FILOESPINOSA
O TRADUTOR: Herivelto P. Souza é doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília (UnB).
Antonio Negri ESPINOSA SUBVERSIVO e outros escritos
ANTONIO NEGRI nasceu em 1933 e foi professor de Filosofia do Direito e de Teoria do Estado na Universidade de Pádua. Participou de várias publicações do operaísmo, como Quaderni Rossi e Classe Operaia, e na década de 1970 se tornou uma referência teórica da esquerda radical italiana. Em 1979, acusado de ser um dos líderes do terrorismo na Itália, foi encarcerado e assim permaneceu, sem comprovação da acusação principal, até 1983, quando, ainda na prisão, foi eleito deputado e terminou exilando-se na França. Em 1997, retornou à Itália e cumpriu pena até 2003. Atualmente vive entre Veneza e Paris. Dentre suas inúmeras obras, destacam-se: Descartes politico, o Della ragionevole ideologia (1970); La forma Stato: per la critica dell’economia politica della Costituzione (1977); Marx oltre Marx (1979); L’anomalia selvaggia: saggio su potere e potenza in Baruch Spinoza (1981); Les Nouveaux espaces de liberté (1985, com Félix Guattari); e Il potere costituente: saggio sulle alternative del moderno (1992). Com Michael Hardt, escreveu: Labor of Dionysus: A Critique of the State-Form (1994); Império (2000); Multitude: War and Democracy in the Age of Empire (2004); Commonwealth (2009); e Declaration (2012).
“Espinosa mostra como a imaginação ontológica e a potência constitutiva (poderíamos dizer: o poder constituinte) podem se colocar o problema de romper o destino dialético do Ocidente e sua desesperada crise, e com eficácia. [...] Operar sobre um tal terreno, na temporalidade que lhe é própria, significa considerar a crise não como algo banal, e sim como um consistente horizonte do existente. Assim, o problema filosófico será, e é, aquele de ir para além da crise, assumindo-a como materialidade do fundamento. Sem esse ‘ir para além’, a filosofia e a ética não poderiam nem mesmo definir-se. A metafísica consiste nesse ir para além. A crise não é a conclusão de um destino, mas o pressuposto da existência. [...] Se no ‘retorno a Espinosa’ se mostra uma vicissitude ligada à crise do marxismo, é preciso acrescentar que tal vicissitude não é superficial, ou melhor, que ela o é no sentido espinosano. Ela não abate a imaginação do comunismo, mas, antes, torna-a verdadeira. A inovação espinosana é, de fato, uma filosofia do comunismo, a ontologia espinosana nada mais é que uma genealogia do comunismo. E é por isso que Bento continuará a ser maldito.”
Antonio Negri
ESPINOSA SUBVERSIVO e outros escritos
ISBN 978-85-513-0023-7
Esta coletânea reúne dois livros – Espinosa Subversivo (1992) e Espinosa e nós (2010) –, além de outros ensaios esparsos que Antonio Negri publicou sobre Espinosa entre 1983 e 2009: um texto escrito nos cárceres romanos (onde a derrota é ocasião de crítica e reinvenção teórica), outros no exílio parisiense (1983-1997), outros ainda quando do retorno à Itália (e à prisão), além de intervenções recentes (2005-2009) – textos expressos com os sortilégios da “lírica paduana”, aquela que atinge as alturas do conceito temperando-o com entusiasmo desencantado. Como diz o autor: “Foi estudando Espinosa que comecei a fazer filosofia, por mim, para as minhas coisas”; “Espinosa foi para mim um meio de abandonar o leninismo”; “Espinosa foi a minha outra grande leitura na prisão” (ao lado do Livro de Jó, parábola do sofrimento daquele que “talvez tenha sido mais justo que Abraão”). Os textos testemunham a longa travessia de Negri e reiteram o que ele reconhecia nos juízes que o condenaram em 1979: melhor que ninguém, sabiam o significado da palavra “comunismo”. Esse sonho do comunismo como mutação antropológica, que pode ser domado, mas não anulado, Negri reencontra em Espinosa – que lhe dá régua e compasso para a resistência em favor de novos modos de pensar e fazer política. Maurício Rocha
9 788551 300237
www.autenticaeditora.com.br
Tradução Herivelto Pereira de Souza
Professor do Departamento de Direito da PUC-Rio
OUTROS LIVROS DA FILŌ FILŌ
FILŌBATAILLE
A alma e as formas Ensaios Georg Lukács
O erotismo Georges Bataille
A aventura da filosofia francesa no século XX Alain Badiou A ideologia e a utopia Paul Ricœur O primado da percepção e suas consequências filosóficas Maurice Merleau-Ponty A teoria dos incorporais no estoicismo antigo Émile Bréhier A sabedoria trágica Sobre o bom uso de Nietzsche Michel Onfray Se Parmênides O tratado anônimo De Melisso Xenophane Gorgia Bárbara Cassin A união da alma e do corpo em Malebranche, Biran e Bergson Maurice Merleau-Ponty
