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Paola Siviero
Série Caixa das Almas , v. 2
Copyright © 2024 Paola Siviero
Copyright desta edição © 2024 Editora Gutenberg
Todos os direitos reservados pela Editora Gutenberg. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.
editora responsável
Flavia Lago
editoras assistentes
Natália Chagas Máximo
Samira Vilela
preparação de texto
Vanessa Gonçalves
revisão
Natália Chagas Máximo
ilustração da capa
Vito Quintans
adaptação da capa
Diogo Droschi
projeto gráfico
Diogo Droschi
diagramação
Waldênia Alvarenga
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil
Siviero, Paola
A torre do pântano dos ossos / Paola Siviero. -- 1. ed. -- São Paulo : Gutenberg, 2024. -- (Série Caixa das Almas ; 2)
ISBN 978-85-8235-757-6
1. Ficção de fantasia I. Título. II. Série. 24-221005
CDD-B869.93
Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção de fantasia : Literatura brasileira B869.93
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
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Ela nunca se conformou em ser apenas uma coisa e isso me fez entender que, para quem tem coragem para tomar diferentes trilhas, um destino apenas é pouco para uma vida inteira.
Ele sempre admirou as coisas belas da vida e da natureza e aproveitou a jornada, tanto nas estradas tranquilas quanto nas turbulentas. E quando se viu em becos sem saídas, abriu novos caminhos com as próprias mãos.
Por vezes guerreiros, por vezes gurus, ensinando a importância de seguirmos nossos sonhos mantendo os pés na realidade – sem nunca perder de vista a vontade de deixar o mundo melhor.
Pai e mãe, esse é pra vocês.
Prólogo
Os dois meninos caminhavam pela Floresta Sombria tentando não fazer ruído algum. Os passos de Otto eram naturalmente firmes e precisos, porque ele avaliava o terreno com cuidado antes de decidir onde pisar. Theo, por outro lado, vinha atrás com passos ansiosos que percebiam gravetos e folhas secas pelo caminho apenas quando se quebravam sob seus pés.
Otto sabia que muitos o achavam o mais habilidoso dos irmãos e olhavam para Theo como uma sombra do gêmeo. Diziam que ele sempre estivera atrás, desde o nascimento. Tinha demorado mais para chorar, para andar e para falar. Todos ao redor acreditavam que Otto era mais corajoso por expressar menos seus medos, mais forte por derramar menos lágrimas. Mas, se conhecessem o irmão como ele conhecia… Theo era intenso, cedia aos impulsos e às emoções. Tinha uma boa mira, só não acertava a caça por causa daqueles sentimentos que borbulhavam por baixo da pele e faziam seus braços tremerem. Otto admirava isso no irmão e por vezes desejava ser um pouco assim também… seguir seus instintos ao invés de corresponder às expectativas dos outros e agir como o bom garoto que todos esperavam. Uma rebeldia pelo menos ele tinha se permitido: estava deixando o cabelo crescer e agora já chegava na altura dos ombros.
– Como você faz isso? – Theo sussurrou.
– Isso o quê? – Otto perguntou sem se virar, levantando o pé para não tropeçar numa raiz.
– Isso. Como você sabia que tinha uma raiz bem aí?
– Mágica, irmão – Otto respondeu, sorrindo, mesmo sabendo que aquela piadinha não tinha graça nenhuma. Depois se virou para Theo porque, apesar de brincarem o tempo todo, nada no mundo era mais sério e importante do que ajudar o irmão. – Você precisa observar o terreno antes. Ir olhando de vez em quando e gravando tudo na mente… Fazendo isso dá pra sentir onde as coisas estão. Entende?
O olhar de Theo demonstrava que não, ele não tinha ideia do que Otto estava tentando dizer. Porque, além da intensidade, Theo também era transparente. Era possível ler cada um de seus pensamentos e sentimentos nas rugas entre as sobrancelhas, nos olhos, na linha fina e rígida da boca quando ficava emburrado. Naquele fim de tarde, por exemplo, o que ele mais queria era levar uma boa caça pra casa e dizer que o tiro tinha sido seu.
