Bruce Dickinson

Page 1

JOE SHOOMAN

Bruce Dickinson os ALTos Voos coM o iron MAiDen e o Voo soLo

De uM Dos MAiores MÚsicos Do HeAVY MeTAL


Foto: Ceedub 13


JOE SHOOMAN t r a d u ç ã o:

Eliel Vieira

BRUCE DICKINSON OS A LTOS VOOS COM O IRON M A IDEN E O VOO SOLO

DE UM DOS M A IORES MÚSICOS DO HE AV Y ME TA L


Copyright © 2010 Independent Music Press Copyright © 2013 Editora Gutenberg Título original: Bruce Dickinson: Flashing Metal with Iron Maiden and Flying Solo

Todos os direitos reservados pela Editora Gutenberg. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora. gerente editorial

diagramação

Alessandra J. Gelman Ruiz

Christiane Costa

assistente editorial

revisão

Felipe Castilho

Aline Sobreira Cecília Martins Eduardo Soares

tradução

Eliel Vieira revisão técnica

Ricardo Seelig Ricardo Lira

capa

Diogo Droschi (sobre imagem de Hayley Madden / Rex Features)

preparação

Amanda Pavani

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Shooman, Joe Bruce Dickinson : Os altos voos com o Iron Maiden e o voo solo de um dos maiores músicos do heavy metal / Joe Shooman ; tradução Eliel Vieira. -- Belo Horizonte : Editora Gutenberg, 2013. Título original: Bruce Dickinson : Flashing Metal with Iron Maiden and Flying Solo. ISBN 978-85-8235-083-6 1. Dickinson, Bruce, 1958- 2. Iron Maiden (Grupo musical) 3. Músicos de rock - Grã-Bretanha - Biografia I. Título. 13-06308

CDD-782.42166092

Índices para catálogo sistemático: 1. Bruce Dickinson : Músicos de rock : Biografia 782.42166092

EDITORA GUTENBERG LTDA. São Paulo

Belo Horizonte

Av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, Horsa I, 23º andar, Conj. 2301 Cerqueira César . São Paulo . SP . 01311-940 Tel.: (55 11) 3034 4468

Rua Aimorés, 981, 8º andar . Funcionários 30140-071 . Belo Horizonte . MG Tel.: (55 31) 3214 5700

Televendas: 0800 283 13 22 www.editoragutenberg.com.br


AGRADECIMENTOS

Meus agradecimentos a todos que concordaram em compartilhar, para este livro, seus pensamentos sobre Bruce, e a certas pessoas que se negaram a receber os créditos, mas sabem quem são. Muito obrigado! Foi muito mais do que eu poderia esperar, e estou imensamente grato. Muito obrigado também aos entrevistados (em ordem alfabética): Alex Elena, Bernie Torme, Bill Liesegang, Chris Dale, Chris Tsangarides, Dave Pybus, Dean Karr, Jack Endino, Jennie Halsall, Joakim Stabel, John McCoy, John Tucker, Keith Olsen, Neal Kay, Rob Grain (e o acervo de Paul Samson), Rob Hodgson, Robin Guy, Steve Jones, Stuart Smith, Thunderstick, Tom Parker, Tony Newton e Tony Platt. Meu muito obrigado também ao venerável Spencer Leigh, da BBC, e aos lendários Henrik Johansson e Mattias Reinholdsson, do site <http://www.bookofhours.net>, por disponibilizarem seus arquivos para este projeto. Vinho e bolo para todo mundo, meus caros! Agradeço também a Kenn Taylor, por seu trabalho na discografia e nas transcrições, e a Jon Hall, pelas transcrições e pelo uísque. Que eu comprei dele, por sinal. Há várias pessoas que me orientaram e ficaram felizes em me ajudar a lapidar o texto em muitas ocasiões. Agradeço o apoio de Tank Ernst, Dave Ling, Joel McIver, Raziq Rauf, Karen Toftera e, como sempre, do time da Independent Music Press e de todos os Shoomans, do passado, do presente e do futuro. Meu agradecimento especial a Tony Coates. Joe Shooman 12 de março de 2007