FILŌAGAMBEN Bartleby, ou da contingência Giorgio Agamben seguido de Bartleby, o escrevente Herman Melville A comunidade que vem Giorgio Agamben O homem sem conteúdo Giorgio Agamben Ideia da prosa Giorgio Agamben Introdução a Giorgio Agamben Uma arqueologia da potência Edgardo Castro Meios sem fim Notas sobre a política Giorgio Agamben Nudez Giorgio Agamben A potência do pensamento Ensaios e conferências Giorgio Agamben O tempo que resta Um comentário à Carta aos Romanos Giorgio Agamben
O culpado Seguido A Aleluia Georges Bataille A experiência interior Seguida de Método de meditação e Postscriptum 1953 Georges Bataille A literatura e o mal Georges Bataille A parte maldita Precedida de A noção de dispêndio Georges Bataille Sobre Nietzsche: vontade de chance Seguido de Memorandum, A risada de Nietzsche, Discussão sobre o pecado e Zaratustra e o encantamento do jogo Georges Bataille Teoria da religião Seguida de Esquema de uma história das religiões Georges Bataille
FILŌBENJAMIN O anjo da história Walter Benjamin Baudelaire e a modernidade Walter Benjamin Imagens de pensamento Sobre o haxixe e outras drogas Walter Benjamin Origem do drama trágico alemão Walter Benjamin Rua de mão única Infância berlinense: 1900 Walter Benjamin
FILŌESPINOSA Breve tratado de Deus, do homem e do seu bem-estar Espinosa Princípios da filosofia cartesiana e Pensamentos metafísicos Espinosa
A unidade do corpo e da mente Afetos, ações e paixões em Espinosa Chantal Jaquet
FILŌESTÉTICA O belo autônomo Textos clássicos de estética Rodrigo Duarte (org.) O descredenciamento filosófico da arte Arthur C. Danto Do sublime ao trágico Friedrich Schiller Íon Platão Pensar a imagem Emmanuel Alloa (Org.)
FILŌMARGENS O amor impiedoso (ou: Sobre a crença) Slavoj Žižek Estilo e verdade em Jacques Lacan Gilson Iannini Introdução a Foucault Edgardo Castro Kaf ka Por uma literatura menor Gilles Deleuze Félix Guattari Lacan, o escrito, a imagem Jacques Aubert, François Cheng, Jean-Claude Milner, François Regnault, Gérard Wajcman O sofrimento de Deus Inversões do Apocalipse Boris Gunjevic Slavoj Žižek
ANTIFILŌ A Razão Pascal Quignard
FILOESPINOSA
Antonio Negri
ESPINOSA SUBVERSIVO e outros escritos
TRADUÇÃO:
Herivelto Pereira de Souza
SELEÇÃO DE TEXTOS, REVISÃO TÉCNICA E A P R E S E N TA Ç Ã O :
Homero Santiago
Copyright © 2016 Antonio Negri Copyright © 2016 Autêntica Editora Copyright para Spinoza et nous © Éditions Galilée, 2010 Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora. coordenador da coleção filô
editora responsável
Gilson Iannini
Rejane Dias
coordenadores da série filô espinosa
editora assistente
André Menezes Rocha, Ericka Marie Itokazu e Homero Santiago
Cecília Martins revisão
Aline Sobreira
conselho editorial
Gilson Iannini (UFOP); Barbara Cassin (Paris); Carla Rodrigues (UFJR); Cláudio Oliveira (UFF); Danilo Marcondes (PUC-Rio); Ernani Chaves (UFPA); Guilherme Castelo Branco (UFRJ); João Carlos Salles (UFBA); Monique David-Ménard (Paris); Olímpio Pimenta (UFOP); Pedro Süssekind (UFF); Rogério Lopes (UFMG); Rodrigo Duarte (UFMG); Romero Alves Freitas (UFOP); Slavoj Žižek (Liubliana); Vladimir Safatle (USP)
capa
Alberto Bittencourt (Sobre reprodução de Espinosa e os rabinos, de Samuel Hirszenberg, 1907) diagramação
Larissa Carvalho Mazzoni
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Negri, Antonio Espinosa subversivo e outros escritos / Antonio Negri ; tradução Herivelto Pereira de Souza ; seleção de textos, revisão técnica e apresentação Homero Santiago. – 1. ed. – Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2016. – (Filô Espinosa) ISBN 978-85-513-0023-7 1. Filosofia espinosana 2. Política - Filosofia 3. Psicologia social 4. Spinoza, Benedictus de, 1632-1677 - Crítica e interpretação I. Negri, Antonio. II. Título. III. Série. 16-07268
CDD-149.7
Índices para catálogo sistemático: 1. Espinosismo : Filosofia 149.7
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Sumário
7. Apresentação
Homero Santiago Espinosa subversivo 15. I. Espinosa: cinco razões para sua atualidade 25. II. O Tratado político, ou da fundação da democracia moderna 46. III. Reliqua desiderantur. Conjectura para uma definição do conceito de democracia no último Espinosa 86. IV. Entre infinito e comunidade. Apontamentos sobre o materialismo em Espinosa e Leopardi 107. V. A antimodernidade de Espinosa 124. VI. O “retorno a Espinosa” e o retornar do comunismo Espinosa e nós
