Europa, não é um número assim tão reduzido…). A sala de cinema que pudessem representar esta abordagem necessitaria de se ver – e ser vista pela sociedade e pela política cultural –como teatros, museus de arte, auditórios de concertos, mas também ser capaz de se comportar como clubes de dança, seminários universitários e encontros sociais não planeados. Em vez de aderirem aos ideais burgueses do século XIX e, ao mesmo tempo, afirmarem os princípios económicos e turísticos dominantes do século XXI, tentariam estabelecer um campo de testes mental, visual, aural, para todos os vestígios, memórias e promessas sociais e democráticas meio-desfeitas do século XX que ainda são utilizáveis. Estou a sorrir enquanto escrevo isto, é claro. Isto foi o que as utopias da minha criança interior me instruíram para fazer: imaginar um mundo maravilhoso e sorrir enquanto tudo se desmorona.
JM — À parte da precariedade laboral, o que é mais importante hoje para atrair o interesse de uma nova geração que se poderá tornar programadora de cinema?
AH — Penso que irei referir novamente o paradigma criação versus serviço. Existem hoje, por todo o mundo, vários programas de formação académica para o trabalho curatorial, até uns poucos que são especificamente dedicados à curadoria de filmes. Mas se os diplomados de tais programas apenas preencherem os postos de trabalho nas vagas em variadas instituições, o perigo é que a abordagem “serviçal” continue a ser a dominante – ou a única. Não me interpretes mal: eu penso que é a necessidade real e perceptível numa cidade, ou numa pequena comunidade de pessoas, que conta – e satisfazer essa necessidade, agindo de acordo com esse desejo forte, pode então ser chamado de “um serviço”. Mas neste caso significa que o próprio, enquanto alguém que começa a ser programador ou curador, faz parte dessa comunidade, que foi da comunidade e da sua necessidade percetível que brotou a sua atividade ou “carreira”. Assim, para te imaginares neste campo, não deves apenas olhar para as instituições existentes e para os modelos, práticas e gostos aceites (mesmo que precises deles, como espectador, para iniciar e expandir a tua educação em cinema e na sua história) – deves também aprender a sentir (e a desejar) o que está em falta. Esta é que é a “atração” – e será instigada por experiências que faças em qualquer outra parte, noutras cidades e comunidades. A criação seguirá. Novas instituições, novas “programáticas” serão fundadas, mesmo que comecem muito pequenas e precariamente. Tudo isto, claro, baseia-se na minha compreensão da programação e curadoria de filmes como um conjunto de ofícios e práticas estéticas e, portanto, como opostos às vias algorítmicas, baseadas em tendências, números e dados que accionam a maioria dos “serviços de programas” em que a nossa imagem em movimento funciona agora.
JM — Eu sempre tive sorte a ter pessoas como referências. Carlos F. Heredero deu-me a ler, da Film Culture (n.º 27, Inverno de 1962–63), um texto de Manny Farber, A Arte Elefante-branco contra a Arte Térmita. Como me referiste no início, de não estares seguro que te agrada a distinção entre os “profissionais” /
c) so extremely diluted, dispersed, individualized, if you think of the Internet, the blog culture of the 2000s, or Letterboxd and other Social media today. I’m sure that somewhere just as much exciting writing about cinema exists now as in the past, but for an individual (or maybe just for a 60-year-old individual like me) it has become much harder to establish robust criteria for where to find it – beyond the purely subjective, and beyond the choice of who you follow on Social media (where I’m not a participant). I think your suggestion is valid – encouraging the writing of “personal notes” not for immediate publication but for re-visitation and re-engagement later on. I myself remember doing that before I started to publish my writing, and even for a brief period after that. But I also think that the current desire (or stress) of having to externalize and make public every ounce of your mind and your experience in order to “be seen” or to prove that you exist, represents a strong force against that idea. Everything’s “out there” so to speak, nothing is held back. So the “personal notes” do exist, in the billions; it’s just that there is hardly anyone who could make sense of them. Truthfully, I feel out of my depth on the issue of what’s needed nowadays – except that the example you give at the beginning of your question (Manny Farber, Carlos F. Heredero, and you) feels to me like the essential one, today as much as in the past. To create a personal path by letting other personal paths, and the products of their reading & viewing experience, imprint themselves on you (even if you decide against those imprints from time to time), this has always been an aim and a guiding principle for me. To do it on the basis of actual relationships, physical conversations, with people who excite something in you. ��
espectadores e os críticos (num sentido restrito da boutade de Godard (nos César, 1987): « les professionnels de la profession ». Pergunto-me se, em países onde ainda existem indústrias cinematográficas e imprensa livre, um analfabetismo que torna os espectadores passivos e permissíveis ao que o catálogo de streaming tem para lhes oferecer no primeiro ecrã, se não seria um exercício interessante para incentivar a escrita de notas pessoais (não necessariamente para as partilhar imediatamente online) após ver algo. E reler-nos, até porque a memória nos trai, colocar-nos perguntas… Qual é o foco que necessita a crítica cinematográfica hoje em dia?
AH — Com (o evitar d’) a distinção entre espectadores “profissionais” e “não profissionais”, talvez estivesse também a referir-me ao facto da profissão anteriormente conhecida como “crítica de cinema” ter sido:
a) tão diminuída, se pensarmos atividades remuneradas empregos nos meios de comunicação social e do espaço que os ‘média tradicionais’ dedicam às reflexões escritas sobre cinema; – ou
b) tão expandida, se pensarmos no aumento quantitativo, desde a década de 1990, de académicos e estudantes universitários que se referem à sua prática como crítica ao cinema ou aos média; – ou
c) tão extremamente diluída, dispersa, individualizada, se pensarmos na Internet, na cultura dos blogues dos anos 2000 ou, hoje, no Letterboxd e em outras redes sociais. Estou certo que algures existe agora tanta escrita interessante sobre cinema como no passado, mas para um indivíduo (ou talvez apenas para um indivíduo de 60 anos como eu) tornou-se muito mais difícil estabelecer critérios robustos para onde encontrá-la – além do puramente subjetivo, e para além da escolha de quem segue nas redes sociais (das quais não sou participante). Penso que a tua sugestão é válida – encorajar a escrita de “notas pessoais” que não sejam para publicação imediata, mas para revisitação e reengajamento posterior. Eu mesmo me lembro de o ter feito antes de começar a publicar os meus escritos, e até um breve período depois disso. Mas também penso que o atual desejo (ou stress) de ter de externalizar e de tornar pública cada grama da mente e da sua experiência para “ser visto” ou para provar que existe, representa uma força forte contra essa ideia. Tudo está “lá fora”, por assim dizer, nada é retido. Portanto, as “notas pessoais” existem, na casa do milhar de milhões; só que dificilmente há alguém que as consiga compreender. Eu, na verdade, sinto-me perdido na questão do que é necessário hoje em dia – excepto que o exemplo que me deste no início da tua pergunta (Manny Farber, Carlos F. Heredero e tu) parece-me o essencial, tanto hoje quanto o foi no passado. Para criar um caminho pessoal ao permitir que outros caminhos pessoais, produto das suas experiências de leituras e de visionamentos se imprimam em ti (mesmo se te decidas estar contra essas impressões de vez em quando), este sempre foi um objetivo e um princípio orientador para mim. Fazê-lo com base em relacionamentos reais, conversas físicas, com pessoas que estimulam algo em ti. ��
Após o livro Espelho Mágico – Uma História do Cinema (Orfeu Negro, 2024), nascido a 4 de julho, ou melhor, lançado no Dia da Independência dos EUA, na Cinemateca Portuguesa, reencontrei no dia 26 de novembro Francisco Valente em Nova Iorque, já depois do ciclo de que fez a curadoria, The Ongoing Revolution of Portuguese Cinema, com projeções que decorreram dos dias 16 de outubro a 19 de novembro. Recomenda-se a leitura prévia do primeiro número da gray-film no lançamento do livro do Francisco, programador no departamento de cinema do MoMA, que previamente havia integrado outra equipa de programação, a da Cinemateca Portuguesa. Um tempo de balanço numa conversa com baldes de café americano.
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José Machado – O que te surpreendeu, de reações, ao ciclo que programaste?
Francisco Valente – Foi muito positivo, consegui estar em várias sessões… As pessoas que estiveram presentes, muitas delas voltaram para outros filmes, ficaram muito interessadas em descobrir um cinema muito singular e diferente, completamente diferente do cinema norteamericano, que é muito formatado, tanto o cinema de Hollywood, como o cinema nas margens de Hollywood, o chamado cinema Indy, que é menos formatado. Devido aos próprios festivais onde os filmes circulam, com Sundance, Toronto e por aí fora, são filmes presos, não todos (estou a generalizar), mas muitos deles são pouco dados ao risco e à experimentação. E o cinema português é o contrário: é um work-in-progress constante, está sempre a tentar procurar novas formas de linguagem, tem uma base política muito forte, obriga os espectadores a refletir, a pensar… As imagens e pensar sobre as imagens são coisas que estão ligadas, nunca são filmes planos e eu acho que no cinema norteamericano há uma maior preocupação de fazer uma coisa que seja vendável, não necessariamente em termos financeiros, mas vendável para o próprio olhar do espectador, em ser uma coisa assim mais fechada, definida e mais segura, de fácil compreensão, o que é bom, também, quando se está a construir uma narrativa, mas depois acontece que os filmes acabam por ser mais parecidos uns com os outros. E no cinema português eu acho que isso não acontece tanto. Há temáticas que são, sem dúvida, recorrentes, mas em termos do objeto final do filme são sempre coisas diferentes. Acho que foi isso que trouxe as pessoas de volta aos filmes e muitas depois deixavam comentários ou críticas no Letterboxd nesse sentido: que eram coisas, wow, nunca vi uma coisa assim ou uau, não sabia que a história política de Portugal era tão interessante… Acho que foi uma experiência gratificante para essas pessoas.
J.M. – Falaste de festivais, onde circulam filmes americanos e alguns têm espaços para desenvolvimento, residências, onde se acabam por fazer filmes, como referiste, formatados… Como programador, quando vês um filme que saiu incubado por um destes festivais, qual é a tua ponderação?
F.V. – Quando vejo um filme, muito francamente, não me interessa onde é que o filme foi estreado, nem nada disso. Eu vejo o filme e vejo se o filme é bom ou não é bom, se é interessante ou não é interessante. Agora, isso é inevitável. Há filmes que trazem muito essa formatação, são filmes que passam mais neste festival ou noutro, são filmes desenvolvidos em redes de produção ligadas a festivais e depois há certas coisas que são favorecidas em vez de outras. Essa repetição é uma coisa inevitável, não é? Também acabamos por viver as mesmas coisas… É impossível isso não existir, mas eu, pelo menos, quando começo a ver um filme ou quero ver um filme não me interessa minimamente, muito francamente, eu até acho que vejo filmes demais por causa disso… E, numa das coisas que faço aqui no MoMA é programar curtasmetragens para o New Directors/New Films e vejo curtas-metragens de todo o lado, honestamente de todo o lado. E também porque, se calhar, procuro um bocadinho essa diferença, mas é normal… Fala-se muito no circuito, ah, isto é um filme que cai muito bem em Cannes, ou em Locarno, ou o que seja… Podia estar a dizer qualquer outro nome de festival. São coisas um bocado inevitá-
veis, mas eu acho que é importante, na lógica de programação, tentar fugir o máximo possível… Há filmes que conseguem fugir disso. Há filmes que ganham prémios nesses festivais que conseguem ser surpreendentes. Na verdade, aquilo que eu mais procuro mais num filme é que seja surpreendente… Se estiver a ver coisas que já vi noutros filmes ou coisas já muito batidas é inevitável que acabe por aborrecer um bocadinho mais, não é? E que perca um pouco o interesse… Acho que continuamos a ver filmes, um bocado, para ir em busca dessa surpresa e de algo refrescante e que depois o filme acabe e nos ponha a pensar ou a requestionar certas coisas que achávamos que dávamos por garantidas, tanto no mundo lá fora como no próprio cinema, na maneira de reflectir aquilo que vivemos.
J.M. – Alguns programadores de festivais comentam que estão a receber uma quantidade de produções tão alta... Os festivais, que têm um papel importantíssimo, acabam por permitir que vejamos filmes que de outra forma não veríamos. Para um programador, sem equipas muito maiores que os festivais também não as conseguem ter… Como vês esta dificuldade?
F.V. – Eu acho que terá a ver, sobretudo, com o facto de ser muito mais fácil fazer filmes hoje em dia, não é? Desde que a produção do cinema se tornou digital é muito mais fácil para qualquer pessoa fazer um filme…
J.M. – Mas depois falta pensamento…
F.V. – Eu não sei se falta pensamento, eu acho é que quando é mais difícil fazer um filme e demora mais tempo a fazer um filme, tu vives mais com esse projeto e obriga-te a pensar muito mais e a preparar muito mais… E quando estás a filmar em película, tens que preparar muito mais (dependente da natureza do filme, não é?). A maneira de fazer filmes mudou, não só mudou como é mais fácil, é uma coisa mais imediata. Hoje em dia qualquer pessoa filma e põe um reel no Instagram ou no TikTok ou no que seja… A própria coisa de filmar dessacralizou-se. Isso tem coisas negativas e tem coisas positivas. O facto de haver mais filmes é uma coisa positiva e negativa porque é óptimo haver essa facilidade, esse acesso a uma câmara e isso permite também experimentar mais, fazer coisas, se calhar, mais refrescantes e diferentes… A parte negativa é que, de facto, há muitos mais filmes e para um programador isso obriga, de facto, a ver mais coisas e há mais coisas e menos coisas diferentes umas das outras. Há muitas imitações – é normal –, quer dizer, se há filmes a mais, há… Há filmes a mais e o próprio mercado de distribuição tem imensas dificuldades em estrear tudo aquilo que se faz, mas por isso é que o papel de um programador também é cada vez mais importante, não só num sítio como este do MoMA, mas num cinema de bairro, em que, eu volto a dizer, quando tu tens centenas de filmes a estrearem-se por mês numa plataforma de streaming – estás em casa e tens acesso a um catálogo de páginas amarelas –, em que está tudo lá presente, mas é muito difícil encontrar os filmes e, muitas vezes, demoras imenso tempo até encontrares uma coisa que seja interessante porque antes tiveste a ver as grandes produções que pagaram para ter lá os filmes em destaque (ou o que seja), torna-se ainda mais importante existirem cinemas de bairros em que a
pessoa está a comprar ou a alugar os filmes para passarem nas salas de cinema tenha esse olhar e um olhar de programação desenvolvido que permita oferecer, de volta, às pessoas que vivem nesse bairro… – O.K. estes são para mim os filmes que eu acho que se destacam, dentro dos melhores que existem – e isso é um trabalho extremamente importante. E, apesar de muitos cinemas terem fechado, se tu fores a ver os cinemas que estão a reabrir, os poucos que estão a reabrir – aqui em Nova Iorque há alguns, nos últimos anos alguns reabriram ou renovaram-se –, têm uma programação muito vincada porque querem, precisamente, fazer esse trabalho e distinguirem-se desses catálogos todos sem identidade que existem online. É muito mais fácil ver filmes e procurar um filme online, há muitos que estão disponíveis na versão completa no YouTube ou o que seja… O que é preciso é um bocado o que aconteceu com a imprensa, os jornais também têm menos leitores porque há menos jornais, mas os jornais, de facto – se tu compras um jornal diário, há toda uma equipa por trás que fez um trabalho de edição, que escreveu e que escolheu o que é que seria publicado nesse dia, o que é diferente de estares a abrir uma rede social e é um algoritmo, não são pessoas, que acha, O.K. isto é o que tu vais gostar mais e não vais necessariamente ler informação –, no cinema é um bocadinho a mesma coisa, eu acho.