Otto viu um cervo ao longe e estacou. Virou-se para Theo, pousando o indicador sobre os lábios e apontou para a clareira à frente, onde o animal pastava entre os troncos pretos.
Era um cervo de poucos meses. Otto podia ver no rosto do irmão a empolgação e todos os outros sentimentos que vinham junto com a experiência de caçar. Incluindo a culpa por tirar uma vida. Talvez ela fosse embora quando encontrassem seus animae e selassem o destino como caçadores… Ainda faltavam quatro anos para completarem dezesseis, mas com certeza seguiriam os passos de Carian. Era o que pater esperava deles e parecia um trabalho tão bom e importante quanto qualquer outro. Era nisso que Theo se apegava quando uma espécie de aperto no peito o tomava ao pensar naquilo…
Os garotos se esconderam atrás de um carvalho. Otto sorriu ao imaginar como Theo ficaria feliz se conseguisse acertar aquela presa, e gesticulou para o irmão, sinalizando para que ele preparasse a flecha. Theo sorriu de volta, os olhos brilhando com a cumplicidade.
O gêmeo levou o braço para trás e puxou uma flecha da aljava. Levantou o arco, esticou a corda e fechou o olho esquerdo. Otto observou a concentração do irmão, o desejo de conseguir que ele emanava ao inspirar fundo uma última vez e prender o ar nos pulmões.
Quando os dedos dele se abriam, seus olhos se arregalaram em terror e ele moveu o arco de leve. Sem entender nada, Otto virou o
rosto e viu a flecha se cravar num tronco, a centímetros do filhote. O cervo nem sequer se mexeu e, observando os olhinhos cheios de intensidade, Otto percebeu que não se tratava de um animal comum. Theo caiu de joelhos, visivelmente abalado.
– Anima.
– Calma, Theo. Você não… – Otto apertou o ombro dele, tentando transparecer uma calma e leveza que não sentia. O que teria acontecido se ele tivesse acertado aquele tiro? Seria uma tragédia… – Está tudo bem, o cervo não se feriu.
– Por que ele não me deu algum sinal?
– Mas ele deu! Animae são inteligentes, e ele te avisou na hora certa… – Otto estendeu uma mão para ajudar o irmão a se levantar. Não ia deixar que aquilo estragasse a tarde deles. – Vem. Ainda dá tempo de achar pelo menos uma lebre.
Então continuou buscando uma caça. Podia ser qualquer coisa… Sabia que Theo ficaria abatido se voltassem de mãos vazias e aquele era um ótimo horário para caçar. Confiava na capacidade do irmão e, se demonstrasse isso, talvez Theo passasse a confiar em si mesmo também. Um corvo grasnou quatro vezes. Esfriava rápido, e uma neblina fina se esparramou entre as árvores. Otto conteve um arrepio. Theo olhou para cima já com uma flecha no arco.
– Viu alguma coisa? – Otto perguntou, acompanhando o olhar do irmão, mas sem encontrar nada.
– Achei que sim… Mas deve ter sido só impressão.
Um ventinho frio soprou. Theo se virou, assustado, e Otto buscou o que o irmão havia visto, mas de novo não havia nada. Já estava ficando escuro.
– Acho que está na hora de voltar – Theo sugeriu.
– Não, calma, ainda dá pra enxergar bem – Otto respondeu. No fundo, também queria ir embora, mas sabia que aquilo estragaria a noite do irmão. – Vamos nos separar.
– Otto, melhor não.
– A gente não pegou nada a semana inteira! – Otto insistiu. Dez ou quinze minutos talvez já fossem suficientes. Sentia que havia algo ali perto. Theo precisava de uma vitória. Talvez pudesse dar um tiro e gritar para o outro vir ajudar, poderiam falar para pater que os dois
haviam conseguido a caça. – Só um pouquinho… Quando a luz estiver acabando, a gente se encontra na estrada. Ninguém precisa ficar sabendo.
