demitiu em 2009. O TRADUTOR: António Guerreiro é crítico literário e cronista no jornal Público (LisO TRADUTOR: António Guerreiro é crítico boa) e professor convidado da Faculdade literário e cronista no jornal Público (Lisde Belas-Artes da Universidade de Lisboa. boa) e professor convidado da Faculdade A literatura contemporânea, a arte, a esde Belas-Artes da Universidade de Lisboa. tética e as questões atuais da cultura de A literatura contemporânea, a arte, a esmassas têm sido as principais matérias do tética e as questões atuais da cultura de seu trabalho ensaístico. Walter Benjamin e massas têm sido as principais matérias do Aby Warburg são os dois principais autores seu trabalho ensaístico. Walter Benjamin sobre os quais tem trabalhado nos últimos e Aby Warburg são os dois principais autoanos. De Giorgio Agamben, traduziu A cores sobre os quais tem trabalhado nos últimunidade que vem e Homo Sacer (ambos mos anos. De Agamben, traduziu A publicados emGiorgio Portugal pela Editorial Precomunidade que vem e Homo Sacer (ambos sença, em 1993 e 1998, respectivamente). publicados em Portugal pela Editorial Presença, em 1993 e 1998, respectivamente).
“Devemos ainda medir todas as consequências dessa figura da potência que, dando-se a si mesma, se salva e acresce no ato. Ela nos obriga a repensar radicalmente não apenas a relação entre a potência e o ato, entre o possível e o real, mas também a considerar de uma nova maneira, na estética, o estatuto do ato de criação e da obra, e, na política, o problema da conservação do poder constituinte no poder constituído. Mas é toda a compreensão do vivente que deve ser reequacionada, se é verdade que a vida deve ser pensada como uma potência que incessantemente excede suas formas e suas realizações. E talvez só nessa perspectiva possamos enfim compreender a natureza do pensamento, se é verdade, como Aristóteles não se cansa de repetir, que é a potência que define a sua essência.”
GIORGIO
AGAMBEN A potência do pensamento Ensaios e conferências
ISBN 978-85-8217-345-9
9 788582 173459
Capa Potencia do Pensamento1812.indd 1-5
FILOAGAMBEN
GIORGIO AGAMBEN A potência do pensamento Ensaios e conferências
GIORGIO AGAMBEN nasceu em 1942, GIORGIO AGAMBEN nasceu em 1942, em em Roma, e laureou-se em Direito, em Roma, e laureou-se em Direito, em 1965, 1965, com uma tese sobre Simone Weil. com uma tese sobre Simone Weil. Em 1966, Em 1966, do participou primeiro participou primeiro do Seminário deSemiThor, nário de Thor, que Heidegger realizou a que Heidegger realizou a convite de René convite de René Entre e 1975, Char. Entre 1974Char. e 1975, fez 1974 pesquisas em fez pesquisas em Londres na Warburg Londres na Warburg Institute Library. Entre Institute Library.Entre as1982 e 1993, assumiu a1982 tarefaede1993, apresensumiu a tarefa de apresentar ao público tar ao público italiano uma edição completa italiano uma ediçãoBenjamin completapela daseditora obras das obras de Walter de Walter pelaprocesso, editora Einaudi, Einaudi, deBenjamin Turim. Nesse acabou de Turim. Nesse processo, acabou desdescobrindo textos inéditos de Benjamin cobrindo textos inéditos de Benjamin na na biblioteca de Paris. Por discordâncias com a editora, abandonou o projeto. Entre biblioteca de Paris. Por discordâncias com 1986 e 1993, foi diretor de programa do a editora, abandonou o projeto. Entre 1986 Colégio Internacional de Filosofia de Pae 1993, foi diretor de programa do Coléris. A partir de 1988, passou ade ensinar gio Internacional de Filosofia Paris.na A Itália, de primeiro em Macerata, depois em partir 1988, passou a ensinar na Itália, Verona e, por fim, no Istituto Universitario primeiro em Macerata, depois em Verodi di Venezia de onde na Architettura e, por fim, no Istituto (IUAV), Universitario di se demitiu em 2009. Architettura (IUAV) de Veneza, de onde se
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Tradução António Guerreiro
Publicado na Itália em 2005, A potência do pensamento é uma coletânea de ensaios e conferências escritas por Giorgio Agamben ao longo de um período de quase trinta anos. Entre os textos aqui reunidos, o leitor encontrará desde o ensaio “Aby Warburg e a ciência sem nome”, de 1975 – estreitamente ligado às pesquisas, desenvolvidas por Agamben na biblioteca do Warburg Institute de Londres, que darão origem a seu segundo livro, Estâncias, de 1977 –, até o ensaio “A obra do homem”, de 2004, que antecipa as investigações sobre o conceito de inoperosidade, que domina as reflexões dos dois tomos do último volume de Homo Sacer: “Altíssima pobreza”, de 2011, e “O uso dos corpos”, de 2014. Reunidos pelo autor em três núcleos de preocupações centrais que acompanham a sua obra (Linguagem, História e Potência), estes ensaios e conferências oferecem talvez o mais extenso e completo panorama da obra deste filósofo italiano que está entre os mais importantes do nosso tempo. A potência do pensamento é também o livro de Agamben que permite, àqueles que acompanham o seu percurso, entender como seu pensamento se constrói num diálogo permanente com autores tanto da filosofia antiga (como Platão e Aristóteles), quanto da filosofia contemporânea (como Benjamin e Heidegger, mas também Foucault, Deleuze e Derrida), assim como da linguística e da antropologia do século XX (como Jean-Claude Milner e Furio Jesi). Tais autores são não só objeto destes ensaios, mas, sobretudo, “amigos” deste pensamento. Cláudio Oliveira