J.M. – Mencionaste as distribuidoras… Em Valladolid, durante a SEMINCI, uma das constatações no MERCI, Mercado de Cinema Independente e de 2024 em Espanha: os exibidores pediram aos distribuidores para que se estreiem menos filme, o que aconteceu e desta forma todos ficam a ganhar; isto significa menos filmes independentes e europeus nas salas comerciais espanholas. Num cenário desejável, que salas servem o público que quer ver cinema independente e que mais importa chamar à atenção hoje e que salas em Nova Iorque podem servir, para Portugal, de exemplo?
F.V. – Eu já não vivo em Portugal há 5 anos, mas conheço muitas pessoas que trabalham em cinema em Portugal. E não faltam pessoas que poderiam ter salas de cinema fantásticas a funcionar em Portugal, não só em Lisboa ou no Porto. O que falta é a capacidade de investimento e dinheiro porque fazer uma sala de cinema é uma coisa muito cara…
J.M. – Defenderás, também, que as salas de cinema devem ser bem equipadas, seja em digital com DCP, para que quem se desloca à sala, veja com as melhores condições…
F.V. – Claro, só assim. Primeiro construir a sala de cinema, depois ter dinheiro todos os meses para pagar os direitos de exibição dos filmes que tu queres mostrar… Mais, pagar salários às pessoas…. Uma sala de cinema não é carregar play e ver um filme. Há muitos, muitos, custos. Tal como num teatro ou qualquer outro equipamento cultural… Falta, em Portugal, inserir isso dentro da política cultural do país, valorizar a sala de cinema como um lugar onde se desenvolve a formação de público e que isso traz benefícios para a sociedade, em termos gerais, não só em termos culturais e de pensamento, mas em termos económicos também. As salas que existem aqui em Nova Iorque como o Film Forum, onde vou várias vezes… O Lincoln Center tem uma capacidade
diferente, porque está associado (o Film at Lincoln Center), o Lincoln Center tem ópera, bailado, dança, não é só uma sala de cinema… O Metrograph também, quando foi criado aqui em Nova Iorque já para aí há 8 ou 9 anos, o grande modelo do Metrograph foi a Cinemateca Portuguesa. Queriam um cinema com uma sala grande, uma sala mas pequenina, um restaurante, uma livraria e fizeram isso, no Lower East Side. Portanto, há pessoas aqui em Nova Iorque que estão a olhar para Portugal e a ver uma inspiração para criarem as suas salas de cinema. Por que é que isso acontece? Porque há pessoas que trabalham em Portugal, no mundo do cinema, que fazem um trabalho extraordinário. Faltam equipamentos culturais, há falta de vontade política… Claro que é importante existir produção, mas também é importante existir exibição e, hoje em dia em Portugal, vendo ainda para mais como estão as rendas nas cidades, em Lisboa e no Porto, quem é que tem dinheiro para abrir uma sala de cinema, comprar imobiliário e construir uma sala de cinema? Só um milionário, aqui de Nova Iorque, que vai aproveitar a legislação de benefícios fiscais que existe em Portugal, e decide que o dinheiro que vai trazer para Portugal é para abrir uma sala de cinema. Tenho dúvidas que isso aconteça, mas como está o mercado imobiliário seria a única maneira, parece-me. Portanto, a não ser que alguém no Estado Português olhe para o imobiliário, veja aquilo que está a ser aproveitado ou desaproveitado e que tenha a ideia brilhante de – não, se calhar este equipamento que está aqui, que está a ser subaproveitado e podíamos usar isto de outra maneira, numa lógica municipal e local, com um efeito direto dentro da comunidade.
J.M. – Os “vistos gold” serviram para muitas coisas, mas não para isso… E os bancos que se fundem, fecham balcões, abandonam dependências e perde-se o que já não se pode recuperar. Em Lisboa, o Monumental é um exemplo, o espaço dos cinemas fechado naquele dependência bancária que não é nada e está ali no Saldanha…
F.V. – Uma coisa que é fascinante no Paulo Branco: ele move-se por utopias e por um grande amor ao cinema e, portanto, os projetos que ele tem feito em termos de exibição foram muito nesse aspecto. Agora que o Monumental está fechado, olhamos para esses anos em que o Monumental funcionava com 4 salas de cinema e pensamos que tempo magnífico que aquilo foi. Eu quando comecei a ver cinema em Lisboa, a partir dos 18 anos que foi quando voltei à cidade para viver, eu via filmes no Monumental, via filmes no Ávila, via filmes no Cine-Estúdio [222], via filmes no King, no Quarteto, destes cinco que eu disse, quatro eram do Branco…
J.M. – Mais as 4 salas do Residence…
F.V. – É verdade, o Saldanha Residence, mais 4 salas…
J.M. – Que depois passou a ser um ginásio…
F.V. – Sim, e portanto eu também sou produto desse tempo e do investimento que ele fez, nessas salas, não é? A maneira que ele tem agora de exibir os filmes é fazendo um festival e, guardou o Nimas, também, faltou dizer o
Nimas… São projetos utópicos que tentam resistir – é a única maneira, que tentam resistir de todas as maneiras possíveis à realidade urbanística que existe hoje em dia nas grandes cidades, tanto em Lisboa como no Porto… Esse Monumental, esse espaço fechado, representa o falhanço da política cultural em relação ao cinema, em relação à exibição de cinema em Portugal e com o mercado de distribuição em que a [elevada] percentagem dos filmes que são exibidos em Portugal são produções de Hollywood e não são necessariamente as melhores, em que as pessoas que trabalham para os estúdios de Hollywood não tomam decisões, cumprem ordens vindas daqui dos EUA, que se estão completamente nas tintas para a realidade cultural, social, urbanística de Lisboa, do Porto e de outras cidades portuguesas. Como é que isto se muda? Com vontade política, não é? Se houvesse uma vontade política, se calhar, da Câmara Municipal de Lisboa, compraria o Monumental e devolveria esse espaço à cidade, um pouco como faz com o São Jorge, mas o São Jorge é um equipamento muito valioso, mas que funciona para festivais… Não tem exibição regular. Mas o Batalha, no Porto, é um projeto absolutamente extraordinário e isso devia acontecer mais vezes. Eu acho que muitas pessoas em Lisboa sentem falta de um projeto como o Batalha. O Porto além do Batalha tem o Trindade e esses dois sítios sustentam, oferecem, essa alternativa. Não estou aqui a dizer com isto que devemos acabar com os filmes americanos, não é nada disso. Aqui é a possibilidade das duas coisas existirem, não é? Que devemos dar a possibilidade das pessoas quererem ver os filmes de animação, com os seus filhos, de ir ver as sequelas todas, os filmes dos super-heróis, não é? E isso é o mercado a funcionar, as pessoas têm o direito de ir ver esses filmes se é o que gostam de ver, como é óbvio. Agora, aquilo que nós também queremos é que depois exista um investimento nos outros filmes, que não estejamos só a comer o fast-food, não é? E que as pessoas tenham um acesso a filmes que são diferentes, que nem sequer são rebuscados, que nem sequer são intelectualoides e que nem sequer são nada disso… São só, pura e simplesmente, filmes que obedecem a uma lógica diferente e que qualquer pessoa pode também querer descobrir e gostar, tal como eu quando tinha 18 anos e não tinha um gosto muito formado e comecei a ver estes filmes e a interessar-me por esse cinema.
J.M. – Há pouco falaste no Paulo Branco, mas muitas vezes esquecemo-nos do António M. Costa, do papel dos programadores…
F.V. – Eu quando digo o Paulo Branco, como os programadores que trabalharam com ele, como por exemplo…
J.M. – O Pedro Borges…
F.V. – O Pedro Borges, também… Acho que a maior parte das pessoas do cinema em Portugal trabalharam com o Paulo Branco… Deixou escola, não é? E gosto… Stefano Savio, também, que depois desenvolveu o seu caminho com [a Festa do] Cinema Italiano. e que faz um trabalho absolutamente extraordinário, em termos de promoção do cinema italiano, conseguiu desenvolver uma marca que vale mais do que qualquer… Ou seja – não é, tipo, o Estado entrar aqui e dizer têm que ver estes filmes – é [o Estado] criar con-
dições para que depois as pessoas que, de facto, conhecem o mundo do cinema e gostam muito de cinema e sabem trabalhar na distribuição consigam desenvolver um trabalho de devolver ao público algo que querem ver. É o que o Stefano faz.
J.M. – E eu falava-te do António M. Costa para falar de programadores e da valorização do papel do programador. Se olharmos para as cidades que estão equipadas com cineteatros, que passaram a ter projeção com DCP, o que lhes falta é ter programação e as autarquias pensarem que podiam ter programadores e deste o bom exemplo do Batalha. Como é que se sensibiliza o poder autárquico, que está mais próximo, para a importância do que para ti foi determinante, quando tinhas 18 anos e te levou a onde estás hoje.
F.V. – Outras pessoas que estão a tentar e a fazer isso em Portugal conseguem responder a essa pergunta muito melhor do que eu. Eu acho que é um exercício de insistência, teimosia e de fazer chegar e explicar – às pessoas que têm a capacidade para tomar essas decisões, que gerem o património, que fazem as leis, que desenvolvem as políticas –, que há vantagens em pegar num sítio ou, talvez, que há vantagens em não fazer só hoteis e fazer um cinema de bairro que serve toda uma zona da cidade ou uma cidade inteira e que isso vai desenvolver públicos e que desenvolver públicos não é só ver filmes giros e interessantes e diferentes… São coisas que marcam, de facto, a cidadania, que pode atrair investimento… Que há pessoas aqui em Nova Iorque que tomam a inspiração daquilo que se faz em Portugal, apesar da nossa falta de meios e que – existindo meios –, essa influência pode ser ainda maior… Eu, por exemplo, às vezes penso que gostava muito de um dia de voltar a Lisboa e de abrir lá uma sala de cinema, mas é muito difícil… [risos] Eu não tenho milhões de dólares!
J.M. – Em Lisboa, por ser onde vivias, mas podia ser outra cidade…
F.V. – Por ser onde vivia, mas também porque eu acho que faltam cinemas em Lisboa, pura e simplesmente. Há o Nimas, o Ideal, a Cinemateca,
J.M. – Alvalade, o City…
F.V. – Alvalade…
J.M. – E o do Campo Pequeno.
F.V. – O São Jorge serve os festivais, mas estou a falar de um cinema de bairro que tenha uma programação diária, constante, em que as pessoas saem de casa e sabem que se forem àquele cinema, há lá uma equipa, uma programação – é um cinema que está integrado num circuito internacional de distribuição de filmes, onde há filmes de todos os países que se estreiam lá –numa lógica comercial, não é a lógica comercial dos centros comerciais, mas é igualmente uma lógica comercial, mas com um valor cultural e artístico, também. Eu não sei como é que se convence um político, a dizer – olhe, eu tenho esta experiência toda, se você me der este espaço aqui e me der din-
heiro para eu fazer aqui uma sala de cinema, você vai ver uma diferença muito grande na comunidade – não é uma prioridade política… Imagino que é contra isso que as pessoas que estão a tentar fazer isso em Portugal estejam a ouvir todos os dias… Acho que, dentro da lógica de apoios ao cinema que existe em Portugal, talvez seja importante abrir espaço também a isso, à exibição de filmes – não só à produção e não é tirar dinheiro à produção –, é acrescentar dinheiro à exibição de filmes, mas não sei… Se calhar faltam também pessoas na própria política que tenham essa sensibilidade, não sei se consigo responder a essa pergunta [risos] e eu já não vivo em Portugal há muito tempo… Aqui nos EUA, se tu tens um projeto, há muitas pessoas com muito dinheiro aqui e acho que é mais fácil, de alguma maneira, apresentares um projeto estruturado e também conseguires pessoas que te deem dinheiro porque, para já têm imenso dinheiro para dar e, talvez paradoxalmente, existe essa ideia de que, O.K. eu tenho muito dinheiro estou a devolver esse dinheiro de maneira positiva à sociedade, mesmo se isso significa que esta sala de cinema tem o meu nome… Quer dizer, tu andas aqui nas galerias do MoMA e tu olhas para cima para as galerias e estão lá nomes de pessoas, são as pessoas que deram dinheiro ao MoMA para funcionar. Eu lembro-me quando trabalhava na Cinemateca [Portuguesa], diante do Novo Banco, na altura ainda não era pública a situação do BES, mas eu sempre me perguntei o porquê do BES não dar dinheiro à Cinemateca… Essas coisas aqui [nos EUA] são mais imediatas. Não sei se esse pensamento ainda está muito enraizado na sociedade portuguesa ou se as pessoas que não estão na política, mas têm dinheiro, têm muito dinheiro, olham para o cinema em particular como uma coisa interessante, não é? Para quê é que haveriam de dar dinheiro para uma sala de cinema? Não sei, acho que há toda uma lógica aqui que é necessário desenvolver , mas para mim a prioridade são as políticas culturais… E volto a referir, o projeto do Batalha, não é? Isso é o que deveria acontecer! A Câmara Municipal do Porto – que tomou conta daquele equipamento e que devolveu esse equipamento à cidade –, que deixa as pessoas, do cinema e da cultura, trabalharem e desenvolverem esse projeto. É isso que devia acontecer mais… O projeto do Trindade, também, quero dizer, em Lisboa faz falta um sítio desses. E…
J.M. – E faz falta no país todo, porque, se queremos ter…
F.V. – Sim, eu digo Lisboa porque Lisboa é onde eu vivi, não é? Quer dizer, Lisboa nem é o mais urgente, como é óbvio. Fora de Lisboa e do Porto… Falta um bocadinho mais disso, se calhar nem tudo é mau, falta só um bocadinho mais…
J.M. – Há o trabalho dos cineclubes que, de facto, é…
F.V. – Que é extraordinário, é essencial, não é? Claro que sim. O Vítor Ribeiro [programador da Casa das Artes, do Close-up – Observatório de Cinema de Famalicão e do Cineclube de Joane], por exemplo, faz um trabalho fantástico; e outras pessoas, pelo país… Sim, se essas pessoas todas tivessem, mesmo, meios para desenvolver um trabalho maior, ainda, todo o país ficaria a ganhar com isso. E, se calhar, coisas que os políticos gostam muito de ouvir,
um dia teríamos um filme português candidato ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, sabes? Porquê? Porque há mais pessoas a ver cinema, há mais pessoas a fazer cinema, há mais pessoas a fazer coproduções internacionais, etc. Acho que durante muitos anos houve a ideia que Portugal devia ter a sua própria Hollywood ou a sua própria versão do cinema comercial e todos esses filmes que foram feitos, a essa imagem (pelo menos os que eu vi), são terríveis porque tentam imitar uma coisa que não conseguem imitar, mas se calhar o que deve ser feito é o contrário: é desenvolver o cinema português com a sua identidade e, através da sua identidade, chegar naturalmente ao seu reconhecimento internacional, tanto nos festivais como Cannes, Veneza e Locarno, onde ganham prémios e são reconhecidos, como na Academia dos Óscares. Eu ontem fiz um Q&A com Maura Delpero, realizadora do Vermiglio (2024), um filme que aqui está a ganhar muito buzz (como se costuma dizer). É um filme 100% italiano, mas é isso que está a atrair votantes da Academia e que faz com que a distribuidora esteja a investir no filme para ver se consegue chegar a uma nomeação, de Melhor Filme Estrangeiro, para a Itália… É isso e o filme tem zero que ver com o que é um filme americano. Se, de facto, existirem essas condições em Portugal – para ser um cinema por-tu-guês – e é isso que vai fazer com que outras pessoas, aqui nos EUA, também queiram votar nesses filmes, se o grande objetivo [risos] for o Óscar, não é?