Eles tinham prometido a Carian e a Lia que não se separariam, Otto sabia que era nisso que Theo pensava. Mas seria por tão pouco tempo… E era tão emocionante poder decidir por si só o que fazer.
– Tá bom – Theo concordou. – Só que se você não estiver lá na hora marcada, vou direto pra casa contar que a ideia idiota foi sua.
Otto sorriu, deu uma piscadinha e correu na direção sul. Sabia de um lugar, um laguinho rodeado por pedras e arbustos onde sempre havia animais por perto.
Desacelerou e voltou a caminhar com cuidado ao se aproximar. A floresta estava estranhamente silenciosa… talvez fosse o frio. Aquele fim de tarde estava mais gelado do que de costume, e isso podia ter feito os bichos se entocarem, os pássaros se empoleirarem, encolhidos dentro de suas próprias asas… Ele mesmo sentia o frio chegar aos ossos. O ar se condensava conforme ele respirava.
Teve uma sensação estranha. Um incômodo na barriga. Os dentes querendo bater uns nos outros. O coração acelerado. Estava com medo.
Medo de quê? Tentou se perguntar, querendo se convencer de que estava tudo bem. Conhecia bem a floresta. Conseguiria espantar um animal maior se precisasse. Talvez fosse uma espécie de praga dos pais por ter desobedecido.
Ouviu algo se mexer e se virou. Não havia nada.
Sentiu alguma coisa o observando e se virou de novo. Se aquilo fosse uma brincadeira, já estava passando dos limites…
– Quem está aí? – perguntou, esforçando-se para a voz sair firme.
Foi quando ouviu uma espécie de chiado. Ou uma risada. E aquilo fez cada pedacinho do seu corpo congelar.
– Eu tô armado – avisou, agora com muito menos convicção.
– Warrrpyrm…
Aquela voz. Aquela sensação de terror em sua forma mais pura.
– Warrrprym… – O som veio de outra direção. O que era aquilo?
Otto era conhecido por ser destemido. Contudo, naquele momento, seu corpo começou a tremer incontrolavelmente. Sentiu a urina quente descer por suas pernas. Achou que o medo poderia matá-lo a qualquer instante.
– Por favor… não me machuque.
– Warrrprym!
Ele se virou e a criatura estava atrás dele, a centímetros de distância. O grito que o garoto deu deixaria sua garganta esfolada. Era um grito que vinha da alma. Um medo que havia atravessado séculos. Um grito de desespero por saber que algo como aquilo poderia destruir o mundo e cada pessoa que houvesse nele.
Levou uma pancada na cabeça. Caiu de cara sobre as folhas e o musgo. Sua visão ficou embaçada, mas ainda via a criatura o rodeando. E, bem longe dali, achou que ouviu alguém gritando seu nome.
– Otto! Otto!
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PARTE
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Os restos do acampamento
O acampamento dos guerreiros havia perdido seu espírito. Depois da mudança de local, ninguém havia se dado ao trabalho de construir uma arena de treinamento, ou uma praça para fazer as reuniões. As barracas haviam sido dispostas sem muita organização, as mesas para refeições montadas de uma forma ainda mais improvisada. Toda estrutura emanava um desânimo, e a falta de propósito contaminava seus habitantes, do despertar ao adormecer. Os guerreiros que ali permaneceram o fizeram por não poderem lutar ou para cuidarem dos mais debilitados. Nos dois meses que haviam se passado desde o completo desmonte do clã, não receberam notícias das missões. Será que seus integrantes ainda estavam vivos?
