FILOAGAMBEN
ISBN 978-85-8217-517-0
9 788582 175170
www.autenticaeditora.com.br
Bartleby, ou da contingência
O TRADUTOR: Vinícius Honesko é doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atualmente é professor-adjunto do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Além de diversos artigos e ensaios publicados, é autor do livro O paradigma do tempo: Messianismo e Walter Benjamin em Giorgio Agamben (Vida e Consciência, 2009). Já traduziu autores como Furio Jesi, Jean-Luc Nancy, Roberto Esposito e Giorgio Agamben (de quem, além deste texto e de diversos artigos, já traduziu O que é o contemporâneo? e outros ensaios, Argos, 2009; e Categorias Italianas. Estudos de poética e literatura, EDUFSC, 2014).
GIORGIO AGAMBEN
GIORGIO AGAMBEN nasceu em 1942, em Roma, e laureou-se em Direito, em 1965, com uma tese sobre Simone Weil. Em 1966, participou do primeiro Seminário de Thor, que Heidegger realizou a convite de René Char. Entre 1974 e 1975, fez pesquisas em Londres na Warburg Institute Library. Entre 1982 e 1993, assumiu a tarefa de apresentar ao público italiano uma edição completa das obras de Walter Benjamin pela editora Einaudi, de Turim. Nesse processo, acabou descobrindo textos inéditos de Benjamin na biblioteca de Paris. Por discordâncias com a editora, abandonou o projeto. Entre 1986 e 1993, foi diretor de programa do Colégio Internacional de Filosofia de Paris. A partir de 1988, passou a ensinar na Itália, primeiro em Macerata, depois em Verona e, por fim, no Istituto Universitario di Architettura de Veneza (IUAV), de onde se demitiu em 2009.
“Benjamin certa vez exprimiu a tarefa de redenção que ele confiava à memória na forma de uma experiência teológica que a recordação faz com o passado. ‘O que a ciência estabeleceu’, escreve ele, ‘pode ser modificado pela recordação. A recordação pode fazer do irrealizado (a felicidade) um realizado, e do realizado (a dor) um irrealizado. Isso é teologia: mas, na recordação, nós fazemos uma experiência que nos veta conceber a história de modo fundamentalmente ateológico, assim como nem mesmo nos é consentido escrevê-la de maneira direta em conceitos teológicos’. A recordação restitui possibilidade ao passado, tornando irrealizado o acontecido e realizado o que não foi. A recordação não é nem o acontecido nem o não acontecido, mas o seu potenciamento, o seu tornar-se de novo possível. É nesse sentido que Bartleby coloca em questão o passado, reclama-o: não tanto para simplesmente redimir o que foi, para fazê-lo ser de novo, quanto para restituí-lo à potência, à indiferente verdade da tautologia. O ‘preferiria não’ é a restitutio in integrum da possibilidade que a mantém em suspenso entre o acontecer e o não acontecer, entre o poder ser e o poder não ser. Ele é a recordação daquilo que não foi.”