A conversa decorreu na manhã de 26 de novembro no edifício do MoMA onde Francisco Valente trabalha. ��
Do microCinema
À LIGHT INDUSTRY
Texto José Machado
O microCinema foi cravado pelos cineastas ‘experimentais’ David Sherman e Rebecca Barten com o conceito Total Mobile Home microCinema, nos EUA em 1994. Durante 4 anos acolheram mais de 120 eventos e convidaram outros criadores para a cave da casa, alugada, em São Francisco onde cabiam trinta pessoas, ilegalmente. O projetor estava embutida num buraco na parede. «Como cineastas, dependentes de fundos próprios e totalmente fora do mainstream, queríamos criar um espaço íntimo e não institucional ali mesmo na nossa cave, onde as distâncias filme/público e artista/público pudessem ser ativadas e transformadas. […] O nosso orçamento operacional era extremamente baixo – utilizávamos equipamento descartado, doado e refeito, construíamos assentos, desenhávamos os nossos cartazes e calendários que divulgávamos, através do boca a boca e de jornais locais gratuitos. Em qualquer exibição tínhamos padrões extremamente elevados –mesmo na nossa escala pequenininha, cremos que competíamos favoravelmente com os megaplexes empresariais, na qualidade das nossas cópias de filmes, do sistema de som e comodidades. O nosso público respondeu admiravelmente, permanecendo muitas vezes até bem depois da projeção para participar em todo o tipo género de conversas que duravam até tarde, pela noite dentro. Tão pequenos que nós éramos e recebíamos correspondência de todo o mundo, de pessoas que passavam por São Francisco, curiosas ou interessadas em trazer os seus próprios filmes para o nosso espaço».
«Através de um donativo sugerido à porta, de 5 dólares, conseguimos [Rebecca e David, do Total Mobile Home microCINEMA] manter o cinema a “flutuar”, cobrindo os nossos custos operacionais modestos e oferecendo aos artistas visitantes um cachet de 100 dólares (que os cineastas, aliás, muitas vezes recusavam, tão entusiasmados que estavam com este contexto de exbição tão especial)», contaram David e Rebecca à Light Industry. O modelo do microCinema de São Francisco, dos Anos 90, inspirou, em Nova Iorque, Thomas Beard e Ed Halter na criação da Light Industry, que convidaram Rebecca e David para programarem uma sessão, em dezembro último na Light Industry. Visitei-a antes, no dia 25 de novembro. Cheguei uma hora mais cedo à nova morada, em Williamsburg, da Light Industry e subi várias vezes naquele elevador (monta-cargas) para perceber a reacção do público que estava a entrar. Como eu, iam à descoberta do espaço. Numa sessão apresentada por K8 Hardy, vimos a projeção de Mädchen in Uniform, (Leontine Sagan, 1931), numa rara cópia em 16mm, dos 85 minutos de duração, sobre a qual o distribuidor de então, da cópia analógica, não deixara nenhuma informação sobre o teor lésbico do filme (exibido anteriormente em Nova Iorque em fevereiro de 2024, mas em DCP, no Film Forum, no ciclo Sapph-O-Rama, programado por Andrea Torres e Emily Greenberg). Em 2019, a Light Industry (ainda na outra morada em Brooklyn, numa zona residencial) projetara três curtas-metragens, e, não valerá a pena seguir nenhuma hiperligação para descobrir que uma delas integra o ensaio do Miguel Pinto, ao virar da página. ��
�� «MädcheninUniform»(LeontineSagan,1931).
Ensaio
TRÊS ATOS PARA BABY JANE
Texto
Miguel Pinto
I
“Spiegel: die die entströmte eigene Schönheit wiederschöpfen zuruck in das eigene Antlitz”
(“Espelhos: que a própria beleza dimanada tornam a criar de volta na própria face”)
Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno
CENA 1
Em 1507, no reverso de Jovem Homem, Albrecht Dürer pintou uma alegoria: uma mulher envelhecida encara-nos com um sorriso que revela os dentes podres. Ostenta um saco de moedas de ouro, e um seio descaído pende-lhe do vestido tepidamente vermelho. Será possível ver, nesta quarta parede, uma projeção especular, um olhar da mulher face a uma superfície invisível, que a reflete? O olhar vai para lá disso. Numa brincadeira ilusória, dirige-se a nós, como se vivo, confirmando uma verdade maior, inegável, empírica, com a qual somos confrontados, independentemente da nossa vontade – uma moral, que contrasta com o retrato no verso. E que moral é esta?
Não é a face que a reflete – o olhar é, apenas, signo da necessidade de lhe prestarmos a devida atenção. É estabelecida na relação dos atributos com esta face, construindo o sentido implícito da imagem.
O rosto da mulher envelhecida é um mecanismo face à necessidade de demonstração. Ele performa o sentido, a que o saco de moedas e o seio nu apontam, através de uma condenação que confirma a ordem instituída. A decadência, a ilustração do grotesco estabelecem o fim da imagem. Ainda que extravase o campo especular, a pintura não deixa de ser um espelho, claríssimo, das suas intenções: a Avareza como uma mulher que se quer feia, velha, decrépita.
Se retirássemos a especificidade desta implicação moral, e a nudez que a corrobora, e adicionássemos batom a este rosto, lhe revestíssemos a face de pó branco, e eyeliner marcado, teríamos uma imagem que, em muito, se aproximaria da Baby Jane Hudson, de Bette Davis, em What Ever Happened to Baby Jane, de Robert Aldrich. Quando Jane se prepara para sair, e se dirige ao espelho do quarto, adicionando uma última camada de batom ao já monstruoso exagero da maquilhagem, há uma moral que se corrobora. Podemos falar de um sentido alegórico? Talvez não, porque, aqui, o dispositivo de representação (a câmara), ainda que, também, consciente, revela-se como espelho, a um passo atrás da quarta parede que permite a alegoria, a advertência. Mais uma vez, é uma personagem que nos olha de frente, mas, agora, com um filtro invisível que a aprisiona no mundo do filme. A maquilhagem, colocada: “I used a chalk-white base, lots of eye shadow—very black—a cupid’s bow mouth, a beauty mark on my cheek and a bleached blond wig with Mary Pickford curls. Jane always wanted to look like a baby doll”, diz-nos Davis, que insistiu em criar a própria maquilhagem para o filme. A primeira reação de Aldrich foi (segundo a atriz): “You can’t wear this makeup. It’s too much. It’s laughable.”
A indignidade da personagem conduz ao ridículo, à ironia quase imoral, não fosse justificada pelo histerismo a que os códigos de Hollywood não achavam impertinente associar a atriz em decadência: a mulher ultrapassada que vive em memória de um passado irrecuperável. Aldrich apenas o consegue justificar pela loucura, descobrindo o tom macabro. É a partir da insensatez dessa maquilhagem, ou justificada por esta, que se constrói o horror da presença de Jane, concretizado nos vários atos de violência que comete ao longo do filme.
Jogo de ambiguidades: ainda que se realce uma caricatura macabra, satirizada cinicamente, a performance que a concretiza nunca deixa de ser hagiográfica, demonstração máxima do pathos cómico e dramático de Davis e, por sua vez, da capacidade de direção de Aldrich. Em Dürer, a personagem feminina é inexistente: o horror (aí, a ausência de maquillage) àquela face, no desconhecimento da modelo é evidência, apenas, de uma habilidade naturalista.
CENA 2
Bette Davis interpretou Baby Jane com 54 anos, quando a sua carreira atravessava um período de crise (ficou famoso, o irónico anúncio que colocara no The Hollywood Reporter, identificando-se como uma atriz com 30 anos de experiência, que procurava trabalho em Hollywood). A velhice de Jane joga com a suposta velhice de Davis. Nesta tensão entre atriz e personagem, que rosto vemos?
Rebobinemos esta cena em específico, a de Jane e a sua última camada de batom, de frente para o espelho/câmara (nos seus 11 segundos, a imagemgénese deste texto). Parece residir neste exagero implícito, duas dimensões essenciais, que defino como: o mimo encenado (a personagem), e a drag (a atriz).
Falar de mimo é abordar uma metodologia, uma gestualidade permitida através de um conjunto de signos: o fingimento declarado, os movimentos repentinos e premeditados, a presença da maquilhagem, a figura do palhaço, burlesca; o conversor da tragédia em comédia, através de um método a que é subjugado. Um mimo é um imitador – processo que revela a sua simulação, através do interveniente distanciado, o ator. No caso de Baby Jane, essa mimese é concretizada através da hipérbole de Davis. Portanto, paradoxalmente, será redutor falar de mimese – a performatividade é exponenciada ao ponto do extravasar. Daí a drag, a atriz: a mulher que se performatiza a si própria, expondo, ironicamente, as preconceções de género que lhe são esperadas, assumindo a sua maquilhagem ao ponto do excesso, da desfaçatez que cria um novo sentido. Numa passagem da sua primeira autobiografia, Davis confessava como lhe era difícil perceber as atrizes que não gostavam de colocar a própria maquilhagem.
II
Pois passara noites e noites a sonhar que não se conseguia acabar de vestir nunca
Adília Lopes, Maria Cristina Martins
CENA 1
Em 1724, Pier Leone Ghezzi desenhava uma caricatura de perfil do castrato Farinelli, travestido de mulher, com feições de porco. Baseara-se numa interpretação do cantor em Farnace de Leonardo Vinci, apresentada em Roma. Farinelli interpretou Berenice, mãe da esposa de Farnace, que o planeia assassinar. Berenice é a antagonista da ópera – a velha rainha que despreza a emancipação da filha, tomando o genro como cobaia, cuja honra lhe é impossível de suportar. É pertinente como esta mulher é interpretada por um homem castrado: até aos finais do século XVIII, em Roma, era proibido às mulheres cantarem na ópera. A sua presença era considerada indigna, e até promíscua, sendo os papeis femininos atribuídos aos castrati, permitidos e valorizados na conjetura moral da época.
Na imagem de Ghezzi, ainda que as feições de porco impliquem uma caricatura do visado, podemos induzir que a imagem não se detém numa reprovação do travestismo. Parece, antes, revelar uma componente alegóricomoral, com as feições de porco a exporem a psicologia desta personagem interpretada por Farinelli, que contrasta com a nobreza das suas vestes: a mulher amarga, odiosa, velha. A beleza profanada.
“O barroco será extravagância e artifício, perversão de qualquer ordem fundada, equilibrada: moral”, escrevia o cubano Severo Sarduy, em 1974, no seu influente ensaio Barroco. Aos olhos descontextualizados de hoje, o travestismo de Farinelli parece enquadrar-se nessa extravagância e artíficio, mas a atuação é legitimada pela moral da época. Supor uma contrariedade entre essa transgressão e essa moral é anacrónico. O autor conclui a premissa em La Simulación, vendo o travestismo como um desejo de barroco na conduta humana: “O travesti, como digo, impelido pelo impulso ilimitado da metamorfose, da transformação, não se reduz à imitação de um modelo real, determinado, mas lança-se na busca de uma irrealidade infinita, e desde o início do “Jogo” aceite como tal, a irrealidade torna-se cada vez mais humilhante e inatingível: ser cada vez mais mulher, chegar ao limite, tornar-se mais mulher.”
O travestismo em Sarduy implica uma troca, uma mutação que legitima essa irrealidade. Uma prática de deviação, contradição, que transborda: o ser mulher não é mais do que uma repetição de códigos de comportamento socialmente instituídos, numa prefiguração das considerações de Judith Butler; mas, na legitimação desse barroquismo, também o vê como manifestação de um corpo estranho e mutante, cujo fascínio reside no seu caráter, dito, humilhante. Para quem? Para quem performa, ou para quem se vê representado na performance? Note-se como, nessa inatingibilidade, voltamos a uma teimosa correspondência entre género e sexo, onde o fazer drag implica uma impossibilidade, um ato de castração, encarando a expressão de género como inata ao sexo. Ainda assim, a premissa de Sarduy propõe uma tensão. Descobrimos uma dissemelhança entre barrocos. Apesar de Sarduy se apropriar de um contexto histórico-cultural, o barroco a que se refere é pessoal, quase antropofágico (certamente ligado à vivência em Cuba, e à herança colonial do país – note-se como o travestismo é elo comum a artistas latinoamericanos deste período que poderíamos enquadrar numa prática neobarroca: porque falamos de cinema, vejamos a fase pós-revolucionária de Raúl Ruiz, e a transfiguração drag do seu Colloque de Chiens, ou as máscaras que permeiam o excesso de Barroco, de Paul Leduc). O anacronismo é fundamental: é a autoconsciência do mesmo que permite a dobra barroca. Tomase a ruga pela lisura, ficcionaliza-se um conceito, dando-lhe uma nova significação. O barroco de Sarduy é uma utopia. E essa utopia, embrião de um olhar pós-moderno, tomou na contemporaneidade um outro sentido, que hoje designamos por camp. Tomou-se a parte pelo todo. A sinédoque foi posta em prática pelo que denominamos como uma consciência queer, em Vinci não equacionada. Se, com Sarduy, vemos no travestismo uma premissa amoral, reagindo a uma heteronormatividade instituída, em Vinci essa dinâmica não acontece, porque a moralidade da época castra seja qual for o tipo de pulsão sexual, conotando-a com o pecado.
Em What Really Happened to Baby Jane, de Ray Harrison, observamos um engaste, uma dobra de representações: a personagem interpretada por Bette Davis no filme de Aldrich é simulada, através de uma outra interpretação por Freida, pseudónimo drag de um ator cujo nome não conhecemos. O camp torna-se consequência última do barroco.
A curta-metragem de 30 minutos, que vemos com um remake acelerado do filme de Aldrich, concretiza a falsidade e o exagero sugeridos no primeiro filme, através de um mecanismo que nega qualquer moralidade, ou aparência de verdade:
1. Blanche brinca com uma pomba branca, mas é cagada por esta, manchando-lhe todo o vestido;
2. Blanche é torturada por Jane, ao descobrir que a irmã tentou pedir ajuda, mas da violência faz-se uma dança burlesca, na qual Jane atira o corpo da irmã pelos ares;
3. Jane não se redime no plotwist final: atira, antes, Blanche de uma falésia, que ressuscita pouco depois para, ainda, lhe entregar um Óscar.