Leona se esforçava para não deixar sua essência se esvair pelas frestas de melancolia. Não raro, seus olhos passeavam pelo acampamento buscando o melhor local para os novatos treinarem. Algumas memórias doem, e a saudade do ano de treinamento era lancinante como uma facada no peito. As aulas, a sensação de aperfeiçoar suas habilidades a cada dia, a vontade de estar pronta para seguir em missões, os momentos com os amigos, as vezes que ela se sentira acolhida ou que havia gargalhado mesmo contra a própria vontade… E Ulrik. O nome dele fazia o coração de Leona tropeçar. Trazia a lembrança do sorriso fácil, dos olhos com cor de tempestade. Dos momentos de cumplicidade e das discussões. Ela se lembrava de cada beijo e, mais que isso, de todas as vezes que tivera vontade de beijá-lo. Por que mesmo haviam demorado tanto? Leona não costumava ser refém
de arrependimentos – como dizia um velho ditado de seu povo, é impossível prever para qual direção sopram os ventos que moldam as dunas. Mas, frequentemente, se pegava pensando que poderiam ter aproveitado mais. Porque agora…
A garota sentiu um nó na garganta e Albin roçou a cabeça na cintura dela, mostrando que não estava sozinha. Leona acariciou as orelhas do leão branco, afundando em seguida os dedos na juba farta e macia dele. O amor que fluía entre eles era tão restaurador que parecia mágico, e isso a ajudou a fincar os pés no presente outra vez. Ela observou as pessoas com cuidado: o cenário geral era de ombros caídos, cabelos malcuidados, olhares pesarosos. Aquele clã precisava de uma vitória. De algo para celebrar.
Um banquete.
– Ilca! – Leona chamou, correndo na direção da líder.
– Alguma notícia? – a mulher perguntou, seus olhos escuros reluzindo com a expectativa de boas-novas.
– Não – Leona respondeu. E antes que o sorriso da outra se desfizesse totalmente, completou: – Quero fazer um jantar. Caçar algo grande pra assar na brasa! Olha pra eles, Ilca… O acampamento é o nosso coração, e às vezes parece… que ele parou de bater.
– Entendo o que você quer dizer, querida – Ilca falou, olhando em volta e depois encarando a aprendiz com uma profundidade desconcertante. A líder era a única no acampamento que continuava firme, portando um orgulho inabalável, como se estar ali fosse tão importante quanto todas as outras missões. – Eu sei que muitos que ficaram se sentem deixados para trás, ou até mesmo inúteis. Mas estar aqui é resistir, Leona. Eles tentaram acabar com a gente, destruir nossa casa. No entanto, ela ainda está de pé.
Os olhos de Leona arderam. Ela os manteve bem abertos, com medo de piscar e assim deixar alguma lágrima rolar.
– Só que não é mais a mesma casa.
– Não. É uma casa cheia de marcas, e nem por isso menos forte.
– A guerreira sorriu e passou a mão no rosto da garota. – Porém, em uma coisa você tem razão: uma boa caça na brasa melhoraria os ânimos.
– E amanhã eu quero começar a construir uma praça. Pode ser ali, naquela clareira.
– Calma, uma coisa de cada vez – Ilca respondeu, fingindo estar exasperada. – Vou nomear algumas pessoas pra fazer algumas melhorias. É importante que você continue o trabalho com as runas de água. E isso é mais que resistir: pode realmente mudar o jogo.
Desde a experiência com os sílfios, Leona buscava maneiras para replicar o bálsamo mágico deles. Na primeira semana, experimentou utilizar runas de terra, já que esse era o elemento mais usado para fazer runas de cura. Depois percebeu que a água era mais eficiente para potencializar o efeito das substâncias naturais.
Passado um mês, Leona descobriu sozinha uma nova runa. Passou a trabalhar incessantemente, e até sonhava com isso. Sonhava com os veros. Sonhos borrados e turbulentos como uma corredeira, dos quais se lembrava de forma muito vaga ao despertar para logo desaparecerem rio abaixo. Voltava aos experimentos cedo pela manhã e não parava até que já estivesse escuro demais para continuar. A cada dia, sentia uma conexão maior com a magia cíntilans contida na água. Quando relatou isso a Ilca, a líder explicou que o estudo intenso e a busca por novas runas criavam um elo mais forte com o elemento trabalhado. Muitos guerreiros haviam vivenciado o mesmo.
