SLAVOJ
ŽIŽEK
Interrogando o real
Organização Rex Butler e Scott Stephens Tradução Rogério Bettoni
OUTROS LIVROS DA FILŌ
FILŌ A alma e as formas Ensaios Georg Lukács A aventura da filosofia francesa no século XX Alain Badiou
A potência do pensamento Ensaios e conferências Giorgio Agamben O tempo que resta Um comentário à Carta aos Romanos Giorgio Agamben
Princípios da filosofia cartesiana e Pensamentos metafísicos Espinosa A unidade do corpo e da mente Afetos, ações e paixões em Espinosa Chantal Jaquet
Ciência, um Monstro Lições trentinas Paul K. Feyerabend
FILŌBATAILLE O erotismo Georges Bataille
FILŌESTÉTICA
A ideologia e a utopia Paul Ricœur
A literatura e o mal Georges Bataille
O primado da percepção e suas consequências filosóficas Maurice Merleau-Ponty
O belo autônomo Textos clássicos de estética Rodrigo Duarte (Org.)
A parte maldita Precedida de A noção de dispêndio Georges Bataille
O descredenciamento filosófico da arte Arthur C. Danto
A teoria dos incorporais no estoicismo antigo Émile Bréhier A sabedoria trágica Sobre o bom uso de Nietzsche Michel Onfray Se Parmênides O tratado anônimo De Melisso Xenophane Gorgia Bárbara Cassin A união da alma e do corpo em Malebranche, Biran e Bergson Maurice Merleau-Ponty Do espírito geométrico e da arte de persuadir e outros escritos de ciência, política e fé Blaise Pascal
FILŌAGAMBEN Bartleby, ou da contingência Giorgio Agamben seguido de Bartleby, o escrevente Herman Melville A comunidade que vem Giorgio Agamben O homem sem conteúdo Giorgio Agamben Ideia da prosa Giorgio Agamben Introdução a Giorgio Agamben Uma arqueologia da potência Edgardo Castro Meios sem fim Notas sobre a política Giorgio Agamben Nudez Giorgio Agamben
Teoria da religião Seguida de Esquema de uma história das religiões Georges Bataille Sobre Nietzsche vontade de chance Georges Bataille
FILŌBENJAMIN
Do sublime ao trágico Friedrich Schiller Íon Platão Pensar a imagem Emmanuel Alloa (Org.)
FILŌMARGENS
O anjo da história Walter Benjamin
O amor impiedoso (ou: Sobre a crença) Slavoj Žižek
Baudelaire e a modernidade Walter Benjamin
Estilo e verdade em Jacques Lacan Gilson Iannini
Imagens de pensamento Sobre o haxixe e outras drogas Walter Benjamin
Introdução a Foucault Edgardo Castro
Origem do drama trágico alemão Walter Benjamin Rua de mão única Infância berlinense: 1900 Walter Benjamin Estética e sociologia da arte Walter Benjamin Walter Benjamin: uma biografia Bernd Witte
FILŌESPINOSA Breve tratado de Deus, do homem e do seu bem-estar Espinosa Espinosa subversivo e outros escritos Antonio Negri
Kaf ka Por uma literatura menor Gilles Deleuze Félix Guattari Lacan, o escrito, a imagem Jacques Aubert, François Cheng, Jean-Claude Milner, François Regnault, Gérard Wajcman O sofrimento de Deus Inversões do Apocalipse Boris Gunjevic Slavoj Žižek Psicanálise sem Édipo? Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan Philippe Van Haute Tomas Geyskens
ANTIFILŌ A Razão Pascal Quignard
FILOMARGENS
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�I�EK
Interrogando o real
Rex Butler e Scott Stephens Rogério Bettoni
ORGANIZAÇÃO TRADUÇÃO
Copyright © Slavoj Žižek 2005, 2013 Copyright © Editorial material and Selection Rex Butler, Scott Stephens 2005, 2013. ‘This translation is published by arrangement with Bloomsbury Publishing Plc’. Copyright © 2017 Autêntica Editora Título original: Interrogating the Real Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.