SUMÁRIO

Introdução ........................................................................................ 9 1. História . . .................................................................................. 11 2. No qual nosso galante herói entra em diversas bandas que começam com a letra “S” ........................................................... 21 3. No qual nosso protagonista conhece o mundo no sentido bíblico ...... 33 4. No qual um vocalista adquire um nome composto, para confusão e entretenimento de todos .......................................................... 46 5. Percalços de Head on ................................................................ 62 6. Shock Tactics? Você não sabe da missa a metade, chefe ................. 81 7. No qual o personagem principal da fábula se descobre diante de uma oferta que não pode recusar, mas, por ser um cara gente boa, pensa um pouco a respeito ......................................................... 94 8. Qual é o seu número? The Number of the Beast .......................................................... 105 9. A subida da montanha-russa . . ................................................... 109 10. Jogos mentais Piece of Mind ......................................................................... 117 11. Escravos, morte e glória Powerslave . . ........................................................................... 121 12. Preso em algum lugar Somewhere in Time ................................................................. 129


13. Filhos Seventh Son of a Seventh Son ................................................... 140 14. Filhas “Bring Your Daughter... to the Slaughter” .................................... 147 15. No topo da árvore Fear of the Dark ....................................................................... 159 16. Bolas, bolas e mais bolas Balls to Picasso ....................................................................... 168 17. No qual nosso galante herói percebe que já há um tempo ele não participa de bandas que começam com a letra “S” e põe-se a corrigir tal negligência, obtendo excelentes resultados Skunkworks.............................................................................. 181 18. Ponto de rotação ...................................................................... 192 19. Renascimento........................................................................... 202 20. Reunião .................................................................................. 214 21. Depois da tempestade Brave New World ...................................................................... 220 22. 2002 ...................................................................................... 227 23. Almas dançantes Dance of Death / Tyranny of Souls .. ............................................. 234 24. Sobreviventes Ozzfest ................................................................................... 239 25. A Matter of Life and Death . . ....................................................... 244 Postscriptum ................................................................................... 258 Posfácio à edição brasileira Ricardo Lira .................................................................................. 259 Discografia selecionada ................................................................... 275


INTRODUÇÃO

Há muitas palavras para descrever Bruce Dickinson, e algumas delas felizmente podem ser publicadas.1 No entanto, não há dúvida de que uma carreira de trinta anos no topo da indústria musical demande um personagem com certas características. Em um negócio imprevisível, é indispensável uma grande dose de autoconfiança, paixão, trabalho pesado, boas decisões e muita sorte para não apenas se consolidar, mas prosperar. Seus famosos vocais operísticos são tão parte da cultura britânica quanto preparar uma xícara de chá nos intervalos da novela Coronation Street, e como vocalista do Iron Maiden, os heróis do heavy metal, com milhões de cópias vendidas, Dickinson fez inúmeras turnês pelo mundo, apresentando-se a várias gerações de exaltados e vociferantes fãs de metal. Mas Dickinson é muito, muito mais que apenas um estrondo em calças de elastano, martelando os céus com suas poderosas cordas vocais. Seus interesses e sua constante aversão a qualquer forma de estagnação – física e mental – o fizeram vestir muitas roupagens diferentes. Ele foi competidor de esgrima na Europa; autor de ficção best-seller; radialista; teve uma carreira solo mais que aceitável na música; na TV foi apresentador e ator; possui uma licença de piloto comercial e ainda se destaca na fraternidade do metal como o único indivíduo a pilotar o avião que levou soldados britânicos de volta para casa depois de um conflito internacional deveras duvidoso. Entregando-se igualmente a voos da imaginação e de misericórdia, esse bacharel em História está constantemente em movimento, mudando de ideia de tempos em tempos, sempre que a situação exige – como uma versão heavy metal de Worzel Gummidge.2 Entre as que não podem ser publicadas estão “ ”, “ ”, “ ” e até “ ”. Um espantalho falante, personagem infantil britânico criado por Barbara Euphan Todd, que se adapta às mais diversas situações. (N.T.)