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FILOAGAMBEN
Giorgio Agamben A potência do pensamento Ensaios e conferências
Tr a d u ç ã o
António Guerreiro Revisão da tradução
Cláudio Oliveira
Copyright © 2005 Neri Pozza Editore, Vicenza Copyright © 2015 Autêntica Editora Título original: La potenza del pensiero. Saggi e conferenze Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora. coordenador da coleção filô
revisão da tradução
Gilson Iannini
Cláudio Oliveira
coordenador da série filô/agamben
revisão
Cláudio Oliveira conselho editorial Gilson Iannini (UFOP); Barbara Cassin (Paris); Cláudio Oliveira (UFF); Danilo Marcondes (PUC-Rio); Ernani Chaves (UFPA); Guilherme Castelo Branco (UFRJ); João Carlos Salles (UFBA); Monique DavidMénard (Paris); Olímpio Pimenta (UFOP); Pedro Süssekind (UFF); Rogério Lopes (UFMG); Rodrigo Duarte (UFMG); Romero Alves Freitas (UFOP); Slavoj Žižek (Liubliana); Vladimir Safatle (USP) editora responsável
Aline Sobreira Eduardo Soares projeto gráfico
Diogo Droschi capa
Alberto Bittencourt (sobre foto de Christina Bocayuva, realizada durante conferência de Giorgio Agamben na Universidade Federal Fluminense, em setembro de 2005) diagramação
Rejane Dias
Christiane Morais
editora assistente
Cecília Martins
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Agamben, Giorgio A potência do pensamento : ensaios e conferências / Giorgio Agamben ; tradução de António Guerreiro -- Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2015. -- (Filô Agamben) Título original: La potenza del pensiero : saggi e conferenze Bibliografia. ISBN 978-85-8217-345-9 1. Antropologia filosófica 2. Ensaios 3. Poder (Filosofia) 4. Teoria do conhecimento I. Título. II. Série. 14-08917 CDD-128 Índices para catálogo sistemático: 1. Antropologia filosófica 128
Belo Horizonte Rua Aimorés, 981, 8º andar . Funcionários 30140-071 . Belo Horizonte . MG Tel.: (55 31) 3214 5700 Televendas: 0800 283 13 22 www.grupoautentica.com.br
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Sumário
I. Linguagem
9. 23. 33. 51. 71. 83. 97.
A coisa mesma A ideia da linguagem Língua e história Filosofia e linguística Vocação e voz O Eu, o olho, a voz Sobre a impossibilidade de dizer Eu
II. História 111. Aby Warburg e a ciência sem nome 133. Tradição do imemorável 147. *Se. O Absoluto e o Ereignis 173. A origem e o esquecimento 185. Walter Benjamin e o demônico 211. Kommerell, ou do gesto 223. O Messias e o soberano
III. Potência 243. A potência do pensamento 255. A paixão da facticidade 281. Heidegger e o nazismo 291. A imagem imemorial 301. Pardes 319. A obra do homem 331. A imanência absoluta 359. Origem dos textos 361. Coleção Filô 363. Série Filô Agamben
I. Linguagem
GIORGIO AGAMBEN A POTÊNCIA DO PENSAMENTO – ENSAIOS E CONFERÊNCIAS
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A coisa mesma
A Jacques Derrida e em memória de Giorgio Pasquali
A expressão “a coisa mesma”, to pragma auto, surge no início da chamada digressão filosófica da Carta VII de Platão – um texto cuja importância para a história da filosofia ocidental está ainda longe de ter sido devidamente avaliada. Desde que Bentley lançou a suspeita de que era falsa toda a epistolografia antiga, e Meiners, em 1783, e depois Karsten e Ast as declararam inautênticas, as cartas de Platão, que tinham sempre sido consideradas parte integrante de sua obra, foram pouco a pouco expulsas da historiografia filosófica, precisamente no momento em que esta era mais fervorosa e ativa. Quando, em nosso século, a tendência começou a se inverter, e os críticos, cada vez mais numerosos e com mais autoridade, reivindicaram a autenticidade de tais cartas (agora geralmente reconhecida, pelo menos no que diz respeito àquela que aqui nos interessa), os filósofos e estudiosos que voltaram a se ocupar delas tiveram de ter em conta o isolamento a que tinham sido votadas durante mais de um século. O que entretanto se tinha perdido era a relação viva entre o texto e a tradição filosófica posterior, de tal modo que, por exemplo, a Carta VII, com seu denso excursus filosófico, apresentava-se agora como um bloco montanhoso árduo e isolado, a cuja penetração se interpunham obstáculos quase insuperáveis. Também é verdade, naturalmente, que o longo isolamento a tinha transformado, como fez o mar ao corpo de Alonso na canção de Ariel, em algo rico e estranho, que possibilitava 9
um confronto com um frescor que talvez nenhum outro dos grandes textos de Platão permitisse. O cenário da carta é conhecido: Platão, já velho – com 75 anos –, evocou aos amigos de Dião seus encontros com Dionísio e a aventura fracassada de suas tentativas políticas sicilianas. No ponto que aqui nos interessa, ele conta sua terceira estada na Sicília, quando, tendo chegado novamente a Siracusa, atraído pelas insistentes pressões do tirano, decide em primeiro lugar pôr à prova a sinceridade das asserções de Dionísio quanto a seu desejo de se tornar filósofo: Há um método excelente de obter essa prova – ou melhor, um método que se adapta perfeitamente aos tiranos, sobretudo àqueles que estão cheios de um saber de segunda mão: e de repente, mal cheguei, apercebi-me de que essa era precisamente a condição de Dionísio (340 b 3-7).
