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Copyright © 2017 Pedro Guerra Copyright © 2017 Editora Gutenberg
Todos os direitos reservados pela Editora Gutenberg. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.
editora
revisão
Silvia Tocci Masini
Andresa Vidal Vilchenski Lívia Martins
editoras assistentes
Carol Christo Nilce Xavier
capa
Diogo Droschi (sobre imagem de Mart/ Shutterstock)
assistente editorial
Andresa Vidal Vilchenski
diagramação
Larissa Carvalho Mazzoni
preparação
Silvia Tocci Masini
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Guerra, Pedro Como eu imagino você / Pedro Guerra. -- 1. ed. -- Belo Horizonte : Editora Gutenberg, 2017. ISBN 978-85-8235-467-4 1. Ficção brasileira 2. Ficção - Literatura juvenil I. Título. 17-05097
CDD-869.3 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura brasileira 869.3
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Para PatrĂcia.
Há cordas no coração que melhor seria não fazê-las vibrar. Charles Dickens
Verão
um
Abro os olhos assim que o despertador toca, porém, para mim, ficar de olhos abertos nunca foi muito diferente de permanecer com eles fechados. É como jogar um copo de água no oceano ou acender um fósforo no meio de um incêndio. Pouca coisa muda. Enxergo a escuridão total do meu quarto logo nas primeiras horas da manhã, mas os fachos de luz que entram pela minha janela funcionam como a garantia de que, sim, eu ainda enxergo alguma coisa. Meu pijama está colado no corpo e meus cabelos loiros estão mais enrolados e amassados do que o habitual. Ao acordar, meu pensamento não é novo: já é a quinta vez que sonho com ele. Tento reconstruir na minha mente aquele rosto que não é mais novidade. Ele já apareceu nos meus sonhos diversas vezes, com um longo intervalo de tempo entre um sonho e outro. E estou certa de que era ele mais uma vez nesta noite. Sempre ele. O cara de camisa xadrez e com um meio sorriso que, geralmente, parece olhar para mim. No entanto, o que eu não sei é justamente o que mais me intriga: quem é ele? Tateio o chão de madeira com os pés descalços e então fico em pé. Sabendo de antemão que não vou encontrar 9
nenhum obstáculo pelo caminho, arrasto meu corpo miúdo até o outro extremo do quarto, que está mais do que abafado. O verão está terminando e faz mais calor do que nunca. Como sempre, meus pais precisaram viajar a trabalho, mas desta vez ninguém ficou à disposição para tomar conta de uma garota que já completou 18 anos. No caso, eu. Meus pais são biólogos, e algumas vezes surge um convite para viajar até sabe-se-lá-onde para estudar e analisar sabe-selá-o-quê. Até pouco tempo atrás, eu tinha a vovó ao meu lado, para cuidar de mim, então nunca houve problema em viajar e “me deixar para trás”. No entanto, agora é diferente: vovó faleceu há alguns meses. Eu ainda tento, com certa dificuldade, encarar o fato de que nossa casa não é a mesma sem a presença dela. Já meus pais tentam a todo custo ter alguma ideia genial sobre o que fazer quando uma nova viagem surge. A discussão é sempre a mesma, e todas as noites eu ouço as conversas na cozinha: – Não podemos deixá-la sozinha em casa, George. – Não podemos perder este emprego, Patricia. E naquela noite eu sabia que era a hora de me juntar à conversa dos adultos. – O fato de ter uma filha com visão subnormal não deveria impedir vocês de viverem normalmente, George e Patricia – eu disse, aparecendo na porta da cozinha de uma hora para a outra. Parei logo na entrada, os olhos voltados para aquelas duas figuras sentadas à mesa. – Sei que isso é uma droga. Quer dizer, ter que, a partir de agora, procurar uma babá para a filha parcialmente cega. Mas a boa notícia é: eu já tenho 18 anos e não preciso de uma babá. Sei me virar, e dez anos enxergando menos do que o resto do mundo já me dão algum crédito para passar uns dias sozinha em casa. Por favor, não liguem para nenhum parente. Se vocês não os suportam, imaginem eu! Isso seria um castigo. Apenas acreditem em mim. Estou dizendo, sei me virar sozinha – reforcei. Como eu sabia que aquilo não seria suficiente, arrisquei ir mais longe: 10
