Canção das chuvas eternas

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CANÇÃO DAS CHUVAS ETERNAS

VOL. 1 E.J.MELLOW

TRILOGIA MOUSAI

TRILOGIA MOUSAI

VOL. 1

CANÇÃO DAS CHUVAS ETERNAS

E.J. MELLOW

TRADUÇÃO: Lavínia Fávero

Copyright © 2021 E. J. Mellow

Copyright desta edição © 2024 Editora Gutenberg

Título original: Song of the Forever Rains

Todos os direitos reservados pela Editora Gutenberg. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

editora responsável

Flavia Lago

editoras assistentes

Natália Chagas Máximo

Samira Vilela

preparação de texto

Natália Chagas Máximo

revisão

Samira Vilela

ilustração e projeto de capa

Micaela Alcaino

adaptação de capa

Alberto Bittencourt

diagramação

Guilherme Fagundes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

Mellow, E. J.

Canção das chuvas eternas / E. J. Mellow ; tradução Lavínia Fávero. -- São Paulo : Gutenberg, 2024. -- (Trilogia Mousai ; v. 1)

Título original: Song of the Forever Rains

ISBN 978-85-8235-740-8

1. Ficção de fantasia 2. Ficção norte-americana I. Título. II. Série. 24-196552

CDD-813.5

Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção de fantasia : Literatura norte-americana 813.5

Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427

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Para Kelsey, minha irmã-passarinho que canta, cujos risos e sorrisos são capazes de livrar o mundo de seus demônios.

A última a nascer das três, em meio a gelo, chuva e vento, Ela fustigou o mundo com um canto de sereia

Há quem diga que é um dom; há quem diga que é uma maldição, Mas ninguém se dará ao trabalho de recordar por muito tempo

Se ouvir o passarinho cantar

Se ouvir o passarinho cantar

Com sua língua e seus cabelos de prata, ela fica a esperar, Uma lua que conforta na escuridão, Mas seu silêncio, seu tranquilo e imóvel reflexo, São canções de ninar para seu alvo envenenar

Se ouvir o passarinho cantar

Se ouvir o passarinho cantar

Pode até achar que a voz dela é simpática, terna e adorável demais, Mas a dor será ressonante e eterna

Tape os ouvidos, meu querido, se chegar muito perto, Porque os trinados dela representam a queda para os mortais

Quando ouvir o passarinho cantar

Quando ouvir o passarinho cantar

Versos da Canção das Mousai, dos Achak

Aadilor Esrom
Ilha Sacrossanta Bruma Zombeteira
Vale dos Gigantes
Shanjaree
Mar de Obasi

Baía do Escambo

Reino do Ladrão Yamanu Jabari Lachlan

PRÓLOGO

As meninas brincavam em uma poça de sangue. Não tinham noção de que aquilo era sangue, é claro, e tampouco a babá delas imaginava que as três tinham escapado dos quartos sem que ninguém notasse e chegado aos calabouços que ficavam escondidos sob o palácio. Como a babá poderia saber disso? Aquela parte do Reino do Ladrão era cercada e vigiada por tantas portas, tantos feitiços e guardiões de pedra animalescos que o próprio Rei Ladrão teria dificuldade de entrar ali sem ser anunciado. Mas, quando se trata de crianças curiosas, é tão fácil desviar de tais obstáculos quanto ultrapassar uma teia de aranha – basta ser pequena o bastante para passar direto por ela.

Sendo assim, as três meninas conseguiram adentrar nas profundezas dos pesadelos sem ter consciência dos perigos que as espreitavam de dentro das paredes, espiando pelas rachaduras com sorrisos de dentes afiados e salivantes. Ou, se tinham consciência disso, nenhuma das três sentiu-se ameaçada para dar a meia-volta e bater em retirada.

– Prontinho. – Niya passou o dedo ensanguentado no rosto branco da irmã caçula, formando um traço espiral nas bochechas gorduchas da pequena. – Agora você pode falar.

