Os túneis

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“Fascinante – e é tudo verdade!” Frederick Forsyth, autor de O dia do chacal

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´ TuNEIS

A história jamais contada das espetaculares fugas sob o Muro de Berlim

GREG MITCHELL



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´ TuNEIS

A história jamais contada das espetaculares fugas sob o Muro de Berlim

GREG MITCHELL

T R A DUÇ ÃO DE

C A ROL I N A C A I R E S C OE L HO


Copyright © 2016 Greg Mitchell Copyright © 2017 Editora Nemo/Vestígio Publicado originalmente nos Estados Unidos como The Tunnels: Escapes Under the Berlin Wall and the Historic Films the JFK White House Tried to Kill. Esta tradução foi publicada mediante acordo com a Crown, um selo do Crown Publishing Group, divisão da Random House LLC.

Título original: The Tunnels: Escapes Under the Berlin Wall and the Historic Films the JFK White House Tried to Kill Todos os direitos reservados pela Editora Nemo. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

gerente editorial

capa

Arnaud Vin

Elena Giavaldi (sobre imagem de Paul Schutzer/ The LIFE Picture Collection/Getty Images Inferior: imagem de Rondholz/ullstein bild via Getty Images)

editor assistente

Eduardo Soares assistente editorial

adaptação de capa

Jim Anotsu

Diogo Droschi

preparação

diagramação

Eduardo Soares

Guilherme Fagundes

revisão

Tiago Garcias Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

Mitchell, Greg Os túneis : A história jamais contada das espetaculares fugas sob o Muro de Berlim / Greg Mitchell ; tradução de Carolina Caires Coelho. -- 1. ed. -- São Paulo : Vestígio, 2017. Título original: The tunnels : escapes under the Berlin Wall and the historic films the JFK White House tried to kill. ISBN 978-85-8286-400-5 1. Segunda Guerra Mundial - Biografia 2. Berlim, Muro de - Alemanha - 1961-1989 3. Fugas - Alemanha - Berlim - História - Século 20 4. Túneis - Alemanha - Berlim - História - Século 20 5. Kennedy, John Fitzgerald, 1917-1963 - Opiniões políticas e sociais I. Título. 17-03912 CDD-943 Índices para catálogo sistemático: 1. Berlim : Alemanha : 1961-1989 : História 943

A VESTÍGIO É UMA EDITORA DO GRUPO AUTÊNTICA São Paulo Av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, Horsa I 23º andar . Conj. 2301 . Cerqueira César . 01311-940 São Paulo . SP Tel.: (55 11) 3034 4468 www.editoravestigio.com.br

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NOTA AOS LEITORES

Os Túneis se volta estritamente ao registro histórico e às reflexões de participantes e de testemunhas. Não incorpora diálogos inventados. As cenas recriadas não são imaginadas, mas, sim, baseadas em relatos de dois ou mais participantes, na maioria dos casos. A menos que seja atribuída, qualquer coisa que venha entre aspas é um diálogo real (conforme relembrado por uma testemunha, normalmente em uma entrevista com o autor) ou retirado de uma memória ou de outro livro, carta, história contada ou registro de tribunais, interrogatórios, transcrição da Casa Branca ou outro documento. Em algumas frases, corrigi a sintaxe ou a pontuação. Todos os nomes são reais. Os endereços em Berlim, onde os nomes das ruas são combinados com “strasse” numa só palavra (por exemplo, Schönholzerstrasse), aparecem aqui para clareza com “Strasse”, “Platz” ou “Allee” como palavras separadas. A ponto de surpreender até mesmo o autor, quase todos os principais acontecimentos e episódios dessa narrativa (e certamente as partes mais interessantes) se baseiam em longas entrevistas originais com quase todos os atravessadores centrais e vários dos mensageiros e fugitivos; centenas de páginas dos documentos nunca vistos antes dos arquivos da Stasi; e arquivos recentemente tornados públicos pela CIA e pelo Departamento de Estado.