GIORGIO
AGAMBEN Bartleby, ou da contingência seguido de
Herman Melville Bartleby, o escrevente Uma história de Wall Street
Publicado na Itália, dois anos antes do primeiro volume de Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua (1995), este pequeno texto de Agamben poderia ter sido completamente ofuscado pela proximidade com o livro mais conhecido do filósofo italiano, não fosse Bartleby um dos personagens mais insistentes em sua obra e a categoria de potência, aqui longamente desenvolvida, a mais importante de todo o seu pensamento. Bartleby, ou da contingência, o texto de Agamben a que o leitor brasileiro tem finalmente acesso, foi publicado na Itália pela editora Quodlibet, em 1993, juntamente com uma tradução italiana de Bartleby ou a fórmula, de Gilles Deleuze, num volume único, intitulado Bartleby, a fórmula da criação, o que gerou o equívoco, que durou algum tempo, de que se tratava de um livro escrito juntamente com o filósofo francês, a quatro mãos. O texto de Deleuze, que tinha sido publicado na França alguns anos antes, em 1989, certamente serviu de inspiração a Agamben, que se refere a ele em seu ensaio, mas o filósofo italiano pretende que, mais do que uma zona de indiscernibilidade entre o sim e o não, o preferível e o não preferido, como queria Deleuze, a figura de Bartleby e a sua fórmula desconcertante abrem, sobretudo, uma zona de indiscernibilidade entre a potência de ser (ou de fazer) e a potência de não ser (ou de não fazer). Agamben retoma, aqui, na verdade, as ideias que já tinha esboçado em um capítulo intitulado “Bartleby” de seu livro anterior, A comunidade que vem, de 1990. A ideia de uma “potência de não”, que faria fortuna em seu pensamento posterior, já está aqui claramente delineada, neste que é, seguramente, um dos mais belos ensaios do filósofo italiano. Cláudio Oliveira
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A Razão Pascal Quignard
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Giorgio Agamben Bartleby, ou da contingência Tradução: Vinícius Honesko Revisão da tradução: Cláudio Oliveira
SEGUIDO DE
Herman Melville Bartleby, o escrevente Uma história de Wall Street Tradução: Tomaz Tadeu
Copyright © 1993 by Giorgio Agamben. Originalmente publicado pela Quodlibet Copyright da tradução de Bartleby, o escrevente: uma história de Wall Street © 2015 Tomaz Tadeu Copyright © 2015 Autêntica Editora Títulos originais: Bartleby o della contingenza – Giorgio Agamben Bartleby, the Scrivener: A Story of Wall Street – Herman Melville Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.
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revisão
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Diogo Droschi capa
Alberto Bittencourt (Sobre imagem do Disco de Festo, Museu Arqueológico de Heraklion, Creta, Grécia.) diagramação
Waldênia Alvarenga Santos Ataíde
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Bartleby, ou da contingência / Giorgio Agamben ; tradução Vínicius Honesko --- Bartleby, o escrevente : uma história de Wall Street / Herman Melville ; tradução Tomaz Tadeu. -- Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2015. -- (Filô/Agamben) Título original: Bartleby o della contingenza / Giorgio Agamben -- Bartleby, the Scrivener : A Story of Wall Street / Herman Melville. ISBN 978-85-8217-517-0 1. Filosofia e literatura 2. Melville, Herman, 1819-1891. Bartleby, o escrivão - Crítica e interpretação I. Título. II. Série. 14-11915 CDD-195 Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia italiana 195
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Giorgio Agamben Bartleby, ou da contingência
GIORGIO AGAMBEN BARTLEBY, OU DA CONTINGÊNCIA
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Nam simul cum cathedra creavit Deus tabulam quamdam ad scribendum, que tantum grossa erat quantum posset homo ire in mille annis. Et erat tabula illa de perla albissima et extremitas eius undique de rubino et locus medius de smaragdo. Scriptum verum in ea existens totum erat purissime claritatis. Respiciebat manque Deus in tabulam illam centum vicibus die quolibet et quantiscumque respiciebat vicibu, construebat et destruebat, creabat et occidebat... Creavit manque Deus cum predicta tabula penam quamdam claritatis ad scribendum, que habebat in se longitudinis quantum posset homo ire in VC annis et tantumdem ex latitudine quidem sua. Et ea creata, precepit sibi Deus ut scriberet. Penna vero dixit: “Quid scribam?” At ille respondens: “Tu scribes sapienciam mean et criaturas omnes meas a principio mundi usque ad finem”.1 Libro della Scala, cap. xx
Em latim no original. “Ao mesmo tempo que a cátedra, Deus criou uma tábua para escrever, tão grande que para percorrê-la um homem levaria mil anos. Essa tábua era branquíssima como pérola, e todas as
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extremidades eram de rubi, sendo o centro de esmeralda. De fato, tudo que nela estava escrito era de uma puríssima clareza. E Deus olhava para essa tábua cem vezes ao dia (que quisesse), e a cada vez que olhava construía e destruía, criava e aniquilava... E com mencionada tábua criou Deus uma pena de clareza para escrever, cujo comprimento era tal que um homem precisaria de 95 anos para a percorrer, e assim também para sua largura. E depois de a ter criado, Deus ordenou-lhe que escrevesse para ele. Mas a pena disse: ‘O que escreverei?’ E ele respondeu: ‘Tu escreves a minha sabedoria e todas as minhas criaturas, desde o princípio do mundo até o seu fim’”. (N.T.)
