é verdade?
Tô te dizendo! Desde hoje de manhã, a França tá mobilizada, tem cartazes pra todo lado… Ah, dessa vez eles vão mesmo! Só o fim será triste, como diz seu pai.
Ela falava do meu pai no presente, como se ele fosse voltar. O barco continuava lá, a gente o repintava todos os anos, dia primeiro de agosto, de preto e vermelho. Preto porque meu pai era anarquista, vermelho porque ganhamos latas de tinta dessa cor. Quando se é pobre, não se escolhe tudo.
Quando penso que seu pai também morreu num primeiro de agosto…
…No dia da mobilização geral!... Um antimilitarista! Isso é a cara do seu pai!
E tem mais: os alemães declararam guerra aos russos!... Ah, isso vai ser uma lambança!
Falando em lambança, é de propósito que tá fazendo tanta?
Eu era, portanto, filho de anarquista, e um zero à esquerda em pintura. Eu também era espanhol, e na Espanha a polícia dificultava a vida dos anarquistas – que tinham lá suas ideias, como a de assassinar o rei Afonso XIII… Que papel meu pai desempenhou no caso, ainda não sei… Foi o suficiente para pular no seu barco de pesca, rumo à França. Um dia, foi o mar que teve a ideia de assassinar meu pai… E só nos devolveu o barco.
Só faltava essa!
Lá vem a Juliette!
Tá tendo mobilização! E ela acha bom! Misericórdia…
Ela não gosta muito de mim, né?
Quem?
Ah, é que ela é assim com todo mundo…
Adivinha…
Bom dia, senhora Cortés.
O lance é que ela tem um temperamento difícil. Além disso, ninguém nunca gostou muito dela também… Só o meu pai, talvez… Enfim, a vida não foi muito generosa com ela…
Você também não é lá muito generosa comigo! Posso voltar lá pra pintar o barco!
Principalmente de que você ainda não me beijou.
Para! Não podemos falar sério um segundo?
O Mattéo tá ocupado. Volto outra hora, ou será que querem ajuda?
Não gosta de ninguém, então…
Também, com um filho assim!
Bom, ele tá na força aérea, e daí? O que quer que eu faça?
Aliás, nem te falei, o Guillaume se alistou na força aérea… Você se dá conta?
Se for ajuda igual À dele, prefiro terminar sozinha… Podem ir!
Esses aviões devem ser terrivelmente perigosos… Não me parece que essa seja uma boa notícia…
Sei,
dou
Ainda mais se tiver guerra!
Se tiver guerra, não será uma boa notícia pra ninguém.
Segundo o Guillaume, os boches* vão ficar de joelhos em menos de dois meses!...
Ah, então tudo bem!
…Com os russos de um lado e os ingleses do outro, não deve demorar muito!
Segundo o Guillaume, o exército francês vai festejar o Natal em Berlim!
E o que o seu Guillaume sabe sobre isso?
Pra começar, ele não é o meu Guillaume…
Não faz nem duas semanas que ele voltou de seus brilhantes estudos na Inglaterra...
Na Escócia.
que é, ele é o seu
* Maneira pejorativa de se referir aos alemães que se difundiu durante a Primeira Guerra. [N.Ts.]
Que seja... Desde que ele voltou com aquele diploma de sei lá o quê…
De engenheiro em mecânica ondulatória.
Você só liga pra isso!
Não consegue começar uma frase sem “Guillaume” isso, “Guillaume” aquilo…
Mas olha como o meu Mattéo tá com ciúmes!
Até parece, tô nem aí…
Para de besteira, conheço ele desde os três anos…
Mas que esses aviões são perigosos, isso são…
E aí?
Viu a Juliette?
“Eles” eram os de Brignac. Eles tinham sorte, tudo era deles, as vinhas, as casas, as pessoas – bom, o trabalho delas. A gente sabia como era, eu trabalhava lá com o Paulin, e era dureza! A prensa não esmagava só as uvas…
Como pôde se apaixonar por uma peidada das ideias como ela? Você é muito burro mesmo! Não vê que ela sonha em ser como eles?
Enfim, a gente não gostava muito deles – menos que o mínimo, igual nosso salário… Além disso, o Guillaume era bonitão, ou seja, na casa dos De Brignac, a injustiça não só ficava à vontade, ela colocava os pés na mesa!
Vamos falar de outra coisa… Também acha que a gente vai pra guerra?
Acho! E em dezembro a gente volta com os colhões do Guillaume!
Falo do rei da Prússia. Eu entendi.
A Juliette não apenas trabalhava lá, também dormia lá, e isso não era de ontem. O Sr. de Brignac a acolheu com sua pequena família, que não podia ser menor, só tinha ela e a mãe... Segundo o Guillaume, elas faziam parte da família. Eu, que não queria fazer caridade, acho que elas só faziam parte da mobília.
