AS PEQUENAS ALEGRIAS VIRGINIE GRIMALDI
Copyright © 2020 Librairie Artheme Fayard
Copyright desta edição © 2024 Editora Gutenberg
Título original: Et que ne durent que les moments doux
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editora responsável
Flavia Lago
editoras assistentes
Natália Chagas Máximo
Samira Vilela
preparação de texto
Aline Silva de Araújo
revisão
Natália Chagas Máximo
ilustração de capa Paula de Aguiar diagramação
Guilherme Fagundes
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil
Grimaldi, Virginie
As pequenas alegrias / Virginie Grimaldi ; tradução Julia da Rosa Simões. -- 1. ed. -- São Paulo : Gutenberg, 2024.
Título original: Et que ne durent que les moments doux
ISBN 978-85-8235-643-2
1. Ficção francesa I. Título.
21-95505
CDD-843
Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção : Literatura francesa 843
Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964
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Élise
O apartamento é exíguo, mas bem localizado. A dois passos do metrô, a três ruas da delegacia e a cinco minutos do hospital. A Gare Montparnasse é que fica um pouco longe.
Esvaziei todas as caixas da mudança, limpei os banheiros, montei os móveis e colei nosso sobrenome na caixa de correspondência. Passo para a organização da louça rememorando a mudança anterior.
Tinha sido num sábado de agosto. Fazia calor e, na porta do elevador com cheiro de xixi, o desenho de um enorme pênis nos saudava. Thomas não parou de rir durante toda a subida, até o quarto andar, Charline lamentou não ter ido morar com o pai. Ele tinha 8 anos, e ela 12.
Antes mesmo de montar os móveis, decorei os quartos deles. Cores bonitas nas paredes, para apagar o trauma do divórcio. Thomas escolhera um papel de parede cheio de naves espaciais, Charline optara por uma pintura lilás. O vendedor da loja de decoração nos avisara: para evitar inalar odores tóxicos, era preciso arejar bem os quartos por no mínimo 48 horas e, se possível, não dormir dentro deles. Passamos duas noites dormindo no chão da sala nova, em nossos colchões. Meu filho enroscado em meu braço esquerdo, minha filha aninhada em meu braço direito. Esse acampamento improvisado é uma de minhas lembranças preferidas.
Guardo os pratos e Thomas aparece à porta. Sua cabeça quase toca o batente superior.
– Mãe, viu meu carregador?
– Em cima da geladeira. Está com fome?
– Um pouco – ele responde, dando de ombros.
Vasculho o armário e encontro uma barra de chocolate amargo. Ele sorri.
Todo fim de dia, esse é o nosso ritual. Chegamos em casa na mesma hora, Thomas do colégio, eu do escritório. Nos encontramos na cozinha, corto duas grossas fatias de pão, nas quais disponho dois quadradinhos de chocolate, e coloco tudo no forno por três minutos, o tempo exato para uma crosta resistente e um miolo derretido. Nem sempre conversamos, ele costuma mergulhar no celular, mas estamos juntos.
– Charline te mandou um beijo – ele diz, e dá uma mordida no pão com sofreguidão.
– Falou com ela?
– Por mensagem. Ela vai ligar amanhã.
Seguro-me para não limpar a mancha marrom na ponta de seu nariz. Ele calça 45, usa barba e acaba de tirar a carteira de motorista, poderia se ofender. Pego um guardanapo, ele sorri. Está feliz.
– Viu a hora? – pergunta.
Olho para o relógio. Já!?
Volto para o armário e retomo a arrumação dos pratos.
– Mãe, você vai perder o trem.
– Não, tenho tempo.
– Mãe… está tudo bem. Não se preocupe.
Fecho o armário, dou uma última volta na sala, o mais devagar que posso, pego minha bolsa, coloco um sorriso no rosto, abraço meu filho com força e saio de seu primeiro apartamento, para o qual acabo de ajudá-lo a se mudar. Em algumas horas, estarei no meu, vazio, a seiscentos quilômetros de distância.
Você vai nascer hoje. Eu não estou pronta. Tinha vindo apenas fazer um exame.
O doutor Malois estava sorridente. Eu tirei a roupa, deitei, abri as pernas e, como sempre, escondi meu desconforto com palavras. Sempre preparo o que dizer. Escolho com antecedência o assunto a propor ao obstetra quando ele se aproxima de minhas intimidades, interessante o suficiente para que eu me esqueça de mim mesma, mas não demais, para que ele se mantenha concentrado. O assunto do dia era o calor infernal daquele mês de setembro, “o senhor viu isso, doutor, parece que estamos em julho, é insuportável e, com vinte quilos a mais, nem queira saber, tenho a impressão de viver dentro de um forno, tudo fica mais complicado com esse calor, hoje levei dez minutos para sair da cama, parecia uma tartaruga deitada sobre o dorso, não aguento mais, o frio precisa voltar, embora eu não goste de usar meia-calça, ao menos não perderei três litros ao tentar colocá-la, já chega, não estamos num veranico de inverno, mas em um veranico de inferno”.
Meu humor estava tão pouco à vontade quanto eu.
Quando o rosto do doutor Malois emergiu de minhas coxas, ele não estava mais sorrindo. Ficou em silêncio, e eu com vontade de perguntar alguma coisa. Ele tirou as luvas cheias de sangue, encheu minha barriga de gel, ligou a tela e, antes de encostar o aparelho em minha pele esticada, acariciou minha cabeça. Entendi que era grave.