135. I. Introdução 1 63. II. Espinosa: uma heresia da imanência e da democracia 178. III. Potência e ontologia entre Heidegger e Espinosa 189. IV. Multidão e singularidade no desenvolvimento do pensamento político de Espinosa 200. V. Espinosa: uma sociologia dos afetos Outros escritos 215. Democracia e eternidade em Espinosa 227. Espinosa e os pós-modernos 233. A potência de um materialista 237. Necessidade e liberdade em Espinosa: algumas alternativas 255. Prefácio à tradução italiana de La stratégie du conatus Entrevista 265. Otimismo da razão, pessimismo da vontade
Apresentação Homero Santiago
Peculiar trajeto o da filosofia de Espinosa. Maldito e perseguido já à sua época, no século XVIII tornou-se um fantasma a rondar o continente europeu, que não o lia mas o temia como o diabo teme a cruz. Os textos espinosanos só voltaram a ser publicados no início do XIX, para logo virarem motivo de querela. No século XX, tornou-se um pensamento clássico a mais, estudado nas universidades ao lado de outros. Até que Espinosa irrompe, como que de sob os paralelepípedos, no incrível 1968. Que coincidência! Em simultâneo ao mundo revolucionado, naquele ano aparecem na França os trabalhos de Martial Gueroult (Spinoza: Dieu) e de Gilles Deleuze (Spinoza et le problème de l’expression), que marcam um impulso sem precedentes nos estudos espinosanos; no ano seguinte, vem o trabalho sobre a política espinosana de Alexandre Matheron (Individu et communauté chez Spinoza); ao lado disso tudo, estavam Louis Althusser e seu grupo a instaurar um nova leitura de Marx que apregoava um crucial, imprescindível “desvio” por Espinosa. Esse foi o cenário de uma decisiva redescoberta da filosofia espinosana que a tornou apta a fazer as vezes de instrumento de trabalho nas mais diversas áreas da cultura, indo bem além da só filosofia e mostrando-se, mais vigorosa que em nenhum outro ponto, no concernente à política. É nesse movimento que precisamos situar o trabalho de Antonio Negri sobre Espinosa. Professor na Universidade de Pádua, militante político, um dos expoentes da política extraparlamentar italiana e europeia dos anos 1970, Negri é preso em 1979 e, no cárcere, volta ao filósofo que, na
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adolescência, frequentara a sua cabeceira.1 Nesse período difícil, ele redige A anomalia selvagem: ensaio sobre poder e potência em Baruch de Es2 pinosa, publicado em 1981. A obra conheceu um sucesso considerável e ao longo do tempo firmou-se como um clássico da interpretação espinosista, influenciando gerações de leitores que passaram a identificar no “retorno” ao filósofo holandês uma possibilidade de renovação do pensamento político contemporâneo, especialmente no que tange às perspectivas de transformação social. Depois da Anomalia, inúmeros ensaios deram prosseguimento à pesquisa negriana em torno do espinosismo. Em especial, houve a explicitação das conexões entre Espinosa e Maquiavel e Marx (ver O poder constituinte, 1992), bem como o aprofundamento das noções de democracia, multidão, comum. O espinosismo, enfim, veio a ocupar um lugar de proa nos trabalhos mais recentes que Negri publicou com o norte-americano Michael Hardt, especialmente Império (2000), Multidão (2004) e Comum (2009). Tamanha importância conferida a Espinosa explica-se. Para Negri, política e ontologia, em última instância, sempre estão enlaçadas; e o espinosismo torna-se, em suas mãos, uma chave para a renovação do marxismo, permitindo enfrentar várias das perspectivas que a crise desse mesmo marxismo deixou em aberto. Com isso, a filosofia espinosana toma a forma – para usarmos uma bela expressão negriana a respeito de Marx – de uma ciência da crise e da subversão.3 Perante a crise, um não aquietar-se, não desesperar-se, mas ousar e saber arrostar o processo. Na etapa mais aguda da crise da modernidade, embora seus antojos ainda se façam sentir, ter a coragem de ir além, lobrigando e constituindo o novo. E isso só se faz, justamente, combinando o momento crítico à capacidade subversiva, ou seja, produzindo, com uma razão otimista, um saber que consiga contornar Sobre a trajetória de Negri, além da entrevista ao final deste volume, cf. NEGRI, T.; MICHELE, G. Storia di un comunista. Firenze: Ponte alle Grazie, 2015; Antonio Negri: a Revolt that Never Ends, documentário dirigido por Alexandra Weltz e Andreas Pichler, 2004, facilmente encontrado na internet. 2 Uma tradução brasileira por Raquel Ramalhete foi publicada em 1993 pela Editora 34 e encontra-se, infelizmente, há muito esgotada. 3 Cf. NEGRI, A. Marx oltre Marx. Roma: Manifestolibri, 2003. p. 26. 1