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O ciclista F E V E R E I RO – M A RÇO DE 19 62

Harry Seidel adorava ação, velocidade, risco. Ele encontrava tudo isso no ciclismo de velocidade. Harry poderia ter sido um campeão olímpico – ainda podia ser, provavelmente, se mudasse sua atitude, já que aos 23 continuava no auge do vigor físico. Mas Harry não era assim. Quando colocava alguma coisa na cabeça, ia até o fim, e agora, ele não estava perseguindo a próxima curva, nem outros corredores, ou uma linha de chegada. Meses antes, ele havia competido diante de milhares de fãs que torciam em estádios barulhentos. Sua foto apareceu no jornal. As crianças gritavam o nome do ídolo do esporte, esguio e de cabelos escuros, quando o reconheciam pedalando pelas ruas de Berlim. Agora, ele andava quase totalmente sozinho. Ninguém o festejava, mesmo que ele merecesse, por vitórias que iam muito além de qualquer uma de suas conquistas nas corridas. Isso seria perigoso demais. Desde o surgimento da nova barreira que dividiu Berlim, no dia 13 de agosto de 1961, a esposa de Harry, Rotraut, se preocupava com ele. Sempre que ele partia em uma de suas missões secretas, ela se perguntava se ele voltaria para casa ou se não apareceria nunca mais. Os amigos diziam que Harry era um draufgänger – um ousado. Pediam para que ele parasse de fazer as coisas que fazia e que desafiavam a morte, pediam para que voltasse a pedalar e que abrisse aquela banca de jornal que ele queria abrir, mas era como se o que diziam fosse levado pelo vento que soprava do rio Spree. Apenas nos primeiros meses após a construção do Muro, Seidel havia levado a esposa e o filho, e mais de 20 outras pessoas, ao outro lado da barreira quase impenetrável, para o Oeste. E na mente de Harry ainda havia muitos outros (ou seja, quase todo mundo do Leste) a resgatar. Seidel havia sido muito elogiado pelo Estado durante sua carreira de ciclista, que culminara em diversos títulos em Berlim Oriental e duas medalhas nos 15


campeonatos de 1959 da Alemanha Oriental. Recém-saído da adolescência, ele deixou o emprego de eletricista quando o Estado começou a pagar para que ele competisse em período integral. Mesmo sendo exaltado em propagandas, Harry se mostrou insuficientemente patriota quando, diferentemente de muitos outros da equipe nacional, recusou-se a tomar esteroides para melhorar seu desempenho. Também se recusou a entrar para o Partido Comunista, que governava na época. Isso custou a ele a chance de chegar à equipe olímpica do país nos anos 1960, e o salário que o governo pagava a ele foi cancelado. Agora, no início de 1962, sua fama nos arquivos secretos da polícia da Alemanha Oriental como ajudante de fugitivos era tão grande quanto a fama que tinha como ciclista. A troca não havia acontecido sem ônus. A primeira fuga de Seidel tinha sido a sua própria. Horas depois de a barreira de concreto e arame aparecer para dividir Berlim brutalmente na manhã de 13 de agosto, Seidel deixou o apartamento que dividia com a esposa, o filho e a sogra, no distrito de Prenzlauer Berg, para explorar a fronteira montado em sua bicicleta. Ao sul do centro da cidade, ele encontrou um ponto onde a cerca de arame farpado era baixa. Com os guardas distraídos pelos manifestantes, ele colocou a bicicleta no ombro e passou por cima dos fios. Foi mais um teste do que qualquer outra coisa. Ele imaginou que poderia voltar ao lado leste com a mesma facilidade – o que conseguiu fazer, algumas horas mais tarde, passando por uma barreira alfandegária. (Ainda assim não teve problema para seguir naquela direção.) Por ser como era, ele sentiu confiança de que poderia pular a barreira de novo horas depois. Não queria abandonar Rotraut e o bebê Andre, mas não queria perder o emprego de entregador de jornal que mantinha no lado oeste. Ainda que ele ficasse preso no muro, certamente encontraria uma maneira de buscar sua família – incluindo a mãe – em breve. Mais tarde, naquele mesmo dia, Harry pensou em outra passagem para o lado oeste, mas parecia que os guardas da barreira estavam se tornando mais rígidos. Um pouco depois de escurecer, ele envolveu o passaporte num plástico e mergulhou no Spree para nadar os quase 200 metros até o lado oeste. Ao subir para respirar, ele quase deu uma cabeçada no barco da polícia de Berlim Oriental. Esperando, ele finalmente ouviu um dos policiais dizer: “Vamos, não há nada aqui”. Depois que eles partiram, ele nadou o resto do caminho até a borda. Enquanto Seidel pensava em como salvar sua família, um dos irmãos de Rotraut tentou tirá-los de lá usando passaportes da Alemanha Ocidental com fotos de pessoas que se pareciam com eles. Quando o irmão tentou passar as identidades falsas por uma barreira alfandegária, não teve sucesso. 16