Como escrevente, Bartleby pertence a uma constelação literária cuja estrela polar é Akáki Akákievitch (“ali, naquelas cópias, estava para ele, de alguma maneira, contido todo o mundo... certas letras eram as suas favoritas, e quando a elas chegava perdia completamente a cabeça”), em cujo centro estão os dois astros gêmeos Bouvard e Pécuchet (“boa ideia nutrida em segredo por ambos...: copiar”) e em seu outro extremo brilham as luzes brancas de Simon Tanner (“eu sou escrevente” é a única identidade que ele reivindica) e do príncipe Míchkin, que pode reproduzir sem esforço qualquer caligrafia. Mais além, como um curto cinturão de asteroides, os anônimos oficiais de justiça dos tribunais kafkianos. Mas há também uma constelação filosófica de Bartleby, e é possível que apenas esta contenha a cifra da figura que a outra se limita a traçar.
O escriba, ou da criação I.1. O léxico bizantino conhecido sob o nome de Suda registra, no verbete Aristóteles, esta singular definição: “Aristóteles era o escriba da natureza, que molha a pena no pensamento”. Nas suas notas à tradução do Édipo de 11
Sófocles, Hölderlin cita, sem nenhum motivo aparente, tal passagem, subvertendo-a por meio de uma mínima correção: “Aristóteles era o escriba da natureza, que molha a pena benévola (eunoun em vez de eis noun)”. As Etimologias, de Isidoro de Sevilha, desse trecho conhecem uma versão diferente, que remonta a Cassiodoro: “Aristóteles, quando perihermeneias scriptabat, calamum in mente tingebat” (Aristóteles, quando escrevia o tratado sobre a interpretação – uma das obras lógicas fundamentais do organon –, molhava a pena na mente). Em ambos os casos, decisiva não é tanto a imagem do escriba da natureza (que já se encontra em Ático2) quanto o fato de que o nous, o pensamento ou a mente, seja comparado a um tinteiro em que o filósofo molha a própria pena. A tinta, a gota de trevas com a qual o pensamento escreve, é o próprio pensamento. De onde provém essa definição que nos apresenta a figura fundamental da tradição filosófica ocidental nas humildes vestes de um escriba e o pensamento como um ato, mesmo se muito particular, de escritura? Há apenas um texto em todo o corpus aristotélico no qual encontramos uma imagem de algum modo similar, que pode ter fornecido a deixa a Cassiodoro ou ao desconhecido metaforista; ela não pertence, porém, ao organon lógico, mas ao tratado sobre a alma. Trata-se da passagem do terceiro livro (430a) em que Aristóteles compara o nous, o intelecto ou o pensamento em potência, a uma tabuleta para escrever sobre a qual nada está escrito ainda: “como sobre uma tabuleta para escrever (grammateion) em que nada está escrito em ato, assim acontece no nous”.3 Agamben se refere a Herodes Ático, retórico e político ateniense de cidadania romana que viveu entre os anos 101 e 177 d.C. (N.T.) 3 Uma das estratégias argumentativas de Agamben, como é notório, encontra-se nas traduções (ou correções de traduções) que faz tanto 2
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Na Grécia do quarto século antes de Cristo, a escritura feita com tinta sobre uma folha de papiro não era a única prática corrente; com mais frequência, sobretudo para uso privado, escrevia-se gravando com um estilete uma tabuleta coberta por uma fina camada de cera. Em um ponto crucial de seu tratado, no momento de indagar a natureza do pensamento em potência e o modo da sua passagem ao ato da intelecção, é ao exemplo de um objeto desse gênero que Aristóteles recorre, provavelmente àquela mesma tabuleta sobre a qual estava, naquele momento, anotando seus pensamentos. Muito mais tarde, quando a escritura com cálamo e tinta já era a prática dominante e a imagem aristotélica corria o risco de parecer antiquada, alguém a modernizou no sentido depois registrado pelo Suda.