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o pessimismo e redescobrir a oportunidade de subversão do presente estado de coisas. Ora, para inspirar tal operação, ainda mais quando as incertezas e ambiguidades primam e os ânimos parecem fatalmente embotados, nada melhor que Espinosa. Um Espinosa subversivo. Ao conceber este volume, nossa intenção primeira foi reunir tudo aquilo que Negri publicara sobre Espinosa a partir da Anomalia selvagem; uma miríade de textos quase toda inédita em português. Parte desse material o próprio autor já reunira em dois volumes (Espinosa subversivo e Espinosa e nós),4 e naturalmente mantivemos aqui esse formato. No mais, recolhemos tudo que foi possível no concernente a textos esparsos (artigos, resenha, prefácio), deixando de fora apenas aqueles que se repetiam longamente; exceção abriu-se, porém, a casos em que, apesar de repetições, uma nova perspectiva era trabalhada. O plano final da coletânea foi submetido ao autor, que o aprovou. O volume se fecha com uma entrevista que nos foi generosamente concedida por ele na virada de novembro para dezembro de 2015 e que serve à guisa de posfácio, tanto instruindo os leitores que primeiramente se debruçam sobre seus textos como relacionando-os, ainda no calor da hora, a eventos então recentíssimos como os atentados em Paris e a crise migratória na Europa. Quanto à tradução, um excelente trabalho marcado tanto pelo rigor quanto pela elegância, duas advertências: os textos foram traduzidos a partir dos originais em italiano, salvo “Liberdade e necessidade em Espinosa: algumas alternativas”, vertido a partir da tradução francesa, pois nem mesmo com auxílio do autor conseguiu-se resgatar o original. No caso particular de Espinosa e nós, havendo duas versões (a francesa e a italiana) que divergem em vários pontos e foram igualmente autorizadas por Negri, o tradutor realizou um cuidadoso trabalho de cotejo, partindo do italiano e incorporando as variantes do francês. Quanto às citações de Espinosa, todas foram cotejadas com os textos originais latinos e sempre que possível utilizamos traduções já existentes, Cf. Spinoza sovversivo: variazioni (in)attuali. Roma: A. Pellicani, 1992; Spinoza e noi. Milano: Mimesis, 2012 (primeiramente publicado em francês: Spinoza et nous. Paris: GALILÉE, 2010).
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APRESENTAÇÃO
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fazendo aqui e ali pequenos ajustes para adequá-las aos imperativos da análise negriana. O mesmo expediente foi seguido no caso das citações de outros filósofos. Por fim, registre-se uma nota de agradecimento a Maurício Rocha, com quem várias vezes esta coletânea foi discutida e que colaborou na identificação de alguns textos, e a Giuseppe Cocco, que nos facilitou o contato pessoal com Antonio Negri.
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a François Châtelet a Emilia Giancotti recordando-os
I Espinosa: cinco razões para sua atualidade1
Na história da prática coletiva, existem momentos nos quais o ser se coloca para além do devir. A atualidade de Espinosa consiste antes de tudo nisto: o ser não quer ser sujeitado a um devir do qual não detém a verdade. A verdade se diz do ser, a verdade é revolucionária, o ser é já revolução. Também nós vivemos o mesmo paradoxo histórico. O devir manifesta a sua falsidade diante da verdade do nosso ser revolucionado. Não por acaso, hoje, o devir quer destruir o ser e suprimir sua verdade. O devir quer anular a revolução. Uma grande crise precede Espinosa. E uma crise é sempre uma violação negativa do ser, interposta contra a sua potência de transformação, contra a plenitude da expressão acumulada no ser pelo trabalho e pela experiência do homem. A crise é sempre reação. Espinosa apreende os caracteres reais da crise e da reação; responde afirmando a potência serena do ser, a sua comodidade e, consequentemente, a irreversibilidade da transformação ontológica, do desejo enfim fixado como norma daquilo que existe – mesmo através de um universo de catástrofes. “Exatamente da mesma maneira que a luz revela a si própria e as trevas, assim também a verdade é norma de si própria Este ensaio foi publicado em francês no “Cahier 14, La Religion” de Confrontation. Aubier, Paris, p. 175-181, outono de 1985, com o título “La théodicée dialectique comme exaltation du vide” [A teodiceia dialética como exaltação do vazio]. O texto traz a data “janeiro de 1983, da prisão de Rebibbia”.