coordenador da coleção filô
editora responsável
Gilson Iannini
Rejane Dias
conselho editorial
editora assistente
Gilson Iannini (UFOP); Barbara Cassin (Paris); Carla Rodrigues (UFJR); Cláudio Oliveira (UFF); Danilo Marcondes (PUC-Rio); Ernani Chaves (UFPA); Guilherme Castelo Branco (UFRJ); João Carlos Salles (UFBA); Monique David-Ménard (Paris); Olímpio Pimenta (UFOP); Pedro Süssekind (UFF); Rogério Lopes (UFMG); Rodrigo Duarte (UFMG); Romero Alves Freitas (UFOP); Slavoj Žižek (Liubliana); Vladimir Safatle (USP)
Cecília Martins revisão
Aline Sobreira capa
Alberto Bittencourt (Sobre imagem de Ja Het / Shutterstock) diagramação
Larissa Carvalho Mazzoni
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Žižek, Slavoj Interrogando o real / Slavoj Žižek ; organização Rex Butler, Scott Stephens ; tradução Rogério Bettoni. -- 1. ed. -- Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2017. -- (Filô/Margens) Título original: Interrogating the Real ISBN 978-85-513-0164-7 1. Filosofia 2. Filósofos - Eslovênia 3. Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, 1770-1831 4. Ideologia 5. Lacan, Jacques, 1901-1981 6. Psicanálise e filosofia I. Butler, Rex. II. Stephens, Scott. III. Título IV. Série. 17-04308
CDD-199.4973
Índices para catálogo sistemático: 1. Filósofos eslovenos 199.4973
Belo Horizonte Rua Carlos Turner, 420 Silveira . 31140-520 Belo Horizonte . MG Tel.: (55 31) 3465 4500
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São Paulo Av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, Horsa I 23º andar . Conj. 2310-2312 . Cerqueira César . 01311-940 São Paulo . SP Tel.: (55 11) 3034 4468
7 Introdução dos organizadores 15 Prefácio do autor: O inumano 25 Primeira parte: Orientações lacanianas 27 A Sociedade para a Psicanálise Teórica na Iugoslávia: entrevista com Éric Laurent 33 Lacan: em que ponto ele é hegeliano? 43 “O mais sublime dos histéricos”: Hegel com Lacan 61 Conexões do campo freudiano com a filosofia e a cultura popular 89 Lacan entre os estudos culturais e o cognitivismo 119 Segunda parte: A filosofia atravessada pela psicanálise 241
121 Os limites da abordagem semiótica à psicanálise 149 Um pelo do cão que te mordeu 179 Hegel, Lacan, Deleuze: três companheiros estranhos 201 O eclipse do significado: sobre Lacan e a desconstrução 225 A visão em paralaxe Terceira parte: A fantasia da ideologia
243 Entre a ficção simbólica e o espectro fantasmático: rumo a uma teoria lacaniana da ideologia 263 Além da análise do discurso 277 Revisando a crítica social “lacaniana”: a Lei e seu duplo obsceno 299 Por que Wagner é digno de ser salvo? 321 O real da diferença sexual 3 47 Posfácio do autor: Por que Hegel é lacaniano? 377 Glossário
Introdução dos organizadores
“A coisa-em-si” aparece: o pensamento exemplar de Slavoj Žižek Embora hoje seja um tanto clichê dizer isso, é pura verdade que a obra de Slavoj Žižek começa com o conceito filosófico de “início”. Pensamos imediatamente na famosa discussão desse assunto presente no livro de Žižek sobre Schelling, The Indivisible Remainder, em que ele retorna ao clássico problema idealista da liberdade e da origem do mundo. Mas Žižek também trata desse conceito em vários outros exemplos: o momento do surgimento da civilização humana a partir do domínio indiferenciado dos animais, a origem da filosofia pré-socrática na mudança econômica, o nascimento do capitalismo contra o pano de fundo da teologia medieval e, com efeito, o início da própria ideia de Europa nos Bálcãs “primitivos”. É claro, essa busca filosófica pelos princípios vai contra a ideia que se costuma ter de Žižek como um iconoclasta da cultura popular, cujo gesto característico é derrubar os gêneros, nivelar a distinção entre a alta e a baixa cultura e usar exemplos inapropriados para ilustrar e, por fim, ironizar questões filosóficas sérias. Não chegaríamos a argumentar que essa leitura, a bem dizer, é incorreta, mas apenas que não vai longe suficiente. Afinal, hoje em dia é fácil e até convencional ilustrar conceitos filosóficos e psicanalíticos por meio da cultura popular. O fato de a distinção entre alta e baixa cultura ter sido abolida, tornando tudo igual em valor e importância, é mais uma característica da situação contemporânea. Mas, na verdade, a verdadeira pergunta de Žižek é: 7