Agora, já eram três novas runas descobertas por Leona que, utilizadas durante a fabricação do gel levemente rosado, auxiliavam no combate às infecções e na cicatrização. Não era nem de longe tão eficiente quanto a magia dos povos da floresta, mas ainda assim era um avanço enorme. – O seu bálsamo vai ajudar a salvar muitas vidas. Agora e nos próximos séculos. – Ilca disse, e aquelas palavras curaram um pouco a angústia de Leona. – Se você já fez isso em dois meses, imagine o que fará em um ano. Em três, dez! Você vai ser uma curandeira muito melhor do que eu jamais sonhei em ser. – Ilca… – ela tentou interromper, porque aquilo parecia absurdo. – Não é falsa modéstia, eu estou falando sério! Você tem um dom. Um dom muito valioso para o clã. Valioso pra você também. – A mestra ficou séria. Uma expressão sombria tomou sua face por alguns instantes. – Curar as pessoas é o que vai te manter sã nessa jornada. E eu fico feliz por você estar aqui, tendo tempo de se conectar e de direcionar a magia para esse propósito.
Leona inspirou profundamente, de repente ciente da essência cíntilans correndo em suas veias. Havia treinado tanto para combater espectros, para ser uma boa lutadora, e agora estava confusa. Perdida. – É estranho. A gente escolhe um caminho e por algum tempo acha que é só percorrer aquela estrada. Mas aí aparece uma bifurcação.
E mais uma. E cada decisão me dá medo… Fico pensando que posso ter deixado pra trás algo que poderia me fazer feliz. Ou que a qualquer momento posso me encontrar numa rua sem saída. Tenho medo de ter pegado uma curva errada, e assim nunca chegar ao destino que eu tinha imaginado no início. Às vezes eu me pergunto até se estou caminhando na direção certa ou só vagando sem rumo…
– Há muitos caminhos para o mesmo destino. Muitos. Mas também não tem problema mudar de ideia. As decisões que tomamos quando somos jovens às vezes param de fazer sentido em algum momento. A vida muda, a gente muda, os planos mudam. Nossos sonhos e desejos também.
Leona sorriu.
– É verdade. Eu, por exemplo, vim aqui só te avisar que ia sair pra caçar e ganhei uma conversa filosófica sobre destino.
As duas começaram a rir. Leona enxugou os olhos discretamente.
Fitou aquela mulher incrível, generosa e forte e sentiu na boca as palavras que queriam sair: De onde eu vim, nós escolhemos nossa família. E eu escolho você. Essa era a forma mais profunda de dizer que se ama alguém. Mas palavras ditas têm o peso de verdades, então preferiu mantê-las apenas na mente. Pelo menos por ora. Enquanto outras feridas ainda estavam abertas.
– Agora eu vou mesmo caçar.
– Bom, se você pretende sair do círculo de proteção, já sabe a regra.
Leona suspirou.
– Essa pedra me deixa incomodada.
– Incomodada e invisível.
– Ilca, a gente não viu nenhum espectro desde que chegamos.
– E você sabe muito bem que isso não significa que estamos seguros.
A líder estava certa, como sempre. E a garota sabia que, se continuasse discutindo, Ilca exigiria que levasse mais pessoas na caçada. Ela não queria. Precisava de um tempo no bosque só com Albin. Assim
poderia descansar a cabeça, focar apenas na tarefa de trazer comida e esquecer por algumas horas que era uma guerreira. Que Inna estava à solta. Que Ulrik havia aberto a caixa. Que os amigos poderiam muito bem estar mortos.