– Sei exatamente que o achocolatado fica no armário da direita, a não ser quando papai decide tomar um pouco e deixa a lata em cima da pia. Sei também que uma leve apertada no tubo de creme dental é o suficiente para escovar os dentes. Eu até mesmo sei que você fez mechas no cabelo, mamãe, e que o papai usou uma camisa roxa na segunda-feira, verde-escura na terça-feira e uma azul-ciano na quarta-feira. É o suficiente para uma cega parcial, não? E foi assim que, com mais uma pequena dose de insistência, consegui convencê-los. Na noite da viagem, o carro lotado de bagagens deixou a nossa garagem, e eu até mesmo acenei, fingindo vê-los partir. Para ser sincera, eu tinha pedido ajuda para o Lucas sobre as cores de camisa que meu pai tinha usado naquela semana. Minha deficiência me faz trocar as cores facilmente. Meu melhor amigo também me contou sobre as estranhas mechas que minha mãe tinha feito no cabelo em um salão de beleza pra lá de duvidoso. Sobre a lata de achocolatado, bem, isso era óbvio. Mas tive que mentir para... sei lá, dar um descanso para eles também. O problema é meu, a cegueira parcial é minha. Ninguém tem nada a ver com isso – ao menos, não totalmente. Então, por cinco dias, decidi dar férias aos meus pais. E seria uma grande mentira se eu dissesse que não estava com medo.
Eu me senti insegura logo que eles foram embora, fiquei me perguntando se eu saberia encarar aquilo sozinha. Está certo, conheço bem a nossa casa, pois moramos aqui desde que nasci, mas nunca fiquei sozinha. Na verdade, a cegueira parcial é o menor dos problemas. Minha aflição é por não ter ninguém ao meu lado. Meu medo é que, a qualquer momento, o silêncio possa me engolir. Desço, degrau por degrau, as escadas do meu quarto, empurrando a porta que encontro na frente. Meus pés tocam 11
o piso do segundo andar e fico feliz por não ter rolado escada abaixo (acredite, isso já aconteceu). Minha mãe sempre foi contra a ideia de o meu quarto ser no sótão, porém, quando eu disse que a escuridão do lugar seria muito mais conveniente para o meu probleminha visual, ela parou de reclamar. Depois de tantos tropeços, entendi que nós somos responsáveis pelos nossos próprios medos. A minha previsão de que meus pais deixariam todas as portas abertas se confirma assim que entro no banheiro. Abro a torneira e jogo um pouco de água no rosto, o suficiente para acordar. Sei que na minha frente existe um espelho, porém só enxergo a moldura – minha visão periférica é perfeita. Mas o que deveria ser meu reflexo não passa de uma mancha, e é isso o que enxergo todos os dias. Apenas 20% do mundo na minha frente. Arrisco dizer que a parte mais difícil em ser parcialmente cega é essa: não saber exatamente como sou. Levo a mão direita até o rosto, fazendo com que o indicador percorra o contorno do nariz, bochechas e lábios. Sei que minha pele é macia, mas o que jamais poderei ter certeza é se eu sou uma garota bonita. Fecho os olhos por um segundo e suspiro, me sentindo uma idiota por começar o dia com um pensamento como este. Saio do banheiro, desço mais um lance de escada e caminho até a cozinha. Em cima da bancada fica um pequeno gravador de voz. Meus pais compraram o aparelho durante uma viagem, pois achavam que seria uma boa ideia deixar algum recado todas as vezes que eu acordasse e eles não estivessem em casa. Normalmente, quando eles saem, acabam voltando logo em seguida, mas, desta vez, levariam alguns dias. Pressiono o botão do gravador e a voz da minha mãe preenche todo o ambiente. Enquanto escuto suas preocupações que se resumem em perguntas sobre como passei minha primeira noite sozinha e se tudo está bem – ela não terá as respostas tão cedo –, procuro uma tigela no armário. Após colocá-la na mesa, abro a dispensa e tateio até encontrar a gigantesca caixa de cereal. Despejo o conteúdo no momento em que mamãe 12
me lembra que comprou caixas de massa instantânea e litros do meu suco favorito, como se eu fosse algum tipo de animal que hibernaria pelos próximos meses. Dou as costas ao gravador e abro a primeira gaveta do balcão. As colheres sempre ficam à esquerda. Pego uma e, voltando para o meu cereal, mamãe me presenteia com uma novidade: – Helena, eu me esqueci de te dizer... hoje, no começo da tarde, um rapaz vai bater na porta para cuidar das plantas do nosso quintal. Você sabe o quanto a sua avó adorava aquelas flores, e reparei que estão todas morrendo. Então, querida, por favor, só abra a porta após confirmar que é ele e deixe-o trabalhando – sua voz sai meio forçada, como se ela tivesse percebido que me fazer recepcionar um estranho não tinha sido uma ideia muito genial. Sem querer, acerto em cheio a tigela de cereal com a mão, derrubando-a. Ouço o barulho do vidro se quebrando e os cereais se espalhando por todos os lados, caindo até nos meus pés, o que me faz dar um pulo