Larkyra, que recentemente completara 3 anos, soltou uma risadinha.

– Falaaaar – incentivou Niya. – Você consegue dizer isso? Falaaaaar.

– Se ela conseguisse, teria dito – censurou Arabessa, encostando a palma da mão avermelhada na camisola marfim. Então, sorriu ao ver aqueles novos desenhos surgirem na parte de baixo das saias. Aos 7 anos, Arabessa era a mais velha das três, e sua pele branca como porcelana contrastava com o cabelo, que se derramava como nanquim pelas suas costas.

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– Ah, que bonito! – Niya segurou a mãozinha rechonchuda de Larkyra e as duas se aproximaram de Arabessa. – Agora faça em mim.

Depois de encontrar outra poça cor de rubi que escorrera por baixo de uma porta de ferro trancada, Arabessa bateu as mãos no líquido parado. A sombra de seu reflexo se desfez em ondas enquanto cobria cada um dos dedos de vermelho.

– Essa cor combina com seu cabelo – declarou Arabessa, desenhando flores vermelhas na camisola de Niya.

– Vamos pintar a Lark, para ela combinar comigo também.

As meninas estavam tão absortas na brincadeira que não se deram conta de que uma criatura específica as observava, livre de correntes, em meio às sombras do corredor. Uma criatura que continha mais ameaças letais na ponta dos dedos do que qualquer uma das bestas trancafiadas naquelas celas amaldiçoadas que as cercavam. E, apesar disso, o Rei Ladrão permitia que andasse livre por aí. Talvez, para finalidades como essa: cuidar daqueles que ainda não eram capazes de se cuidar sozinhos. Porque embora aquele ser tivesse crescido na escuridão, a vida das meninas sempre foi ligada à luz.

A menorzinha é um tanto rechonchuda, disse o irmão, sem proferir qualquer palavra, para a irmã. Era algo fácil de se fazer, visto que ambos eram gêmeos e compartilhavam o mesmo corpo, lutando sem parar para conquistar espaço na mesma mente.

Ela é um bebê. Todos os bebês são rechonchudos, retrucou a irmã.

Nós não éramos.

Porque nunca fomos bebês.

Bem, se tivéssemos a oportunidade de ser, posso lhe garantir que nunca teríamos sido rechonchudos.

Os gêmeos tinham diversos nomes, em muitos lugares diferentes. Mas, em Aadilor, eram conhecidos apenas como Achak – os antiquíssimos, os seres mais velhos deste lado do Ocaso. Aqui, assumiam uma única forma humana, que mudava de irmão para irmã mais rápido do que a arrebentação das ondas. Os Achak eram mais altos do que um mortal comum, tinham a pele escura como a parte mais profunda do mar e os olhos cor de violeta, que gravitavam feito galáxias. O corpo era lindo. Mas, como a maioria das coisas bonitas que havia em Aadilor, não raro mascarava um toque letal.

Um gritinho de deleite fez os Achak voltarem sua atenção às irmãs.

As meninas estavam paradas no meio de um dos corredores do calabouço, onde o caminho se dividia em quatro direções que levavam a

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outros corredores confusos e intermináveis. Era um lugar úmido e escuro, mal havia tochas acesas para iluminar as galerias. E, por essa razão, uma risada jovem e alegre em tal ambiente era mais desconcertante do que gritos torturados.

– Que inteligente, Ara! – Niya estava saltitante. – Lark ficou muito mais bonita com essa pintura de bolinhas. O que você acha? – Ela perguntou à irmã caçula, que estava ao pé das duas, brincando com um pauzinho branco e acinzentado. – Você gosta de ficar com essa aparência feroz, como a de um leopardo?

Pam. Pam. Pam Larkyra bateu com um objeto no dispositivo que havia no chão de pedra. Suas madeixas brancas de tão loiras brilhavam à luz da tocha, e ela soltava gritinhos de alegria ao ouvir o ruído.