A homens como esses – prossegue ele – é preciso mostrar imediatamente o que é toda a coisa (oti esti pan to pragma), quantos e quais esforços exige. Então, se quem escuta é verdadeiramente filósofo e está à altura da coisa, pensará que ouviu falar de um caminho maravilhoso, que se deve percorrer sem demoras, e que não pode viver de outra maneira. Aqueles, pelo contrário, que não são verdadeiramente filósofos, mas só têm um verniz de filosofia, como quem tem o corpo bronzeado pelo sol, vendo o empenho que a coisa requer, pensam que é demasiado difícil, ou mesmo impossível, e se convencem de que já sabem bastante e de que não têm necessidade de mais. Assim, disse a Dionísio aquilo que disse, mas não lhe expliquei tudo nem ele me perguntou. Tinha a pretensão, de fato, de que já sabia muita coisa, até mesmo as mais importantes, de que as dominava suficientemente, por tê-las escutado de outros. Mais tarde, segundo ouvi dizer, elaborou também um escrito em torno do que tinha ouvido, apresentando-o como obra sua e não como um discurso que ouviu de mim. Disso não sei nada. Mas aqueles que o fizeram não têm nem sequer conhecimento de si mesmos... Isso, porém, posso dizê-lo de todos aqueles que o escreveram e escreverão no futuro: aqueles que afirmam saber qual é o objeto de minhas preocupações [peri hon ego spoudazo], seja por tê-lo ouvido de mim ou de outros, seja por tê-lo descoberto sozinho: pois 10
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bem, não é possível, segundo penso, que tenham compreendido, da coisa, o que quer que seja (341 a 7-c 4).
É nesse ponto que comparece a expressão to pragma auto, a coisa mesma – uma formulação que continuou a ser tão determinante para indicar a coisa do pensamento e a tarefa própria da filosofia que vamos voltar a encontrá-la mais de dois mil anos depois, como uma palavra de ordem que passou de boca em boca, em Kant, em Hegel, em Husserl, em Heidegger: Sobre essa coisa não existe nenhum escrito meu nem jamais poderá existir. Não é, de fato, de modo algum dizível, como as outras disciplinas [mathemata], mas depois de muito tempo em torno da coisa mesma [peri to pragma auto] e depois de muita convivência, de repente, como a luz vinda de uma centelha, ela nasce na alma e se alimenta a si mesma [auto heauto ede trephei] (341 c 4-d 2).