Leona foi até a barraca de Ilca e abriu a caixa de madeira onde a líder guardava a pedra da invisibilidade. Desenrolou o tecido para observá-la. Agora sabia que era feita de uma rocha extremamente resistente, encontrada em cavernas sob as montanhas mais altas da província de Nortis. E a runa de ar ali esculpida era… arte. Delicada, complexa, um desenho impossível de ser treinado com carvão ou terra. Porque aquela runa tinha camadas, profundidade, com certeza havia sido feita em estágios, lapidando seu formato pouco a pouco. Como uma escultura. Talvez tenha levado semanas, ou meses, demandando uma habilidade e precisão que era difícil imaginar… Qualquer movimento errado colocaria todo o trabalho a perder. Uma runa de ar simples como a da arma dos guerreiros já era dificílima de ser feita com eficiência – Leona mesmo nunca conseguira, achava difícil trabalhar com aquele elemento. Tudo isso a fazia acreditar que a runa de invisibilidade talvez tivesse sido feita por algum guerreiro original das primeiras gerações.
Leona pegou suas adagas, pôs algumas facas menores no cinto e decidiu levar um arco e uma aljava. Não era tão boa quanto Úrsula ou Ulrik com as flechas, mas, se encontrasse um faisão, seria o modo mais fácil de abatê-lo. Acenou para Ilca uma última vez antes de abrir o cordão de couro e amarrar a pedra em volta do pescoço.
Assim que o material áspero entrou em contato com sua pele, o ar ficou diferente. Mais denso. Ela respirou fundo algumas vezes, tentando se habituar à sensação. Era como estar envolta em água, ou em um tecido, mas que não era pesada e nem deixava seus movimentos mais lentos.
Nas primeiras vezes que portou a pedra, Leona pensou que Albin se incomodaria por não poder vê-la. Mas o faro e a audição do leão eram aguçados; o fato de estar invisível não parecia fazer muita diferença para ele. Seu anima sabia exatamente onde ela estava. Caminhava ao seu lado, como sempre.
Adentraram a calmaria do bosque. Por um bom tempo, ela e Albin seguiram o rastro de um veado. Seria uma ótima caça, suficiente para
que todos pudessem comer um bom pedaço de carne. Passaram pelo riacho, Albin parou para beber água. Leona se aproximou e foi invadida por uma sensação ruim: não via o próprio reflexo. Era como se ela não existisse. Como se não estivesse mais ali. Como se fosse um fantasma.
O leão levantou a cabeça e as orelhas. A guerreira olhou em volta, acreditando que o anima estivesse em alerta por conta da caça. Mas havia um som distante, quase inaudível… Com um choque gelado, percebeu que eram gritos.
Sem pensar, começou a correr de volta para o acampamento, guiada por puro instinto. Leona forçou as pernas a darem seu máximo. Pulou obstáculos no caminho. Os gritos se intensificaram. Sons de batalha.
A garota escorregou e caiu, contudo Albin continuou, logo sumindo de vista. Os segundos no chão abriram espaço para que a barragem na mente explodisse, liberando de uma vez a verdade que ela, embora soubesse, estava mantendo contida até então: os guerreiros estavam sendo atacados. E Leona deveria estar lá com eles para lutar.
Maldita caçada. Maldita ideia de fazer um banquete durante a guerra. Levantou-se e continuou correndo, ofegante, seu coração batendo tão forte que era possível escutá-lo. O leão havia se abaixado ao alcançar o limite do bosque. Leona o imitou, apenas para recordar em seguida que ninguém conseguiria vê-la.
– Você fica aqui.
Seu anima grunhiu. Não queria deixá-la sozinha. Mas ele seria visto assim que saísse da cobertura das árvores.
Então Leona caminhou devagar, trêmula, se aproximando do acampamento. Teve que pressionar os lábios para conter um soluço. Havia muitos corpos no chão. Alguns que já haviam vivido muitos anos. Outros pequenos e frágeis, que mal tinham começado a andar. E os espectros infestavam o local como um enxame furioso.
A pedra da invisibilidade formava um pequeno escudo ao redor do guerreiro que a estivesse usando e, portanto, tudo que Leona portava só seria visível quando se afastasse alguns centímetros de seu corpo. Ela tirou uma faca do cinto e a atirou, atingindo uma das criaturas malignas. E mais uma. E outra. Pegou o arco e mudou de posição. As flechas voaram e os espectros olharam na direção dela, confusos por não conseguirem encontrar a fonte daquele ataque.