1 2

9


Claro, o enorme sucesso do Iron Maiden é inegável, e sem o Maiden este livro não existiria. Mas o Maiden existiu e até fez sucesso sem Bruce; assim como Bruce obviamente existiu e, com certeza, fez sucesso sem o Maiden. O fato de ambos caminharem juntos como nitro e glicerina é meramente um feliz capricho do destino. Este livro, portanto, não é a história do Iron Maiden, mas um panorama das atividades de um artista cujas palavras e feitos abrangem três décadas. Como é de costume nesses casos, há apenas um lugar por onde começar: o começo.

10


1. HISTÓRIA

Em 1958, o mundo se realinhava após a destruição causada pela Segunda Guerra Mundial. Nos Estados Unidos, o presidente Dwight D. Eisenhower – em resposta ao lançamento, no ano anterior, do satélite Sputnik pela União Soviética – aprovou o lançamento do primeiro satélite norte-americano a orbitar a Terra, o Explorer One. Posteriormente, foi inaugurada a agência espacial norte-americana, a NASA, com o intuito tanto de proteger os Estados Unidos como de explorar o espaço. Presos no meio de uma Guerra Fria de desconfiança entre antigos aliados, ambos os lados ficaram impressionados com o poder de destruição mundial que cada país possuía em seu arsenal nuclear. Assim, a batalha foi travada em outras arenas – a corrida espacial se encontrava exatamente entre as duas ideologias conflitantes. Com certo receio, no final dos anos 1950 os norte-americanos lentamente se afastavam dos aspectos mais intensos da perseguição macarthista a cidadãos “desleais”, suspeitos de tendências comunistas. O ano 1958 também assistiu a uma decisão histórica, na qual a Suprema Corte determinou que era inconstitucional negar ao artista Rockwell Kent seu passaporte após ele ter se recusado a assinar um documento anticomunista. Durante o mesmo ano, um rebelde diplomado em Direito chamado Fidel Castro começou primeiro a mobilizar e então a liderar, uma bem-sucedida revolução contra o regime cubano do general Fulgencio Batista, enquanto na China o presidente Mao instigava o “Grande Salto para Frente” – um programa de aceleradas reformas nacionais que visava a aumentar a manufatura para, assim, tentar estimular o avanço tecnológico naquele imenso país. Politicamente, foram doze meses de grandes repercussões, e muitas de suas consequências são sentidas ainda hoje. 11


Amigos dos ianques, por todo o bom e velho Reino Unido, os britânicos não ficaram de fora do contínuo tinir das espadas – mas suas disputas eram muito mais mundanas e de teor tipicamente britânico. Em resposta à decisão da Islândia de expandir sua pescaria para doze milhas náuticas além de sua costa, o Reino Unido decretou que seus navios de pesca fariam seu trabalho nessas águas sob a proteção de navios de guerra. Após alguns conflitos menores, os britânicos se renderam aos descendentes dos vikings, embora houvesse algumas queixas e homens pacatos fossem humilhados nas filas das lanchonetes de peixe com fritas3 ao longo da “ilha coroada”.4 O Acordo de Mútua Defesa entre os EUA e o Reino Unido foi assinado no mesmo ano pelo primeiro-ministro conservador Harold Macmillan, possibilitando o compartilhamento de informações confidenciais entre os dois países acerca de atividades nucleares e do desenvolvimento de armas. No Oriente Médio, a monarquia iraquiana era derrubada, e o país se proclamava uma república, levantando grandes temores de instabilidade na região. No que diz respeito aos esportes, a Copa do Mundo de futebol daquele ano aconteceu na Suécia – que posteriormente viria a ser o paraíso das repugnantes megalojas de mobiliários de baixo custo, com mesas e armários batizados de George, Bungle e Zippy.5 A seleção inglesa da época, treinada por Walter Winterbottom, foi sorteada para o mesmo grupo de Áustria, Rússia e a seleção que saiu vencedora, o Brasil.6 Pela primeira vez o incrível talento de um gênio de apenas 17 anos (atualmente na casa dos 70) chamado Pelé foi apresentado ao mundo, quando ele marcou, sejamos sinceros, um gol da mais pura sorte contra o País de Gales nas quartas de final – seu primeiro gol em uma Copa do Mundo. Pela primeira vez o torneio era televisionado mundialmente, uma prova tanto da popularidade do esporte como da crescente recuperação Ver a nota 13 em J. Shooman. Whose Space Is It Anyway: An Unofficial Guide to the Sites that Changed the World. Independent Music Press, 2007. 4 No original, “Sceptred Isle”. Expressão popular para se referir à Inglaterra; remete a A tragédia do Rei Ricardo II (ato 2, cena 1), de Shakespeare: “Este real trono, esta ilha coroada [Sceptred Isle], este solo de altiva majestade, [...] este solo bendito, este torrão, esta Inglaterra”. (N.T.) 5 Referência à rede de lojas IKEA, de origem sueca. George, Bungle e Zippy são personagens do programa infantil Rainbow, o equivalente britânico de Vila Sésamo. (N.T.) 6 A Inglaterra foi derrotada na primeira fase da competição, pois estava enfraquecida após o terrível desastre aéreo em Munique. 3