Essa passagem foi citada muitas vezes em apoio das interpretações esotéricas de Platão e como documento irrefutável da existência de doutrinas não escritas: os diálogos que nossa cultura transmitiu durante séculos como uma venerável herança não diriam respeito àquilo de que Platão se ocupava seriamente, que teria sido reservado a uma tradição unicamente oral! Interessa-nos aqui menos ter uma posição acerca desse problema, certamente importante, do que tentar interrogar o que é aquela “coisa mesma” a que se entrega o pensamento de Platão e que Dionísio presumia sem razão ter compreendido. O que é a coisa do pensamento? Uma resposta a essa pergunta só pode ser dada por uma leitura atenta da passagem seguinte, que Platão define como “um conto e uma divagação [mythos kai planos]” (344 d 3) e, ao mesmo tempo, como “um discurso verdadeiro, que foi exposto por mim várias vezes, no passado, mas que me parece ser necessário ainda repetir” (342 a 3-7). É com a interpretação desse “mito extravagante” que se deve confrontar o pensamento que queira chegar ao esclarecimento de sua “coisa”. Experimentemos então lê-la: Para cada um dos seres, existem três coisas necessárias para que haja ciência; em quarto lugar está a própria ciência, e em quinto lugar devemos colocar aquilo mesmo que é cognoscível e GIORGIO AGAMBEN A POTÊNCIA DO PENSAMENTO – ENSAIOS E CONFERÊNCIAS
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que é verdadeiramente. A primeira coisa é o nome, a segunda é o discurso que define [logos], a terceira é a imagem [eidolon], a quarta é a ciência. Para entender o que estou dizendo, basta tomar um exemplo que se aplica a todos os casos. Há aquilo a que chamamos “círculo” [kyklos estin ti legomenon], cujo nome é precisamente aquele que acabo de pronunciar; a segunda coisa é seu logos, composto de nomes e de verbos: “aquilo que em cada ponto está à mesma distância dos extremos e do centro”: eis o logos do que chamamos esfera, círculo ou circunferência. A terceira coisa é o que se desenha e se apaga, se forma com o torno e se destrói, mas nada disso afeta o círculo em si [autos ho kyklos, aqui exemplo da coisa mesma], ao qual todas essas coisas se referem, porque é diferente delas. A quarta é o conhecimento e o nous e a opinião verdadeira sobre essas coisas; e tudo isso deve ser pensado como uma única coisa, na medida em que não reside nas vozes [en phonais] nem nas figuras corpóreas [en somaton schemasin], mas nas almas [en psychais]; pelo que é claro que isso é diferente da natureza do círculo em si e das três coisas de que falamos. Desses quatro elementos, o mais próximo do quinto por afinidade e semelhança é o nous, os outros estão mais afastados. O mesmo é válido para a linha reta e para a curva e para a cor, para o bem e o belo e o justo, e para cada corpo fabricado ou natural, para o fogo e a água, e para todas as outras coisas desse tipo, para cada ser vivo e para o ethos na alma, e para todas as produções [poiemata] e paixões [pathemata]. Se não apreendermos, em cada coisa, os quatro primeiros elementos, nunca poderemos ter um saber completo do quinto. Além disso, os primeiros quatro manifestam tanto a qualidade [to poion ti] como o ser de cada coisa, através da fragilidade da linguagem [dia to ton logon asthenes]. Por esse motivo, ninguém com bom senso ousará confiar seus pensamentos à linguagem, tanto mais que se trata de um discurso imóvel, como o escrito com as letras (342 a 8-343 a 3).
Paremos um instante para ganhar fôlego. Perante esse extraordinário excursus, que constitui a última e mais explícita exposição da teoria das ideias, podemos calcular o dano que causou na historiografia filosófica a suspeita de falsidade lançada no século XIX sobre as cartas de Platão. Não é minha intenção empreender aqui a escalada de tão impenetrável montanha. Mas é ainda assim possível tentar, por ora, alcançar uma primeira base nos declives, para 12
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experimentar as dificuldades da ascensão e para situá-la em relação aos relevos circundantes. Uma primeira consideração que podemos fazer (e que já foi feita, entre outros, por Pasquali) diz respeito ao estatuto de indizibilidade que a Carta VII, segundo a leitura esotérica de Platão, atribuiria à coisa mesma. Esse estatuto deve ser moderado na medida em que do contexto resulta claramente que a coisa mesma não é algo que transcende absolutamente a linguagem e nada tem que ver com ela. Platão afirma do modo mais explícito que “se não apreendermos os primeiros quatro elementos” (que compreendem, recordemos, nome e logos), nunca poderemos conhecer completamente o quinto. Em outra passagem importante da carta, ele escreverá que o conhecimento da coisa mesma se acende imediatamente “riscando, uns nos outros, os nomes, os logoi, as visões, as sensações, e pondo-os à prova em refutações benévolas e em discussões conduzidas sem inveja” (344 b 4-7). Essas inequívocas afirmações acabam por ser, de resto, perfeitamente coerentes com a estreitíssima relação que os diálogos platônicos instituem entre ideias e linguagem. Quando Sócrates, no Fédon, expõe a gênese da teoria das ideias, afirma: “Parece-me que tenho de procurar refúgio nos logoi, para encontrar neles a verdade dos seres” (99 e 4-6); em outro lugar, ele apresenta a misologia como o pior dos males (89 d 2), e o desaparecimento da linguagem como a própria perda da filosofia (Soph., 260 a 6-7), enquanto, no Parmênides, as ideias são definidas como “o que no mais alto grau se pode apreender com o logos” (135 e 3). E Aristóteles, em sua reconstrução histórica do pensamento platônico, no início da Metafísica, não afirma porventura que a teoria das ideias tinha nascido de uma skepsis en tois logois, de uma busca na linguagem (987 b 33)? A coisa mesma tem portanto na linguagem seu lugar eminente, ainda que seguramente a linguagem não seja adequada a ela, por causa – diz Platão – de sua fragilidade. Poder-se-ia dizer, usando um aparente paradoxo, que a coisa mesma é o que, mesmo transcendendo de algum modo a linguagem, só é, todavia, possível na linguagem e em virtude da linguagem: a coisa da linguagem, portanto. Quando Platão diz que aquilo que é o objeto de seu pensamento não é de algum modo dizível como os outros mathemata, convirá pôr o acento na última palavra: ela não é dizível do mesmo modo que as outras GIORGIO AGAMBEN A POTÊNCIA DO PENSAMENTO – ENSAIOS E CONFERÊNCIAS