– Que bonito – comentou Arabessa, terminando de pintar o último círculo ao lado da orelha de Larkyra. – Continue, Lark. Você bem que podia fazer uma música para nossa cerimônia de pintura.

Como se atendesse ao pedido da irmã, Larkyra continuou batendo no chão, o ritmo ecoando pelos corredores serpenteantes. Ao que tudo indicava, os Achak eram os únicos que haviam se dado conta de que o instrumento que Larkyra tinha em mãos era, na verdade, um osso de costela.

Essas meninas são muito peculiares, pensou o irmão, dirigindo-se à irmã.

São filhas de Johanna. “Peculiar” é pouco para o que elas são.

Uma onda de tristeza invadiu o peito dos Achak quando pensaram na mãe das meninas, a amiga mais querida de ambos. Mas, quando se vive tanto quanto esses seres, tais emoções perduram cada vez menos no espaço e no tempo, e não demorou para a melancolia ser descartada, um grão de areia que se esvai da ampulheta.

Gosto delas, pensou o irmão.

Também gosto, concordou a irmã.

Será que devemos fazê-las parar com essa bagunça antes que acordem o restante do calabouço e um guarda apareça?

Receio que seja tarde demais para isso.

Um fedor pútrido veio do corredor, acrescentando uma camada mais densa ao aroma de decomposição que já pairava na prisão.

– Que nojo. – Arabessa sacudiu a mão na frente do nariz. – Que sobremesa você comeu escondido depois do jantar, Niya?

– Não fui eu. – Niya inclinou o queixo para trás, ofendida. – Acho que Larkyra sujou a fralda.

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As duas olharam para baixo, para a irmãzinha sorridente que ainda batia com o osso no chão. Só então ela olhou para as irmãs, primeiro para uma e depois para a outra.

– O último canário a cantar, com a asa quebrada vai ficar! – gritaram as duas, em uníssono.

– Eu falei primeiro – Niya foi logo anunciando. – Você troca a fralda dela.

– Nós duas falamos ao mesmo tempo.

– Se com “ao mesmo tempo” você quer dizer que eu falei um tantinho mais rápido do que…

Um rugido vibrou pela caverna, fazendo as duas irmãs maiores perderem o equilíbrio.

– O que foi isso? – Niya foi virando o corpo até descrever um círculo completo, procurando a origem do ruído pelos múltiplos corredores maliluminados.

– Seja lá o que for, não me pareceu muito feliz. – Arabessa se agachou ao lado de Larkyra, segurando a mão dela para que não se mexesse mais. – Silêncio, Lark. Acho que a hora de brincar acabou.

Larkyra voltou os olhos azuis e arregalados para as irmãs. A maioria das crianças de sua idade já falava. Mas, após gritar em seu nascimento – coisa que transformou a vida das três –, a garota não emitia mais do que um ruído ou outro, em raras ocasiões. As meninas acabaram se acostumando com o silêncio da caçula, sabendo que ela, apesar de ainda não ser capaz de dizer nada, entendia muita coisa.

Mais um urro ecoou, seguido pelas pancadas tortuosas de uma dúzia de passos pesados, vindo de encontro a elas. Uma criatura surgiu em meio às sombras de um corredor, à esquerda das meninas.

Como se fossem uma só pessoa, as irmãs soltaram um suspiro de assombro.

O monstro era tão grande que sua pelagem emaranhada arranhava as paredes de pedra, forçando-o a abaixar a cabeça enquanto se aproximava. A melhor comparação seria com um cão gigante e sujo de terra, só que esse tinha tantos olhos quanto uma aranha e muito mais pernas do que um cachorro. Tais patas grossas e cabeludas curvavam-se para a frente e terminavam em tentáculos, como os de um polvo. Essa combinação fazia seus movimentos parecerem frenéticos, um sacudir de pés e pernas ávidos, e a cada passo seus receptores sensoriais se prendiam, por meio de sucção, à superfície do corredor, catalogando os cheiros e sabores do que encontravam pelo caminho. E quando havia algo no caminho do monstro, era logo removido com um estalo antes de ser atirado nos dentes afiados como lâminas e engolido.