I.2. Na tradição da filosofia ocidental, a imagem fez fortuna. Ao traduzir grammateion por tabula rasa, o primeiro tradutor latino do De anima a confiou a uma nova história, que deveria desembocar, por um lado, na “folha em branco” de Locke (“suponhamos que no princípio a mente seja aquilo que se chama de folha em branco, privada de qualquer caractere, sem nenhuma ‘ideia’”) e, por outro, na incongruente expressão “fazer tábula rasa”. A imagem continha, de fato, a possibilidade de um equívoco, que certamente contribuiu para o seu sucesso. Já Alexandre de Afrodísia havia notado que o filósofo deveria ter falado não de um grammateion, mas, de maneira mais precisa, da sua epitēdeiotēs, isto é, da fina camada de cera sensível que dos clássicos gregos como dos latinos. Para manter, portanto, esse seu modo de pensar, optamos por traduzir diretamente os trechos que ele cita (em sua tradução ou com suas correções), sem recorrer às traduções correntes disponíveis em português. (N.T.) GIORGIO AGAMBEN BARTLEBY, OU DA CONTINGÊNCIA
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o recobre e sobre o qual o estilete grava os caracteres (nos termos dos tradutores latinos, não de tabula rasa, mas de rasura tabulae). A observação (sobre a qual Alexandre tinha especiais razões para insistir) era, todavia, exata. A dificuldade, que Aristóteles procura contornar com a imagem da tabuleta, é, de fato, aquela da pura potência do pensamento e de como seja concebível a sua passagem ao ato. Pois, se o pensamento já tivesse em si alguma forma determinada, já fosse sempre alguma coisa (como é uma coisa a tabuleta para escrever), ele necessariamente se manifestaria no objeto inteligível e impediria, assim, a sua intelecção. Por isso, Aristóteles tem o cuidado de especificar que o nous “não tem outra natureza senão a de ser em potência e, antes de pensar, não é em ato absolutamente nada”. A mente é, portanto, não uma coisa, mas um ser de pura potência, e a imagem da tabuleta para escrever sobre a qual nada ainda está escrito serve precisamente para representar o modo em que existe uma pura potência. Toda potência de ser ou de fazer algo é, de fato, para Aristóteles, sempre também potência de não ser ou de não fazer (dynamis mē einai, mē energein), uma vez que, de outro modo, a potência passaria desde sempre ao ato e com este se confundiria (segundo a tese dos Megáricos refutada explicitamente por Aristóteles no livro Theta da Metafísica). Essa “potência de não” é o segredo cardeal da doutrina aristotélica sobre a potência, que faz de toda potência, por si mesma, uma impotência (tou autou kai kata to auto pasa dynamis adynamia – Met. 1046a, 32). Como o arquiteto mantém sua potência de construir mesmo quando não a coloca em ato e como o tocador de cítara é tal porque também pode não tocar a cítara, assim o pensamento existe como uma potência de pensar e de não pensar, como uma tabuleta encerada sobre a qual nada ainda está escrito (o intelecto possível dos filósofos medievais). E como a 14
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camada de cera sensível é de repente gravada pelo estilete do escriba, assim também a potência do pensamento, que em si não é algo, deixa advir o ato da inteligência.