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disciplinas, mas nem por isso é simplesmente indizível. Como Platão não se cansa de repetir (341 e 1-5), são de ordem ética e não meramente lógica as razões que aconselham a confiar à palavra escrita a coisa mesma. A mística platônica – se tal mística existe – é, como toda mística autêntica, profundamente implicada nos logoi. Feita essa consideração preliminar, passemos a examinar mais de perto a lista contida na digressão. A identificação dos primeiros quatro membros não põe grandes dificuldades: o nome, o discurso de definição, a imagem (que indica aqui o objeto sensível) e, por fim, o conhecimento que se realiza através deles. Onoma, o nome, é, nos termos modernos, que são, aliás, os mesmos da lógica estoica, o significante; o logos é o significado ou a referência virtual; a imagem é o denotado ou a referência atual. Esses termos nos são familiares, ainda que não devamos esquecer que é só com a sofística e com Platão que tem início a reflexão sobre a linguagem que levará mais tarde às precisas construções lógicogramaticais da Stoa e das escolas helenísticas. Como no livro X das Leis ou na última parte do Sofista, Platão expõe aqui uma teoria da significação linguística em suas relações com o conhecimento. A dificuldade começa, como é natural, com o quinto, que introduz na teoria do significado, como nós a entendemos, um elemento novo. Releia-se esta passagem: “Para cada um dos seres existem três coisas necessárias para que haja ciência; em quarto lugar está a própria ciência, e em quinto lugar devemos colocar o cognoscível e que é verdadeiramente”. Como quinto parece que temos de entender o próprio ser de onde o discurso parte dizendo: “Para cada um dos seres existem três coisas...”. A coisa mesma seria então simplesmente a coisa que é objeto do conhecimento, o que tem como consequência a valorização da interpretação do platonismo (já presente em Aristóteles), que vê na ideia uma espécie de inútil duplicado da coisa. Além disso, a enumeração acaba por ser circular, porque se coloca em quinto lugar o que é na verdade o primeiro a ser nomeado como o pressuposto de onde nasce todo o discurso. Aqui pode talvez nos servir de apoio aquela atenção filológica aos pormenores, nos quais, como se diz, o bom Deus gosta de se esconder. O texto grego que lemos nas edições modernas (a de Burnet, que é um pouco o exemplo de todas as edições posteriores, mas também uma 14
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mais recente, de Souilhé) diz nesse ponto: pempton d’auto tithenai dei ho de gnoston te kai alethos estin on, “em quinto lugar devemos pôr o mesmo que é cognoscível e que é verdadeiramente” (342 a-b). Mas os dois códices principais em que ambos os estudiosos baseiam suas edições, isto é, o Parisinus graecus 1807 e o Vaticanus graecus I, apresentam uma lição diferente, que em vez de dei ho (“deve-se... que”) tem dio (“pelo qual”). Restituindo a lição dos códices, ou melhor, escrevendo di’ho, a tradução é: “Quinto [é necessário] colocar o mesmo pelo [através do] qual [cada um dos seres] é cognoscível e verdadeiro”.1 Na margem dessa lição, uma mão do século XII tinha anotado, como emenda ou, pelo contrário, como variante, aquele dei ho a que se ativeram os editores modernos. Mas o códice de que Marsílio Ficino se serviu para sua tradução latina das obras de Platão trazia ainda a lição dio; de fato, Ficino traduz: “Quintum vero oportet ipsum ponere quo quid est cognoscibile, id est quod agnosci potest, atque vere existit” [Em quinto lugar, na verdade, é necessário colocar isso mesmo pelo qual algo é cognoscível – isto é, o que pode ser conhecido – e verdadeiramente existe]. O que muda, o que nos traz de novo essa restituição da lição original dos códices? Essencialmente isto: a coisa mesma já não é simplesmente o ser em sua obscuridade, como objeto que é o pressuposto da linguagem e do processo cognitivo, mas auto di’ ho gnoston estin, isto é, aquilo pelo qual ele é cognoscível, sua própria cognoscibilidade e verdade. A variante anotada à margem, seguida pelos editores modernos, ainda que nos possa desviar, não é, porém, errônea: a mão que a anotou (e temos razões para considerar que não se tratava de uma mão inexperiente) estava seguramente preocupada com o risco de a própria cognoscibilidade – a ideia – ser por sua vez pressuposta e substantivada como uma outra coisa, como um duplicado da coisa aquém ou além da coisa. A coisa mesma – daí o termo auto como designação técnica da ideia – não é de fato uma outra coisa, mas a mesma coisa, já não, porém, suposta pelo nome e pelo logos, como um obscuro pressuposto real (um hypokeimenon), mas no próprio meio de sua cognoscibilidade, na pura luz de seu revelar-se e anunciar-se ao conhecimento. Entre os modernos, só Andreae, em seu estudo de 1923 sobre as cartas de Platão (em Philologus, n. 78, p. 34 ss.), restituiu a lição dos códices.