O que permite que essa confusão aconteça? Qual é a distinção secreta, a exceção que permite a universalização do valor econômico e estético? (Marx já fazia a mesma pergunta nos termos de sua concepção generalizada da forma-mercadoria.) Em seu conhecido método de ler Lacan através de Stephen King, Žižek não está sugerindo que a chave para Lacan esteja em King, ou que Lacan seja “reduzido” ao nível de King como apenas mais um elemento na cultura contemporânea. Também não está simplesmente igualando-os, ou vendo um como aquele que fornece a verdade para o outro. Em vez disso, um pode ser comparado ao outro precisamente porque cada um rompe com o contexto ou quadro referencial em que podem ser compreendidos. Ou seja, o que Žižek busca revelar ao colocá-los juntos é aquilo que é “neles mais do que eles mesmos”, algo além das biografias de seus autores, das circunstâncias de suas composições ou ainda de suas histórias de recepção e interpretação. Devemos, portanto, observar o seguinte paradoxo em Žižek: por um lado, ele atua por uma série de analogias ou comparações (só podemos entender Lacan através de King, ou Lacan só pode ser lido num mundo em que exista no mesmo nível de King); por outro, ele tenta revelar, por meio dessa comparação, algo que excede esse contexto ou essa leitura, um tipo de núcleo inato ou fórmula que simultaneamente se repete em toda sua obra e ocorre a cada vez, de maneira singular, no Real do encontro com um autor ou conceito particulares. Como dizer isso de outra forma? Nos textos reunidos aqui, e na obra de Žižek como um todo, é possível vê-lo inverter sua posição muitas vezes. Ele escreve, como tem sido afirmado, de maneira prolífera, e aparentemente sem se preocupar muito com a consistência. É como se a atividade da própria escrita fosse a principal motivação de Žižek, a razão que o leva a escrever. Isso se ref lete na própria forma de seus textos, em que há inevitavelmente um capítulo final desnecessário, constituído de faits divers ou “questões relacionadas” complementares, depois de a obra teórica principal já ter sido completada. Na verdade, por mais estranho que pareça, o que Žižek quer que vejamos é esse vácuo, esse “nada-a-dizer” ou esse “discurso vazio” por trás de seus textos. Chamaremos esse nada de sua pulsão teórica, ou, numa linguagem mais técnica, de um tipo de enunciação sem enunciado. Por outro lado, quando percorremos esses textos – e, mais uma vez, como tem sido afirmado –, observamos uma consistência enorme de abordagem em Žižek. Ele é, em suas próprias palavras, um “filósofo 8
FILŌMARGENS
dogmático”, que permaneceu extremamente fiel a seus primeiros grandes amores, Lacan e Hegel, sem nunca hesitar em relação aos dois. Mais do que isso, temos a estranha impressão de que, independentemente do que ele escreva, por mais que seus exemplos sejam forçados ou extravagantes, Žižek sempre acaba dizendo a mesma coisa. É quase como se seu sistema fosse predeterminado e seguisse um curso próprio, apesar dos obstáculos ou das contingências, dos eventos pessoais de sua vida ou das revoltas histórico-mundiais. E isso encontra uma expressão na própria obra de Žižek: quando ele fala do discurso do analista como “oracular”, além da interpretação; do Real sem sentido do genoma