A mãe e a sogra de Harry foram presas. A esposa só continuou livre porque tinha um bebê para cuidar. Irado, Harry jurou que buscaria a mãe quando ela fosse solta – e que levaria a esposa e o filho imediatamente. Depois de mais uma volta de bicicleta, dessa vez pelo lado ocidental do Muro, ele determinou que o lugar mais seguro para atravessar era ao longo da Kiefholz Strasse, perto do Treptower, um dos maiores parques da cidade. Não havia nada ali além de arame farpado – não havia cerca nem concreto – na barreira naquele ponto, e muitas árvores e arbustos na zona ocupada pelos americanos para se esconder. Para obter a cobertura da noite, ele atirou em alguns refletores com uma espingarda de ar comprimido. Na noite de 3 de setembro de 1961, três semanas após a construção do Muro, Rotraut, esguia e de olhos azuis, recebeu um telefonema inesperado em seu apartamento. Harry, telefonando de um café no Leste, dizia que passaria para buscá-la em uma hora. Rotraut, cuja família tinha imigrado da Polônia, era anticomunista como o marido e vinha pensando em maneiras de fugir sozinha, por isso gostou do convite de Harry. Quando ele chegou, mandou que ela se vestisse de preto, desse ao bebê um pedaço de um comprimido para dormir e o seguisse. Em pouco tempo, eles estavam passando por baixo da vegetação na Kiefholz Strasse, onde Harry já tinha cortado o arame farpado. Ele se arrastou para passar, ficou de pé e levantou o arame de cima. Rotraut entregou o bebê a ele e entrou no lado ocidental. E então, como Harry, ela correu muito até o Ford Taunus dele. Minutos depois, os três Seidel estavam relaxando no apartamento de Harry no distrito de Schöneberg. O final não foi tão feliz para dois dos irmãos de Rotraut, presos sob a acusação de que sabiam da fuga ou que tiveram alguma participação. Poucas pessoas na Berlim Oriental imaginavam que um tipo de muro – ou “barreira de proteção antifascista”, como o líder da Alemanha Oriental, Walter Ulbricht, dizia (provando ter lido Orwell) – pudesse durar anos. Mas Harry Seidel não era um dos otimistas. Acreditava que aquela cicatriz feia e grande e o estado de vigilância seriam permanentes. E o que o Ocidente podia fazer em relação a isso? Berlim era uma ilha isolada, flutuando precariamente no meio do Estado comunista, a 1.600 quilômetros da Alemanha Ocidental. Harry Seidel sentia que suas aventuras na fronteira tinham apenas começado. Primeiro, ele ainda tinha que resgatar a mãe.

APÓS anos de escassez e racionamento, os berlinenses do Leste gostavam de brincar dizendo que mesmo quando tinham dinheiro para comprar 17