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GIORGIO AGAMBEN A POTÊNCIA DO PENSAMENTO – ENSAIOS E CONFERÊNCIAS
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A “fraqueza” do logos consiste então precisamente no fato de não ser capaz de elevar à expressão essa mesma cognoscibilidade e essa mesmidade, que ele rejeita, isto é, põe para trás como um pressuposto (como uma hipo-tese, no sentido etimológico do termo, aquilo que é posto sob) a própria cognoscibilidade do ente que nele está em questão. É esse o sentido da distinção entre on e poion, entre o ser e sua qualificação, na qual Platão insiste várias vezes na carta (342 e 3; 343 b 8-c 1). A linguagem – a nossa linguagem – é necessariamente pressuponente e objetivante, no sentido em que, em seu acontecer, decompõe a coisa mesma, que nela e só nela se anuncia, em um ser sobre o qual se diz e em um poion, uma qualidade e uma determinação que dele se diz. Ela su-põe e esconde o que traz à luz no próprio ato em que o traz à luz. A linguagem é, assim, sempre, segundo a definição retomada por Aristóteles (já enunciada por Platão, no Sofista, 262 e 6-7, e ainda implicitamente na distinção moderna entre sentido e denotação), legein ti kata tinos, dizer algo-sobre-algo; é sempre, portanto, linguagem pre-su-ponente e objetivante. A pressuposição é a própria forma da significação linguística: o dizer kath’ hypocheimenou, sobre um sujeito. A advertência que Platão atribui à ideia é, então, a de que a própria dizibilidade permanece não dita no que se diz daquilo sobre o que se diz, de que se perde a própria cognoscibilidade naquilo que se conhece do que é para conhecer. O problema específico que está em questão na carta – mas que é necessariamente o problema de todo discurso humano que queira manifestar o “quinto”, que queira, pois, tornar tema o que não pode ser tema – é este: como é possível falar sem supor, sem hipo-tetizar e subjetivar aquilo de que se fala? Como é possível, então, legein kath’auto, dizer não sobre um pressuposto, mas por si mesmo? E, uma vez que o plano dos nomes é, para os gregos, o que essencialmente se diz kath’auto, pode a linguagem dar conta (logon didonai) do que nomeia, pode ela dizer o que o nome chamou? Já os mais antigos comentadores tinham compreendido que estava implícito nesse problema algo como uma contradição. Temos uma anotação de um tardio escoliasta de Platão que diz mais ou menos isto: “Por que o mestre, no Fedro, desvaloriza a escrita e, no entanto, desde que escreveu, considerou de algum modo apreciável sua obra 16
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escrita?”. E o escoliasta responde: “Também nisto ele quis seguir a verdade: tal como a divindade criou tanto as coisas invisíveis como as que se oferecem ao olhar, também ele deixou algumas coisas não escritas e outras escritas”. Essa pergunta vale certamente também para a Carta VII. Aqui, Platão, escrevendo sobre aquilo que se dá como objeto de pensamento e não deve ser escrito, parece desafiar a fraqueza do logos e se desmentir, de certo modo. E não é certamente por vã brincadeira que, em outra carta, chega a refutar a paternidade dos diálogos que circulavam sob seu nome, para afirmar que eles são obra de “um Sócrates mais belo e rejuvenescido” (Ep., II, 314 c 3-4). Aqui, o caráter paradoxal da obra escrita de Platão salta de repente aos olhos: em uma carta – que os modernos muitas vezes consideraram apócrifa – declara inautênticos seus diálogos, para atribuí-los a um autor impossível, ao próprio protagonista deles, Sócrates, morto e enterrado tantos anos antes. A personagem de que se fala no texto ocupa aqui o lugar do autor dos diálogos em que participa. E já os críticos antigos, e justamente os mais agudos, como Demétrio e Dionísio, tinham observado como o estilo de Platão, que é límpido nos primeiros diálogos, torna-se mais obscuro (zophos), empolado e paratático (epirriptei allelois ta kola aph’ heterou heteron, “os períodos se lançam uns sobre os outros”, escreve Demétrio), quando enfrenta os temas que lhe são mais caros. Por uma curiosa coincidência, a fraqueza da linguagem que está em causa nessa carta do pai da metafísica ocidental parece profetizar com dois milênios de antecedência a dificuldade implícita no caráter metafísico de nossa linguagem, que exaspera em um obstinado furor e quase como um íntimo obstáculo a escrita do último Heidegger. Mas a fraqueza do logos não funda, em Platão, qualquer estatuto místico da ideia; pelo contrário, ela torna possível vir, com a palavra, em ajuda da palavra (logo boethein), que, no Fedro (278 c 6), está em oposição à autêntica exposição filosófica. O risco é, nesse caso, que o não tematizável que está em questão na coisa mesma seja por sua vez tematizado e pressuposto, mesmo na forma de um legein ti kata tinos, como um dizer acerca do que não se pode dizer. A coisa mesma não é uma simples hipóstase do nome, um inefável que deve permanecer não dito e só assim conservado, como nome, na linguagem dos homens. Uma tal concepção – implicitamente refutada no GIORGIO AGAMBEN A POTÊNCIA DO PENSAMENTO – ENSAIOS E CONFERÊNCIAS