humano, que se reproduz sem interrupção; e daquelas obras imortais da literatura, como A Ilíada, que parecem ir além de um único autor. Aqui, em contraste àquele discurso vazio do qual falamos antes, temos uma espécie de “discurso cheio”, ou, para usar uma linguagem mais técnica, um enunciado sem enunciação. Sem dúvida, a obra de Žižek manifesta essas duas qualidades. Ela parece totalmente limitada pelo contexto, susceptível aos eventos políticos contemporâneos, afetada por sua patologia privada, etc. Mas, como diz o próprio Žižek, ela também é uma espécie de “máquina” impessoal, uma forma de conhecimento objetivo e exteriorizado, incorporado num meio neutro que se repete sem cessar. Como juntar essas duas características? Como conciliar esses dois polos? O que há de “Žižek” que é transmitido em cada texto, apesar de seus equívocos, suas retrações e distorções? A resposta talvez esteja no procedimento único da clínica lacaniana. Para Lacan, a análise chega a um fim – ou seja, o analisando torna-se analista – no momento do chamado passe. Esse seria o momento em que o analisando tenta transmitir ao analista, por meio de uma terceira parte neutra, o que aprendeu na análise. É claro, uma vez que o analisando ainda está envolvido na análise, ele entende mal algumas coisas, distorce a mensagem, é movido por impulsos inconscientes. A mensagem, desse modo, é perdida, não passada adiante. Mas – tendo em mente a máxima de Lacan de que uma carta sempre chega ao seu destino – é somente dessa maneira que o analisando demonstra seu conhecimento do inconsciente. É nessas distorções e nesses exageros, nas contingências e impropriedades de expressão, que a verdade é encontrada e retransmitida. Em certo sentido, essas distorções são a verdade. Toda a obra de Žižek repete exatamente essa verdade. Sua obra demonstra cada nível de verdade dessa contingência ou distorção, e também fala em cada um deles. É por isso que tanto os estudos culturais INTRODUÇÃO DOS ORGANIZADORES
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quanto as leituras diretamente filosóficas de Žižek estão incorretos. Os estudos culturais, porque não entendem a Verdade contida no método de Žižek; as leituras filosóficas, porque não entendem que essa Verdade só pode ser atingida pelo desvio desse método. Žižek vai além de simplesmente encontrar exemplos para os conceitos filosóficos, ou até mesmo reduzir esses conceitos ao nível dos exemplos. Pois o que persiste nos dois casos é a suposição de alguma Verdade externa da qual esses casos seriam exemplos. Com efeito, o verdadeiro argumento de Žižek é que nenhuma Verdade filosófica pode existir separada de sua exemplificação, ou seja, sua enunciação. Numa espécie de autorref lexão abissal – e aqui retornamos às origens da filosofia –, a obra de Žižek constitui uma investigação incessante de suas próprias condições discursivas. Ela assume e valoriza o meio “imbecil” que inclui seus leitores, o contexto cultural e até o próprio Žižek. É nesse sentido, por fim, que sua obra não pode ser dividida em seus conceitos e exemplos. O ponto crucial não é simplesmente que os conceitos possam ser apreendidos por seus exemplos, mas que os únicos conceitos filosóficos apropriados são aqueles que levam em conta suas próprias condições de transmissibilidade, as relações sempre transferenciais em que o pensamento encontra a si mesmo. Esses são os contornos específicos da obra de Žižek que buscamos demonstrar nesta seleção e organização de textos. O livro está dividido em três partes, correspondendo a uma “concretização” e especificação progressivas do material. Na primeira parte, “Orientações lacanianas”, examinamos as origens do pensamento de Žižek, tanto nos termos de sua localização institucional quanto nos dos encontros