maçãs e batatas, costumavam encontrar bichos nelas – e “cobram mais com os bichos”. Mais uma piada ácida: “Você sabia que Adão e Eva eram, na verdade, de Berlim Oriental? Não tinham roupas, tinham que dividir uma maçã e fizeram com que acreditassem que viviam num paraíso”. Desde um pouco depois da Segunda Guerra Mundial, uma linha ondulada no mapa havia separado os dois estados alemães, antes mesmo de eles ganharem os nomes de República Democrática Alemã (RDA) e República Federal da Alemanha (FRG). A Alemanha Ocidental foi dividida em setores ocupados pelos americanos, franceses e britânicos. A RDA, dominada pelos soviéticos, era metade da Alemanha, em massa, população e, cada vez mais, desempenho econômico. Em 1955, com a economia se desenvolvendo e a oferta de empregos abundante, a Alemanha Ocidental atingiu total soberania, mesmo com as três principais forças de ocupação permanecendo. Enquanto isso, os comunistas no Leste se espalharam para estancar uma vergonhosa crise de refugiados. Desde o fim dos anos 1940 a 1961, cerca de 2,8 milhões de alemães orientais fugiram para o Ocidente. A maioria dessa onda humana – quase 20% da população da Alemanha Oriental e uma alta concentração de sua mão de obra apta e profissionais – evadiu via Berlim. Os soldados da RDA policiaram a fronteira nacional com rigidez, mas a fronteira do setor soviético em Berlim, no interior da Alemanha Oriental, permaneceu porosa. No ponto onde os quatro setores da cidade se encontravam, os níveis de segurança eram variados. Berlim continuou sendo, na maioria dos aspectos, uma cidade, com serviço de telefone interconectado, linhas de metrô, trem, bonde e ônibus. Cerca de 60 mil berlinenses do Leste com passes oficiais – professores, médicos, engenheiros, advogados, técnicos, estudantes – entravam no lado oeste todos os dias para trabalhar ou para frequentar as aulas na Universidade Técnica ou na Universidade Gratuita. Eram conhecidos como grenzgänger – atravessadores de fronteiras. Muitos nunca voltaram. Em 1961, a população de 2,2 milhões da Berlim Ocidental se tornou o dobro daquela do lado Oriental. Os soviéticos ficaram assustados. O premier Nikita Khrushchev considerava a Berlim Ocidental uma “pedra no sapato”, apesar de também considerá-la os testículos que podia apertar sempre que quisesse fazer o Ocidente berrar. Khrushchev havia emitido um ultimato em novembro de 1958 dando às três nações do Ocidente seis meses para concordar em tornar a Berlim Ocidental uma zona desmilitarizada, “livre”, e então se retirar. Os Aliados rejeitaram isso. Eles sustentavam que a divisão nada natural da cidade tinha que terminar em eleições diretas em todos os setores e, por fim, em reunificação. 18


Khrushchev se conteve momentaneamente. Em sua campanha para a presidência em 1960, John F. Kennedy previu que Berlim continuaria a “testar nossos nervos e nossa disposição”. A primeira reunião de cúpula Kennedy-Khrushchev ocorreu no início de junho de 1961, em Viena. O líder soviético de 67 anos começou designando Berlim como “o lugar mais perigoso do mundo”. Testando o inexperiente JFK, ele ameaçou finalmente assinar um “tratado de paz” há muito prometido com a Alemanha Oriental, pondo fim aos acordos de quatro poderes quanto à divisão de Berlim. Os alemães orientais ganhariam, assim, controle de todo o acesso ocidental à cidade por ar, estrada de ferro e autobahn. Novamente, as três nações ocidentais rejeitaram a ideia. Mas Kennedy, intimidado e atrapalhado, deu a entender que agora os Estados Unidos aceitavam a divisão semipermanente de Berlim, o que só encorajou Khrushchev. Quando a cúpula terminou, Kennedy a classificou de “a pior coisa da minha vida. Ele me destroçou”. JFK disse a aliados que havia pouco que os Estados Unidos poderiam fazer pelos berlinenses orientais – o único objetivo agora era defender os interesses daqueles que já estavam no Ocidente. Ele disse a um importante aliado: “Juro por Deus que não sou um separatista, mas me parece bem estúpido correr o risco de matar um milhão de americanos por causa de uma discussão a respeito de direitos de acesso em uma autoestrada... ou porque os alemães querem a Alemanha reunificada”. Depois, ele acrescentou: “Nós não causamos a desunião na Alemanha”. Em um discurso do dia 25 de julho de 1961, Kennedy declarou que os Estados Unidos não estavam à procura de outro confronto em Berlim. Ainda assim, à luz da beligerância cada vez maior dos soviéticos, JFK ordenou uma formação militar. “Buscamos a paz”, Kennedy anunciou, “mas não nos renderemos”. Os berlinenses ocidentais se concentraram em outro elemento do discurso: Kennedy parecia sugerir que apesar de continuarem sendo fortes defensores da Alemanha Ocidental, os Estados Unidos deixariam os comunistas fazerem praticamente o que quisessem no lado oriental. Em meio às crescentes tensões, o número de alemães orientais chegando ao centro de refugiados da Berlim Ocidental – uma colônia de 25 construções em Marienfelde – aumentou vertiginosamente. A média era de 19 mil por mês em 1961; esse número mais que dobrou no começo de agosto. Os alemães orientais nunca puderam participar de eleições diretas, mas estavam votando com os pés. Walter Ulbricht, o líder da Alemanha Oriental, de 68 anos e com uma barbicha à la Lênin, já tinha visto o suficiente. Com a aprovação de Khrushchev, ele havia, semanas antes, ordenado o estoque de enormes quantidades de 19