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fim do Teeteto – necessariamente ainda “hipotetiza” e su-põe a coisa mesma. Esta – a coisa da linguagem – não é um quid que possa ser procurado como uma hipótese extrema para lá de todas as hipóteses, um último e absoluto sujeito para lá de todos os sujeitos, ferozmente ou de maneira beata mergulhado em sua obscuridade. Uma tal coisa sem relação com a linguagem, um tal não linguístico, só o pensamos, na verdade, na linguagem, através da ideia de uma linguagem sem relação com as coisas. Ela é uma quimera no sentido espinosano do termo, isto é, um ser puramente verbal. A coisa mesma não é uma coisa – é a própria dizibilidade, a própria abertura que está em questão na linguagem, que é a linguagem, e que na linguagem constantemente supomos e esquecemos, talvez porque ela própria é, em seu íntimo, esquecimento e abandono de si. Nas palavras do Fédon (76 d 8), ela é aquilo que sempre divulgamos ao falar, aquilo que não cessamos de dizer e comunicar e, no entanto, perdemos sempre de vista. A estrutura de pressuposição da linguagem é a própria estrutura da tradição: nós pressupomos e traímos (no sentido etimológico e no sentido comum da palavra) a coisa mesma na linguagem, para que a linguagem possa referir-se a algo (kata tinos). O chegar ao fundo da coisa mesma é o fundamento sobre o qual algo como uma tradição pode se constituir. A tarefa da exposição filosófica é a de vir com a palavra em ajuda da palavra, para que, na palavra, a própria palavra não fique suposta na palavra, mas venha, como palavra, à palavra. Nesse ponto, o poder de pressuposição da linguagem toca seu limite e seu fim: a linguagem diz os pressupostos como pressupostos e, desse modo, alcança aquele princípio não passível de pressupor e não pressuposto (arche anypothetos), que apenas nessa condição constitui a autêntica comunidade e a comunicação humana. Como escreve Platão em uma passagem decisiva de um diálogo que apresenta mais do que um ponto de contato com o “mito extravagante” da Carta VII: Aprende então o que quero dizer com o outro segmento do inteligível, daquele que o raciocínio atinge pelo poder da dialética, fazendo das hipóteses não princípios, mas hipóteses de fato, uma espécie de degraus e de pontos de apoio, para ir até aquilo que não admite hipótese, que é o princípio de tudo, atingido o qual, desce, fixando-se em todas as consequências que daí decorrem, até chegar à conclusão, sem se servir em 18
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nada de qualquer dado sensível, mas passando das ideias umas às outras, e terminando em ideias (Rep., 511 b 3-c 2).
Dou-me conta de que talvez tenha ido muito além do objetivo que tinha me proposto e de ter me tornado, de alguma maneira, responsável por aquela loucura não divina, mas humana (344 d 1-2), contra a qual o mito da Carta VII pretendia precisamente nos pôr de sobreaviso: a loucura que consiste em confiar, sem precauções, a um texto escrito os próprios pensamentos sobre a coisa mesma. Será, por isso, oportuno que me detenha aqui, para voltar, com mais cuidado, à tarefa historiográfica preliminar que me tinha proposto. A digressão da Carta VII contém, nós o vimos, um tratamento da ideia em sua relação com a linguagem. A determinação da coisa mesma é aí, de fato, conduzida em estreita relação com uma teoria da significação linguística, que constitui, talvez, a primeira, ainda que extremamente resumida, exposição orgânica da matéria. Se isso é verdade, deveríamos poder seguir seus traços na posterior reflexão grega sobre a linguagem. O pensamento se dirige aqui, logo, para o texto que determinou durante séculos toda a reflexão sobre a linguagem no mundo da Antiguidade, isto é, o De interpretatione, de Aristóteles, em que se enuncia o processo da significação linguística de um modo que parece aparentemente sem relação com a digressão platônica: O que está na voz [ta en te phone] é o signo das afecções na alma [en te psyche], e o que está escrito é o signo do que está na voz. E tal como as letras não são as mesmas para todos os homens, também não o são as vozes; as afecções da alma de que elas são signos, essas, são as mesmas para todos: e também as coisas [pragmata], de que as afecções são as semelhanças, são para todos as mesmas (16 a 3-7).