Enquanto eu era levada para a ala cirúrgica, tentei me lembrar de todas as reportagens sobre prematuros que vira sem prestar atenção. Quais eram as chances de sobrevivência de um bebê com sete meses de gestação? Quais eram os riscos de sequelas? Não tive coragem de perguntar. Olhei para o teto.
Há nove pessoas a nosso redor. Seu pai está a caminho. Espero que chegue antes de você.
A obstetra responsável pelo nosso parto me explica o que vai acontecer, ela tem a voz suave dos que anunciam o pior, escuto sem escutar, olho para a porta esperando que seu pai a abra, o anestesista pica minhas costas, bato os dentes, eles me cobrem com o lençol cirúrgico, engulo minhas lágrimas, você não pode sentir meu medo, olho fixamente para a maldita porta, eles abrem meus braços em cruz, murmuro para você que vai dar tudo certo, a porta se abre, seu pai chega. Você também.
Thomas
Querido, sou eu. Cheguei bem.
Não se esqueça de fechar as venezianas assim que começar a escurecer, nunca se sabe. Beijos. Mãe. 21h34
Obrigado pela ajuda, mãe. Não se preocupe comigo, está tudo bem. Amo você.
22h56
Amo você mais ainda. Mas espero que tenha fechado as venezianas. Beijos. Mãe. 22h57
Élise
Nunca demorei tanto para percorrer a alameda que leva a meu prédio. Pensei em não voltar para casa de imediato, prolongar o autoengano e chafurdar um pouco no passado, mas preciso sair com Édouard.
Meu adorável filho deixou um vazio, e também seu cachorro.
Édouard pesa catorze quilos, treze de intestinos. Como os gatos, todos os dias me deixa um presente, que não é um pássaro.
Insisti para que Thomas levasse o cachorro: “Querido, um animal precisa do dono, vocês estão juntos o tempo todo, há seis anos, você não pode abandoná-lo, trabalho o dia todo, ele vai ficar sozinho, vai sentir sua falta, veja esses olhinhos cheios de amor, vamos, seja razoável, ele vai parar de comer, você vai ficar com peso na consciência, seu insensível, dono indigno, assassino”, mas nada adiantou. Édouard agora é minha única companhia.
Subo as escadas. O elevador é rápido demais.
Édouard não está atrás da porta quando a abro. No entanto, é isso o que sempre faz desde sua vida passada, quando foi um peso de porta. A entrada está vazia, o tapete limpo. A cozinha, silenciosa. Ninguém na sala. Começo a me preocupar quando um ronco chama minha atenção. Na ponta dos pés, vou até o quarto de Thomas.
As paredes ainda carregam as marcas da adolescência. Ao lado de um cartaz de um show de rock, algumas fotografias
emolduradas, um desenho a lápis nunca terminado e tachinhas solitárias. A prateleira branca ostenta com orgulho medalhas empoeiradas, testemunhas derradeiras dos feitos de meu filho nos aparelhos de ginástica. Seu primeiro violão está no chão. No guarda-roupa aberto, vejo duas camisetas pequenas demais e um jeans rasgado demais, meias sujas demais e um blusão desprezado demais, tricotado por mim depois de sua primeira desilusão amorosa. No lugar da cama, um vazio. No lugar da escrivaninha, um vazio. No lugar do meu coração, um vazio.
No lugar da cadeira, Édouard.
Ele me observa com um olho só, o outro olha para o teto. Édouard tinha 4 anos quando o adotamos. Foi o presente de aniversário de Thomas, ele não queria outra coisa. Quando entendi que o pedido não era um simples capricho, aceitei realizá-lo, desde que ele cuidasse de Édouard. Ele era o cachorro mais feio do abrigo. Tinha um pelo branco amarelado, orelhas enormes, um dente para cada lado e olhos esbugalhados. Thomas se apaixonou.
– Mãe, não podemos levar esse cachorro, vamos pagar o maior mico! – gemeu Charline.
– É esse que eu quero – disse Thomas.
Minha filha tentou fazer de tudo para que o irmão se interessasse por um labrador, por um buldogue francês e por um pequeno vira-lata adorável, mas Thomas não mudou de ideia, e ele tinha um argumento imbatível:
– Ele me lembra o vovô.
Meu pai havia morrido três meses antes. Thomas o adorava. Ele era fascinado por astronomia e pela natureza, e pegava as crianças com frequência para observar árvores, insetos e constelações. Morreu no dia de seus 74 anos. Chamava-se Édouard.
O cachorro deve ter visto meu olhar como um incentivo, pois se levanta e corre na minha direção, escorregando no assoalho, a língua tremulando como uma bandeira. Não tenho
tempo de me proteger, ele toma impulso com as patas traseiras, fica em pé e suas unhas arranham minhas panturrilhas.
– Merda, Édouard!
Dou um grito. Ele se estatela com a barriga no chão. O voluntário do abrigo de animais nos avisara no dia da adoção: Édouard sofrera maus-tratos. Ele não suportava que elevássemos o tom de voz e levava um susto ao menor ruído, mesmo quando este vinha de seu próprio corpo. Uma vez, ele se mijou de medo ao me ver com uma vassoura. De tanto receber amor, recuperou a confiança no ser humano, mas velhos traumas sempre podem ressurgir.
Abaixo-me e faço uma leve carícia em sua cabeça. Ele rola de costas e me oferece sua barriga rosada. Seu rabo balança entre as patas. A nosso redor, o vazio do quarto me faz lembrar da minha situação. Levanto e saio, deixando Édouard sozinho com sua expectativa de afeto.
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