arame farpado, cercas e blocos de concreto, e seu sonho de uma barreira permanente cercando Berlim Ocidental estava finalmente prestes a se tornar realidade. De algum modo, apesar do enorme investimento em operações de inteligência em Berlim, os americanos sabiam pouco a respeito disso. Os relatórios diários da CIA ao presidente Kennedy nada diziam. Não que pudesse importar. Os líderes americanos eram muito ambivalentes quanto a fechar qualquer parte da fronteira. Ulbricht tomou coragem com uma entrevista televisionada e muito divulgada do dia 30 de julho, com J. William Fulbright, um influente senador americano democrata. Quando perguntado se os comunistas poderiam reduzir as tensões criando uma barreira para evitar a fuga de refugiados, Fulbright respondeu: “Na próxima semana, se decidirem fechar suas fronteiras, poderiam fazê-lo sem violar nenhum tratado. Não compreendo por que os alemães orientais não fecham sua fronteira... Eu acho que eles têm o direito de escolher isso a qualquer momento.” A imprensa da Alemanha Ocidental e os diplomatas americanos em Bonn, a capital, escorraçaram Fulbright. Alguns o chamaram de “Fulbricht”. O presidente Kennedy não disse nada em público. Mas na Casa Branca, falou com um conselheiro: “Khrushchev está perdendo a Alemanha Oriental. Não pode deixar que isso aconteça. Se a Alemanha Oriental acabar, acabarão também a Polônia e toda a Europa Oriental. Ele terá que fazer algo para impedir a partida de refugiados. Talvez um muro. E não seremos capazes de impedi-lo”. Khrushchev, enquanto isso, garantia a Ulbricht: “Quando a fronteira for fechada, os americanos e os alemães ocidentais ficarão felizes”. Ele afirmava que o embaixador americano de Moscou havia dito a ele que a crescente incidência de fugas de refugiados estava “causando muito problema aos alemães ocidentais. Então, quando instituirmos esses controles, todo mundo ficará satisfeito”. Ulbricht designou seu chefe de segurança, Erich Honecker, para garantir que a operação fosse bem-sucedida. Um pouco depois da meia-noite de 13 de agosto, o primeiro arame farpado foi desenrolado ao longo das principais partes da fronteira, o primeiro passo para se fechar a circunferência de 154 quilômetros da Berlim Ocidental. Milhares de tropas soviéticas permaneceram preparadas para o caso de manifestantes do Ocidente tentarem impedir a ação. Khrushchev sabiamente aconselhou Ulbricht a cuidar para que o arame não passasse nem um centímetro da fronteira. Quando o secretário de Estado Dean Rusk soube das notícias naquela mesma manhã, ordenou que os oficiais americanos se abstivessem de emitir 20


