Arzach_isuu

Page 1

MOEBIUS Arzach Publica çã

C O L E Ç Ã O

MOEBIUS Arzach

www.editoranemo.com.br

o

de

C l á s si c

o

2012


C O L E Ç Ã O

MOEBIUS Arzach

2ª Edição

Q

uando Arzach foi publicado, a repercussão foi surpreendente. Estas páginas tiveram o efeito de uma bomba, de uma pequena revolução no mundo dos quadrinhos. O fato de não haver texto em suas páginas de início surpreendeu muito. Além disso, a história não correspondia a nenhum dos esquemas narrativos clássicos, ao menos no âmbito dos quadrinhos, já que na literatura contemporânea esse tipo de caminho não tem nada de excepcional. Enfim, graficamente, eu não medi esforços e dediquei a cada imagem um volume de trabalho e uma energia comparáveis àqueles que, geralmente, são reservados a uma pintura ou a uma ilustração. Para mim, Arzach foi um tipo de surto, um mergulho em mundos estranhos, além do visível. Entretanto, não se tratava de produzir mais uma história bizarra, mas de revelar alguma coisa de muito pessoal, da ordem da sensação. Eu tinha como projeto expressar o nível mais profundo da consciência, nas franjas do inconsciente. Esta história pulula, então, de elementos oníricos. Quando se engaja nesse tipo de trabalho, as portas do espírito se abrem repentinamente, deixando aparecer as formas, as imagens, os arquétipos que trazemos conosco. Na primeira imagem, por exemplo, a torre gigantesca é um símbolo fálico evidente, assim como o chapéu de Arzach e várias outras formas disseminadas nestas páginas. Naturalmente, não houve nada de deliberado, eu não me sentei em frente à prancheta e disse: “Certo, vou fazer algo no gênero fálico”. Isso veio mais sutilmente. Arzach tem um lado muito negativo. Quando eu comecei a desenhá-lo, eu estava totalmente dentro da norma do grupo que eu frequentava, o dos criadores de histórias em quadrinhos, no qual ser negativo era um indubitável critério de qualidade. A morte é muito presente. O pássaro é um bom exemplo desses símbolos mórbidos: ele se assemelha a um sáurio pré-histórico, uma espécie extinta, e parece feito de concreto. Naquela época, eu não estava feliz, vivia num mundo que me parecia duro, inquietante. A única saída para escapar da influência, do controle da consciência, era o caminho para baixo, aquele que leva às zonas sombrias da alma. Atrás da porta não há apenas imagens de morte, de doença, de sofrimento, de terror.


O Desvio

Ou as desventuras meio loucas de uma pequena família durante

uma

viagem

de

carro

através

da

França,

a caminho de passar um bom mês de férias na ilha de Ré. (1)

Documentário romanceado, desenhado em bico de pena

por Jean Giraud, sobre uma ausência desconcertante de roteiro por parte do mesmo. (2)

Jean querido, eu me pergunto se fizemos bem em pegá-lo... Pegar o quê?

(1) Quaisquer semelhanças entre pessoas reais e aquelas encontradas nesta história foram muito difíceis de alcançar... (2) Devo também esclarecer que a história a seguir realmente foi entregue dentro do prazo e que “cada um usa as armas que tem” (N.D.T.)

7


As estradas principais se tornaram muito perigosas, minha querida!... Os jornais, o radio, a TV não param de repetir isso!... Bom, reconheço que esta estrada secundária é meio sinistra, mas...

Eh, bem... O desvio!

...veja que, além do fato de aumentar nossas chances de sobrevivência, ela nos dá a oportunidade de vagar um pouco por esta França tão mal conhecida pelos parisienses como nós (devemos reconhecer).

De fato!... Mas saímos ganhando nesta troca?... Morrer num acidente de carro na rodovia, de tão banal que é, chega a ser tranquilizador! Enquanto que agora...(1)

(1) As reticências dão à frase um conteúdo sinistro que será justificado pelo que se segue.

Quem é esse cara?...

8


...Alice se virou e levou um grande susto: um gato gordo, sentado sobre a maior folha da bananeira, fitavaa com um olhar amarelo!... “Ele também deve ser falso”, pensou Alice... Ela então se pôs ao piano e tocou as três primeiras notas de “They can’t take that away from me”. No mesmo instante, o maldito animal pareceu se dissolver no ar, restando somente seu famoso sorriso, suspenso bem em evidência, contra um céu carregado. Pois justamente então, o tempo começa a fechar...

Este gigante da superfície só é sensível a uma história: aquela do “gato que se pode enganar”...

Eu pensei, por um instante, que ele ia nos esmagar em sua enorme mão... Mas não!... Por mais idiota que pareça, o gigante da superfície, ao contrário de seu semelhante, o gigante das profundezas, é sensível a certa forma de poesia antiquada!... Apesar de tudo, esse primeiro incidente não deixa de me preocupar e traz maus presságios para o futuro... A viagem será longa até a ilha de Ré e o doce repouso das férias. Eu penso em todos esses rumores que correm sobre os bandos de computômens, sobre os grupos de torturadores-enlouquecidospela-droga e de malandros-malandros-e-meio!... As emboscadas dos surradores-de-pobres!... Dos impedidores-de-passar!... Dos poluidores-da-esperança!... E nem falo de Madre Teresa Kowalski, a monja de Parma e sua gangue... E todos esses amadores que querem fazer seu nome, as avalanches, as chuvaradas, as ervas daninhas, os micróbios e as bactérias mutantes... Ah... Nós vivemos numa época muito doida!... Os deuses não se contêm mais, não se controlam e dão todo tipo de preocupações aos estatísticos!...

