Alfabeto

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Como na história contada por Paul Auster (Collected Prose, Picador). Um amigo andava desesperadamente atrás de um livro que queria muito, mas não conseguia encontrar em lugar algum. Após meses de busca, passando pela Grand Central Station, em Nova York, avista uma moça que lia exatamente o cobiçado livro. Aborda-a, conta que andava atrás do livro e pergunta onde poderia encontrá-lo. Ela diz que o livro é maravilhoso . “É para você”, disse. “Mas é seu”, disse ele. “Era”, respondeu ela, “mas terminei de lê-lo.Vim aqui hoje para dá-lo a você”.

(Paul Valéry) Leia também da coleção Mimo:

M imo

Foi-me pedido, há alguns anos, que escrevesse vinte e quatro fragmentos de prosa (ou de versos variados) cuja primeira palavra deveria, em cada um, começar por uma das letras do alfabeto. Alfabeto incompleto? Sim. É que se tratava de utilizar vinte e quatro letras ordenadas, em xilogravura, que se pretendia publicar com o auxílio de alguma literatura – pretexto e causa aparente do álbum pensado. Essas condições não me intimidam. O gravador havia omitido duas letras, as mais incômodas , aliás, as mais raras em francês: o K e o W. Restam XXIV caracteres.Veio-me a ideia de ajustar essas XXIV peças a serem escritas às XXIV horas do dia; a cada uma das quais se pode bastante facilmente fazer corresponder um estado e uma ocupação ou uma disposição da alma diferente; decisão bastante simples.

Um livro de horas. Para todas as horas. Pra ler de dia e de noite. No chão da sala ou à beira da praia. Pra quando não puder mais de alegria. Pelo amor que chega ou pelo que volta. Por um novo filho. Pelo fim de um trabalho bem-feito. Pelo amor perfeito.

Paul Valéry

História deste alfabeto ilustrado

P au l V a l é ry

Alfabeto Alfabeto

Um mimo é um dom. Uma dádiva. Um agrado. Uma graça. Um mimo não é nada. Mas pode ser muito. Não tem cálculo. Nem intento. Não é pensado. E, contudo: escolhido a dedo. Um mimo é generoso, gentil, delicado. Uma joia rara. (Mas não cara). Pra alguém que faz anos. Ou sofreu desenganos. Mas também a pretexto de nada. Simplesmente porque você gostou. E lembrou de alguém que gostaria. Porque você botou o olho e pensou: é isso! Um mimo não é um objeto de desejo. Porque não é pra si. É pra outrem. E não é pra ostentar. É pra dar. Discretamente. Na cumplicidade de uma amizade. Ou na clandestinidade de um amor. Não é pra guardar como um tesouro. Porque não é pra dentro, mas pra fora. E não é da ordem da usura, mas da generosidade. É gratuito. Não espera nada em troca. Mas sem que você o saiba, acaba depositado. No fundo perdido do dom universal. Até que um dia, do nada, quando menos esperava, você recebe um. E o circuito se completa, mas também recomeça. E a lei do mimo se cumpriu. Quem mima mimado será.

Para quando nos sentirmos gratos. Pelos sólidos e pelos líquidos que nos confortam. Pela embriaguez do rubro vinho. Ou da água cristalina. Pelos sons e pelas visões que nos transportam. E pelos gestos que nos tocam.

• Manual do dândi – A vida com estilo Baudelaire, Balzac, D'Aurevilly • Meu coração desnudado Charles Baudelaire

Para a longa hora da solidão. Quando o tempo é eternidade e o mundo um deserto. Para a doce hora do prazer. Do amor bem-feito. Da espera e da agonia. E do desejo satisfeito.

• O casaco de Marx – Roupas, memória, dor Peter Stallybrass ISBN 978-85-7526-441-6

9 788575 26441 6

Para a hora grave da decisão.Vou ou fico? Pra Xangai ou pra Paris? Engenharia ou Filosofia? Ana ou Maria? Para a hora da reconciliação. De esquecer o mal que nos fizeram. E de pedir que esqueçam o nosso malfeito. Para os tempos de cólera. Pela felicidade prometida mas que não veio. Pela utopia perdida. Pelos sonhos que nos roubaram. Pela boa vida que levam. E pela má vida que levamos. Pelas mentiras que nos pregam.

• Antropologia do ciborgue – As vertigens do pós-humano Donna Haraway, Hari Kunzru, Tomaz Tadeu (Org.)

www.autenticaeditora.com.br 0800 2831322

Pra ler quando for chegada a hora do desamparo. Pelo amor que foi embora. Pela amizade partida. Pelos amigos que partiram. Pelos sonhos que deram em nada. Pelas esperanças que secaram. Por ter sido pequeno. E não ter ousado. Pelo beijo que não foi roubado. Pela pena de não ter sido.

M imo

Uma letra para cada hora. Um poema para cada letra.Vinte e quatro. Per-fei-tos. Festa espiritual. Manjar sonoro. Gala íntima. De-lí-ci-a.


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