A bula da vida

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ACELY G. HOVEL ACQUE I LU S T R AÇÕ E S E O B R A S DA A R T I S TA J U Ç A R A CO S TA

A BULA DA VIDA Uma fábula sobre meditação e medicação


ACELY G. HOVEL ACQUE I LU S T R AÇÕ E S E O B R A S DA A R T I S TA J U Ç A R A CO S TA

A BULA DA VIDA uma fábula sobre meditação e medicação


Copyright © 2013 Acely G. Hovelacque Copyright © 2013 Editora Gutenberg Todos os direitos reservados pela Editora Gutenberg. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

revisão

Lúcia Assumpção imagens

Juçara Costa diagramação

Ricardo Furtado capa

Diogo Droschi (sobre imagem de Juçara Costa)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Hovelacque, Acely G. A Bula da Vida : uma fábula sobre meditação e medicação / Acely G. Hovelacque ; ilustrações e obras da artista Juçara Costa. -- Belo Horizonte: Editora Gutenberg, 2013. ISBN 978-85-8235-098-0 1. Ficção brasileira I. Costa, Juçara. II. Título. 13-10818

CDD-869.93

Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura brasileira 869.93

EDITORA GUTENBERG LTDA. São Paulo Av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, Horsa I, 23º andar, Conj. 2301 . Cerqueira César . 01311-940 . São Paulo . SP . Tel.: (55 11) 3034 4468 Televendas: 0800 283 13 22 www.editoragutenberg.com.br

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Dedico este livro aos meus mestres, em especial ao médico Dr. Célio de Castro que, ao ensinar a Arte de mediCar, despertava a consciência que nos qualifica como humanos e ao monge Zen, Tokuda San, que, ao ensinar a Arte de medıTar, medicava as visões estreitas que adoecem as realidades


“Você é seu próprio mestre: as coisas dependem de você. Sou um instrutor e tal como um médico, posso lhe dar o medicamento adequado, mas você terá de tomá-lo por si e cuidar de si próprio.” B U DA S H Ã K YA M U N I



Esta história aqui contada foi meu avô que me deu. É uma fábula do outono, estação das sementes da felicidade. Colori a história com as nuances do meu tempo. Ela não desbotará enquanto quem a ouvir ou contar fizer o mesmo.


N

aquele entardecer na clínica tudo parecia normal, exceto por um magnífico arco-íris que adentrava todas as varandas. A faxineira, de braços fortes como um carvalho, encerrava seu expediente, verificando as salas de espera e os consultórios, onde haviam terminado os atendimentos. Tinha aprendido os nomes com certo custo, e gostava de repetir mentalmente: sala de fisioterapia, salas de terapias, salas de acupuntura e massagens, sala de meditação e terapia de grupos, consultórios de pediatria e ludoterapia, consultórios de psiquiatria, homeopatia e clínica médica. Achava bonita a palavra clínica, talvez porque o Doutor fosse clínico. Lembrando-se dele, viu a porta entreaberta e logo foi levar uma última chaleira de chá. Entrou de mansinho. Era muito cuidadosa com os objetos daquela bela sala, orgulhava-se de ter mãos jeitosas que, apesar da força que tinha nos braços, raramente quebravam ou estragavam as coisas. Verificando se tudo estava limpo e no lugar, viu o médico, pensativo, sentado na poltrona laranja. Ia deixar o chá e sair como entrou. Mas o médico lhe deu boa noite com um sorriso de corpo inteiro. Ela respondeu olhando nos olhos dele. Seguiu para casa satisfeita consigo mesma – depois de tudo que passara na vida, seu trabalho era bem feito e reconhecido. Entretanto, o médico, que também era reconhecido e experiente na sua profissão, não estava assim tão satisfeito. Pensava que após muitos anos, imerso na profissão, um novo ciclo de sua vida estava se aproximando. Sentia-se contente com os resultados obtidos em seu ofício, mesmo sendo menores do que, na onipotência da juventude, aspirara. 9