12


financeira no pós-guerra, que permitiu que um número sem precedentes de famílias adquirissem bens de consumo como televisores em preto e branco. Foi em 1958 que os últimos vestígios de racionamento foram revogados no Reino Unido; em julho, acabaram as restrições para a compra de carvão, e uma geração crescia com uma liberdade de escolha mais ampla do que os últimos vinte anos haviam oferecido. No entanto, as coisas definitivamente não eram fáceis. Apenas com muito trabalho pesado era possível que jovens casais que começavam a vida conquistassem um nível razoável de estabilidade. Assim também era no coração da terra de Robin Hood, Nottinghamshire. Mais especificamente na cidade anglo-saxônica de Worksop, localizada na extremidade da floresta de Sherwood e repleta de história (foi mencionada pela primeira vez no livro censitário conhecido como Domesday Book, de 1086, embora a área tenha sido estabelecida muitos anos antes). Em 1296, Worksop recebeu uma Royal Charter 7 do sanguinário plantageneta Eduardo I, rei que subjugou o País de Gales e que se deliciava com o título bastante heavy metal que possuía por causa da vitória sobre William Wallace: “Martelo dos Escoceses”. A cidade das Midlands, no entanto, teve uma existência bastante tranquila por vários séculos, contando com a agricultura e a rica paisagem de seus arredores para se suprir de matéria-prima para seus mercados, além de dominar os ramos de trabalho com madeira, chapelaria e produção de malte. A cidademercado permaneceu relativamente intacta até a Revolução Industrial, quando o Canal de Chesterfield e as ferrovias de Manchester, Sheffield e Lincolnshire foram concluídos, ligando a colônia a seus vizinhos maiores e mais ilustres. As fábricas nas cidades mais desenvolvidas, reforçadas pela nova tecnologia, exigiam enormes volumes de energia para aumentar a produção – era o caso das sólidas empresas de talheres de Sheffield. Para esse fim, as áreas adjacentes a Worksop começaram a ser exploradas na busca por matéria-prima, e várias minas de carvão foram abertas para alimentar o apetite sempre voraz da indústria. Com o rápido crescimento da mineração e a expansão industrial da região, a população quadruplicou ao longo do século XIX.8 O número se estabeleceu em cerca de 16 Documento formal emitido por um monarca que garante um direito ou um poder a um indivíduo ou grupo de pessoas. (N.T.) 8 “Em 1801, a população de Worksop era de 3.263 habitantes, mas em 1901 ela havia crescido para mais de 16 mil pessoas” (Disponível em: <http://www.nottsnet.co.uk/ Worksop/worksop_facts.htm>. Acesso em: dez. 2006). 7