O exagero é concretizado, e agora com que ficamos? Com uma reação amoral, desconstrutiva, porque se descobre na verdade do pathos, da redenção, a imposição de uma doutrina e, no limite, de uma culpa: seja ela a condenação da fuga à heteronormatividade, como a vergonha de simular um outro, percecionado como sexualmente oposto, e inferior, na sociedade patriarcal. Ao seu encontro vem a resposta no título do remake, que propõe uma revelação, face à pergunta do filme original: What Really Happened to Baby Jane, talvez, reaja à insatisfação causada pela resposta de Aldrich, quanto à sua própria pergunta.
A mulher, nas imposições que ditaram a sua representação, nos mais variados meios artísticos, ao longo da História – a instabilidade, a malvadez, a fraqueza – faz-se, também, agente de reação à normatividade em que participa, porque esta supõe-lhe uma desvantagem, uma sujeição à vontade masculina. Na amoralidade do filme de Harrison, não se descobre um pingo de cinismo. Antes, nessa dialética, verifica-se um gesto de homenagem, e uma possibilidade de resistência. A simulação demonstra uma tentativa de encarnar, exageradamente, a feminilidade de Jane, enquanto se apercebe que, também ela, só se queria tornar “cada vez mais mulher”. Porque, este tornar mulher é um tornar-se cada vez mais ideal, cada vez mais um objeto de desejo. A razão da queda de Baby Jane foi não ter percebido que o excesso, sob qualquer imposição, é sempre visto como uma falta. O filme de Harrison destrói todo e qualquer idealismo. “A extravagância e o artifício” revelam que tudo é tentativa e encenação.
Ao cenário do teatro que inicia o filme de Aldrich, em que Baby Jane canta apaixonadamente o seu I’ve Written a Letter to Daddy, Harrison responde com um esboço bidimensional, desenhado numa folha de papel. Num nicho aparece Baby Jane, feita marioneta. Após a canção, a cortina não tomba, mas desce toscamente, através de uma mão invisível que vai puxando o papel, aos poucos, até ao chão.
You are one of the only people who knows how to suffer, without making others feel guilty about it Damian (John Turturro) para Ingrid (Julianne Moore), em The Room Next Door de Pedro Almodóvar
CENA 1
Em 1962, Bette Davis apresentava uma canção do seu primeiro single, no The Andy Williams Show. Lançado pela MGM Records, era composto por duas canções: What Ever Happened to Baby Jane e I’ve Written a Letter to Daddy, em promoção do filme, lançado poucos meses antes, que a colocara novamente no mapa de Hollywood. Cantava: “She could dance, she could sing / Make the biggest theatre ring / Jane could do most anything / What ever happened to Baby Jane?” A canção sintetiza uma perceção pública que motiva a premissa narrativa do filme, enquanto serve de irónica piscadela de olho à renovada consagração da atriz.
Não era a primeira vez que Davis encarnava o topos da atriz em decadência, na Hollywood pós-Sunset Boulevard: vejam-se as tormentas que vive em The Star, de Stuart Heisler, ou no glamour perfurmado de All About Eve, de Joseph L. Mankiewicz, ainda hoje um dos mais papéis mais marcantes da sua carreira.
O tropo da atriz envelhecida era uma oportunidade de trabalho numa indústria onde, a partir de determinada idade, as mulheres já não eram vistas como desejáveis. Não que alguma vez Davis o quisesse ser: “I decided to do my own makeup for Baby Jane. What I had in mind, no professional makeup man would have dared to put on me.” Marcada, a partir de meados dos anos 40, como uma atriz histriónica, com requintes de diva e malvadez (é sintomática a polémica em torno da suposta tensão entre Crawford e Davis, nas rodagens de Baby Jane que deu azo, inclusivamente, à primeira temporada de Feud, em 2017) era-lhe fundamental exagerar essa decadência, assimilá-la ao ponto de a tornar ainda mais grotesca, mais declaradamente performática. Mais cínica?
Não supomos que o filme seja menor por não comportar uma visão “justa” das suas personagens (quem somos nós para julgar o que é, ou não, uma visão justa de uma representação feminina?). Foi, aliás, essa demasia que conduziu Baby Jane ao estatuto de culto que hoje detém – e à sua apropriação, quase imediata, por uma cultura queer, que lhe encontrou, subtextualmente, a projeção de uma força, e de uma farsa, através da caricatura intensificada. Saindo dos limites de Davis, a associação de uma ideia de grotesco a atores, ditos, ressuscitados é hoje ainda um paratexto recorrente, dissolvendo-se numa mistura que quer equivaler a perceção pública de um ator à personagem que interpreta, procurando uma espécie de escândalo de opinião pública, ou um maior interesse noticioso: recentemente Demi Moore em The Substance, num semelhante papel de atriz em decadência; ou, no caso de homens, lembramo-nos, também, de Michael Keaton em Birdman (também, aqui, o ator em decadência) ou Brendan Fraser em The Whale (um professor com obesidade mórbida, que joga com os rumores públicos sobre os problemas de saúde do ator). Estes dois últimos papéis garantiram, inclusivamente, os primeiros Óscares da Academia aos respetivos atores (Demi Moore, provavelmente, será a próxima – o Globo de Ouro já é seu). Pertinentemente (e, aqui, exclui-se o caso de Bette Davis) são todos demonstrações dramáticas de atores que estariam associados a comédias, ou a que a opinião pública acreditava não terem ainda revelado um determinado pathos dramático, servindo este reaparecimento, também, como uma espécie de regeneração, ou cura, de uma enfermidade que a indústria parece ignorar ser contraída a partir de si – a tentativa de ir oleando a máquina do entretenimento desinteressado.
A recorrência da figura do ator ressuscitado parece demonstração de uma imutável vontade de redescoberta, de reencontro, de valorização de quem achamos que gostávamos antes de todos os outros. No caso das mulheres, esta redescoberta adquire um aspeto particular, ou pelo menos intensificado, em relação aos homens: lida, inevitavelmente, com o que culturalmente se encara como uma beleza perdida, não se concretizando a objetificação esperada. A imagem da mulher (a projeção do papel de género que dela é esperado) e a mulher são, na arte e fora dela, reiteradas como uma e a mesma coisa: a agente do desejo. A mulher porta o significado, não o constrói (como o disse Laura Mulvey). É desenhada em função de um outro, masculino e heteronormativo, que se começa a desconstruir.
(Será este texto, escrito por um homem, um sublinhar dessa mesma representação, sem se aperceber? Existirá no seu interlocutor, através da sua tentativa de análise, algum mea culpa, uma reiteração desta imagem construída? Deveria haver? A que compete um ensaio sobre representação feminina, escrito por um outro que, histórica e culturalmente, tomou parte, e limitou a sua construção? E o cinema: deve ser útil, no final de contas?).
A maquilhagem comporta o encarnar de um outro mais, ou menos, autêntico. O assumir de uma perfomatividade – dentro, ou fora, do dispositivo que o permite. Assumir a maquilhagem é reclamar, para si, o direito à representação, à construção da própria imagem. E para quê?
1. Para se reiterar enquanto objeto de desejo?
2. Para camuflar o que não se quer revelar?
3. Para marcar uma individualidade?
Na tabula rasa da ficção, a última hipótese não contradiz, nem censura, qualquer uma das outras. Vejamos correspondências, com base no elementoparadigmático da sequência rebobinada, o batom:
1. The Substance (2024): o batom como ritual e expectativa, a que por papéis de género se visa corresponder (Elisabeth Sparkle coloca-o em frente ao espelho, preparando-se para um encontro, e à máscara da imagem autorrefletida, destrói furiosamente o disfarce);
2. Some Like It Hot (1959): o batom que disfarça, parte do ritual de camuflagem (enquanto Jerry ajeita o disfarce para se fazer passar por Daphne, colocando batom nos lábios, o espelho com que se guia não nos devolve a sua imagem, mas a dos gangsters que o perseguem; câmara que, divertidamente, relativiza desconstrói o que poderia ser o verdadeiro escândalo);
3. Black Narcissus (1947): o batom imoral, que sublinha a vertigem do desejo de uma boca onde ainda guarda vestígios, marcando a vontade da personagem face à moral com que interage (cena de confronto entre Ruth e Clodagh, onde à mão no batom de Ruth corresponde a mão que segura a Bíblia de Clodagh, como um escudo, entre a viva vela que as medeia).
Baby Jane devolve-nos, textual ou subtextualmente, estas três dimensões. Dos exemplos mencionados, faltará a reflexividade, ou o gótico macabro, a que o teatro de Aldrich corresponde: os barroquismos da mansão, de madeira antiga e duras grades de ferro, algures perdida na velha Hollywood.
(E à data de conclusão deste texto, essa velha Hollywood ardia). ��
¡Ay, Betty, excepto beber, qué difícil me resulta todo! (in La flor de mi secreto, 1995)
para se reinventar na vida deixou de ser Maria Luísa
para seguir fiel a si própria teve de criar um outro nome
continuamente se desfez das flores que foi colhendo
para conhecer o mar e viajar entre paredes e cenários
foi celebrando dias e aniversários foi
sendo ela própria sendo outras.
In memoriam: Marisa Paredes, 1946–2024
QUANDO MARISA PAREDES DESCOBRIU O MAR
Texto Elsa Fernández-Santos
Obituário, no El País, a 18 de dezembro de 2024. Tradução de José Machado.
�� SaltosAltos(PedroAlmodóvar,1991).
Quando na primavera passada entrevistei Marisa Paredes para o projeto Memória coletiva do cinema espanhol, um arquivo vivo pela Academia do Cinema, perguntei-lhe se sabia que a sua data de nascimento, 3 de abril, coincidia com a de Marlon Brando. Paredes, que obviamente sabia e compreendia o elogio, deu um daqueles golpes no cabelo que lhe são tão característicos e sorriu-me com a doçura que amortecia a ferocidade dos seus olhos claros. O que se seguiu nessa tarde foi a história fascinante de uma vida igualmente fascinante. A atriz interpretou o despertar da sua vocação (¡Mi vocación nació conmigo! [“A minha vocação nasceu comigo!”]), dando voz, como numa pequena peça de câmara, ao pai, Lúcio, e à mãe, Petra, ao anunciar-lhes que, quer gostassem ou não, o palco era o seu destino. Paredes evocou os seus inícios como os de Eve Harrington [Lo tenías todo planeado… ¡Eres igualita que Eva Harrington! ¡Te aprendiste el texto de memoria, a propósito!] e a importância do seu bairro – Yo nací en el barrio de las Musas, “eu nasci no bairro das Musas” – na sua forja.
Marisa Paredes descobriu o mar e a vida graças ao teatro e essa dívida nunca a esqueceu. O cinema, contudo, resistiu-lhe até à década de oitenta. Embora tenha participado em El mundo sigue (1960), de Fernando FernánGómez — um dos grandes cúmplices da sua juventude —, a sua carreira só arrancou duas décadas depois. A confiança chegou com Trás el cristal (1986), de Agustí Villaronga, e o sucesso internacional com Pedro Almodóvar. Grande amante de teatro, esta última descobriu-a no início dos anos 80 [em Madrid] a realizar o Motim de Bruxas no [Teatro] María Guerrero, sob a direção de Josefina Molina e ao lado de Carmen Maura e Julieta Serrano.
A sua primeira colaboração foi no papel da irmã Estiércol em Negros Hábitos (Entre tinieblas, 1983) e, apesar da fama que Saltos Altos (Tacanos lejanos, 1991) lhe trouxe, de todos os seus filmes com o cineasta, a atriz sempre teve um carinho especial pel’A Flor do Meu Segredo (La flor de mi secreto, 1995). Paredes se encantava comprovar como os anos passavam e o público mais jovem sabia de cor os diálogos: ¡Ay, qué pena, hija mía! ¡Tan joven y ya estás como vaca sin cencerro! [“Oh, que pena, minha filha! “Tão nova e já pareces uma vaca sem sino!”], dizia à sua mãe (Chus Lampreave) ou ¡Ay, Betty, excepto beber, qué difícil me resulta todo! [“Oh, Betty, exceto beber, como tudo me é difícil!”], com que se lamentava diante da sua amiga Carmen Elías.
Em Tudo Sobre a Minha Mãe (Todo sobre mi madre, 1999), curiosamente, Paredes era Huma Rojo, uma diva do teatro que interpreta a personagem
Blanche DuBois em Um Elétrico Chamado Desejo, a peça que catapultou Brando. De alguma forma, Almodóvar encontrou sempre nela uma extensão dos seus mitos de Hollywood.
A última vez que a vi, Marisa Paredes estava a comprar flores a poucos metros da sua casa. Entrou na florista para pedir um ramo simples e todos os que estávamos lá dentro parámos nesse instante. Com o seu porte elegante e a sua voz fabulosa, irradiava aquela personalidade independente e extraordinária das grandes personalidades do seu ofício. Tão altiva como afetuosa, bastava-lhe um gesto para dominar a cena. Nesse dia, saudou amavelmente toda a gente, mas o piscar de olho foi dedicado aos mais novos, à minha filha e ao Elliot, o encantador gerente da florista. Quando ela saiu, todos nos olhámos e expressámos em voz alta a nossa admiração por uma mulher que soube ser divina de uma forma que mais ninguém sabe ser. Paredes chamava sempre à sua avó e à sua mãe, ángel de la guarda, o seu “anjo da guarda”, aos seus velhos amigos e a sua única filha, María Isasi, a quem foi ver no teatro um dia antes da sua morte. Criou-a com as três coisas que considerava fundamentais na vida: liberdade, educação e cultura: Porque todo cambia menos El Quijote, Hamlet, Lorca o Picasso. El arte es lo único que permanece. “Porque tudo muda menos Dom Quixote, Hamlet, Lorca ou Picasso. A arte é a única que permanece.” ��
Marisa Paredes, das páginas anteriores da revista às páginas 494 e 695 de Manoel de Oliveira – Catálogo Raisonné da Fundação de Serralves e Cinemateca Portuguesa: à edição concebida por António Preto e José Manuel Costa, somam-se à direção literária Teresa Barreto Borges e Maria João Madeira e uma biografia escorreita ao bico da pena, que flutua como pluma, da autoria da Maria João, que fez a coordenação editorial com Maria Burmester. Um conseguimento bibiliográfico da crítica à época, inclui a imprensa internacional, mapeia os recortes de dimensão verosímil; algumas omisões, do crítico australiano (que passou a residir em Espanha) Adrian Martin: como foi recebido O Convento (1995) em Melbourne em 1996? Por localizar e, ao incluir textos em versão original, como o do impreciso Jacques Lemière (2015, p. 252), sem notas de rodapé, perpetua-se a falha identificada no primeiro número da gray-film. Reparei em lapsos na acentuação, no catalão (o autor Àngel Quintana) por vezes aparece (Ángel) do castelhano, Caimán tem acento ou na persistente incertidumbre (grafada sempre «incertitumbre»). O princípio tem bom fundo, com verbetes bem organizados por crítica a cada filme e, por isso, rapidamente, me surgiram estes typos (deveriam ter sido revistos por mais olhos que não os de quem passou muito tempo à frente de tão volumoso volume). Seriam úteis (poderiam ser disponibilizados online) índices, remissivo e onomástico, mas só como está, este corpus proporcionará certamente ligações inesperadas aos investigadores.