Temia essa transformação, mas também se animava com as possibilidades de se reinventar, de descobrir novas plumas para voos nunca antes imaginados. Estava ciente de que se desapegar de sua principal atividade não seria fácil. Seus pacientes haviam lhe mostrado que, quanto mais um papel na existência é realizador, mais difícil se torna desidentificar-se dele e de tudo que o cerca. Assim, de dia preparava serenamente sua sucessão. Mas, na calada da noite, quando estava só no silêncio das salas de sua clínica, temores e pensamentos o visitavam. As paredes da sala então pareciam sussurrar-lhe que a mais insólita das mudanças ainda estava por vir. A perda gradativa da vitalidade física e mental, de referências e de contemporâneos só iria se agravar. Olhava de soslaio o calendário e suas especulações sobre o futuro: − Nunca se sabe a quem está reservado o privilégio do envelhecer suave e da morte sem torturas. Alguns nascem e morrem tranquilos como se tivessem um visto no passaporte da existência, enquanto outros lutam como imigrantes ilegais, para alcançar a outra margem − pensou. Havia observado esse trajeto das pessoas centenas de vezes. Sempre um acontecimento único, comovente. Sabia também que sua experiência como médico não o tornava imune às angústias da travessia. Quando se aventurava nesses devaneios, suas mãos ainda firmes e precisas tremiam levemente e suas rugas da testa franziam. Sua respiração tornava-se mais curta. Mas logo a opressão era desarmada por seu aparelho de pressão. Sua conhecida presença o remetia a alguma frase oportuna, capaz de driblar aquelas aflições circulares. − Olha o coração, meu velho. É melhor se 10


acalmar porque a esta hora, neste prédio, para te acudir, só tem o porteiro! E, depois de tanta prática de relaxamento, não vá morrer estressado! − sussurrava-lhe o aparelho de pressão. Entretinha-se, então, sorvendo, vagarosamente, uma xícara de chá de flores de laranjeira. Deliciava-se agradecido, buscando novamente sentir o perfume da flor da equanimidade. Também sua assistente principal, colega brilhante de doce sorriso, vendo a luz acesa, sempre vinha em seu socorro. Sem dúvida, esta médica era especial. Ele que havia treinado tantos jovens reconhecia nela uma vocação legítima e uma capacidade inata para compreender o que se passava com o outro. A moça franzina, de temperamento tão diverso do dele, possuía alguns dons raros e pouco visíveis aos primeiros contatos. E, a despeito de suas muitas titulações, foram outras afinidades inexplicáveis entre eles que a tornaram, apesar de sua relativa juventude, uma colaboradora imprescindível, obviamente alvo de inveja. Muitas vezes, como naquela noite, de tão absorto, era pego de surpresa, só se dando conta da presença dela quando sentia sua mão tocando-lhe o ombro. − E aí, posso lhe fazer companhia? O médico respondeu como de 11


costume, servindo-lhe um chá. O silêncio entre eles era sossegado e sem atropelos. Mas desta vez ele, após escassos minutos, disse em tom baixo, cúmplice: − Estou aqui confabulando com a transformação que bate à minha porta, exigindo recolhimento e um novo aprofundamento na espiral da minha essência. Sonho com outro eu, legítimo sucessor de mim mesmo. Entrevejo trilhas ainda encobertas pela neblina densa do próximo amanhecer. A musa do recomeçar me corteja com inspirações inusitadas. E a liberdade, ainda que vertiginosa, tremeluzente, me arrebata para nova direção. A assistente comovida com seu desabafo tão poético esperou alguns goles de chá. − E o que o impede de aceitar este convite? Os clientes? O senhor sempre cumpriu sua missão. Não teria o direito de buscar o que necessita, enquanto pode? − Creio que esta transição deve ser feita imersa em gratidão. E eu recebi da Medicina muito mais que meu quinhão. Devo, ainda, algumas parcelas de contribuição − respondeu o médico, que era ainda um homem bem posto, de voz firme e serena. − O que podemos pensar da sua 12