declarações além de leves protestos. Ele temia que qualquer reação americana na fronteira desse início a uma intensificação do lado comunista. Então, ele deixou o escritório para participar de um jogo de beisebol dos senadores de Washington. Os diplomatas norte-americanos esperavam que o prefeito da Berlim Ocidental, Willy Brandt, não soubesse da saída de Rusk, nem da reação de Foy Kohler, um dos aliados de Rusk: “Os alemães orientais nos fizeram um favor”. Mais do que isso, a Berlim Oriental era um campo minado, disse o correspondente da CBS, Daniel Schorr, naquele dia. Ele acrescentou que as tropas eram necessárias para conter uma “população irritada”. Naquela noite, Edward R. Murrow, o lendário apresentador que deixou a CBS para dirigir a administração da U.S. Information Agency (USIA), enviou um telegrama a seu amigo Jack Kennedy, de Berlim, comparando a atitude de Ulbricht à ocupação da Renânia por Hitler. Ele alertou JFK de que se não demonstrasse decisão, poderia encarar uma crise de confiança tanto na Alemanha Ocidental quanto no mundo todo. Os residentes do lado leste tinham se adaptado à divisão arbitrária da cidade, mas o caráter daquela segregação havia mudado para pior naquela manhã de 13 de agosto. Dezenas de milhares de repente perderam seus empregos no Ocidente ou a chance de terminar os estudos, além da liberdade de visitar amigos, familiares e namorados. Com rotas terminando em Berlim Oriental, o metrô U-Bahn e os trens elevados S-Bahn agora deixavam os passageiros na fronteira. Não obstante, no dia 14 de agosto, Kennedy disse a assistentes que um muro “não é uma solução muito bonita, mas é mil vezes melhor do que uma guerra”. Na mesma discussão, disse: “Este é o fim da crise em Berlim. O outro lado entrou em pânico, não nós. Não vamos fazer nada agora porque não há alternativa além da guerra. Está acabado, eles não vão tomar Berlim”. A inteligência americana ficou quase otimista. O briefing da CIA para Kennedy no dia 14 de agosto se referia secamente às novas “limitações de viagem” e a “restrições” em Berlim. No dia seguinte, a CIA afirmou que as populações da Alemanha Oriental e de Berlim Oriental estavam “de modo geral, reagindo com cautela”, com apenas “expressões esparsas de crítica aberta e alguns exemplos de incidentes antirregime”. A agência não devia saber que pelo menos dez guardas de fronteira da Alemanha Oriental já tinham fugido para o Oeste. A força-tarefa de alto escalão para a questão Berlim, reunida em Washington, concentrava-se mais nas relações públicas do que em barrar o movimento soviético com sanções. O secretário de Estado Rusk disse que, apesar de o fechamento da fronteira ser um assunto sério, “em termos 21


realistas, facilitaria um acordo com Berlim. Nosso problema imediato é o senso de ultraje em Berlim e na Alemanha que carrega consigo uma sensação de que deveríamos fazer mais do que só protestar”. O procurador-geral Robert Kennedy solicitou apoio na campanha antissoviética. No dia 16 de agosto, a manchete do jornal popular da Alemanha Ocidental, Bild Zeitung, anunciava: “O Ocidente Não Faz Nada!” O presidente Kennedy, segundo noticiava, “permanece calado”. O prefeito Willy Brandt enviou uma mensagem ríspida a Kennedy. Ele criticava a “inatividade e pura defensiva” dos Aliados, o que poderia causar a diminuição do moral na Alemanha Ocidental enquanto promovia “exagerada autoconfiança no regime de Berlim Oriental”. Se nada fosse feito, o próximo passo seria os comunistas transformarem Berlim Ocidental em um “gueto” do qual muitos dos seus cidadãos fugiriam. Kennedy deve rejeitar a chantagem soviética. Em uma enorme manifestação em Berlim naquela noite, Brandt gritou: “Berlim espera mais do que palavras! Berlim espera ação política!”. Kennedy estava irredutível, em parte por achar que a raiva de Brandt era motivada mais por política eleitoral que por qualquer outra coisa. Ele se referia a Brandt como “aquele canalha de Berlim”.