para trás. Grito com “minha mãe” como se ela estivesse ali. – Contratei o rapaz há algum tempo, então não pude cancelar de última hora. Por favor, não fique brava comigo, querida. Sei como você odeia as minhas loucuras. Mas você pode apenas abrir a porta e despachá-lo para o quintal, certo? – Só faltou dizer que eu não preciso nem ficar de olho no tal jardineiro – ironizo, resmungando para mim mesma. Quando a gravação termina, suspiro mais uma vez, incomodada com a notícia. Por que minha mãe tinha que chamar um estranho exatamente na única vez em que ela precisa se ausentar por mais tempo? Qual é! Os meus planos se resumiam a ficar o dia inteiro de pijama, escutar música alta e passar horas debaixo do chuveiro. Eu não esperava ter que tomar conta de um sujeito que poderia roubar qualquer coisa insignificante da nossa casa, aproveitando-se da minha baixa visão. Credo, rejeito meu próprio pensamento. Pego um pano qualquer e tento recolher a bagunça do melhor jeito que posso. Acabo com um leve corte no dedo, mas 13
nada de mais. Enquanto passo as mãos no chão na tentativa de descobrir se não deixei para trás nenhum caco de vidro, escuto a campainha tocar. Meu corpo enrijece no mesmo instante e prendo a respiração. Não, não pode ser o jardineiro dos infernos. Apesar de não saber que horas são, sei que ainda é cedo. Penso em permanecer exatamente onde estou. Posso fingir para a minha mãe que não escutei a campainha ou que dormi demais. Porém, decido caminhar lentamente até a porta de entrada, apoiando-me nas paredes. Quando chego perto, escuto uma voz do lado de fora: – Eu vou pegar fogo se você não abrir a droga da porta, Helena! Está um calor infernal aqui fora! É o Lucas! Abro a porta respirando normalmente outra vez e, sem nem pensar, me jogo para frente, caindo em seu corpo gigantesco. Lucas faz o tipo garoto-bombado, então, perto do seu peito, sou minúscula. – Você não imagina a felicidade que sinto em te ver – falo a verdade. – Que ótimo! Alguém acordou de bom humor. Solto um sorriso de leve. – Um de nós dois precisava acordar assim, né. Apesar do calor, Lucas está com um perfume amadeirado que me agrada. É um perfume diferente do que ele usa todos os dias, mas gosto mais. Por causa da minha baixa visão, todos os meus outros sentidos ficaram ligeiramente aguçados e o olfato é o meu preferido. Puxo meu amigo de infância para dentro e passo as ordens daquele dia: – Vá até a cozinha e olhe para o chão, atrás da bancada. Veja se há algum indício de que a cega aqui, logo cedo, derrubou cereal e quebrou uma tigela. Enquanto isso, vou trocar de roupa e escovar os dentes. E, pela vida da sua mãe, não vá embora. Preciso muito falar com você. – Qual é, Lena. Se você resolveu se declarar para mim mais uma vez, vá logo com isso. Tenho mil coisas pra fazer e metade delas envolve outras garotas querendo falar o quanto me amam. 14
Coro instantaneamente. Hoje faz exatamente três meses, doze dias e algumas horas que eu disse para o Lucas que talvez estivesse, quem sabe, um pouco, mas bem pouco mesmo, afim dele. E foi aí que algumas coisas ficaram bem ruins. Quer dizer, naquela ocasião meu amigo riu da minha cara. Depois disse algo como: – Você não pode gostar de mim. Seria como se Wandinha e Feioso se apaixonassem. – Wandinha e Feioso? – Os irmãos da Família Addams. Você sabe, nós dois somos como irmãos, e o fato de você passar 16 horas por dia ao meu lado faz você pensar que gosta de mim um pouco mais do que como amigo. Na verdade, você está enganada. Isso! Tremendamente enganada. E, além do mais, você não pode se apaixonar por mim, pois seria um desperdício. Você é linda, Lena. E eu sou um cara muito feio. Mesmo... Aquele foi o primeiro dia em que agradeci por não ter minha visão perfeita. Sei que fiquei absurdamente vermelha, o que é uma característica minha, mas felizmente não precisei encarar os olhos do meu melhor amigo, o que me livrou um pouco do constrangimento. Desde então, Lucas sempre faz piadas. Sorte a minha que ele consegue ser um cara tão desencanado, porque eu ainda me arrependo por ter dito que gostava dele. – Cale a boca e vá para a cozinha – desvio o assunto. – Sim, senhora. Vou cobrar por ser o melhor amigo do mundo, hein? – Qualquer dia eu te pago! – grito ao subir as escadas. De volta para o meu esconderijo (apelido carinhoso que dei para o meu quarto), encontro a escuridão outra vez e automaticamente meus olhos se acostumam. Odeio admitir que, de algum modo, eu faço parte dela.