I.3. Em Messina, entre 1280 e 1290, Abraão Abulafia compôs os tratados cabalísticos que, depois de permanecerem manuscritos por séculos nas bibliotecas europeias, apenas no nosso século foram restituídos à atenção dos não especialistas por Gershom Scholem e Moshe Idel. Neles, a criação divina é concebida como um ato de escritura no qual as letras representam, por assim dizer, o veículo material por meio do qual o verbo criador de Deus – assimilado a um escriba que move sua pena – incorpora-se às coisas criadas. “O segredo que está na origem da multidão das criaturas é a letra do alfabeto e toda letra é um signo que se refere à criação. Como o escriba tem em mãos a sua pena e, por meio dela, traz algumas gotas da matéria da tinta, prefigurando na sua mente a forma que quer dar à matéria – todos gestos nos quais a mão do escriba é a esfera vivente que move a pena inanimada que lhe serve de instrumento para fazer escorrer a tinta sobre o pergaminho que representa o corpo, suporte da matéria e da forma –, assim também atos similares são realizados nas esferas superiores e inferiores da criação, como quem tem inteligência pode compreender por si, porque acerca disso é proibido falar mais.” Abulafia era um leitor de Aristóteles e, como todo judeu culto do seu tempo, lia o filósofo por meio das traduções e dos comentários árabes. Nesse momento, o problema do intelecto passivo e da sua relação com o intelecto agente ou poético (que Aristóteles, no De anima, havia liquidado com poucas e enigmáticas frases) havia solicitado particularmente a acuidade dos falasifa (como eram chamados no Islã os discípulos de Aristóteles). Precisamente o príncipe dos falasifa, GIORGIO AGAMBEN BARTLEBY, OU DA CONTINGÊNCIA
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Avicena, havia concebido a criação do mundo como um ato da inteligência divina que pensa a si mesma. Também a criação da esfera sublunar (que, no processo emanacionista que Avicena tem em mente, é obra do último dos anjos-inteligência, este que não é outro senão o intelecto agente de Aristóteles) só podia, por isso, ser exemplificada com base no modelo do pensamento que pensa a si mesmo e, desse modo, deixa ser as múltiplas criaturas. Todo ato de criação (como bem sabiam os poetas de amor do século XIII, que transformaram em mulheres os anjos de Avicena) é um ato de inteligência e, vice-versa, todo ato de inteligência é um ato de criação, deixa ser algo. Mas, precisamente no De anima, Aristóteles havia representado o intelecto em potência como uma tabuleta sobre a qual nada está escrito. Como consequência, Avicena, no seu maravilhoso tratado sobre a alma que os medievais conheciam como Liber VI naturalium, serve-se da imagem da escritura para ilustrar as várias espécies ou graus do intelecto possível. Há uma potência (que ele chama de material) que se assemelha à condição de uma criança que certamente um dia poderá aprender a escrever, mas que ainda não sabe nada da escritura; há, depois, uma potência (que ele chama de fácil ou possível) que é como aquela de uma criança que começa a se familiarizar com a pena e a tinta e sabe apenas traçar as primeiras letras; há, por fim, uma potência completa ou perfeita, que é aquela de um escriba perfeitamente senhor da arte de escrever, no momento em que não escreve (potentia scriptoris perfecti in arte sua, cum non scripserit). Na tradição árabe posterior, a criação foi, por isso, assimilada a um ato de escritura, e o intelecto agente ou poético, que ilumina o passivo e o faz passar ao ato, é, por isso, identificado com um anjo cujo nome é Pena (Qalam). Não é um acaso, portanto, se, ao traçar, na cidade santa, o plano da obra na qual trabalharia até a morte, 16
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As iluminações da Meca, o grande sufi andaluz Ibn-Arabi decidiu dedicar o segundo capítulo à “ciência das letras” (‘ilm al-hurûf ). Tal ciência, que trata dos graus hierárquicos das vogais e das consoantes e das suas correspondências nos nomes divinos, assinala, com efeito, no processo de conhecimento, a passagem do inexprimível ao exprimível e, no processo da criação, a passagem da potência ao ato. A existência, o ser puro, que para os escolásticos é simplesmente inefável, é definida por Ibn-Arabi como “uma letra da qual tu és o sentido” e a passagem da potência ao ato da criação é representada graficamente como o ductus que enlaça, em um só gesto, as três letras alif-lam-mim:
A primeira parte desse grafema, a letra alif:
significa a descida do ser em potência em direção ao atributo; a segunda, lam:
a extensão do atributo em direção ao ato; e a terceira, mim:
a descida do ato em direção à manifestação. GIORGIO AGAMBEN BARTLEBY, OU DA CONTINGÊNCIA
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