Da contracapa, da esquerda para a direita (começa a preto e branco, dos mais antigos aos mais recentes filmes de Manoel de Oliveira) à lombada e à capa, cada segmento de coluna vertical corresponde a um fotograma esticado digitalmente. Da anamorfose, viram os designers da Macedo Cannatà (que dois anos antes desenvolveram a identidade visual do Batalha). Esta obra, lançada no Porto a 7 e, em Lisboa, a 9 de dezembro, foi o melhor presente de aniversário que me ofereci e será de referência para quem escreve, porque não é possível acrescentar nada sem consultar o que até então foi contextualizado com rigor.
No século passado, fontes convictas citadas de analepses em analepses, publicadas por motivos que a razão desconhece ou com jactância cinéfila, resultaram em livros inverosímeis, em suposições que amontoo na estante. Os leitores, programadores e investigadores, da obra de Manoel de Oliveira ganharam o merecido guia fundamentado. ��
O DESEMBARQUE DOS POETAS
Texto
Panös Turkus
Às vezes fico sem falar com ninguém dias a fio. Penso: “Eu deveria fazer aquela chamada”, mas adio. Porque há algo prazeroso em não falar. Mas eu adoro falar, então não é isso. Mas às vezes pode ser bom. Não é como se eu ficasse aqui a filosofar, porque não tenho talento para isso. É só essa coisa do silêncio que é tão maravilhosa.
Era o dia mais frio do ano, princípio de Dezembro, talvez tenha sido essa a razão deste azedume. O lançamento era dentro de portas, na Cinemateca, mas os poetas foram-se chegando e acumulando-se junto à livraria, tentando aquecer o ambiente, sem o conseguir. De resto, tudo a horas e já de cenário posto: mesa de conferência, como aquela variedade de pêras, alguns microfones, um altifalante, e algumas cadeiras. Alguém poderia confundir com o cenário de um filme. Até uma ex-ministra da Cultura foi lá sentar-se para assistir, certamente por recomendação de uma das amigas conferencistas, sua conterrânea.
Estava para ser lançada uma antologia de poesia cujo repto era o diálogo entre poetas contemporâneos e os filmes de Bergman. Ingmar, não Ingrid, ainda que, de entre os setenta e muitos poetas que aceitaram este desafio, estou certo de que um ou outro se possa confundir e não saber a diferença entre Ingrid e Ingmar. Recomenda-se o Duolingo de Sueco.
De resto, estamos sem dúvida em Portugal: esta foi uma antologia que demorou 6 anos a fazer, desde a ideia até ao berço. Sim, houve uma pandemia pelo meio, mas creio que uma derrapagem destas só revela o estado da arte da edição em Portugal. Foi de tal ordem o atraso que pelo menos uma das poetas representadas, pelo que pude ver no índice, foi falar com Ingmar Bergman para lhe pedir desculpas pessoalmente.
Mas adiante, que se faz realmente tarde e a vida passa num instante, como um fotograma.
A antologia divide-se entre duas salas de cinema: Sala 1, talvez a Félix Ribeiro, por ter um auditório cheio de poetas, e Sala 2, a Luís de Pina, por serem menos os poetas representados.
A maior parte dos poetas decidiu-se pela forma longa para homenagear o cineasta, dando, como título dos poemas, o título do filme que escolheram como alvo.
No prefácio diz-se que “Não se encontra muita poesia nos filmes de Ingmar Bergman. Ou, melhor dizendo, referências e citações de poesia.” Está bem visto pelo crítico, e não é coisa chocante a apontar. Os filmes de Bergman têm muitas cenas poéticas, não necessitam de citações e intertextualidades metapoéticas para serem, na sua grande maioria, verdadeiro cinema. Talvez seja esse o mal da maior parte destes poemas, que tentam glosar o filme como mote, falhando redondamente. As leituras que se ouviram nessa apresentação foram bastante esclarecedoras disso mesmo, assim como da necessidade de haver um Duolingo para Dicção (não que isso fosse valorizado na nossa sociedade, claro). Haja mais pausa, ritmo e silêncio, para dar valor às palavras, por favor.
No fim da sessão, tudo desmobilizou para os copos e cigarros na atmosfera gelada do pátio, ainda que houvesse uma projecção d'O Sétimo Selo agendada, a que quase ninguém foi. Há coisas mais urgentes para fazer. Outros foram apenas para casa aquecer a alma com uma sopinha e Netflix, como eu, em frente ao aquecedor.
O que falta então dizer? Dizer que quero mais, como na anedota. Falta fazer agora uma antologia sobre Ingrid Bergman e dar-lhe um título melhor do que este. ��
O primero número da revista gray-film partiu numa viagem com um excerto das memória de Ayres [de Faria e Maya] d’Aguiar, de Ponta Delgada, a Lisboa, para Paris. Há um século, em abril de 1925, fora constituída uma sociedade com capital exclusivamente de mulheres: Virgínia de Castro e Almeida (a Gi, que é a letra G em gray) com 10.000 francos e Renée Vallée (amiga da Gi, que o apresentara a Ayres d’Aguiar, sócio-gerente e com quem casara no ano anterior) se constituíu sócia maioritária com 20.000 francos (da venda de pequena exploração agrícola familiar na Normandia, da sua família). O capital social viria a ser aumentado em 1928 e com dois açorianos de família judaica: PARIS. Modification. Soc. A. D’Aguiar et Cia, 12, Hippolyte-Lebas. Adjonction de M. Bensaude. Capital porté de 120.000 fr. à 250.000 francs — 1 oct. 1928 A. D'Aguiar et Cie, 12, rue Hippolyte-Lebas, Paris. — Société à responsabilité limitée. Mr. Bensaude (Vasco), entre comme nouvel associé. Capital porté à 250.000 fr. fourni comme suit: Mme De Castro (Virgínia): 20.000 fr. ; Mr Bensaude: 65.000 fr. ; Mr A. D’Aguiar: 165.000 fr. — La durée de 10 années est portée à 50 années. — Seul gérant: Mr A. D’Aguiar. Há muito para investigar pelo caminho, mas convém afastarmo-nos de gralhas. No belíssimo catálogo Lion, Mariaud, Pallu: franceses tipicamente portugueses (Cinemateca Portuguesa, maio de 2003), organizado pelos enormes Tiago Baptista (com a colaboração de Nuno Sena), pode ser lido na cronologia [Fortuna Films] que foram fundadas duas sociedades distintas (cito, Aguiar & Cie. em abril de 1925 e Gray Film em 1929). O que comprovei no primeiro número da revista com documentos oficiais (Le Courrier, 30 de março de 1929 e Archives Commerciales de la France, 5 de abril de 1929), revela o oposto e a veracidade destas memórias, de que a sociedade é a mesma: A. d'Aguiar et Cie, 12, rue Hippolyte-Lebas, Paris. — Cette Société à responsabilité limitée a pris en sus de la raison sociale, la dénomination de « Gray-Film » affectée spécialement aux affaires concernant les films cinématographiques.
Escreveu Ayres d’Aguiar:
Em fins de 1929, já tudo devia ter entrado em boa ordem, e foi-me possível comprar – em nome de minha mulher –, um confortável andar, com três quartos principais em Montmartre, no n.º 2 da Lamarck, ao Norte do SacréCœur, onde passámos a viver.
Desde começos de 1930, a distribuição mostrava já que podíamos navegar por nossa própria conta. Tive a sorte de encontrar – no n.º 5 da Rue d'Aumale –, um rés-do-chão suficientemente amplo para nos instalarmos e muito convenientemente reunir boas condições para todas as nossas actividades presentes, e mesmo futuras pois que meses depois, pudemos tomar igualmente o 1.° andar que se lhe sobreponha. Não era longe do escritório anterior, e lá vivia agora a Gi numa outra ala do prédio. Tinha retomado o seu antigo trabalho de escritora, e lá vivia sem dificuldades de maior. As nossas relações eram agora menos estreitas, mas mantinham-se sempre amigáveis. Outros interesses primavam agora a sua vida, e tinha sabido criar novas relações que a interessavam. O advogado do seu divórcio tinha sido o próprio promotor desta lei em Portugal, o Dr. Afonso [Augusto da] Costa (1871–1937) que continuava a manter com ela as mais amigáveis relações.
Em 1910, a República viera substituir a Monarquia em Portugal. Diversos partidos se tinham formado, entre os quais o de Afonso Costa, – os Democráticos –. A instabilidade política, durante anos, passou a ser endémica. Pequenas revoluções faziam mudar de tempos a tempos os governantes, sem nada melhorar e, em 18 anos a situação económica do país estava a tal ponto degradada, que o Governo da época, para evitar a bancarrota recorreu aos Serviços Financeiros da então Sociedade das Nações que funcionava na Suíça. Peritos eminentes vieram estudar a situação e propunham avanços financeiros mediante condições difíceis de aceitar. Consultado um professor de economia da Universidade de Coimbra, foi de opinião que seria possível resolver os problemas sem submeter o país a tão drásticas soluções. Os Serviços financeiros internacionais não modificando as suas exigências, sob o amargo ameaço da bancarrota, na impossibilidade de resolver os problemas sob os quais sucumbia o nosso malogrado Escudo, o Governo de então decidiu-se a entregar tudo o que respeitava a finanças ao professor de economia Dr. Salazar. E os resultados foram tais que ao fim de poucos meses, e a contento geral do país, todo o Governo lhe foi confiado, e o nosso pobre Escudo dentro de pouco tempo tinha adquirido foros de moeda forte! Tudo isto se passava a partir de 1928, sem dificuldades de ordem política, sem perseguições, no contento geral, de tal forma o país estava farto da instabilidade política anterior. Os profissionais da política, que tinham todos falhado nas suas missões, eram em princípio contra. Salazar parecia ser a isso indiferente, mas Afonso Costa (e mais um ou dois dos seus antigos ministros), julgou da sua dignidade dever exilar-se. E, advogado da importante Companhia dos Diamantes de Angola veio estabelecer-se em Paris, com escritório no 2.° andar da sucursal do Banco Nacional Ultramarino. Estreitaram-se naturalmente as suas relações com a Gi. Tinha sabido e aprovado que ela tomasse parte numa Sociedade que se ocupava de filmes mas, sabendo agora que a mesma se ocupava também de outros artigos, achou indigno que o nome de Dona Virgínia de Castro figurasse numa Sociedade que vendia – bacalhau –! Em vista do quê a Gi me pediu que a desligasse da firma e, sem a contradizer, comprei-lhe a sua quota.
Tinha passado a ir a Londres uma ou duas vezes por ano para guardar contacto com o meu vendedor de ananases. E com agradável surpresa, lá vi ainda no velho Covent Garden Market um letreiro nada tendo que ver com a minha fruta, mas dizendo respeito à nossa Ilha. As últimas laranjas que para lá devemos ter mandado datavam dos últimos anos do século passado. Provenientes agora de Espanha ou de Marrocos, tal foi o impacto deixado por mais de um século de únicos fornecedores de tal fruta que, trinta e tal anos depois, ainda as vi anunciadas como: St. Michael’s Oranges!
Foi pouco depois de instalados na Rue d'Aumale que por ocasião de uma ida a Londres, tendo despachado de manhã os assuntos – ananases –, o comboio de retorno devendo partir de Charing Cross às 4 e ½, entrei por umas duas horas num cinema de Leicester Square. Estava a passar um short que logo me intrigou. Quem seriam aqueles tão bons dois cómicos? Decidi perder o comboio para descobrir na sessão seguinte o nome do distribuidor: Gaumont British. E logo lá fui pedir detalhes. O filme fazia parte de um grupo de cem shorts que tinham comprado à Pathé América. O correspondente em França era o meu conhecido [Maurice Harold] Livingston (1891–1969); con-
tactado por telefone tinha os mesmos [filmes] para França, e ficamos em que o iria ver no dia seguinte. Entre os cem, descobri 6 com os mesmos dois cómicos, aqui ainda desconhecidos. Foram pouco apreciados do vendedor que me dizia não saber o que fazer com eles. Nada me importou, estava bem convencido do agrado. Enfeitei-os com desenhos engraçados nos letreiros feitos por desenhador amigo de talento [seria Roland Coudon (1897–1954) ou René Seguin (1892–1947)?] e, com surpresa do vendedor, o sucesso daqueles dois primeiros Laurel et Hardy ultrapassou tudo o que se teria podido imaginar. E a estes tinha podido juntar uns bons Félix le Chat [curtas-metragens de animação norte-americana], e o conjunto veio dar-me uma bela segurança para me abalançar a tomar interesse em produções já de importância. Variété (1925), um filme de circo dum grande metteur en scène alemão –E. A. Dupont (1891–1956) –, tinha feito brilhante carreira. Uma história escrita por um autor francês – Alfred Machard (1887–1962) –, tinha-o interessado. Não me recordo bem como as coisas se passaram, mas o que era certo é que Salto Mortale (1931) ia ser feito na Alemanha, e era questão de lá se fazer simultaneamente uma versão francesa. Um grupo que tinha então um certo peso estava interessado em ficar com a parte Sul da França e, estimulado pelo montante dos contratos já passados com os meus Laurel et Hardy, decidi ficar com a parte Norte, tomando a meu cargo o que respeitava a produção da versão francesa. Para minha maior segurança, o Vasco estando em Paris, abriu-me no seu Banco um crédito até um milhão de francos. Dele me utilizei apenas em parte, mas no momento foi recurso que me serviu e que depressa me foi possível liquidar.
Em começos de 1931, passei 3 meses a seguir em Berlim o trabalho da filmagem, e conciliar por vezes pequenas desavenças entre Dupont e Machard. E foi-me útil seguir de perto o trabalho dum grande metteur en scène. Na verdade, Machard não tinha o talento de Dupont, e a versão francesa era inferior à alemã. Consegui porém recuperar os fundos que lá tinha metido, mas a melhor aprendizagem foi ver a importância de trabalhar com autores de talento. De que bem me servi mais tarde recorrendo por vezes a artimanhas para poder utilizar em parte a imaginação de um e conjugá-la depois com o talento de dialoguista de um outro.
De regresso a Paris – cerca de abril de 1931 –, vi confirmados os excelentes contratos obtidos pelos meus Laurel et Hardy. O total, devia dar-me uma folga de recursos muito confortável. Na América os dois tinham sido contratados pela Metro, já então para filmes falantes, e esta entendeu mandar vir um metteur en scène francês (Pierre Weill, 1906–1961), para fazer simultaneamente uma versão a ser depois adaptada em francês. De retorno, tendo sabido do sucesso que estavam a fazer os meus, Pierre Weill convenceu-me que seria fácil fazer um género Laurel et Hardy em França. Contactou-se um gordo [Paul Fournier] – que se revelara excelente no Music-Hall –, um magro, qualquer [Ferjos], e dei o meu acordo. Deu-me boa experiência de todas as más surpresas que se podem encontrar numa filmagem! E em vez dos 600/700 metros projetados, acabou com cerca de 1600! Era francamente muito, muito fraco e, em todo o caso, impossível de o explorar como short.