Uma hora mais tarde, Lucas e eu estamos sentados na beira do cais da cidade, separados por um saco de comida 15
embalada para viagem que compramos no Restaurante 77, que fica ali perto. Seguro o hambúrguer recheado com batatas – desde criança nós temos o costume de colocá-las dentro do sanduíche –, e meu amigo faz barulho com o canudo dentro do copo gigante de Coca-Cola. Não há nenhum som em volta. Nas manhãs de sábado, poucos pescadores trabalham em seus barcos no cais. Como sempre, Porto Tempestade continua sendo a cidade litorânea com mais silêncio por metro quadrado. – Podemos jogar Como eu imagino enquanto almoçamos? Não gosto de silêncio – digo. – Há uma diferença entre silêncio e calmaria, Lena. Mas é claro que podemos. – Ele suga o canudo uma última vez. – Comece... Como você imagina... Me esforço um pouco para desenhar na minha mente a vista que aquela mancha em meus olhos esconde. Estou usando os meus óculos escuros, o mais legal de todas as lojas da cidade (segundo eu mesma). Já que eu tenho que usá-lo todas as vezes que saio de casa, por causa da claridade, acabei comprando o modelo menos cafona, uma espécie de Ray-Ban Clubmaster, ou algo parecido. – Imagino um infinito de água com aparência levemente suja, mas muito bonito. O sol está exatamente acima de nós, por ser meio-dia, e está queimando como nunca. Imagino dois grupos de árvores, um de cada lado do porto... – E como são as árvores? Vejo-as em minha mente. – Grandes, lindas... até verdes demais. Acho que é uma mistura de pinheiros e araucárias. Também existem algumas outras espécies raras e bonitas perdidas no meio delas. E... Ah! O céu está azul e sem nuvens. Um silêncio ridículo me envolve. Não ter um dos sentidos já é o suficiente, então não preciso de algo mais faltando em minha vida. Gosto de barulhos e sons, porque isso sempre me aproxima mais do mundo real. – Lucas? 16
– Ok. Eu estava somando seus pontos. – Fui muito mal? – Dez pontos pela leve sujeira na água, menos sete pela história toda das árvores, e mais quinze pelo céu sem nuvens. Dezoito pontos é o seu total. – Ah, qual é, o que tem de errado com as árvores? – Na verdade, elas são bem feias. E velhas. De onde estamos não dá para ver se existe alguma espécie rara e bonita entre elas, mas, a julgar pelo contexto, creio que não. Limpo os dedos no guardanapo e faço beiço. Esta é a minha pior pontuação em todas as nossas partidas até agora. – O que você tem hoje? – ele pergunta. Viro o rosto para ele como se pudesse vê-lo perfeitamente. Enxergo o contorno do rosto, o cabelo curto impecavelmente penteado, o topete perfeito. Percebo os movimentos de seus lábios, mas não distingo a cor dos seus olhos. Estamos tão perto e tão longe ao mesmo tempo. – Do que você está falando? – Desembucha, Lena. O que está te atormentando? Odeio o jeito como ele me conhece tão bem. Não sei como começar, porém, tenho certeza de que acabarei tocando neste assunto com ele, agora ou depois. – O que você acha dos sonhos? – pergunto. – Você quer uma teoria? – Sim. Ele suspira. – Bem, para mim os sonhos são desejos e algo que está por vir. – Você quer dizer... premonições? Após uma risada engraçada e curta, ele explica: – Não exatamente. Acho que é mais parecido com déjà vu, sabe? Algo que você tem a impressão de já ter visto, mas que está acontecendo naquele exato momento. Sei lá, sonhos na verdade são uma loucura. Um tempo para sair do mundo real e se afogar nos detalhes que passaram despercebidos durante o dia. – Explique melhor. 17