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e do falso” (Ethica [E], II, P43, Escólio).2 Por isso, o desencanto dos filósofos do devir, o cinismo dos apologistas da mediação do poder e o oportunismo dos pensadores dialéticos voltam-se contra o ser posto em sua pureza. O pensamento de Espinosa, sólido estrato genealógico da primeira revolução da liberdade, é qualificado como anomalia – na visão unilateral do inimigo, função de um devir sofístico e reacionário. À verdade espinosana, que é verdade de uma revolução realizada nas consciências, busca do ser por si da ética através da multitudo e descoberta da efetividade desse processo; à verdade espinosana, então, opõe-se uma tentativa de violação e de restauração do ser no cerne do devir dialético, como figura das mil e uma vicissitudes da homologia do poder. Depois de Espinosa, a história da filosofia é história da ideologia dialética. Com o disfarce dialético, a tradição da transcendência e da alienação teológica reergue a cabeça. O problema da teodiceia domina o pensamento filosófico no curso dos três séculos posteriores a Espinosa – e tudo isso não é senão a miserável transcrição de uma exploração sempre renovada do homem, de uma infelicidade sempre imposta. Mas não se pode eliminar Espinosa. De toda filosofia posterior pode-se dizer isto: ela tenta romper o invólucro petrificado no qual o ser está aprisionado – e nesse breve momento ela se qualifica, necessariamente, como espinosista; em seguida, de novo, ela é arrancada para uma necessidade de outro tipo, aquela do mercado e da escravidão salarial, e aqui novamente ela se apresenta como tema no reino da teodiceia dialética. Emerge um sentimento de desgosto e de tédio diante desse quadro inalterado, diante dessa repetição da ideologia burguesa contra a sabedoria revolucionária! E então, chame-a doença ou subversão, apenas a loucura salva o filósofo. Toda honra aos doidos! Se a sabedoria é ainda possível, ela coloca-se do lado dos loucos. Assim, se os inimigos da verdade definem a filosofia espinosana como uma anomalia, os seus amigos e seus filhos deverão, ao contrário, reconhecer nela um caráter selvagem e irredutível. É frequente, no entanto, demasiado frequente, que o doente e o louco se curem, tornem-se pouco a pouco assalariados da cultura, e que produzam suas teses acadêmicas sobre a teodiceia: após Espinosa, Todas as citações da Ética são retiradas, algumas vezes com pequenos ajustes, da seguinte edição: Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. (N.T.)
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então, eis o espinosismo; mas tal teodiceia sofreu uma queda de potência, resolveu-se em uma espécie de aceleração negativa, e isso é tão mais certo quanto mais o filósofo, que há pouco tocara a verdade do ser, quase que por ter sido sábio, deve sofrer hoje a pena e a humilhação do refluxo dialético. Assim, a história da ideologia dialética, que é a história da metafísica europeia nas épocas moderna e contemporânea, representa, por seu caminho, uma queda de potência do ser. Contra a plenitude do ser, o pensamento se degrada em direção a níveis sempre mais subalternos e vazios, sempre mais privados e formais, para justificar um devir insensato. Exatamente o inverso da via seguida por aquele que sabe que “quanto mais coisas um ente pensante pode pensar, mais realidade ou perfeição concebemos que ele contém” (E, II, P1, Escólio). Mas quando se foge do Éden, Masaccio o mostra, não se pode escapar do dedo de Deus. Assim, uma vez descartado o fundamento ético, o ser se deixa levar para o fundamento lógico – é uma queda sempre mais desesperada, um desenraizamento sempre mais profundo. A dialética procura o absoluto como autorreprodução ilusória de seu próprio movimento – o ser e o real estão distantes –, e, dessa forma, a fundação lógica do ser acaba condenada a níveis sempre mais formais. A crise é a única dimensão sobre a qual pode se expor e se instalar a fundação lógica do ser – inútil Prometeu que se resolve em narcisismo idiota. A teodiceia dialética perdeu toda referência ética. Ela é uma exaltação do vazio, do devir vazio. O vazio pode então ter um lugar de senhorio em filosofia – como em um teatro do absurdo ou em certos jogos surrealistas, nos quais uma simples evocação do ser resulta impensável. O vazio do ser produz uma espécie de intocabilidade da consciência, que o testemunha ou que o finge: tal é o resultado necessário da crise da teodiceia dialética, da ciência do devir, oposta à percepção do ontológico. O vazio lógico do poder contra a plenitude ética da potência ontológica. Na filosofia do século XVII nós podemos apreender esse desenvolvimento em sua totalidade, como espectro de uma lógica implacável. Quero dizer que a época burguesa contém, em sua gênese, o inteiro dispositivo de seu desenvolvimento e de sua crise. Ora, Espinosa é a anomalia – uma negação selvagem que nos é cara, a negação de toda figura dessa determinação repressiva. Espinosa está presente hoje justamente pela mesma razão pela qual foi considerado o inimigo de todo ESPINOSA SUBVERSIVO