Encontrei, porém, no meu amigo Livingston um filme americano que, tendo sido recusado por outros, me foi cedido por preço bem acessível, e isto na ideia de fazer com o primeiro um programa completo. Este, era excelente, e podia ser explorado ainda como mudo, ou então em versão original já falada, com subtítulos franceses. O que era então novidade. Esquecendo o outro, foi assim que em começos de 1932, Son Homme (Her Man, EUA, 1930) debutou no Palace, até lá explorado como Music Hall. Em sete semanas de passagem, o filme fez um grande grande sucesso. Tinha, entre outras cenas, extraordinária bagarre que depois teve dúzias de imitadores, sem nunca a terem igualado. Como resultado final dos dois, o primeiro Mardi-Gras (1931) tinha-me custado cerca de 400.000, e não recuperei nem mesmo o preço das cópias! Em contrapartida Son Homme deu-me um lucro de 750.000 francos. Do primeiro tirei porém séria aprendizagem, e confirmou o que se dizia: – ser perigoso, começar-se por um sucesso –. Em matéria de insucesso, o meu tinha sido exemplar! Foi uma bela lição que muito me serviu em todos os que fiz depois.
Tudo isto se acumulava com a minha permanente busca de mais filmes para alimentar a minha distribuição. Recordo-me de – entre outros –, um Mr. [Eugène L.] Reyssier, representante em França do importante produtor austriaco Conde [Alexander “Sascha” Joseph von] Kolowrat[-Krakowsky] (1886–1927). Este tinha descoberto no Théatre des Capucines uma corista que lhe pareceu poder bem utilizar. Levou-a para Viena, e fez dela uma grande vedeta da época, com o novo nome de: Lili Damita [Liliane Marie Madeleine Carré] (1904–1994). Agora completamente esquecida, fez depois brilhante carreira em Hollywood onde casou com o célebre Errol [Leslie Thomson] Flynn (1909–1959). Muito indeciso este Sr. Reyssier; lembro-me de ter levado meses a trabalhá-lo, mas creio que acabei por convencê-lo a confiar-me um ou dois dos tais filmes. Para mim ela era já uma antiga conhecida. Lembro-me muito bem que por volta de 1916/17, sendo oficial miliciano, ia por vezes ao Palace. Então, com 14 anos lá a levava a Mãe, e já com grande encanto a pequena distraía os habitués do jogo que, conforme a sorte os tinha servido, um ou outro passavam-lhe sempre uma ou duas placas.
Foi por volta de 1932 que devo ter entrado em contacto primeiro com Steven [Istvan] Pallós (n. 1902) e, depois, todo um grupo de húngaros que se ocupavam de cinema. O principal era Alexander Korda (1893–1956), personagem de grande vulto que, depois de ter deixado a Hungria – sempre acompanhado pelos [seus] irmãos Zoltan [Korda] (1895–1961) e Vincent [Korda] (1897–1979) –, começou a meter-se no cinema em Viena d’Áustria (também com o Conde de Kolowrat). Passaram depois por Berlim e vieram ter a Paris onde ele, Alex Korda, fez 2 ou 3 filmes, entre os quais o magnífico Marius (França, 1931) extraído de uma excelente peça de Pagnol. Do grupo, tive de preferência relações com o simpático irmão mais novo – Vincent – e, não sei como tive deles a distribuição do Le Jugement de Minuit (1933). Também não me recordo como o caso se passou, mas depois de o ver fiz observações sobre certos pontos da montagem, que logo modificaram e lhes deixou impressão favorável.
Alex Korda, o chefe da tribo, era uma personalidade grande demais para ter futuro em França. Levou então todo o seu grupo para Inglaterra, onde pode
dar largas ao seu grande talento. La Vie Privée de Charles VIII (The Private Life of Henry VIII, Reino Unido, 1933) com Charles Laughton (1899–1962) foi um tal triunfo mundial que lhe abriu as vastas portadas financeiras da Prudencial, a grande Companhia de Seguros, a qual afora os filmes, lhe financiou vastos studios. A ele se deve o florescimento do cinema inglês daquela época, a descoberta de grandes metteurs en scène (Carol Read, David Lean?). E, entre muitos outros, o excelente filme Le Troisième Homme (1949), com Orson Welles, de igual sucesso mundial. Com ele subiram paralelamente os irmãos: Zoltan, como metteur en scène (sem todavia o mesmo talento) e Vincent que, de pintor, foi pelo irmão promovido a arquitecto decorador tendo mostrado brilhante talento. Foi com este que tive mais intimidade durante a curta passagem que fizeram em França, e foi com grande interesse que li há pouco o livro [Charmed Lifes – A Family Romance (1979), a primeira edição é da Random House nos EUA e Canadá] sobre os Korda escrito pelo filho [de Vincent, Michael Korda] (n. 1933).
Entre os meus conhecimentos do tempo figura uma personagem de muito menos vulto, – Michel Salkind (1890–1973) –, russo de origem que, sem meios financeiros próprios tinha um tal charme e talento especial para conseguir encontrar financiamentos, que já tinha feito e continuava a fazer alguns filmes. De quando em quando. havia um bom, e servia de locomotiva para fazer vender 2 ou 3 que o eram menos. Deve ter sido por ele que chegou a França La Fille du Régiment (1933), [um] filme checo com Anny Ondra (1902–1987) feito por Carl Lamač (1887–1952). O filme interessou-me, mas tinha certas falhas. Consegui de Salkind a vinda a Paris de Lamač. Simpatizamos logo, ele reconheceu as faltas, conseguiu recompô-las, e fiquei depois com a distribuição do filme. E agora corrigido, foi para Salkind nova locomotiva que lhe fez vender um ou dois outros de que não conseguira desembaraçar-se. Pouco depois veio ver-me um scénariste, húngaro também –Ákos Tolnay (1903–1981) –. Trouxe-me a ler a antiga peça, de Henry Bataille (1872–1922), Le Scandale (1934). Senti também que devia poder dar um bom filme. Comprei os direitos de filmagem e pus o Tolnay a trabalhar no scénario. Para melhor compreensão, isto significa que a obra original tem que ser adaptada às possibilidades cinematográficas, detalhada cena por cena de modo a poder dar uma continuidade de base para a filmagem. O filme necessita porém necessitava porém a presença de um couple de renome, como Gaby Morlay (1893–1964) e Henri Rollan (1888–1967). Era porém Salkind que os tinha sob contrato. Entendi-me facilmente com ele e fizemo-lo à razão de 50/50 na produção, ocupando-me eu só da filmagem e naturalmente da distribuição. Sugeriu-me [o nome de] Max Ophüls [Maximillian Oppenheimer] (1902–1957) como metteur en scène, grande nome de então. Perfeitamente de acordo, este pediu-me 15 dias para estudar o assunto. E traz-me duas semanas depois um novo scénario que modificava completamente o espírito, o essencial da peça. Não me foi difícil convencê-lo de que, estrangeiros tanto ele como eu, não tínhamos o direito de modificar de tal forma uma obra de um autor ainda [para mais] muito considerado em França. Separámo-nos, tendo porém ficado nas melhores relações.Recorri então ao metteur en scène consagrado Marcel L'Herbier (1888–1979). De acordo com o scénario de Tolnay, depois da sua preparação, assim começou a filmagem.
Aos técnicos indispensáveis do começo tinha vindo acrescentar-se um outro, o encarregado da montagem, conforme as indicações do metteur en scène. Foi de lá que devo ter conhecido Léonide Moguy (1898–1976), considerado como dos melhores na sua especialidade.
«couplederenome»:HenriRollaneGabyMorlay.
Terminada a filmagem, a montagem sob as indicações de L'Herbier, não concordei com esta e, certamente com a colaboração de Moguy, modifiquei-a como melhor me pareceu. Furor do metteur en scène, mas em nada lhe cedi. Mediante o que ele exigiu ser retirado o seu nome das cópias, de toda a publicidade. O que foi feito sem ver nisso o menor inconveniente. A primeira exibição do filme foi feita em Bruxelas: onde o filme teve um verdadeiro triunfo! No dia seguinte, em Paris, telefona-me o L'Herbier:
— Que pena esta nossa desavença…
Afinal ele estava de acordo para que figurasse em tudo – Un Film de Marcel L'Herbier –.
— Não, digo-lhe eu; figurará bem o seu nome, mas como: – Mise en scène de Marcel L'Herbier –.
Tentou protestar, mas teve de contentar-se com isso. Ficámos, porém, sempre em boas relações!
Deve ter sido pouco depois de ter saído Le Scandale (1934) que veio um dia ter comigo um Mr. [Jules] Calamy, que até lá eu não conhecera. Disse-me ter um contrato de exclusividade com um actor ainda pouco conhecido, de nome – Fernandel [Fernand Joseph Désiré Contandin] (1903–1971) –, e queria saber se me interessaria produzirmos em conjunto alguns filmes em que o utilizaríamos como vedeta. Já o tinha notado num filme em que fazia um muito pequeno papel, mas em que me tinha dado no goto. Fizemos uma sociedade – Gamma Productions –, em que a 50/50 cada, devíamos produzir três filmes, sendo porém a Gray-Film que os distribuiria. O primeiro – Le Cavalier Lafleur (1934) –, tirado de uma opereta qualquer, punha-o já bem em destaque. Papel importante, cançonetas que lhe convinham, etc. etc.
Os autores não tinham grande nome, o metteur en scène era qualquer [nota: Pierre-Jean Ducis (1907–1980), nome posteriormente manuscrito no texto datilografado nas memórias].
Teve porém como adaptador Yves Mirande (1876–1957), então conhecido como autor de comédias de sucesso, e com quem fiquei em boas relações. O filme acabado, revelou-se ser muito razoável; e Fernandel mostrou de entrada ter qualidades para ir mais longe. A toda a preparação, produção, etc. assistia Mr. Calamy, mas de nada se ocupava. Nem do financiamento tampouco! Terminado assim sem mais histórias o primeiro filme, contente do resultado, sob pretexto de sermos sócios, Mr. Calamy logo ao começo da tarde aparecia no escritório, entrava no meu bureau e sentava-se à conversa
no outro lado da mesa. Sem a menor sem-cerimónia, enquanto eu me atarefava em tão diversos assuntos: telefonemas, cartas a dictar, instruções ao pessoal, etc. etc., nada o estorvava de passar horas em frente de mim e verme tão ocupado com assuntos que em nada lhe diziam respeito. Não querendo indispô-lo, não me era fácil dizer-Ihe que me desembaraçasse da sua presença! Aqui intervém uma personagem que aparentemente não tem que ver com o caso, mas que as circunstâncias fizeram com que tivesse também de entrar em cena.
Léon Marichelle tinha sido interrompido no seu Concours Musical –Prix de Rome – pela Primeira Grande Guerra que fez toda como brancardier. Era filho do melhor organista de Paris, Mestre dos melhores compositores da época, e tinha herdado do Pai as mesmas disposições musicais. De muito agradável companhia, nenhum dom tinha porém quanto a negócios. Os Luthiers [construtores de instrumentos de corda, com escola de restauro, na cidade] de Mirecourt tinham-lhe confiado a loja da Rue de Rome [em Paris]. Mas depressa se viu que a levava ao desastre se lá continuasse. Ia vivendo de algumas lições de piano, e de serviços que prestava a editores então chamados de Petits Formats que espalhavam através da França cançonetas por amadores, um pouco à toa, mas às quais Marichelle sabia dar-lhes musicalmente, um certo jeito. Tinha-o conhecido através da mulher, muito simpática também, nossa próxima vizinha em Montmartre, e com quem a Renée tinha travado conhecimento. Devem ter vindo jantar connosco na Av. Lamarck, e tive ocasião de apreciar o seu dom de bom conversador. Sentindo dificuldades na sua vida, propus-lhe vir trabalhar na Gray-Film sob pretexto de superviser toda a parte musical dos meus filmes. Na realidade o meu fito era outro. O primeiro andar da Rue d'Aumale, afora os quartos dianteiros, tinha dois outros dando para o pátio interior, e a que um corredor lá levava. Utilizara um deles como arquivo, mobilei o outro com uma mesa e cadeiras e, quando Calamy se dispunha a vir sentar-se em frente de mim, levei-o a apresentá-lo ao Marichelle, convidando-o a tomar lugar na secretária. Lá deixei os dois em conversa seguida, e assim ficaram as coisas em boa ordem. Produzimos depois Jim la Houlette (1935), tirado dum vaudeville de Jean Guitton (1887–1973), mise en scène de [André] Berthomieu (1903–1960), cançonetas de [Georges] Van Parys (1902–1971), e pouco depois Ferdinand le Noceur (1935). Do qual confesso esqueci o autor, adaptação, etc. etc. Era provavelmente também originário de Jean Guitton [nota de leitura: este texto de Ayres d’Aguiar, producteur délégué na nova adaptação para cinema em 1935, foi datilografado em 1985; a peça é de Léon Gandillot (1862–1912), dialoguistes Georges Berr (1867–1942), Jacques Constant (1907–1981) e René Sti (1897–1951), este último, cineasta também responsável por la adaptation],
[Jean Guitton] que tinha imaginação e com quem tinha ficado em bons termos. Os três filmes tinham tido um bom sucesso comercial e, Mr. Calamy tendo recebido um muito razoável benefício, terminado o nosso contrato partiu por seu lado para fazer um outro, só, e sem mais associados. Tinha-se ligado no entretanto de grande amizade com Marichelle, e pediu-me se o podia dispensar, fazendo dele o seu braço direito, numa próxima produção.
Yves Mirande, da excelente peça Baccara (1927, no Théâtre des Mathurins), com Jules Berry (1883–1951), o grande ator, decidira transpô-la em filme (1935). Nada conhecendo como técnica, tinha tomado Moguy para o assistir na mise en scène. Fui visitá-los ao studio, e lá vi com agrado que era este que com autoridade a assegurava integralmente. E mesmo muito bem, com talento. Terminada a minha colaboração com o Sieur Calamy, das minhas relações com Jean Guitton tinha apreciado a imaginação das suas histórias. E contou-me uma que me interessou e lhe pedi para a pôr por escrito. Era um esboço, mas que muito interessou também Moguy. E decidimos tentar transformá-la em filme. Trabalhámos juntos algumas semanas. A história vinha bem, mas os diálogos que nos ia fornecendo Guitton não condiziam nada com o que estava dando a nossa continuidade. Trabalhava connosco como secretária a muito competente Jeanne Witta[-Montrobert] (n. 1901). Estávamos decididos a procurar outro dialoguista,
— « Et si j'en parlais à Jeanson? »
Ele era então o dialoguista de mais talento, mas nada no género que vinha tomando a nossa história. Dois dias depois ela volta:
— « Jeanson accepte, mais à une condition: Son nom ne figurerá nulle part! »
Tinha sentido o interesse do desenvolvimento que lhes tínhamos dado mas, um “melodramático”, não condizia nada com a reputação que se tinha feito de muito espirituosa acidez. E meteu-se ao trabalho de tudo dialogar desde o início. Deixemos, pois, Jeanson empreender – em segredo –, os novos diálogos do nosso filme Le Mioche (1936), e voltemos ao que se passava com o novo Fernandel, de que éramos naturalmente perfeitamente estranhos. Para Un de la Légion (1936), Calamy tinha podido tomar um bom metteur en scène (Christian-Jaque, 1904–1994), Fernandel tinha naturalmente o principal papel e, depois de exteriores em Sidi-Ben-Abbès [Argélia], toda a tropa tinha vindo continuar a filmagem em Nice. Calamy dispunha então de um carro Chenard et Walcker, no qual em cada fim de semana ia visitar a mulher fazendo uma cura nos Pirenéus. No correr de uma das idas teve um acidente – certamente sem culpa sua –, mas de que resultaram duas mortes. Em Nice, dificuldades de produção de qualquer ordem, forçaram-no a ir por poucos dias a Paris. Deixando a tropa, técnicos como actores à conta de Marichelle. Os dias passavam, as contas eram-lhe apresentadas – do studio, da filmagem, dos hotéis, do pessoal… – e eis o Marichelle, tudo quanto há de mais revesso a resolver dificuldades desta natureza, a telegrafar, a telefonar ao Calamy, sem dele receber qualquer resposta. Como, nunca o soube, mas conseguiu acalmar credores, e num estado de furor furioso contra Calamy consegue trazer a tropa toda para Paris. Durante o período de intimidade, vanglorioso, Calamy tinha-lhe feito uma importante confidência: no contrato
com o ingénuo Fernandel, do início, havia uma cláusula que lhe ligava à vida a, ele, Calamy! No estado de exasperação em que chegara, vai ter com o Fernandel, e diz-lhe:
— «Leu bem o seu contrato? Aconselho-lhe que o faça!»