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O skylos lak era apenas um dos muitos guardas nefastos da prisão. Ele se ajoelhava diante de um único amo – que estava, no momento, sentado em um trono, em uma parte diferente e distante do palácio.

Devemos interceder?, perguntou o irmão.

Os Achak agora estavam parados a poucos passos das meninas. O corpo delas era uma nuvem de fumaça pairando entre a parede de pedra e o corredor.

Ainda não, respondeu a irmã. O irmão ficou se mexendo, inquieto, dominando a forma dos dois por um instante. Mas pode ser que não haja um “depois” ao qual esse “ainda” possa ser aplicado, assinalou.

Sempre há um “depois”.

Para nós, talvez, mas para aqueles iguais a ela…

Justo nesse instante, a criatura deu indícios de ter sentido a presença das três pequenas intrusas, porque emitiu um som entre um urro e um murmúrio de deleite e correu mais rápido, batendo os tentáculos em um borrão de movimentos.

– É apavorante – declarou Niya, e Arabessa puxou Larkyra, fazendo-a ficar em pé.

– Sim, e parece bravo. Rápido, pegue a chave que abre o portal.

– Acho que não vai funcionar aqui embaixo – disse Niya, com os olhos grudados na criatura que se aproximava.

– Pauzinhos. – Arabessa deu a meia-volta. – Por aqui!

As irmãs correram pelo corredor afora, os Achak seguindo-as nas sombras enquanto os ocupantes das celas gemiam e gritavam, implorando para que a própria morte fosse rápida.

As crianças corriam para salvar a própria pele, mas o skylos lak era muitas vezes maior e mais rápido do que elas e logo ficou no encalço das três. A sensação de fatalidade iminente deve ter tocado as meninas, porque uma trilha alaranjada começou a emanar dos contornos apressados de Niya, lançando um aroma metálico ao ar.

Magia, pensaram os Achak.

– Ara! – gritou Niya, arriscando olhar para trás quando um pingo de algo viscoso caiu do tentáculo do monstro e bateu em suas pernas.

– Eu sei! Eu sei! – Arabessa puxou Larkyra para a frente. A bebê olhou para trás, vendo por completo o que as perseguia, mas não chorou nem gritou. Apenas observou, com um olhar curioso, o monstro no encalço delas. – Pauzinhos! – xingou Arabessa mais uma vez, parando de supetão diante de uma grande parede de ônix: um beco sem saída. – Achei que tínhamos vindo por aqui.

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– Deve ter mudado de lugar – disse Niya, girando o corpo. – E os nossos poderes?

– Sim, sim! Rápido! – gritou Arabessa, e então começou a bater nas paredes. O ruído fez ecoar ondas roxas de magia, que saíam faiscando de seus punhos cerrados.

– Não consigo fazer minhas chamas funcionarem! – urrou Niya, sacudindo as mãos em círculos frenéticos, enquanto a criatura se aproximava, aos tropeções.

Elas ainda precisam aprender muita coisa, pensou a irmã.

Verdade, concordou o irmão. Mas precisam continuar vivas para terem tais lições. Você diria que ainda é “ainda”?

Sim, respondeu a irmã.

Mas os Achak mal tinham avançado um centímetro com os pés quando um som estridente atravessou o túnel.

Larkyra havia se desvencilhado das irmãs e estava parada entre as duas meninas e a criatura, entoando uma única nota estilhaçante. O som que saía de sua boca ia diretamente para o monstro, que se aproximava.

Niya e Arabessa se agacharam juntas e taparam os ouvidos, enquanto ramificações amareladas de magia, cor de mel, saíam flutuando dos lábios minúsculos de Larkyra e batiam no guarda. O skylos lak soltou um uivo agonizante e tentou se afastar, de costas, batendo as laterais do corpo com força contra as paredes ásperas.