13


mil pessoas na primeira metade do século XX, e no fim dos anos 1950, após a dizimação causada pelas duas guerras mundiais, a recuperação de Worksop começava a dar seus primeiros sinais, sustentada pela demanda de energia para a indústria e o uso doméstico. Embora o Plano Marshall – uma série de políticas econômicas implantadas pelos EUA nos anos do pós-guerra – tenha ajudado a Europa a se equilibrar um pouco, a situação ainda não era fácil para um jovem casal que começava a vida, mesmo sem filhos. Portanto, os jovens pais do vocalista se depararam com um problemão quando Paul Bruce Dickinson fez sua primeira aparição pública (“Scream for me, parteira!”), em 7 de agosto de 1958.9 As finanças praticamente obrigaram o jovem trio (sua mãe tinha 17 anos, e seu pai, apenas um ano a mais) a se mudar para a casa dos avós de Bruce – um minerador de carvão e uma cabeleireira e dona de casa. A mãe de Bruce, Sonia, era uma talentosa dançarina que havia conquistado uma bolsa de estudos para o Royal College of Ballet antes de engravidar – o que efetivamente pôs fim à sua carreira. Bruce Dickinson, o pai, era mecânico do exército, enquanto sua esposa trabalhava por meio período em uma loja de sapatos. Assim foram os seis primeiros anos da vida de Bruce, antes que seus pais se mudassem para Sheffield, uma cidade maior, em busca de empregos que pagassem mais. Isso necessariamente fez com que ele ficasse aos cuidados de seus avós – época “extremamente feliz”, como ele posteriormente declararia.10 O jovem Bruce também teve a sorte de crescer durante uma das épocas mais empolgantes da música pop britânica. Dois anos após a explosão do rock ’n’ roll, em 1956, Elvis Presley, em um ato de rebeldia, entrou para o Exército. O que só serviu para ele voltar da experiência como um garoto tipicamente americano, embarcando posteriormente em uma série de filmes cada vez mais fracos, oportunistas e inúteis. Ainda que sua carreira tivesse chegado ao nível da mediocridade durante o início dos anos 1960, a rebeldia e a autoconfiança de Presley e seus compatriotas já haviam contagiado uma geração inteira, que agora buscava realmente encontrar seu caminho na vida. Os roqueiros haviam introduzido os artistas negros do rhythm’n’blues ao resto do mundo, especialmente em cidades portuárias Nesse ano, The Everly Brothers estavam no topo das paradas com o single “All I Have to Do Is Dream/Claudette”. Bruce faz aniversário no mesmo dia que o comediante Alexei Sayle e o baixista do Free, Andy Fraser (ambos seis anos mais velhos). 10 M. Wall. Iron Maiden: Run to the Hills – The Authorised Biography. 9

14


como Liverpool, onde o influxo de soldados e trabalhadores americanos trouxe consigo pérolas do vinil com exóticos nomes artísticos, como Muddy Waters, Howlin’ Wolf e Chuck Berry. Para qualquer adolescente minimamente interessado em música, um novo disco era um novo evento, algo a ser compartilhado e posto para tocar repetidas vezes com olhos arregalados de admiração. Grupos de skiffle11 brotavam por todos os lados, unidos pela gaita e pelo blues em 12 compassos, tocando covers desse novo som empolgante e vestindo lustrosas jaquetas de motoqueiro, inspiradas no papel de Marlon Brando no filme O selvagem, de 1953. Um desses grupos foi até batizado com o nome da gangue do filme (embora com uma vogal diferente)12: The Beatles, os moptops13 de Liverpool. Dickinson posteriormente comentou que suas primeiras lembranças musicais são de dançar “The Twist” – na versão de Chubby Checker – e atormentar seu avô (na época ainda na casa dos 40 anos) para lhe comprar o sucesso arrasador, lançado em 1963 pelos Beatles, “She Loves You”. Em uma entrevista a Spencer Leigh, especialista em Beatles, autor e apresentador de rádio, Dickinson comentaria que sua “música favorita dos Beatles é, de longe, ‘Let It Be’. Acho-a incrivelmente inspiradora; é como um hino – e eu curto alguns hinos”. Seria impossível para qualquer fã de música ter ignorado o crescente impacto do início dos Beatles, cuja carreira incipiente abrangeu a agressividade desconfiada, crua e sexual dos roqueiros – polida à perfeição em Liverpool com suas exaustivas turnês. Como banda da casa em clubes duvidosos na Rua Reeperbahn, em Hamburgo, mostraram uma esplêndida e natural sensibilidade pop e uma crescente onda de inovação, incentivada e trabalhada pelo lendário produtor George Martin. O fato de a tecnologia para reprodução de músicas ter se tornado mais acessível, somado ao surgimento de rádios piratas, incluindo a Radio Luxembourg, indicava que a experiência musical dos garotos que cresciam nos anos 1960 seria mais rica que nunca. Para Bruce – recém-acomodado em Sheffield, para voltar a morar com seus pais e sua irmã, Helen, nascida em 1963 –, essa educação musical foi reforçada assistindo regularmente ao programa de TV Jukebox Jury e Tipo de música folk com influência de jazz, blues e country, popular entre a juventude britânica na década de 1950. (N.T.) 12 As gangues no filme: The Beetles, que chega para roubar o troféu de Brando, e Black Rebels Motorcycle Club (também nome de banda!). 13 Referência ao nome do corte de cabelo eternizado pelos Beatles, o “Moptop Hair”. O corte recebeu esse nome devido a sua semelhança com o esfregão de limpeza (mop, em inglês). (N.T.) 11