filosóficos inaugurais com Lacan e Hegel (incluindo seu gesto extremamente radical, mas talvez agora compreensível, de igualá-los, revelando o excesso dos dois). Também vemos nessa parte Žižek se envolver de maneira mais extensiva com as questões metodológicas suscitadas ao pensar Lacan e Hegel em outros contextos – como das ciências biológicas e da cultura popular. A proposta polêmica de Žižek, no entanto, é que não se trata de aplicar a psicanálise lacaniana ou o idealismo hegeliano a esses campos partindo de uma posição de superioridade conceitual; antes, a genética já é lacaniana e a cultura popular já é hegeliana – e vice-versa. Na segunda parte, “A filosofia atravessada pela psicanálise”, selecionamos cinco “trabalhos em curso” que seguem a cronologia dos principais livros de Žižek: “Os limites da abordagem semiótica à psicanálise” consiste em material de For They Know Not What They Do: 10
FILŌMARGENS
Enjoyment as a Political Factor (1991); “Um pelo do cão que te mordeu”, de Tarrying with the Negative: Kant, Hegel, and the Critique of Ideology (1993); “Hegel, Lacan, Deleuze: três companheiros estranhos”, de Metastases of Enjoyment: Six Essays on Woman and Causality (1994); “O eclipse do significado: sobre Lacan e a desconstrução”, de The Indivisible Remainder: An Essay on Schelling and Related Matters (1996); e “A visão em paralaxe”, de The Parallax View (2006). No entanto, defendemos aqui que essas não são formas menores ou meramente provisórias dos textos canônicos. Ao contrário, uma consideração desses ensaios revela que mesmo as versões finais só se deram por uma decisão arbitrária, por um momentâneo estofo ou capitonnage de seus argumentos. A organização alternada do material que vemos nesses textos faz com que seus argumentos e exemplos assumam diferentes sentidos e nuances naquelas versões canônicas posteriores. Esses rascunhos, portanto, são “vazios”, meros efeitos de como foram feitos na época; e cada um deles é totalmente fiel e consistente com sua forma “final” e com a obra de Žižek como um todo. Na terceira parte, “A fantasia da ideologia”, tomamos um exemplo “privilegiado” do método de Žižek em ação: a análise da ideologia. Em certo sentido, essa é a principal contribuição de Žižek para a teoria contemporânea – a união de Marx e Lacan numa tentativa de compreender como a ideologia ainda funciona hoje em um mundo aparentemente pós-ideológico –, e, no entanto, tudo que Žižek diz aqui pode ser encontrado em toda sua obra: na relação entre masculino e feminino, no social como antagonismo, na questão do antissemitismo, até mesmo nas óperas de Richard Wagner. Em outras palavras, a análise da ideologia não é conceito central em Žižek, mas apenas mais um exemplo. Contudo, a operação fundamental da ideologia se constitui justamente pelo fato de os conceitos (ou o que ele chama de significantes-mestres) só poderem ser apreendidos como exemplos, e de os exemplos tentarem usurpar ou hegemonizar outros exemplos, assim se tornando conceitos. É por essa razão que um “exemplo” ideológico, como Wagner, só pode funcionar como crítica da ideologia, ou seja, pode permitir que falemos dele a partir de fora dele (sobre esse ponto, ver o ensaio “Por que Wagner é digno de ser salvo?”). Wagner nunca é simplesmente “Wagner”: sempre existe algo nele que “é mais do que ele mesmo”, que poderíamos pensar como seu “conceito”, ou ainda chamar de seu sintoma. Isso põe em evidência a diferença irredutível entre Žižek e qualquer historicismo vulgar. Em contraste marcante ao imperativo dos estudos culturais de sempre INTRODUÇÃO DOS ORGANIZADORES