Dava gosto de ver a bebê: uma coisinha tão minúscula, inocente, de camisola branca, parada em pé naquele corredor escuro, obrigando o imenso monstro a ir para trás. Larkyra não dava a impressão de duvidar nem um pouco das próprias habilidades enquanto aquela nota continuava saindo de seus lábios, cada vez mais aguda, até que mesmo os poderosos Achak também tiveram que tapar os ouvidos.

O som era simples, mas continha um livro inteiro de significado. Era tingido de desespero, luto e raiva. Sua essência era uma energia aguda, incontida e poderosa. Os Achak mal podiam imaginar a dor que uma pessoa sentiria caso esse som fosse dirigido apenas a ela.

Mas a dúvida não durou muito tempo porque, no instante seguinte, o corredor foi tomado por um calor de fazer suar, o corredor tremeu e a criatura deu seu último urro; a magia quente e amarelada de Larkyra a cozinhou de dentro para fora. O skylos lak explodiu com um som nauseante, cobrindo as paredes e o chão de sangue e vísceras escuros. Um tentáculo amputado caiu no chão com um PloP, bem na frente de Niya e Arabessa. As meninas deram um pulo para trás, olharam para o tentáculo e depois para a irmã caçula.

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Larkyra cerrara os punhos minúsculos nas laterais do corpo. Estava com a respiração rápida e pesada, fitando o espaço vazio que, há poucos instantes, o skylos lak ocupava.

– Larkyra? – chamou Arabessa, ficando de pé com cuidado. – Isso foi… – Incrível! – Niya pulou por cima do tentáculo e foi abraçar a irmã. –Ah, eu simplesmente sabia que havia magia em você. Vivo falando para Ara que tinha que haver magia em você, não é, Ara?

– Você se machucou, Lark? – perguntou Arabessa, ignorando Niya.

– Não – foi a resposta melodiosa.

Arabessa e Niya piscaram ao mesmo tempo.

– Por acaso você acabou de falar? – Niya virou a caçula de frente para si.

– Sim – respondeu Larkyra.

– Ah! – Niya deu mais um abraço na irmã. – Que maravilha!

– Sim, uma maravilha… – disse Arabessa, olhando para um pedaço de intestino que caiu da parede e atingiu o chão. – Por que não encontramos o caminho de casa e comemoramos?

Enquanto discutiam qual era a melhor maneira de chegar ao destino –Larkyra participando com respostas monossilábicas, para o contínuo deleite das irmãs –, elas não repararam, mais uma vez, na sutil mudança de energia perto da parede do outro lado, onde os Achak haviam se tornado invisíveis.

Crianças não deveriam vir aqui, uma voz grave, carregada de mil outras, tomou conta dos pensamentos dos antiquíssimos.

Sabemos disso, meu rei.

Tire-as daqui! A ordem do Rei Ladrão não deixava espaço para malentendidos, principalmente quando a escuridão começou a obscurecer a visão dos Achak, em uma censura sufocante. A alma dos gêmeos estremeceu.

Sim, meu rei.

Ele mal passava de um grão de aparição, já que continuava sentado em seu trono, mas os Achak podiam sentir a mudança na energia do rei, que ficou observando as meninas, demorando-se especialmente na mais nova das três.

O dom dela completa o trio, sugeriram os Achak.

O poder do rei reagiu agitando-se.

Vamos torcer para que algo de bom surja disso.

Em seguida, com o mesmo silêncio e a mesma rapidez com que sua presença tomara conta dos pensamentos dos Achak, o rei sumiu, fazendo a visão dos gêmeos voltar a ficar nítida em um estalar de dedos.

Os Achak respiraram fundo.

Devo?, perguntou o irmão.