15


golpeando um violão velho e quase destruído que ele havia encontrado. Segundo Bruce, o violão pertencera ao papai Dickinson, que, em uma encarnação anterior, se apresentava em dupla com sua esposa em um show de cães adestrados. Ainda assim, o bichinho da música o havia picado; era uma diversão muito útil durante a relativa instabilidade na mudança de escolas, da notoriamente grosseira Manor Top – onde o novato era (como geralmente ocorre) ridicularizado e, ocasionalmente, agredido aqui e ali – para a elegante escola particular Sharrow Vale. O avô de Bruce, no entanto, o ensinara a cuidar da própria vida, a se orgulhar de quem era e a não levar nenhum desaforo para casa: lições que se provaram úteis – e, algumas vezes, problemáticas – não apenas ao longo de sua vida escolar, mas também nos loucos anos que vieram depois. Em 1971, quando Bruce tinha 13 anos, seus pais começaram a conquistar uma vida mais estável financeiramente, com muito trabalho pesado e muitos calos conquistados na indústria. Muitas casas avariadas foram compradas a baixos preços pelos Dickinsons, que então as reformavam e vendiam com certa margem de lucro (ironicamente, devido a acontecimentos muito posteriores, eles foram tão bem-sucedidos que provavelmente poderiam garantir seu próprio reality show de superação). Como havia dinheiro suficiente para proporcionar ao garoto o que se chamava de “educação clássica”, eles despacharam o “filho número um” para Oundle, colégio interno e particular em Northamptonshire. Novamente, de certa forma é irônico que Oundle naquela época tenha se tornado um empreendimento tão sólido quanto a escola para garotos Eton, tendo sido fundada em 1556 pelo então prefeito da Grande Londres,14 Sir William Laxton. H. G. Wells até escreveu uma biografia sobre um dos diretores da escola, Fredrick William Sanderson, publicada em 1924.15 Sanderson foi uma espécie de livre pensador em seu tempo. Sua abertura para o desenvolvimento individual e sua firme crença na liberdade intelectual eram excepcionais e, de certa forma, contestadoras, durante o exercício de seu cargo, que se deu na virada do século XIX.16

O prefeito da Grande Londres difere do prefeito de Londres, uma vez que o segundo exerce autoridade sobre uma área de cerca de 1,6 km 2 do coração da cidade; a jurisdição do primeiro é o que conhecemos hoje como a cidade de Londres. (N.T.) 15 H. G. Wells. The Story of a Great Schoolmaster. 16 Richard Dawkins, que se formou em Oundle, fala mais sobre sua relação pessoal com o legado desse homem, aqui: <http://education.guardian.co.uk/schools/ story/0,5500,750270,00.html>. Acesso em: dez. 2006.