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o pensamento moderno. Ele é a plenitude do ser contra o vazio do devir. Espinosa é, de novo, Ursprung [origem], surgimento, despertar originário – e não mais, então, anomalia. O atual horizonte da crise modifica, com efeito, todos os termos do trabalho teórico. A sublime inexpressividade da teodiceia dialética, reduzida agora ao estado de um vazio ascetismo ou de um estúpido misticismo, está hoje completamente desdobrada. Do asylum ignorantiæ à rede polimorfa e dialética da ignorância, tudo agora já desenrolou-se nessa nossa história, nessa nossa crise. O que fazer? Como reafirmar a esperança da vida e da filosofia, se não sendo espinosista? Ser espinosista não é uma determinação, é, antes, uma condição. Para pensar é preciso ser espinosista. Começa-se a se dar conta disso. Na crise, mesmo na consciência comum, o ser põe-se para além do devir. Eis por que, na filosofia hodierna, a lógica do pensamento começa a se dobrar à densidade da linguagem comum, e o pensamento funcional começa a explodir em sua própria compacidade, e a se voltar para a reflexão sobre a comunicação, bem como a harmoniosa epistemologia a abdicar da sua linearidade em favor de uma lógica das catástrofes! O mundo é o absoluto. Nós estamos felizes, comprimidos nessa plenitude, não podemos senão frequentar essa circularidade superabundante de sentido e de existência. “Mas tendes piedade de todas as coisas, porque são vossas, Senhor amante da vida;/vosso espírito incorruptível está em todas as coisas” (Livro da Sabedoria, 11, 26; 12, 1). A superfície é a nossa profundidade. A dialética alemã e a administração francesa não conseguirão corroer essa felicidade imediata e não privatizada, essa nossa singularidade. O mundo se mostra sempre mais marcado por uma singularidade irredutível, uma singularidade coletiva. Tal é o conteúdo do ser e da revolução. E é apenas agindo que nós colocamos discriminantes nessa plenitude, é apenas andando que nós podemos abrir as vias nessa densa natureza tropical, é apenas navegando que nós traçamos rotas nesse mar. A ética é a chave que abre o nosso caminho e determina as discriminações, uma chave não dialética. A falsidade da dialética é aquela de uma chave que abre todas as portas – ao contrário, a ética é a chave adequada para a singularidade. Define-se assim, nesse ponto, a segunda razão da atualidade de Espinosa. Ele descreve o mundo como necessidade absoluta, como presença da necessidade. Mas é justamente essa presença que é contraditória. 18
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De fato, ela nos restitui imediatamente a necessidade como contingência, a necessidade absoluta como contingência absoluta, dado que a absoluta contingência é o único modo de se referir ao mundo como horizonte ético. Que a estabilidade do ser se apresente como coextensiva às catástrofes inovadoras do ser, que sua presença se dê à margem da inovação cotidiana, que sua necessidade se dê como extensiva à revolução, tal é o paradoxo dessa necessidade. Mas não se compreende toda a relevância desse paradoxo se não se traduz, ou melhor, se reconduz a linguagem metafísica à linguagem da física. Ora, que o ser seja a tal ponto transformável, em sua totalidade, não se pode compreendê-lo a não ser depois de se ter apreendido o alcance da crise e a possiblidade efetiva de uma destruição do ser que nela se arraiga – uma destruição do ser que não é outra coisa além da conclusão do esforço de controle lógico do mundo. Assim, o vazio não é mais aqui uma hipótese lógica, é uma possibilidade, uma condição cínica do pensamento lógico e de sua ética absurda. A lógica quer ser um ato de dominação, quer ser a possibilidade de uma catástrofe negativa. O mundo, o ser podem ser destruídos. Mas se se pode destruir o ser, pode-se integralmente construí-lo. O sentido da catástrofe elimina até o último sinal de determinismo. A necessidade do mundo, sua presença e sua dadidade não levam novamente, em caso algum, ao determinismo. Elas são absoluta contingência. Somente hoje nós podemos compreender, como materialistas, em termos físicos, em toda sua riqueza de significado, que a necessidade é liberdade. O mundo caiu novamente entre nossos braços como liberdade – foi o sentido da catástrofe que o restituiu a nós, como possibilidade de liberdade e de criação coletiva. Espinosa nos ensina, portanto, a colocar um discriminante no mundo ético. Ético, o mundo o é apenas na medida em que, e porque, nós o vivemos. Neste nível de desenvolvimento da realidade humana, a alternativa ética atinge sua mais alta significância: alternativa entre a vida e a morte, entre o construir e o destruir. Quando a potência ética se articula com a absoluta contingência do ser, esse movimento não é indeterminado. Há um critério, há uma norma: as razões da vida contra aquelas da morte. “Não há nada em que o homem livre pense menos que na morte, e sua sabedoria não consiste na meditação da morte, mas da vida” (E, IV, P67). O ato ético será, assim, um ato de recomposição, um ato, oriundo do âmago do ser, na tensão entre singular e ESPINOSA SUBVERSIVO