É verdade!... A insegurança reina em nossas savanas... Nunca repetiremos isso o bastante!...

9


Há várias horas andamos sem nenhum incidente notável, e tudo iria bem, se não fossem esses precipícios vertiginosos!...

Curioso, estamos a três quilômetros da cidade de Mans, e estes abismos não estão sequer indicados no mapa!...

Normal, querida!... Eles são novinhos, e esse mapa é velho!...

Ih, mas eu acabo de perceber que o mostrador do tanque de gasolina está quase no zero!...

E

E como o azar vem sempre acompanhado, eis que um bando de ferozes impedidores-depassar nos ataca!...

A

videntemente, tudo isso parece bem distante agora, e o fato de eu estar aqui, em meu pequeno estúdio aconchegante e quentinho, confortavelmente sentado à minha prancheta, narrando a vocês os incidentes que permearam essa viagem, prova que nós saímos dela sãos e salvos.

tenção, contudo!... Não mais que três minutos, pois não é impunemente que se trabalha, ao longo do ano, nas aventuras do Tenente Blueberry (obrigado por suas gentis cartas), o qual sai vitorioso de situações até então desesperadoras, embora no fim do último episódio nos perguntemos como ele poderá se safar. Bem, queridos amiguinhos, vocês saberão lendo futuramente em “Pilote” a continuação das palpitantes aventuras do Tenente Blueberry... Ai, ai...

E

ntretanto, lembro-me perfeitamente de que, no momento do ocorrido, o sentimento que me dominava era uma espécie de inquietude misturada a uma ideia persistente e deprimente de que minha hora tinha chegado... Quanto à minha mulher, que se lastimava no banco de trás com nossa filhinha, ela também se sentia muito triste.

A

ssim, espelhando-me naquele cara, decidi organizar minha defesa...

A

qui estão algumas armas que encontrei no fundo do portamalas do carro: um canivete com duas lâminas, um laser de indução eletrostática incorporada infelizmente falso, duas metralhadoras M.A.T. com 300 carregadores (lembrança de meus tempos na Argélia) e uma caixa de granadas que um cara esqueceu na escada em maio de 68... Só isso!...

E

quem poderia nos condenar de ter tido tal reação? Certamente, não aqueles entre vocês que já encararam um bando feroz de impedidoresde-passar... Pelo menos, não aqueles entre vocês que sobreviveram, HA! HA! HA!...

E

m todo caso, fortemente convencidos de não sermos repreendidos, nós nos entregamos dois ou três minutos à angústia, à melancolia e a outras coisas do gênero...

A

í me arrependi de não ter feito como Gotlib, com sua torre de metralhadoras gêmeas calibre 12,7, no teto de seu furgão blindado...

10


Claudine!... Conte aí o que se passou em seguida!...

O que tem que acontecer acontece: nós sucumbimos pela diferença numérica... Amarram-nos fortemente e nos levam ao longo de um labirinto de subterrâneos e cavernas obscuras até uma imensa sala escavada no coração da montanha. O esconderijo dos impedidoresde-passar!... Mal temos tempo de admirar as impressionantes proporções do lugar, e somos jogados no fundo de um cubículo úmido, talhado na própria rocha e fracamente iluminado por uma tocha trêmula... Um homem armado até os dentes, sua face escondida atrás de enormes óculos escuros, vigia-nos bem de perto... De repente, chegam até nós os ecos de melopeias bárbaras entoadas por mil gargantas: “Não passamos, lá-ri-lá-ri-lá!” e “Oh, que bela barreira!”. O compasso é rápido, tem muito ritmo, apesar da medida em 3/5... Meu sangue congela nas veias, pois eu reconheço os cantos que tradicionalmente precedem os sacrifícios turísticos... Na penumbra, cruzo o olhar petrificado de meu marido... Ele também se deu conta: estamos perdidos!... Não!... Um milagre!... Estamos salvos!... A sentinela se desmascara, e, surpresos, nós reconhecemos um dos redatores-chefes da revista “Pilote”... Ele nos explica que aconteceu de ele estar ali fazendo um estágio de impedidor-depassar.. Que extraordinária coincidência! Imediatamente, ele nos liberta das amarras e nos indica uma saída secreta, por onde fugimos rapidamente. Não sem antes roubar um galão de gasolina que estava num canto... Pouco depois, nós já rodamos na noite que caía, com uma lembrança emocionada do homem que arriscou tudo para nos salvar!...(1) (1) Quero assegurar ao leitor... Pouco importa como nosso salvador fez para escapar... Mas o elenco dos redatores da revista está completo.

Será preciso pegar os Macacões AntirRadiaçÃo no portamalas, baby!...

E foi-se a estrada à noite... Nada a assinalar... Em pouco tempo, nós deixávamos a montanha, levemente rosada pela madrugada nascente, para alcançar o famoso deserto de contêineres do oeste francês.

Oh!... Joia!... Enfim, poderei usar meu novo M.A.R de grife!

11


editoranemo.com.br facebook.com/nemoeditora twitter.com/editoranemo


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.