14

16


Com base em tradição, disciplina e métodos clássicos de aprendizagem, o sistema escolar particular da Inglaterra era voltado para o ensino de latim, grego, história clássica e para a prática regular e intensa de exercícios físicos. E embora a Oundle School tivesse um histórico de relativa inovação e abordagem progressista – e apesar de o adolescente Bruce ter comemorado a oportunidade de ser independente de seus pais –, ele posteriormente admitiu que, dentro dos muros proibitivos do belo complexo escolar próximo a Peterborough, a prática de bullying era frequente. Mais uma vez, ele não se adaptou muito bem – sua vida escolar para lá de itinerante e sua consequente autonomia levaram a isso: sua língua afiada e sua recusa em se submeter à ordem estabelecida e à hierarquia absolutamente irracional dos estudantes muitas vezes fizeram com que Bruce se envolvesse em vários incidentes, nos quais garotos mais velhos do seu prédio, Sidney House, utilizavam-se de sua superioridade física para o mal. No entanto, mesmo durante as piores surras, a autonomia de Bruce permaneceu intocada – embora ele fosse menor em tamanho e tomasse surras homéricas, seus algozes podiam até “me arrebentar todo, mas não [eram] superiores”.17 No futuro, Bruce descreveria a experiência em Oundle como uma situação na qual os pais enviavam seus filhos para que estes pudessem aproveitar oportunidades que foram negadas a eles. E, embora ele gostasse do teatro amador, dos debates e da efervescência das atividades escolares, o lugar em si era “o mais iliberal do planeta. Incrível! Grandes açoites pelas menores travessuras”.18 Quanto aos alunos, Bruce disse: “não me dava bem com os outros, que, para mim, eram apenas oportunistas gananciosos”.19 Na vida, há muitas maneiras de traçar planos de vingança, e nem sempre a retaliação óbvia e imediata contra os inimigos é a mais aconselhável, ou mesmo a mais prática. Assim, mesmo quando limpava ovo cru de seus lençóis ou secava roupas que haviam sido encharcadas enquanto estava em outro lugar, as correntes e engrenagens no cérebro aguçado do jovem Bruce faziam hora extra, arquitetando reações igualmente maléficas, alimentadas, de certa maneira, por seu crescente interesse pelo universo militar. Dickinson participou ativamente da criação da Iron Maiden: 30 Years Of Metal Mayhem. Metal Hammer Presents Collector’s Edition, 2005. 18 D. Bowler; B. Dray. Infinite Dreams: Iron Maiden. 19 Philip Touchard. Entrevista à Enfer, dez. 1993. 17

17


primeira sociedade de jogos de guerra em Oundle, obtendo um alto posto na força de cadetes da escola. Ele deu sua resposta aos valentões de várias maneiras: jogando bombas de fumaça em um acampamento noturno, causando assim um grande tumulto em meio às barracas dos diretores, ou fazendo com que um grande volume de estrume de cavalo fosse entregue ao professor responsável por seu prédio. Na maioria das vezes, ele saía impune de suas travessuras. Musicalmente, Bruce havia descoberto bandas como Deep Purple, cuja faixa “Child in Time” ele ouviu pela primeira vez por causa do som alto que vinha do quarto de um colega. O Purple se tornou sua grande fixação, em especial o maravilhoso LP de 1970, In Rock, o primeiro álbum que Bruce comprou na vida. Como as atividades fora dos limites de Oundle eram restritas e, portanto, o acesso às lojas de discos locais era, na melhor das hipóteses, esporádico, a música se tornaria uma força mágica e poderosa dentro da comunidade estudantil. Algumas bandas se apresentaram ao vivo em Oundle, com Van Der Graaf Generator, Wild Turkey e The Crazy World of Arthur Brown causando tumulto entre o público estudantil. Arthur Brown, juntamente com Ian Gillan, do Purple, se tornaria uma importante influência para Bruce. Quanto mais ele escutava, maior afinidade sentia com esses heróis nada convencionais, que viajavam pelo mundo e tiravam seu sustento de seus instrumentos e seu talento. Por volta de 1973, Bruce deu seus primeiros passos em direção ao palco, ao se juntar à sociedade dramatúrgica de Oundle e de imediato se sentir confortável em decifrar e apresentar as obras de Shakespeare, inclusive Macbeth. Seu senso de teatralidade, somado a seu fervoroso e crescente amor pela música, logo mostrou que Bruce seria levado a atuar como músico. No início, foi a bateria que o seduziu – principalmente por sua fixação pelo Purple; depois ele chegou à conclusão de que sua ambição era ser o “pé esquerdo de Ian Paice”, mas, não tendo dinheiro para comprar uma bateria, o jovem tinha de se contentar em assistir aos ensaios das bandas do colégio cujos membros eram mais ricos (ou seja, podiam comprar uma bateria), mas menos talentosos (ou seja, não conseguiam tocar – e o punk só chegaria três anos depois). Ao conseguir a liberação de uma bateria do Departamento de Música de Oundle, Bruce começou a participar dos ensaios de um grupo que tinha, ainda, o guitarrista Nick Bertram e o vocalista Mike Jordan. Foi durante uma interpretação particularmente horrível de “Let It Be”, dos Beatles, que, ouvindo Jordan lutar com as notas altas, Bruce aderiu à performance para ajudar seu amigo baixista 18