POUCOS DIAS DEPOIS da construção da cerca de concreto e arame, os alemães orientais estavam pulando janelas de construções adjacentes à fronteira ao longo de vários quarteirões da Bernauer Strasse no distrito Mitte (ou “meio”), para a calçada em Berlim Ocidental. Isso só era possível em partes da cidade onde as fachadas dos prédios marcavam a fronteira. Em alguns casos, bombeiros de Berlim Ocidental usavam redes para pegar as pessoas que pulavam. Pouco mais de uma semana depois de 13 de agosto, a primeira berlinense oriental morreu tentando fugir. Foi Ida Siekmann, 58 anos, que literalmente voou depois de jogar seu colchão e outros pertences pela janela de seu apartamento do terceiro andar na Bernauer Strasse. Siekmann não conseguiu cair sobre o colchão e morreu a caminho do hospital. Os alemães ocidentais ficaram irados. Os operários de Berlim Oriental cobriam, com tijolos, janelas que davam vista ao lado ocidental o mais rápido possível. Dois dias depois do salto fatal de Siekmann, um alfaiate de 25 anos chamado Günter Litfin foi baleado e morreu no Hum­boldt Harbor, em Berlim. Litfin, um dos milhares de berlinenses orientais que não mais podiam ir para o trabalho no Ocidente, havia quase terminado sua desesperada travessia a nado até o lado oposto quando levou um tiro na nuca disparado por um guarda da 22


fronteira. Em poucas horas, centenas de berlinenses ocidentais se reuniram ali e protestaram aos gritos. A polícia prendeu o irmão de Litfin e revistou o apartamento de sua mãe. A imprensa da Alemanha Oriental lançou uma campanha de difamação contra o falecido, taxando-o como homossexual, cujo nome era “Doll”. Cada um dos guardas que dispararam contra Litfin recebeu uma medalha, um relógio de pulso e um bônus em dinheiro. Um jornal de Berlim Ocidental declarou: “Os caçadores de humanos de Ulbricht se tornaram assassinos”. Alguns dias depois da morte de Litfin, outro jovem berlinense oriental foi morto a tiros no Treptow Canal. Em poucos dias, outros três morreram depois de pular janelas ou cair do telhado na Bernauer Strasse. Em outubro, dois outros jovens foram mortos a tiros no rio Spree. No início da era do Muro, a maioria dos berlinenses ocidentais acreditava que por mais cruel que fosse o sistema no Leste, os soldados ou guardas da fronteira não atirariam em seus compatriotas alemães. Essa esperança se mostrava cada vez mais enganosa. Fugitivos obstinados permaneciam destemidos. Um casal atravessou o Spree até a outra margem – empurrando uma banheira com a filha de três anos dentro, à sua frente. Em meados de outubro, um muro de 2,4 metros já havia substituído o arame farpado em mais partes da cidade. Um escultor berlinense descreveu a construção descuidada e desarticulada como algo que parecia “ter sido feito por um grupo de aprendizes de pedreiros incompetentes e embriagados”. Enquanto os dissidentes descobriam que podiam escalar ou passar pelo concreto, os operários da RDA tornavam as barreiras ainda mais altas e densas, e torres de monitoramento começaram a aparecer aos montes. No lado do muro voltado para o Oeste, grafites surgiram: KZ, as iniciais nazistas para campo de concentração. Centenas ainda iam para o lado ocidental – pelo esgoto, em veículos que conseguissem atravessar tijolos, em um trem que se recusava a parar na fronteira. O Muro era, ao mesmo tempo, demais e insuficiente. Muitos oficiais americanos e da Alemanha Ocidental continuaram a condenar, da boca para fora, o Muro, mas a aceitá-lo, e até a gostar de sua existência, em segredo. Eles viam o Muro mais como solução do que como problema, por mais trágico que fosse o custo para os berlinenses orientais comuns. O maior medo no Ocidente era de que o Exército Soviético – suas forças ultrapassando o contingente ocidental somado – invadisse Berlim Ocidental. Apenas 6.500 soldados americanos ocupavam a cidade isolada, em comparação com os mais de 250 mil das forças americanas na Alemanha Ocidental. A construção do Muro parecia indicar que os soviéticos tinham 23


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