fala? Humildade, depois de ter feito tanto? Ou vaidade? − refletiu a assistente, com toda sua prática de fazer perguntas nas anamneses. − Não. Acho que no meu caso é pura preguiça. Preguiça ativa, um dos males do século, que acomete os atarefados que delegam, sempre para depois, o desejo essencial. Nunca se dedicam ao que é perene − respondeu o médico, recostando-se mais na poltrona. A colega continuou ouvindo-o sem pressa, sabendo que talvez ele falasse só para seus botões. − Nesta altura ainda continuo sobrecarregado com tarefas cotidianas em detrimento das minhas verdadeiras prioridades. Ah, os hábitos, os chamados do mundo... O tempo urge sem que eu consiga organizar meu legado profissional. Como viabilizar a entrega do que me foi dado por meus mestres para as outras gerações? − Mas o senhor não faz isto há tanto tempo, quando repassa tão generosamente a visão holística da Medicina aos seus inúmeros alunos, colegas e aos pacientes? Este não é o seu maior tesouro? − perguntou a assistente, tentando afastar dele as autoacusações. − Sempre achei que a transmissão direta, método com o qual também fui ensinado, fosse um bom caminho. Mas este período está se encerrando na minha vida. Como multiplicar e partilhar o que aprendi em quarenta anos? − questionava-se sem esperar respostas. − As fagulhas de consciência que consegui captar são a base do meu trabalho. Mas, como semear esses conhecimentos que não cabem em palavras? Como posso abandonar o barco da Medicina vendo uma das vigas mestras do ato terapêutico durante a consulta, a relação médico e paciente, navegar nos oceanos da falta de tempo e do excesso de exames, máquinas, prescrições, encaminhamentos? Sua interlocutora balançou a cabeça, dizendo: − Concordo parcialmente. Por que, afinal, não fizemos, ou melhor, não temos feito tudo que 13


está ao nosso alcance para denunciar isso? − O problema é como levar esse pensamento aos jovens médicos, formados sob a ditadura da estatística e do protocolo − respondeu o médico bem devagar, enquanto, com olhar vago, sua mente passeava no passado, nas inúmeras pesquisas que tentara para integrar um pouco os conhecimentos disponíveis da Medicina Ocidental e Oriental. Era época em que tudo no mundo era mais difícil e distante. E ele viajava, com esforço e entusiasmo, para o outro lado do mundo, sem cartão de crédito e com dólares dentro da roupa, para desvendar uma visão mais ampla da saúde. Foi um período maravilhoso, com comunicação por cartas e encontros com grandes aliados e mestres. Mas também, de muitas dúvidas e solidão. Só mesmo os resultados alcançados e o retorno dos pacientes o fizeram prosseguir. Tentando retornar ao presente, o médico limpou e colocou os óculos e prosseguiu sua fala, com o vigor peculiar e as metáforas que tanto apreciava: − É preciso evitar que a sabedoria se afogue nos mares revoltos da comunicação superficial, onde ondas de informação às vezes levianas são qualificadas como conhecimentos. Temos que melhor utilizar os meios de comunicação para salvaguardar a visão em saúde, que busca responder às múltiplas dimensões do fragmentado homem atual. Então a assistente, que permanecia atenta apesar de conhecer bem todos aqueles argumentos, o lembrou de que toda sua equipe era cada vez mais requisitada para palestras de Medicina Integrativa, nos mais variados segmentos da sociedade. E que com certeza era um bom progresso na direção almejada por eles. − Ah! Sim, é verdade. Estes convites, notícias e publicações, inclusive nas universidades, 14