com os vocais. Foi um momento de revelação; o alcance das cordas vocais de Dickinson provou que ele em breve abandonaria as baterias para assumir a frente do que só pode ser descrito pelo termo “banda” em seu sentido mais amplo. “Então, eu pensei: ‘Talvez eu possa fazer isso’.” Bruce posteriormente lembrou: “Eu fiz várias peças de teatro na infância, tanto na escola como fora dela, e adorava estar no palco, embora jamais pudesse ser um ator, porque tudo era levado muito a sério. O problema em atuar é que eles sempre têm de levar tudo muito a sério... Eu jamais conseguiria conviver com essas pessoas! Assim, o ideal para um cantor de rock é combinar os dois elementos”.20 Nos ensaios posteriores, levou pouco tempo para que aqueles músicos iniciantes já se saíssem bem tocando B. B. King e outros clássicos do blues, bem como a poderosa “Smoke on the Water”, antes de uma das mais famosas peraltices de Bruce ser finalmente descoberta, com resultados sem dúvida definitivos. “Eu mijei no jantar do diretor”, disse, dando de ombros, em uma entrevista a Spencer Leigh. “Fizemos sem ele saber, dois de nós. Eles haviam organizado um jantar para comemorar a construção de uma extensão para o prédio no qual morávamos, e tinham pouco óleo de cozinha. Os monitores escolares estavam todos lá se achando por estarem na cozinha, então acabou sendo um tipo de protesto.” Lembrando-se bem das aulas de Biologia, ele sabia que não haveria problema se uma pequena quantidade de urina fervida fosse ingerida (a dupla “aditivou” o óleo de cozinha que entregou aos monitores responsáveis por preparar a refeição), mas dessa vez a brincadeira tinha ido longe demais. Enquanto curtiam uma bebida com o pessoal do ensino médio, os dois alunos infames não conseguiram deixar de contar a seus amigos o motivo do riso incontrolável que deixavam escapar ao ver todos mandando pra dentro aquela refeição batizada. No confinamento de um internato, era inevitável que a história se espalhasse como rastilho de pólvora. E em pouco tempo os réus foram identificados. “Fomos dedurados”, continuou o vocalista na mesma entrevista, “e eu fui expulso. O garoto que fez tudo comigo não foi, pois era candidato a Oxford ou Cambridge. A ideia era suspendê-lo por três meses e então Disponível em: <http://hardradio.com/shockwaves/dickinson2-8.html>. Acesso em: fev. 2007.

20

19


trazê-lo de volta, de modo que ele pudesse fazer número às estatísticas da escola. É assim que eles agem.” A raiva por ter sido expulso sozinho era evidente. O afastamento de seu companheiro conspirador, beneficiado academicamente, era inevitável. Mas, de várias formas, ser expulso de Oundle foi a melhor coisa que poderia ter acontecido a esse aluno nada convencional. Seus pais ficaram surpreendentemente tranquilos quanto ao incidente, e em 1976, de volta à relativa normalidade de Sheffield, Bruce completava seu ensino médio em uma escola católica – uma escola abrangente, com meninos e meninas, bem diferente da estranha tradição daquela escola estatal com alunos do sexo masculino apenas, parte importante dos seus anos de formação. Durante sua primeira semana na nova escola, Bruce também se deparou com quatro rapazes com os quais se relacionaria musicalmente. De repente, sua expulsão parecia abrir todo um mundo novo de possibilidades, e, em muitos sentidos, a verdadeira história começa aqui.

20


www.editoragutenberg.com.br twitter.com/gutenberg_ed www.facebook.com/gutenberged


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.