Muitos guerreiros haviam sido mortos, outros, contudo, foram capturados. Estavam numa espécie de jaula sobre carroças. Leona contornou o acampamento, tentando encontrar uma forma de soltá-los, mas havia espectros demais ao redor. Ela atirou mais uma flecha, chamando a atenção das criaturas para sua nova localização.
– Às vezes, a melhor estratégia é se esconder e buscar ajuda – Ilca disse alto sem olhar para a direção de onde as flechas estavam vindo. Um espectro chiou e bateu nas grades com as unhas enormes, fazendo todos os guerreiros na jaula se retraírem e as crianças gritarem. A líder se calou. Os monstros voltaram a atenção para outros prisioneiros. Ilca esperou alguns segundos e depois focou seus olhos quase na direção exata de Leona. Então seus lábios desenharam uma palavra silenciosa. Vai.
Um gosto amargo tomou a boca da garota. Como ela poderia simplesmente abandoná-los ali? Se fosse buscar ajuda, talvez nunca mais encontrasse aqueles guerreiros. Talvez nunca tivesse a oportunidade de dizer a Ilca que a amava como uma mãe. Não, ela tinha que ficar, era a única chance de saírem daquele ataque com vida. Ela estava invisível e iria usar isso a seu favor.
Conseguiu se acalmar e recuperar a habilidade de raciocinar com clareza. Caminhou um pouco, tomando cuidado para não fazer barulho, e começou a acessar a situação. Contou os espectros: cerca de cinquenta. Até poderia matar dez ou vinte, mas não sem que eles percebessem sua presença. E se decidissem procurar no bosque, acabariam encontrando Albin.
Respirou fundo ao passar perto de um guerreiro que agonizava no chão, com um rasgo irreparável no abdômen. Chegou a desembainhar a adaga para dar um golpe de misericórdia, e sentiu as lágrimas escorrendo quando se deu conta de que seria arriscado demais. O inimigo poderia perceber. E, no fundo, sabia que o senhor estendido no chão iria preferir aguentar mais alguns minutos de sofrimento a arriscar a vida de todos os outros. Mas isso não a impedia de se sentir uma pessoa horrível.
De uma distância segura, Leona observou mais guerreiros sendo aprisionados enquanto os animae que ainda resistiam eram abatidos pelos malditos espectros. A cena estava além do que Leona conseguia
suportar, e ela teve que fechar os olhos. Não ouviu nenhuma súplica –ninguém ali era ingênuo a ponto de achar que aqueles monstros seriam capazes de empatia. Contudo, havia lamentos. Gemidos e soluços que estilhaçavam as partes mais profundas de seu âmago. Depois de alguns instantes ela se obrigou a abrir os olhos, a visão embaçada pelas lágrimas. Não muito longe da carroça, jazia uma hiena no chão. Catula.
Ah, Ilca… Pobre Ilca. O rosto de Leona estava tão encharcado que ela poderia usar as lágrimas para desenhar runas. Será que existia alguma capaz de curar as feridas na alma causadas por uma perda tão grande?
As carroças começaram a ser puxadas por cavalos de olhos opacos e costelas aparentes. Havia uma espécie de ferida em todos eles. Ferida, não, era… uma runa.
Os espectros estavam usando runas entalhadas na carne.
Aquilo quase a fez vomitar. Espectros no geral não usavam runas, tinham muita magia no sangue, eram poderosos demais para necessitar de elementos de invocação… Precisaria em algum momento chegar mais perto para avaliar o desenho e tentar descobrir por que estava ali. Depois de conferir que não havia mais nenhum guerreiro ou anima vivo nas ruínas do acampamento, Leona começou a caminhada atrás da estranha comitiva.
Ela a seguiria até o fim do mundo se fosse preciso.
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