– Tá bom. – Escuto Lucas se mexer, entusiasmando-se com a ideia. – Não sei quanto a você, mas isso acontece muito comigo. Às vezes, alguém diz o nome de uma pessoa, ou eu vejo algo que não via há tempos. Pode ser por uns quinze segundos, mas isso fica preso no subconsciente, e é sempre com isso que eu acabo sonhando. – Por exemplo... – Um dia desses, minha mãe falou o nome do tio Arnold, que eu mal conheço. Acabei sonhando que ele estava voando em um universo cheio de pizza de calabresa, que foi o meu jantar daquela noite. Por mais calor que esteja fazendo, nesse momento, fico gelada. Quero segurar a aflição dentro de mim, mas a rejeito sem pensar duas vezes. – Quanto você conhece desse tal tio Arnold? – Encontrava-o quando eu era pequeno, e isso já faz mais de 15 anos. Receosa, procuro escolher as palavras antes de perguntar: – E como foi que você sonhou com ele? Quer dizer, como você imaginou o rosto dele e tudo mais, se mal se lembrava do cara? – Ah, sei lá. Aonde você quer chegar? Diz logo. Inspiro profundamente e solto o ar devagar. – Tem um cara... – Ih! – Cala a boca. – Recomeço: – Tem um cara com quem eu venho sonhando. Essa noite foi a quinta vez. E... sei lá, não acontece nada de especial nos meus sonhos. Ele não está voando pelo espaço rodeado de fatias de pizza nem nada. São os sonhos de sempre, com o mesmo cara. – Hum... Sabia que tinha algo diferente em você hoje – concluiu. – Diz logo quem é o sortudo que vem te atormentando. – Esse é o problema... – Encolho. – Eu não sei – falo baixinho, pausando entre uma palavra e outra. – Como assim você não sabe, Lena? 18
– Seria muito idiota falar que eu nunca vi esse cara na minha vida antes, né? Mais silêncio. – Pelo amor de Deus, fala alguma coisa! – imploro. – O que você quer que eu fale?! – Sei lá, você sempre sabe o que dizer! Se eu pudesse enxergar, diria que Lucas está sorrindo. – Vamos com calma. Você sonhou com um cara que não conhece. Sei lá, isso não acontece com todas as pessoas do mundo, mas também não é nada de muito anormal, entende? Deve ser alguma memória que ficou presa na sua cabeça, algo que volta de vez em quando. O simples fato de você ter pensado muito no cara depois da primeira vez que sonhou, porque eu sei que você fez isso, já te deu motivos para voltar a sonhar com ele. Meu amigo está certo. Respiro fundo. – Ele é bonito, pelo menos? – Lindo. Aparentemente, seu único defeito é apenas existir nos meus sonhos – respondo. Passamos mais algum tempo conversando sobre trivialidades, sentados perto da água, onde poucas pessoas circulam. Sou branquela demais e sei que depois de hoje estarei totalmente vermelha por causa do sol forte. A marca da minha regata permanecerá por um longo tempo no meu corpo. – Já está tarde e você precisa me salvar – falo depois de algum tempo. – O que é agora, Cinderela? – Mamãe teve a brilhante ideia de chamar um cara para cuidar das flores da minha avó exatamente no dia em que ela resolve viajar. Você sabe sobre o meu pânico de ficar sozinha em casa com estranhos, então estou intimando você para quebrar o galho. – Não posso, Lena. Já tinha combinado de ajudar meu pai na loja hoje. Deveria ser proibido trabalhar no sábado. Sem esperança, termino dizendo: – Deveria ser proibido deixar cegas sozinhas com estranhos.
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