mostram que a sociedade e as empresas começaram a se interessar pelos conceitos da visão da saúde holística. − Cada vez mais vemos surgir novas abordagens e nomes como Medicina Integrativa, Quântica e tantos outros que buscam a saúde plena que vai muito além da saúde física − disse a médica, sendo logo interrompida pelo colega. − Mas não vamos ter ilusões sobre os nobres motivos de tal atração. O foco é econômico − contrapôs o médico, levemente indignado. − O alerta de que algo deve ser revisto, talvez só possa ser ouvido ao atingir as questões econômicas. Esta não é a única lente usada na nossa sociedade nos últimos anos para qualquer assunto? − perguntou a médica, com genuína compaixão por aquela cegueira coletiva. − Claro, claro. Como o preço da prática médica intervencionista está caro demais, talvez algo mude de fato. Tratar doenças e não doentes revela, cada vez mais, a distorção de prioridades. Combater as doenças é heroico, mas está relacionado com a guerra. A saúde, que detém a sabedoria da paz, necessita cultivo e estímulo à força da vida. E o que de fato a Medicina pode fazer sem a força da vida? − De fato, pouco. Mas paz e saúde não oferecem o tipo de notícias ou dinheiro fácil que a voracidade dos tempos atuais deseja − observou a assistente. Após alguns minutos, o médico concluiu com ares de esperança: − Mas isto não vai durar para sempre. Sem dúvida há sinais de mudanças. Muitas técnicas que eram chamadas desdenhosamente de alternativas, agora são respeitadas como métodos complementares. − Tem sido possível até conversar sobre níveis de saúde e consciência com colegas especialistas − recordou a médica que, àquela hora da noite, ainda estava composta e bem penteada. 15


− Talvez um sorrisinho amarelo aqui, um deboche ali e a forte oposição dos laboratórios. Mas o funil econômico e as doenças crônicas tornaram óbvia a necessidade de mudança de paradigma − insistiu o médico com ares de luta. − A revolução está próxima, é só uma questão de tempo! − Parabéns! Esta fala o senhor tirou do baú dos anos sessenta − comentou rindo a assistente, com humor e intimidade que ela nos últimos tempos se permitia. Mas que às vezes estranhava. O fato é que, à medida que os anos se passavam, estava assim, mais alegre e espontânea. Até o marido, seu namorado desde o tempo da faculdade, comentara que ela, no convívio daquela equipe, mudara muito. E ele tinha razão, porque suas exigências haviam sido amaciadas por uma sensibilidade delicada. Não havia dúvidas de que desabrochara uma leveza que, curiosamente, lhe permitia mergulhar sem receio em um convívio mais humanizado e com menos máscaras. Quando ela era pequena, fora uma criança surpreendente e radiante. Depois, ao descobrir-se diferente, escondera sonhos e dons debaixo de sua inteligência privilegiada. E assim, tornara-se uma pessoa estudiosa, reservada e quase cerimoniosa. Mas alguns 16


anos de convívio naquela clínica lhe trouxeram de volta sua intuição e sua sensibilidade. A expressão delas, somadas às suas habilidades intelectuais, lhe traziam uma deliciosa sensação de liberdade e de amplitude de si mesma. O médico, que também apreciava as mudanças de sua assistente, deu uma gargalhada gostosa, em resposta ao seu comentário jocoso. Depois de uma pausa, cerrou as sobrancelhas brancas e disse muito pensativo: − Querida, obrigado pela atenção. Talvez toda esta conversa se resuma nas angústias da mudança, ou ilusões da minha importância... Outra roupagem do meu apego. Só um medo imenso de nada ter feito de significativo com a vida. − Vamos parar por aqui. Hora de descansar − deliberou a médica, levantando-se sem pressa. − O cansaço está me deixando pessimista − confessou o médico, bocejando. − Preciso ir para casa jantar. − Afinal, médico também janta − brincou a colega, satisfeita com o resultado da conversa. − Se for viúvo, janta pratos repetidos e condimentados pelas saudades − lamuriou o médico. A assistente despediu-se com um gesto carinhoso e saiu. Conhecia bem os hábitos do médico: ele, assim como ela, gostava de encerrar seu dia de trabalho sozinho e com uma meditação. Quando a jovem colega fechou suavemente a porta, o médico esfregou as mãos e disse com um sorriso matreiro: − Antes de ir embora, ainda vamos cuidar um pouco do último paciente. 17


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