E tendo ele percebido então até que ponto se entregara nas mãos de Calamy, recusa-se a ir por diante na filmagem. Longe ainda do fim, era catástrofe sem remédio para este. Fernandel a nada se remove, exige que lhe traga o contrato original e, tendo-o rasgado, consente então a terminar o filme. Ao furor de Marichelle, imagine-se agora o de Calamy, que investe contra ele:
— « … Je devrais vous tuer!!! »
Ao que impávido, o primeiro lhe responde:
— « Qu’à cela ne tienne, prenez donc une Chenard! »
Acabado o filme, Fernandel vem procurar-me, e propõe-se passar um contrato comigo. Não querendo que se pudesse supor ter eu sido a causa da quebra do contrato com Calamy, disse-lhe que fizesse primeiro um filme por fora, e viesse ver-me depois. E foi neste entretanto que tive largo tempo para me ocupar bem de Le Mioche. Os diálogos de Jeanson davam uma grande classe a toda a história. E feito a découpage, a preparação, a filmagem deve ter começado por volta de abril de 1936.
O principal ator era o excelente Lucien Baroux (1888–1968), mas havia uma outra personagem importante, de uns 14/15 meses. Rejeitadas umas duas ou três primeiras tentativas, apareceu-nos enfim um que parecia dar satisfação: o pequeno Philippe. Os papéis de artistas femininas eram de pouca monta – Gabrielle Dorziat (1880–1979), Pauline Carton (1884–1974) –. Todo o resto da distribuição [do elenco] eram principiantes, à volta dos seus 18 anos. A única jovem artista já experimentada tendo na sua cena principal despontado Moguy, veio este confessar-me que se tinha enganado. Perfeitamente de acordo, reembolsei-a do seu contrato, e passando em revista todas as jovens artistas consagradas, nenhuma nos parecia convir.
Uma das colaboradoras da produção sugere que façamos um ensaio com uma das figurantes, Madeleine Svoboda (1917–2004). Tinha tido ocasião de a ver e apreciar no curso de Dullin. Estava ainda montado o décor em que ela teria a sua principal cena com Lucien Baroux mas, para não atrasar mais o plano de trabalho, conviria fazê-lo depois da filmagem normal, em horas suplementares, de noite. Uma dificuldade é que estas, depois da Front populaire, dependiam da boa vontade dos operários. Chamei o chefeelectricista, o chefe-maquinista, meti-os na confidência encarregando-os de serem os árbitros, se julgassem que depois de a verem no primeiro plano da sequência, valeria ou não a pena de se prosseguir. O ensaio fez-se no mesmo dia, começando às 9 da noite. O primeiro plano pareceu-nos excelente, a mim como ao Moguy mas, como combinado olhei para o electricista lá em cima junto dos projectores, para o maquinista, cá em baixo, e ambos de punho fechado e polegar levantado, aprovaram o seguimento.
E assim se fez com o 2.°, com o 3.° plano, e toda a sequência ficou assim filmada até à meia-noite. No dia seguinte a projeção veio confirmar as suas excelentes qualidades. E preferindo deixar o [apelido] “Svoboda”, apareceu na publicidade um novo nome: – Madeleine Robinson – que continua a figurar sempre com grande apreço.
O acaso fez com que uma outra figurante – Mlle. Roussel (1920–2016) – tivesse tido no filme um plano em que revelava boa presença. E não o tendo esquecido, uma das nossas colaboradoras tendo-a indicado, em colaboração com Raimu [Jules Auguste Cesar Muraire] (1883–1946), fez depois brilhante carreira sob o nome de Michèle Morgan.
Le Mioche teve um grande sucesso: de crítica, de público e de receita. Pierre[-René] Wolf (n. 1899), crítico do Paris-Soir (o grande jornal popular de então), terminava o seu artigo com a ideia pouco feliz de dizer:
— « … Quant au jeune Philippe, il faut s’attendre à ce que Hollywood vienne nous le prendre un de ces jours. »
Como resultado tive no dia seguinte uma visita imprevista:
— « Je suis le Père de Philippe. Je veux savoir où il est pour en prendre soin. »
Ao que respondi:
— «Dirija-se à Mãe que foi quem m’o confiou.»
Era filho natural de uma enfermeira que, entre outros, tinha tido Philippe como filho e, julgando bem fazer, exigira do Pai que o reconhecesse. Toda esta história do pequeno é comprida e complicada demais para figurar nesta narração. Estivemos para o adotar, ao que o Pai se opôs. Viveu depois como nosso afilhado durante anos. Tentei educá-lo como se fosse meu filho, mas o destino levou-o a fazer vida por seu lado. Infelizmente pouco brilhante, e creio que ainda vive no sul da França.
Tão embrenhado em tão variadas tarefas, filmes a distribuir, a produzir, os negócios correntes que continuavam, ia-me esquecendo de que desde começo de 1935, tínhamos deixado Montmartre, e estávamos vivendo perto de Boulogne, na Rue Nungesser et Coli no 5.° andar duma casa nova do arquiteto Le Corbusier, com a fachada toda em vidraça, sem vizinhos, tendo em face o Stade Jean Bouin. A dois passos de Mr. e Mme. Garganoff. Ele era para mim um amigo desde o nosso primeiro encontro e afora isso eu mantinha desde então os melhores contactos com todos os seus excelentes colaboradores da Lianofilm, todos russos. A Renée tinha também travado amizade com Madame Garganoff e, deve ter sido por qualquer visita a eles feita que devemos ter descoberto o tal 5.° andar e decidido a mudança. Ficava mais longe da Rue d'Aumale mas, com o tráfego então pouco importante com o meu carro, a distância não tinha grande importância.
Lá estávamos já durante a produção do Mioche, mas retornemos agora ao seguimento da minha lida, de distribuidor, de produtor.
�� DossierdeimprensaGray-FilmeCinéUnion.
(continua no próximo número da gray-film…)
ABRIR AS IMAGENS MEDIANTE O SOM
Texto
Colectivo Termita
Ao abordar as dez sessões que compuseram esta edição do Doc’s Kingdom, realizado em 2024 na cidade portuguesa de Odemira, há que ter a ideia de como este Seminário Internacional de Cinema Documental, edição após edição, dinamita as premissas que homogeneizam o panorama da grande maioria dos festivais de cinema: secção única, não competitiva e longe de critérios de estreia ou duração. Stoffel Debuysere (curador habitual da Courtisane [belga, de Gante] e responsável por esta edição do Seminário) propõe em Ways of Listening (Formas de Escutar) reler as premissas do documentarismo etnográfico e do exercício antropológico a partir do som e através do trabalho dos artistas convidados.
�� Stoffel Debuysere
O entendimento do som como estratégia documental (captadora do real) abre a porta a perguntas complexas e isto é, se as imagens têm uma ética, qual é a ética da escuta? A abstração sonora diante da clareza da imagem abre todo um campo formal que necessita de definir os diferentes modos de escuta. Neste sentido, é reveladora a presença da cineasta vietnamita Trinh T. Minh-ha, com obras como Naked Spaces: Living Is Round (1985) ou What About China? (2020) e a sua particular maneira de entender a voz em off como forma de “falar acerca de algo”, em vez de simplesmente “falar sobre algo”. Uma forma de suspender o signficado na linguagem, por ser fundamentalmente ficcional, e reinventar a figura do narrador documental (herdeiro de Robert J. Flaherty), que impõe o seu olhar ao explicar as imagens, rumo a um caminho de diálogo com elas. E esta relação bélica entre o meio sonoro e o visual articula a grande pergunta que percorreu cada assembleia explorou durante o Seminário: poderá o som combater o olhar colonial? Será que a linguagem sonora e o exercício de escuta podem descontaminar a etnografia do século XX? Aqui, a longa-metragem sonora Expedition Content (Ernst Karel e Veronika Kusumaryati, 2020), assume uma importância substancial, repelindo as imagens ao documentar uma das expedições que efectuou em 1961 o cineasta Robert Gardner (Pássaros Mortos, 1963) à antiga colónia holandesa da Nova Guiné Ocidental em 1961 com Michael Rockefeller e Peter Matthiessen (autor de Under The Mountain Wall). Graças a esta libertação do enquadramento, o som desvela-se como um organizador mais democrático do material apesar da sua natureza abstracta, enfrentando-nos com o nosso “ver para crer”.
Para continuar a interrogar a natureza desta relação, valerá a pena perguntar-nos como é que o som se sobrepõe à imagem. Se entendermos o real como uma questão de imagem, até que ponto o som pode retesar essa realidade? Convém ler a média-metragem Twilight City (Reece Auguiste, 1989) do Black Audio Film Collective como um manifesto sobre esta relação do artista sonoro Trevor Mathison, que aqui aproveita a capacidade do sintetizador para se afastar do naturalismo, ao cartografar uma realidade emocional tão alienante como a dos subúrbios britânicos durante o governo de Margaret Thatcher. Um expressivo enfoque do cinema de ensaio que permite em Handsworth Songs (John Akomfrah, 1986) a harmonização de um grande número de imagens, encontrando nelas novos significados. Como o faz magistralmente 48 (Susana de Sousa Dias, 2009), abordando a encenação de uma série de testemunhos de tortura policial e de repressão política da ditadura fascista do Estado Novo (1933-1974) de Portugal mediante imagens fixas (fotografias antropométricas de presos políticos), abrindo a imagem para trazer o passado ao presente com o som. «Ouvir uma pessoa no ato de falar, ao entender a sua voz como um gesto, esta emerge como uma dimensão política que escapa ao uso técnico instrumental da linguagem e, simultaneamente, às convenções cinematográficas», explicou a cineasta portuguesa, que mais tarde apresentou Fordlandia Malaise (2019). Um filme sobre uma cidade fantasma, no interior da selva amazónica, fundada por Henry Ford em que o som actua como médium para purgar o passado colonial que deu lugar à nova identidade dos seus residentes.
A reapropriação da imagem através do som toma o seu sentido mais literal em The Tuba Thieves (Alison O’Daniel, 2023), onde o roubo de tubas de uma dezena de escolas secundárias no sul da Califórnia semeia a seguinte premissa: se uma tuba pode ser roubada, o som pode ser recuperado. E a meditação mais profunda sobre a materialização do som provém desta longametragem pensada deste a não-audição, interpretada em língua gestual e sem uma única linha de diálogo. Não renunciando, claro, à legendagem como instrumento de expansão do audível, não como mera transcrição, mas antes dando conta do processo pelo qual o real se deforma ao passar por qualquer meio. Este exercício, a priori teórico, acaba por desenvolver no espectador uma espécie de consciência sonora apurada ao longo das sessões que compõem o programa do Seminário. Uma consciência que nos recorda o quanto baseamos a análise sonora na imagem, limitando o conhecimento da linguagem cinematográfica ao omitir uma das suas áreas mais expressivas. ��
Publicado parcialmente na revista Caimán Cuadernos de Cine, edição n.º 195, de janeiro de 2025, o texto é da autoria do Colectivo Termita e foi editado e traduzido do castelhano para português por José Machado.
Alerta sonoro
PODCAST: QUANDO A GUERRA ACABAR
Entrevistador
José Machado
MárioEspadaeNikolausdeMacedoSchäfer.
Mais de 4500 crianças chegaram Portugal para escaparam da fome, da destruição e das doenças que assolavam a Áustria. Após a apresentação do podcast, de 28 de novembro de 2024, a gray-film lança as perguntas para a entrevista, através de e-mail, ao Mário Espada (em Lisboa) e ao Nikolaus de Macedo Schäfer (em Berlim), autores de Quando a Guerra Acabar (2024). Entre outras funções, Mário ainda compõe música e Nikolaus narra o podcast. Para o documentário Viagem ao Sol (Ansgar Schäfer e Susana de Sousa Dias, 2021), Mário e Nikolaus assinam a direção de fotografia e, os quatro participam na edição de tantas horas de material, que o Mário ainda teve o exercício de encurtar no trailer que montou.
José Machado — Quantas horas de gravações foram captadas e quantas tiveram que ficar para trás, que não couberam, entre o filme e o podcast?
Mário Espada — Infelizmente não sei o número preciso, mas se tivesse que estimar diria que tínhamos pelo menos 50 horas de entrevistas em áudio. Sendo que o filme tem 109 minutos e o podcast 180 minutos, ainda sobraram muitas horas – como aliás é comum em cinema. A montagem pode ser um processo de selecção muito radical.
J.M. — Mário, há um enorme cuidado na qualidade do áudio. Qual foi o teu ponto de partida para criares a música para o podcast?
M.E. — A música para o podcast partiu de uma interpretação livre da música de introdução do podcast Serial da This American Life, e depois transformada para se alinhar com a nossa estética e temas. A música evoca diferentes ideias em simultâneo: o pensamento e a descoberta, através da repetição de arpejos; a infância, através da instrumentalização a partir de um teclado de brincar; a guerra, simbolizada pelo rufar dos tambores; e a fantasia, ou o fora do real, na melodia que se sobrepõe a tudo. A ideia era criar uma música que convocasse paralelamente familiaridade e estranheza, que impulsionasse o questionamento, e permitisse diferentes sentidos ao longo dos 180 minutos
J.M. — Ao ouvir-te falar, na apresentação, Mário, percebe-se o quanto de ti está neste projeto. O que recordas, do início no teu percurso, com o que querias fazer em cinema e como te identificas hoje com o documentário?