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contextualizar, ou ao imperativo de Fredric Jameson de “Sempre historicizar!”, o gesto fundamental de Žižek é sempre descontextualizar. Mas isso não significa uma fuga da História ou das pressões do contexto, mas precisamente a tentativa de apresentar o não histórico ou não contextualizável dentro do próprio contexto. Ou seja, apresentar o que significa dizer que a história e o contexto são, em si, incompletos, “não-todos”. Como dissemos desde o início, Žižek contesta aquela economia em que tudo se reduz ao nível do exemplo (seja como mero efeito patológico de suas circunstâncias objetivas de vida, seja como elemento contingente dentro de uma bricolagem ad hoc de textos, como no pós-estruturalismo). Tal redução, sugerimos, esconde implicitamente uma Verdade contra a qual tudo é julgado e que permanece estruturalmente externa a essa redução. Contra essa economia – como ficará claro na terceira parte deste livro, em que Žižek discute a relação entre a lógica “masculina” e a “feminina” –, o conceito de Verdade na obra de Žižek não constitui um tipo de exceção ou Verdade exterior à ordem das coisas; em vez disso, ele representa a própria totalidade como não-toda. Em outras palavras, não há nada fora do reino da Verdade em Žižek (literalmente tudo pode ser teorizado), mas essa Verdade só pode ser declarada separada de suas distorções e de seus exemplos. Ela é, para usar a linguagem a que Žižek vai recorrer cada vez mais (ver, por exemplo, “O real da diferença sexual”), partidária, unilateral, tendenciosa, mas, justamente por essa razão, universal, oniabrangente, à qual tudo (incluindo sua própria posição de enunciação) está sujeitado. Esse é o ponto que os comentadores de Žižek não compreendem quando o aprovam como filósofo ou o criticam como iconoclasta da cultura pop. Pois eles necessariamente não consideram o modo como Žižek une essas características ao pensar no que enquadra o próprio pensamento (iniciativa que, na verdade, caracteriza a filosofia desde o princípio, não só como um tipo de iniciativa interdisciplinar, mas também como tentativa de articular aquele espaço vazio do qual surgem todas as disciplinas, inclusive a sua própria). Em outras palavras, as muitas maneiras como Žižek tem sido lido até agora são, evocando Hegel, apenas muitas “evasões da coisa-em-si”. Mas sejamos claros aqui: essa “coisa-em-si” não é um ponto final numenal ou teleológico, que dita secretamente nossas ações e que é o objetivo de todas as nossas palavras, mas sim o movimento rumo a esse ponto final; ele só acontece pela ref lexão desse fim na prática em si. O que este livro tenta sobretudo demonstrar é a prática da obra de Žižek: o constante retrabalho de conceitos, de exemplos 12
FILŌMARGENS
e até de trechos atesta, como qualquer outra coisa, as tentativas repetidas de apreender a coisa-em-si. Como diz Fredric Jameson, crítico cultural marxista, com referência a Bertold Brecht (importante pedra de toque para Žižek), o verdadeiro momento hegeliano está não em algum Saber Absoluto, mas sim na prática que se torna substancial e digna de realização por si só, como fim em si mesmo: Desse modo, a atividade [brechtiana] em si é também uma das características do saber e da arte à medida que recaem no útil: os “meios” inerentes na transformação lenta do útil em um fim por si só – embora não um fim formalista vazio, não o pretexto-fim, o propósito “medíocre” que evocamos para sermos capazes de nos manter ocupados; mas sim uma união substantiva e hegeliana de meios e fins, de tal modo que a atividade se torne valorosa por si só; de modo que imanência e transcendência se tornem indistinguíveis (ou que sua oposição transcenda, se preferir); ou, em outras palavras, de modo que “a coisa-em-si” apareça. “Die Sache selbst”...1
JAMESON, Fredric. Brecht and Method. London; New York: Verso, 1998, p. 3-4.
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