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coletivo. A possibilidade de uma total violação do mundo não conduz, então, a qualificar a ação de maneira indiferente. A negação de toda forma de dualismo e de toda mediação não suprime a alternativa ética: desloca-a, recoloca-a no limite extremo do ser, ali onde a alternativa é entre viver e ser destruído. A radicalidade da alternativa sublinha sua dramaticidade, intensidade e irreversibilidade. E é precisa e justamente a partir dessa intensidade e dramaticidade da escolha que a ética se faz política. Imaginação produtiva de um mundo que se opõe àquele da morte. “Porque a multidão livre conduz-se mais pela esperança que pelo medo, ao passo que uma multidão subjugada conduz-se mais pelo medo que pela esperança: aquela procura cultivar a vida, esta procura somente evitar a morte” (Tratado político [TP], V, 6).3 A imaginação produtiva é uma potência ética. Espinosa descreve-a como uma faculdade que preside a construção e o desenvolvimento da liberdade – que sustém a história da liberação. Res gestæ. Construção da razão coletiva e de sua articulação interna. E salto adiante – imaginação como Ursprung do ético. Potência constitutiva através de contínuos descentramentos, deslocamentos do ser ético. Não são as palavras, são os entes, as realidades ontológicas que desenvolvem a imaginação produtiva. Tal é, portanto, a terceira razão da atualidade de Espinosa – a terceira, depois que ele nos conduziu ao ser da revolução e, em segundo lugar, depois que fomos colocados na determinação radicalmente constitutiva da alternativa ética. A ciência e o trabalho, o mundo da linguagem e da informação são, assim, reconduzidos à ética e estudados no momento mesmo em que se formam, na genealogia da sua produção. Sua força consiste em constituir o ser. As palavras e as coisas se instauram em um horizonte operativo, e o imaginário define essa dinâmica constitutiva. A ética põe uma discriminação no ser na medida em que descobre e reconhece a qualidade da existência, a tendência do existir (se em direção à vida ou em direção à morte) como determinação fundamental. A escolher. Mas sobre essa margem operativa, que é o limite do ser dado, sobre o qual se exercita o imaginário, eis-nos portanto em presença de cenários que se desdobram no futuro – um futuro que estamos construindo quando eticamente o imaginamos. 3
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Todas as citações do Tratado político são retiradas da seguinte edição: Tratado político. Tradução de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. (N.T.)
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A filosofia de Espinosa exclui o tempo-medida. Ela apreende o tempo-vida. É por isso que Espinosa ignora a palavra “tempo” – mesmo fixando o seu conceito entre vida e imaginação. De fato, para Espinosa o tempo só existe como liberação. O tempo liberado se faz imaginação produtiva, radicada na ética. O tempo liberado não é nem devir, nem dialética, nem mediação. Mas ser que se constrói, constituição dinâmica, imaginação realizada. O tempo não é medida, é ética. Assim, a imaginação desvela as dimensões escondidas do ser espinosano, desse ser ético que é o ser da revolução, contínua escolha ética de produção. Eu creio que é preciso afrontar o estudo da história do pensamento com o espírito do construtor ético do ser. Eliminando, portanto, toda dialética, todo traço de historicismo, toda determinação que não se fixe imediatamente e que recalque o tempo da vida; através de uma escolha radical. Não historia rerum gestarum, mas res gestæ. Eliminando toda memória que não possa ser, que não seja efetivamente fábula, projeto de um futuro forjado pela imaginação. A tragédia atual de um ser que pode ser desfeito mostra e desdobra o conceito de sua profunda e irreversível facticidade – a qualidade da determinação espinosana da necessidade do ser: ela transfere integralmente o ponto de vista da totalidade naquele da contingência. Sobre esse limite, compreendo que a necessidade é o fruto do meu trabalho e do trabalho de todos aqueles que operam com o fim de que esse ser exista. Nisso não há, em caso algum, recuperação do finalismo. Não é finalidade o fato de que “a mente esforça-se por imaginar apenas aquilo que põe sua própria potência de agir” (E, III, P44). Isso é tão somente uma afirmação do ser; potência do ser; ainda e sempre aquela instância revolucionária. Eu continuo a viver no aturdimento de reconhecer a minha afirmação como justa e duradoura, esse peso da minha existência como uma realidade operativa que eu projeto adiante cotidianamente, a cada momento, e que insiro em um deslocamento contínuo, cotidianamente construído, a cada instante, pelo ser coletivo. Esse peso é revolução. Devo defendê-la, arrancá-la do devir inimigo, devo submetê-la a uma escolha única e contínua, aquela de continuar a ser, aquela de enriquecer o ser. Eu não tenho qualquer razão para arrependimento ou nostalgia, fora do fato do ser. E essa insistência sobre meu ser, esse movimento através dele, em seu sereno peso (e também nos movimentos de destruição interior que de qualquer forma o atravessam – a velhice, como a prisão…), eu ESPINOSA SUBVERSIVO