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Deixe comigo, respondeu a irmã, obrigando-se a solidificar a forma de ambos quando enfim se afastaram da parede. Os Achak agora estavam de pé, descalços, usando uma túnica de veludo roxo-escuro, a cabeça raspada, com delicados braceletes de prata que serpenteavam pelo braço feminino.

– Quem é você? – perguntou Niya, a primeira a avistá-los.

– Somos Achak e estamos aqui para levá-las para casa.

– Somos? – perguntou Arabessa.

– Somos – responderam os Achak.

O irmão foi logo tomando forma, revelando uma barba espessa e expandido as joias e a túnica da irmã para comportarem seus braços musculosos.

As meninas piscaram.

– Vocês são uma coisa só ou duas diferentes? – indagou Arabessa, após um instante.

– Ambos.

Arabessa ficou em silêncio, pensando nisso, antes de perguntar:

– Vocês eram prisioneiros aqui e escaparam?

– Por acaso minha resposta fará você confiar mais em nós?

– Não.

– Então não faça perguntas inúteis.

– Ah, eu gosto deles – comentou Niya.

– Shhh. – Arabessa olhou feio para a irmã. – Estou tentando decidir se eles são piores do que aquela coisa que acabou de nos perseguir.

– Ah, minhas queridas, somos muito piores.

Niya deu um sorriso.

– Agora, gosto mesmo deles.

Larkyra soltou a mão de Niya.

– Cuidado – advertiu Arabessa ao ver a bebê se aproximar dos Achak, parando aos pés dos gêmeos.

Larkyra não dava a impressão de estar preocupada com possíveis ameaças: seus olhos azuis estavam hipnotizados pela túnica cintilante dos Achak.

– Bonito – disse ela, passando a mãozinha minúscula no tecido refinado.

Os Achak arquearam a sobrancelha, impressionados.

– Você tem bom gosto, pequenina.

– Meu? – Larkyra puxou o tecido.

Os Achak surpreenderam a todas caindo na risada, o som tão grave quanto leve.

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– Se for sábia em suas decisões, minha querida – os gêmeos se abaixaram para pegar a criança no colo –, um dia poderá ter muitas coisas bonitas, iguaizinhas a essa.

– Eu também? – quis saber Niya, dando um passo à frente. – Gosto de coisas bonitas.

– Eu também gosto – concordou Arabessa.

Os Achak encararam aquelas meninas tão diferentes entre si, mas iguais de um jeito único. Eram um trio improvável: uma diferença de dois anos as separava, mas todas haviam nascido no mesmo dia. Os Achak começaram a se perguntar se tal peculiaridade tinha algo a ver com os dons delas, como um fio que as amarrava. Porque os poderes das meninas prometiam grandeza, mas de devastação ou de salvação? A pergunta permaneceu sem resposta.

Elas trarão problemas, pensou a irmã, dirigindo-se ao irmão.

Graças aos deuses perdidos, respondeu ele.

– A maioria das coisas desse mundo podem ser obtidas, meus doces –disseram os Achak, virando-se para encostar a mão na parede de ônix atrás deles, com Larkyra empoleirada em sua cintura. – E as que não podem… só precisam ser encontradas através de uma porta, que as levará até outra. – Enquanto o irmão falava, um grande círculo brilhante foi talhado na pedra escura. Ardeu em chamas, com uma luz branca e cegante, até que o gêmeo ergueu a mão e outro túnel se revelou. Havia uma nesga de luz no final. – Agora, que tal acompanharmos vocês até em casa?

As meninas fizeram que sim ao mesmo tempo, encantadas com os truques dos novos amigos. Com um sorriso contido, os Achak mostraram o caminho para elas, passando pelos gemidos abafados dos prisioneiros e deixando para trás as lembranças de sangue, vísceras e coisas terríveis. No lugar, preencheram os pensamentos das meninas com histórias que cintilavam de aventuras e prometiam sonhos sombrios e deliciosos. Contaram uma lenda da própria fortuna das irmãs, que começava no instante em que a mais nova das meninas abria a boca para cantar.

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