M.E. — O início do meu percurso coincidiu com a minha entrada na Escola Artística António Arroio. Nessa altura fazia vídeos experimentais, para os quais também compunha música, e a minha visão do cinema era muito influenciada pela pintura e poesia, sem ambições narrativas. Mais tarde, na Escola Superior de Teatro e Cinema, fui encaminhado para uma visão do cinema enquanto meio narrativo e orientado para a ficção, e senti-me fora da minha zona de conforto a inventar argumentos cinematográficos. Sinto que, em ambas as escolas, a palavra escrita, a ideia de conceito ou de teoria, era colocada à frente de uma prática, e da matéria dos filmes. Hoje, descobri na montagem de documentário, uma liberdade com a qual me identifico muito. O meu trabalho em instalações-vídeo e em algumas ficções de curta-metragem também expandiu a minha visão nos últimos anos. Interessa-me pensar o cinema fora de formatos pré-concebidos e, por extensão, a criação de novas formas.
J.M. — Nikolaus, na impossibilidade de te conhecer e conversarmos em Lisboa, que já deixaste em novembro de 2021 para voltares a trabalhar na Alemanha… A esta distância, geográfica e temporal, a que atribuis mais importância neste projeto e qual foi a tua motivação para avançarem com este podcast narrativo?
Nikolaus de Macedo Schäfer — Creio que para mim, são principalmente dois aspectos: a relevância da história das criancas da Cáritas para a actualidade – a Alemanha encontra-se num ponto pivotal no que toca às dinâmicas de pessoas que procuram asilo na Europa, e a questão de tentar encontrar uma nova avenida de divulgação de documentários artísticos, como os que a Kintop produz – que infelizmente tendem a ficar restringidos a circuitos de festivais e pequenas mostras.
J.M. — Optaste por não deixar cair o apelido Macedo no teu nome profissional e se fosse feita uma genealogia kino remontaria aos teus trisavós, também eles emigraram (do Brasil) e os filhos destes, os pais do cineasta António de Macedo, conheceram-se na Kodak em Lisboa onde trabalhavam e um projetor era levado de noite para casa e reposto antes da loja abrir. Esta é uma história de uma outra cidade, não é do nosso tempo… Nikolaus, há alguma memória de família que hoje recordes e que te transporta para o cinema?
N.M.S. — Memórias de família há muitas, mas de facto, entre todos os festivais, mostras e discussões intelectuais sobre filmes artísticos, os momentos que se destacam acabam por ser aqueles mais quotidianos: os domingos passados com os meus pais e o meu avô a ver blockbusters vápidos – as chamadas “americanadas” que ele adorava. Acho que é por isso que acho tão importante a “missão” de garantir o acesso a filmes e a proliferar a arte (fílmica) –pelo aspecto comunitário e pelos diálogos e experiências partilhadas que são criadas nas salas de cinema ou mesmo salas de estar (independentemente da
qualidade dos filmes, como neste caso).
J.M. — Como se cruzaram os vossos caminhos, pessoais, onde se conheceram e também no cinema? Com que obras e quando começaram a trabalhar com a produtora Kintop?
M.E. — A minha entrada na Kintop deu-se através de um estágio profissional do IEFP em 2017, e foi durante esse período que conheci o Nikolaus. Trabalhámos juntos no filme Fordlandia Malaise e a certo ponto descobrimos que tínhamos interesses semelhantes em música, comédia e desporto, e a partir daí rapidamente nos tornámos amigos. Durante o trabalho no podcast descobrimos que temos uma dinâmica de trabalho muito boa - ambos gostamos de discordar um do outro, mas encontramos sempre uma forma de conciliar as nossas ideias.
N.M.S. — Foi durante o Viagem ao Sol onde a nossa amizade e compatibilidade criativa se solidificou. A minha conexão com a Kintop comecou já desde a sua concepção, por ser filho dos criadores. Acho que, fatualmente, o meu primeiro trabalho foi como operador de som a segurar o boom durante umas filmagens, enquanto crianca. Depois fui estagiário de montagem no Luz Obscura durante algumas semanas no 10.º ano e finalmente foi após o meu bacharelado que tive o tempo e a oportunidade de me dedicar a tempo inteiro aos projectos da Kintop e, aí sim, comecei com o Fordlandia Malaise.
J.M. — Mário e Nikolaus, com a Cláudia Redweik dirigiram o casting e os atores nas dobragens gravadas, em Lisboa, no estúdio do Centro de Investigação Artística Hangar, onde decorreu o lançamento do podcast. Qual é a vossa ligação com este espaço?
M.E. — O projeto Hangar tem direção artística de Mónica de Miranda, com a qual montei duas instalações-vídeo e duas curtas-metragens. Foi assim que tivemos conhecimento do espaço. O estúdio de gravação do Hangar revelouse um espaço de trabalho muito confortável e adequado às longas horas de gravação que fizemos.
J.M. — Das entrevistas gravadas à pós-produção, em que momento vos ocorreu avançarem para um podcast e o que foi determinante nos dois para a concretização dessa vontade?
N.M.S. — A ideia do podcast começou a germinar durante o processo de montagem do Viagem ao Sol, quando nos vimos forçados a cortar imensas histórias de grande importância por causa da duração e estrutura do filme. Isto levou-me a considerar que outros meios de storytelling poderíamos aceder e de que maneira também podíamos disseminar esta história melhor. Já tínhamos também tido na Kintop a discussão de como “pôr os filmes nas mãos das pessoas”, já que o formato de documentários artísticos/de festival não torna as histórias tão acessíveis como deveriam ser (dada a sua relevância social). Portanto a primeira ideia foi um podcast em inglês, para partilhar a história destas crianças e para levantar questões sobre o “acolhimento de
europa” num contexto internacional.
M.E. — Durante a montagem do filme Viagem ao Sol tornou-se claro que teríamos que deixar de parte muitos depoimentos interessantes. Tínhamos gravado dezenas de horas de entrevistas com as ex-“crianças da Cáritas”. Assim, e porque eu e o Nikolaus somos ouvintes de podcasts, tivemos a ideia de fazer um a partir deste material. Desenvolvemos rapidamente o conceito de minissérie em 6 episódios, em que cada um exploraria um tema diferente desta acção: o olhar da criança sobre a guerra; o papel do racismo no processo de escolha das crianças por parte das suas famílias de acolhimento em Portugal; a desigualdade económica no nosso país durante o período dos anos 40 e 50; a propaganda da Ditadura sobre esta acção de caridade, bem como o envolvimento de Salazar com a mesma; os traumas psicológicos resultantes dos diferentes processos de desvinculação afectiva; e, por fim, uma reflexão sobre o presente e o futuro da Europa e do mundo através desta história. Também nos interessava aprofundar o contexto político, histórico e social do acolhimento destas crianças através de entrevistas com historiadores, como o Fernando Rosas e a Cláudia Ninhos, activistas, como o Miguel Duarte, o psiquiatra da infância Pedro Strecht e Ingo Koenig, da Embaixada da Áustria.
J.M. — Como ajustaram a seleção das entrevistas ao que necessitavam para narrar os episódios e com que critérios?
N.M.S. — A seleção das entrevistas foi bastante semelhante ao processo da montagem do documentário. Efetivamente – e isto é uma das características determinantes do podcast – adoptámos uma abordagem cinematográfica ao processo de criação, que o distancia da maioria dos podcasts, mais conversacionais. Experimentámos diversas estratégias de construção narrativa, numa primeira fase focando-nos mais em histórias coerentes de personagens únicas, ou em momentos determinantes, mas era importante para nós conseguirmos contextualizar cada cena e cada acção - para tornar a história o mais acessível possível. Assim surgiu a personagem do narrador, que nos ajudou também a quebrar a monotonia das vozes num formato meramente áudio, sem o estímulo das imagens. Do mesmo modo incluímos também as entrevistas. Para além de darem contexto adicional e adicionarem cor ao tapete sonoro, servem também para levar o/a ouvinte connosco no processo de descobrimento – no mesmo processo no qual nós embarcámos durante a produção do documentário.
M.E. — Foi um processo longo e que só se concluiu na montagem. Começámos por seleccionar as entrevistas que nos pareciam mais interessantes para cada um dos episódios e criar uma estrutura que nos parecesse adequada para cada um. Experimentámos também a ideia de acompanhar personagens individuais, mas depois percebemos que o melhor seria uma estrutura mais livre, organizada por temas. A narração surgiu como forma de expressar o nosso ponto de vista sobre a história e criar uma linha de pensamento que unisse os diferentes depoimentos. Diria que a música, bem como os ambientes sonoros de Dídio Pestana, têm também um papel estrutural, nomea-
damente na separação de temas, na criação de ênfases e ritmos.
J.M. — Ao vivo, na sessão de apresentação e escuta, em estreia, dos primeiros episódios, o podcast fomentou um debate muito acutilante sobre o tempo presente que se poderia seguir num spin-off à minissérie de 6 episódios. Não é, tanto, qual será o contributo de um podcast na circulação do próprio filme que vos quero perguntar, mas neste dia de lançamento, com todo o trabalho que desenvolveram e empenhamento, crêem que da vossa dedicação para continuar a serialização em áudio, estruturada, que acompanhe outras obras cinematográficas?
M.E. — Ganhamos muito em ouvir as vozes dos outros, e o podcast e a rádio oferecem-nos essa oportunidade. Interessa-me muito o potencial do formato do podcast por essa razão e pela minha ligação à música, e por isso gostaria de continuar a explorar esse meio, seja a partir de obras cinematográficas ou de outros projectos.
N.M.S. — Creio que este projecto foi um grande passo, não só para o filme encontrar um novo público e para a Kintop explorar outros formatos, mas também para a produção de podcasts em geral e especialmente no contexto português, no qual não se encontram muitos podcasts narrativos. Este processo ajudou-nos a desenvolver uma heurística para expandir documentários e poder assim torná-los mais acessíveis e aprofundar as questões abordadas – e de certo modo ultrapassar as limitações do formato fílmico. Acho que isto – obviamente dependendo do sucesso do podcast, visto que estamos também de certa maneira a criar um mercado nov pode mesmo ser o início de uma série de projectos da Kintop, para expandir sobre as histórias de grande relevância social que visamos contar nos nossos documentários. ��
NOS 30 ANOS DOS CAMINHOS DO CINEMA PORTUGUÊS À 5.ª EDIÇÃO DO FESTIVAL LOS TRABAJOS Y LAS NOCHES
Texto
José Machado
«Ainda sou do tempo» d’o português correto na pronúncia coimbrã: foi visto pela última vez no rio Mondego e morreu com a estação Coimbra-A ao 2.º domingo de 2025. Espanha aposta forte na ferrovía, ou ferrocarril, em bom castelhano, à parte da evolução na mobilidade local. Em Portugal, em vez de expandi-la, destroem-se as linhas, corrompidas, pela corruptela metrobus. Asfaltadas na língua e betonadas até aos dentes: corrupção e clientela do real estate a que chegou a sinalética que é dada a ler ao falante mais exemplar. Coimbra tem dois jornais diários que poderiam cobrir (de 16 a 23 de novembro) o Caminhos do Cinema Português e pôr os seus universitários a escreverem diariamente durante o festival. A imprensa de Lisboa (até o Diário de Notícias que, na edição do último domingo de 2024 celebrou 160 anos, voltou a morrer para os fins-de-semana) não foi cobrir a celebração de três décadas de existência do festival (quando ainda havia comboio para o centro).
Passei dois dias em Coimbra e assisti às lições únicas de Valerie Braddell (Atuar Entre Gerações e Culturas) e de João Rui Guerra da Mata (A Direção de Arte em Cinema Não Existe) que deixaram raízes para futuras edições, a desenvolver na revista.
Cidade espanhola de Logroño, Los Trabajos y Las Noches (de 7 a 14 de dezembro), um festival que partiu de uma livraria, Semilla Negra, e criou uma comunidade especial que pude testemunhar, também reunida no seu último dia, que nos envolveu De relojes y de nubes – una proyección performática en 16mm de Pablo Useros (que estará também em futuras edições da gray-film).
A minha amiga Daniela Urzola (Caimán, n.º 195) termina com uma frase sobre a honestidade dos filmes eleitos e do próprio festival, que advém deste entendimento: antes de indivíduos, somos coletividade. ��
A gray-film ficou alojada uma noite em Coimbra, à convite dos Caminhos do Cinema Português e duas noites em Logroño, por Los Trabajos y Las Noches.
Forty-two years ago, for reasons beyond my comprehension, David Lynch plucked me out of obscurity to star in his first and last big budget movie. He clearly saw something in me that even I didn’t recognize. I owe my entire career, and life really, to his vision.
What I saw in him was an enigmatic and intuitive man with a creative ocean bursting forth inside of him. He was in touch with something the rest of us wish we could get to.
Our friendship blossomed on Blue Velvet and then Twin Peaks and I always found him to be the most authentically alive person I’d ever met.
David was in tune with the universe and his own imagination on a level that seemed to be the best version of human. He was not interested in answers because he understood that questions are the drive that make us who we are. They are our breath.
While the world has lost a remarkable artist, I’ve lost a dear friend who imagined a future for me and allowed me to travel in worlds I could never have conceived on my own.
I can see him now, standing up to greet me in his backyard, with a warm smile and big hug and that Great Plains honk of a voice. We’d talk coffee, the joy of the unexpected, the beauty of the world, and laugh.
His love for me and mine for him came out of the cosmic fate of two people who saw the best things about themselves in each other.
I will miss him more than the limits of my language can tell and my heart can bear. My world is that much fuller because I knew him and that much emptier now that he’s gone.
David, I remain forever changed, and forever your Kale. Thank you for everything.
DAVID LYNCH (1946–2025)
Texto
Kyle MacLachlan
Há quarenta e dois anos, por razões que ultrapassam a minha compreensão, David Lynch tirou-me da obscuridade para protagonizar o seu primeiro e último filme de grande orçamento. Ele viu claramente algo em mim que nem eu reconheci. Devo toda a minha carreira, e na verdade a minha vida, à sua visão.
O que vi nele foi um homem enigmático e intuitivo, com um oceano criativo a explodir dentro dele. Estava em contacto com algo que todos nós gostaríamos de ter alcançado.
A nossa amizade floresceu em Blue Velvet e depois em Twin Peaks, e sempre o achei a pessoa mais autenticamente viva que já conheci.
O David estava em sintonia com o universo e com a sua própria imaginação a um nível que aparentava ser a melhor versão do ser humano. Não estava interessado em respostas porque entendia que as perguntas são o que nos impulsiona a ser quem somos. São a nossa respiração.
Enquanto o mundo perdeu um artista notável, eu perdi um querido amigo que imaginou um futuro para mim e me permitiu viajar por mundos que nunca poderia ter concebido sozinho.
Consigo vê-lo agora, de pé para me cumprimentar no seu quintal, com um sorriso caloroso, um grande abraço e aquela voz, grasnada, das Grandes Planícies americanas. Conversávamos sobre café, sobre a alegria do inesperado, sobre a beleza do mundo, e ríamos.
O amor dele por mim e o meu por ele surgiu do destino cósmico de duas pessoas que viam o melhor de si uma na outra.
Sentirei mais a sua falta do que os limites da minha linguagem podem expressar e do que o meu coração pode suportar. O meu mundo está muito mais preenchido porque o conheci e muito mais esvaziado agora que partiu. David, eu permaneço outro para sempre, e para sempre o teu Kale. Obrigado por tudo.
Texto, das redes sociais do ator, traduzido por José Machado.