Você nem me disse: não tá grande coisa, né?
Ah… Sim… Dá pra reconhecer…
Até parece! Tá uma porcaria.
Porra, até quando desenho o barraco deles, eles dão um jeito de me irritar!
Aliás, nem te falei: consegui uma bolsa pra estudar Belas Artes.
Receio que não seja hora de pintura... Se bem que... Tenho que voltar pra casa e terminar de pintar o barco.
O negócio prometia ser próspero, o prefeito estava todo empolgado, vermelho de entusiasmo. Aplicava nele seu filho mais velho como aplicaria suas economias num investimento seguro...
As mulheres eram mais reservadas, com a preocupação na cabeça, como um chapéu.
...E todo mundo colocava um filho ou dois no esquema, que parecia promissor.
A guerra estava servida, e as pessoas se acotovelavam para ter seu bocado, já que não parecia ter pra todo mundo.
O funil era a estação. O vilarejo se esvaziou numa hora, um trem cheio, todo mundo bêbado e berrando pelas janelas, a começar por meu amigo Paulin.
Você é muito burro mesmo. Bora, vem junto, você se alista e pronto!
A gente faz só um bate e volta até Berlim!
Para o meu pai, o patriotismo fedia a morte, ele o desprezava completamente... E não via virtudes nas fronteiras.
No entanto era minha situação de estrangeiro que me salvava da guerra, um paradoxo que alegrava minha mãe.
É a primeira vez que a gente se beneficia disso.
Do quê?
De sermos espanhóis!
Lembra dos seus coleguinhas rindo de você na escola: “Espanholito, cara de cabrito!”? Agora são eles que vão para o abate!
Mas eu, que os vira partir, me sentia castigado em casa!
Sejamos sinceros: quando a guerra chegou nas casas, nas primeiras horas, ela encantou todo mundo como um cachorrinho em seu cestinho tricolor, mas o bicho cresceu mal! Todos achavam que ele traria a vitória na boca, de pelo limpo e fuzil na bandoleira! Só que erraram de cachorro!
Todas as casas temiam sua visita.
Era uma imundície de cão-guia que nos atirava na merda e comia nossos filhos… Bem que gostaríamos de nos livrar dele, mas era tarde demais, era ele que mandava! Pra acabar com a embriaguez do espetáculo do embarque, havia as visitas do prefeito, encarregado de informar as famílias sobre o dever cumprido por seus filhos, mortos como heróis, sem sofrer.
Quando seu chapéu passava sem que ele tocasse a campainha, suspiros de alívio faziam as cortinas tremer.
Ele envelhecia dez anos por mês, até chegar à indiferença quando foi, por sua vez, informado da morte do seu filho.
Ele já não estava vivo o suficiente pra sofrer com a desgraça dos outros.
Juliette fugia de mim. A gente se via pouco, só pra brigar. Eu expunha a ela as teses pacifistas do meu pai, o nojo da guerra, com a convicção superficial das ideias adquiridas por herança. Juliette as achava indecentes.
E que papel o senhor Mattéo se propõe a desempenhar em tudo isso?
Além do tom cortante, o “senhor” tinha a ironia que exige uma resposta à altura, prometida a um julgamento sem indulgência. Eu me arriscava jogando a carta “mistério”.
Ah, quer mesmo saber?
Eu também.
O sorriso esperado foi só um beicinho de desprezo.
Ah, se ela tivesse dito só “o Guillaume”, eu poderia ter considerado o argumento improcedente por preferência agravada, mas associá-lo ao Paulin lhe conferia outro peso.
Compreendi mais tarde que quando uma mulher pede esse tipo de coisa, não é bom pro pequeno comércio amoroso. Está mais para o fechamento da loja que para a prorrogação do contrato.
Publicado originalmente em língua francesa com o seguinte título:
Mattéo, première époque: © Futuropolis 2008
Mattéo, deuxième époque © Futuropolis 2010 © Futuropolis 2020 para a presente edição
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preparação de texto
Renata Silveira revisão
Eduardo Soares
adaptação de capa e miolo
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Gibrat, Jean-Pierre Mattéo : primeiro ciclo (1914-1919) / Jean-Pierre Gibrat ; tradução Fernando Scheibe & Bruno Ferreira Castro. -- 1. ed. -- São Paulo : Nemo, 2024.
Título original: Mattéo : premier cycle (1914-1919).
ISBN 978-85-8286-612-2
1.H istórias em quadrinhos 2. Primeira Guerra MundiaI. 3. Revolução Russa (1917) I. Título.
24-206531 CDD-741.5
Índices para catálogo sistemático: 1. Histórias em quadrinhos 741.5 Tábata Alves da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9253
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