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o proponho novamente como material da imaginação coletiva que estabelece cenários de liberação. Aquilo que vivo é um movimento determinadíssimo – expressão daquilo que é e que não pode ser cancelado. A ética é a permanência do ser, a sua defesa e a sua resistência. Espinosa é a cifra de uma revolução que teve lugar. É a impossibilidade de destruí-la sem destruir o ser. É a necessidade, para a liberdade, de determinar sua escolha histórica decisiva – escolha do ser, escolha do lugar do qual fazer emanar uma liberdade completamente desdobrada. Chegamos, assim, à quarta razão da atualidade de Espinosa. É o seu conceito de amor. Amor e corpo. A expressão do ser é um grande ato sensível, que compreende o corpo e a multiplicidade dos corpos. Ser quer dizer ser partícipe da multiplicidade; e, também aqui, nenhuma dialética. Antes, uma proliferação contínua de relações e de conflitos que enriquecem o ser, e que não conhecem – ainda uma vez – outro limite além daquele da destruição. “É útil ao homem aquilo que dispõe o seu corpo a poder ser afetado de muitas maneiras, ou que o torna capaz de afetar de muitas maneiras os corpos exteriores; e é tanto mais útil quanto mais torna o corpo humano capaz de ser afetado e de afetar os outros corpos de muitas maneiras. E, inversamente, é nocivo aquilo que torna o corpo menos capaz disso” (E, IV, P38). E ainda: uma permanente e sólida construção de coletividade, e uma implicação nesta. Se cada um de nós desempenha um papel no desenvolvimento do ser, isso ocorre porque é apenas em uma sociedade de seres que somos constituídos, e aqui, sobre cada deslocamento do ser, liberam-se e se constroem novas sociedades – que é como falar do novo ser. O ser é, o não ser não é, mas o novo ser é ainda mais, é mais singular e mais social, é mais coletivamente determinado. A imaginação é o canal através do qual os seres se associam em um novo ser, que assim se constrói. Que o ser seja fonte e princípio de emanação, fonte alta ou fonte baixa, em um monte ou em um vale, bem, tal questão é totalmente inessencial, dado que tudo é superfície. Em todo caso, nada foi mais estranho a Espinosa que as correntes emanatistas da Antiguidade e da Renascença. Se aqui podemos falar do ser como fonte de emanação, é porque entendemos tal fonte em termos terrestres e corporais. Uma emanação, ou melhor, uma nascente que é como um fogo que incendeia uma campina, como legiões de nuvens que doam água e vida mesmo na violência de um gigantesco temporal. Do real emana um novo real. 22
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Coletivamente, e em cada momento, esse milagre do novo ser nos é ofertado através de mil e uma ações singulares de cada um dos seres. O mundo resplandece-o. O amor cimenta os seres diversos. Esse é um ato que une os corpos e os multiplica, que os faz nascer e reproduz coletivamente sua essência singular. Se não estivéssemos ancorados nessa amorosa comunidade de corpos e de átomos vivos, não existiríamos. A nossa existência é sempre, em si mesma, coletiva. Ninguém está sozinho. Ao contrário, são a dialética e o devir que isolam. Não o ser e o amor. Contra os desastres da lógica, um pensamento diametralmente oposto ao solipsismo é possível: aquele de Espinosa. Por isso o amor é definível como uma força emanativa. É-o na singular relação com o ser. Resumamos, então: proliferação, superabundância de um ser sereno, que já completou a revolução, que levou para além de qualquer medida o nível, o conteúdo e a força dos desejos. O desejo é assim o cimento do amor e do ser. Mas tem um quinto aspecto da atualidade de Espinosa – e é o heroísmo da sua filosofia. Não os heroicos furores de Giordano Bruno nem a vertigem pascaliana, mas o heroísmo do bom senso, na revolução, através da e na multitudo, da imaginação e do desejo de liberdade. Um heroísmo maciço, que certamente não se alastra para fanatismo, requer sim uma espécie de direito natural revolucionado. É o heroísmo da descoberta intelectual e da sua irreversibilidade teórica, fundado não sobre a vontade, mas sobre a razão. Ele é reencontrado em Maquiavel e em Galileu, em Marx e em Einstein. Não é arrogância ou senso de honra, mas alegria da razão. Espinosa implanta essa dimensão alegre na metafísica, no momento mesmo em que – ou talvez porque – ele anula esta última e a reconduz à superfície do mundo. Resistência e dignidade, recusa da agitação de uma existência insensata, independência da razão: não são preceitos morais, são antes um estado, um teorema ético. Não se chegará a explicar o nosso mundo, e a febre de controle dialético daqueles que o dominam, bem como sua diuturna e desenfreada tentativa de fechá-lo dentro das malhas de um desenvolvimento submetido a comando, e de reduzi-lo à eterna e bem-proporcionada dimensão da exploração, se se esquecer que essas operações colidem com a solidez de um ser que, por felicidade própria, proclama-se definitivamente desproporcionado, revolucionado, outro; um ser que, proclamando a sua definitiva irredutibilidade ao devir, exprime o ESPINOSA SUBVERSIVO
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mais alto dos heroísmos. Exprime-o sobriamente, mas duramente, como comportamento de massa e como afirmação do bom senso. Insubordinação às regras da dialética e deserção do campo da guerra pelo domínio – tal é o heroísmo de Espinosa, a sua astúcia de pomba, a delicadeza da sua força de iluminação. Nunca a tranquila dignidade da razão, o seu ser mundo e maioria infinita do pensamento, do agir e do desejo foram tão necessários quanto o são hoje para desmascarar e neutralizar os venenos destruidores do ser. Nós estamos aí, dentro daquele ser, revolucionados, e repetimos calmamente que nada nos fará voltar atrás. Não o podemos. E a nossa alegria e a nossa liberdade, não sabemos distingui-las dessa necessidade.
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