Um exame mais atento mostra, pelo contrário, uma correspondência pontual com o texto do excursus. A tripartição pela qual Aristóteles articula o movimento da significação (en te phone, en te psyche, pragmata) retoma de fato textualmente a distinção platônica entre o que é en phonais (nome e logos), o que é en psychais (conhecimento e opinião) e o que é en somaton schemasin (o objeto sensível) (342 c 6). Bem mais notável é o desaparecimento da coisa mesma. Com Aristóteles, a coisa mesma é excluída da hermeneia, do processo linguístico da significação; mesmo quando volta a comparecer de maneira fugaz GIORGIO AGAMBEN A POTÊNCIA DO PENSAMENTO – ENSAIOS E CONFERÊNCIAS
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(como na lógica estoica), é tão estranha à intenção platônica originária que é praticamente irreconhecível. A determinação aristotélica da hermeneia se desenvolve, portanto, em oposição à apresentação platônica, da qual constitui ao mesmo tempo uma recuperação e uma refutação. A prova decisiva desse contraponto polêmico é precisamente o aparecimento, no texto aristotélico, dos grammata, das letras. Já os antigos comentadores se interrogavam sobre o que estaria na origem do aparecimento, à primeira vista incongruente, desse quarto intérprete ao lado dos outros três (vozes, conceitos, coisas). Se se pensar que o excursus de Platão visava precisamente provar a impossibilidade de escrever sobre a coisa mesma e, em geral, o caráter não fiável, para o pensamento, de todo discurso escrito, a íntima oposição entre os dois textos é ainda mais evidente. Suprimindo a coisa mesma da teoria da significação, Aristóteles absolve a escrita de sua fraqueza. Em vez da coisa mesma, as Categorias incluem a prote ousia, a substância primeira, que Aristóteles define como aquilo que não se diz sobre um sujeito (kath’hypokeímenou, sobre um pressuposto) nem está em um sujeito. O que significa essa definição? A substância primeira não se diz com base em um pressuposto, não tem pressupostos, porque é ela própria o pressuposto absoluto sobre o qual se funda todo discurso e todo conhecimento. Só ela – como nome – se diz kath’auto, sobre si mesma; só ela – não estando em um sujeito – se mostra na evidência. Mas, em si mesma, como individuum, ela é inefável (individuum ineffabile, segundo a formulação do aristotelismo medieval) e não entra na significação linguística de que é fundamento, senão saindo de sua atualidade dêictica para uma predicação universal. O ti que estava em questão no nome é assumido no discurso como o kata tinos, o sobre-o-que se diz. Eles – o que e o sobre-o-que – são, portanto, a mesma coisa, que pode ser tomada como to ti en einai, o ser-o-ti-que-era. Nesse processo lógico-temporal a coisa mesma platônica é retirada e conservada, ou antes, conservada apenas como retirada: e-liminada. Por isso, em De interpretatione, aparece o gramma, a letra. Um exame atento mostra, de fato, que no círculo hermenêutico de De interpretatione a letra, como intérprete da voz, não tem necessidade de nenhum outro intérprete. Ela é o último hermeneuta, além do qual 20
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não existe outra hermeneia possível: seu limite. Por isso, analisando o De interpretatione, os gramáticos antigos diziam que a letra, que é signo da voz, é também stoicheion tes phones, isto é, seu elemento. Como elemento daquilo de que é signo, ela tem o estatuto privilegiado de index sui, do que se mostra a si mesmo: tal como a prote ousia, da qual constitui a cifra linguística, ela só se mostra na medida em que era na voz, isto é, como um passado. O gramma é, assim, a própria forma da pressuposição e nada mais que isso. Como tal, ela ocupa um lugar central em toda a mística e tem uma relevância decisiva também no pensamento de nosso tempo, que é bem mais aristotélico e bem mais místico do que geralmente se crê. Nesse sentido – e só nesse sentido –, Aristóteles, e não Platão, é o fundador da mística ocidental, e é por isso que o neoplatonismo pôde chegar àquela concordância entre Platão e Aristóteles que constituía a base do ensino da escola. Com base nesse fundamento, isto é, na medida em que a linguagem traz inscrita em si a estrutura ontológica da pressuposição, o pensamento pode tornar-se imediatamente escrita, sem ter de se confrontar com a coisa mesma e sem trair seu pressuposto. O filósofo é antes o escrivão do pensamento e, através do pensamento, da coisa e do ser. O léxico bizantino tardio, conhecido pelo nome de Suda, no verbete dedicado a Aristóteles, anota: Aristoteles tes physeos grammateus en, ton kalamon apobrechon eis noun, “Aristóteles era o escrivão da natureza, que molhava a pena no pensamento”. Muitos séculos depois, Hölderlin cita inesperadamente essa frase de Suda em um ponto decisivo de suas Anmerkungen à tradução do Édipo Rei de Sófocles, isto é, quando está tentando explicar o sentido e a natureza da Darstellung, da exposição trágica. A citação contém, no entanto, uma alteração, que nem a diligentíssima filologia hölderliniana conseguiu explicar. Escreve Hölderlin: Tes physeos grammateus en ton kalamon apobrechon eunoun (em lugar de eis noun): “Era o escrivão da natureza, que molhava a pena benévola”. Aqui já não se trata de molhar a pena no pensamento: a pena – esse simples instrumento material da escrita humana – está só, tendo como única arma sua benevolência, em face de sua tarefa. Devolver à coisa mesma seu lugar na linguagem e, ao mesmo tempo, restituir a escrita à sua dificuldade, à sua tarefa poética na redação – essa é a tarefa da filosofia que vem. GIORGIO AGAMBEN A POTÊNCIA DO PENSAMENTO – ENSAIOS E CONFERÊNCIAS
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