O rochedo de Tânios

Page 1


Do autor best-seller de As cruzadas vistas pelos árabes

ROMANCE VENCEDOR DO PRÊMIO GONCOURT

Amin Maalouf

O rochedo de Tânios

Amin Maalouf

O rochedo de Tânios

tradução

Julia da Rosa Simões

Copyright © 1993 Éditions Grasset & Fasquelle

Copyright desta edição © 2025 Editora Vestígio

Título original: Le rocher de Tanios

Todos os direitos reservados pela Editora Vestígio. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

direção editorial

Arnaud Vin

edição e preparação de texto

Eduardo Soares

revisão

Anna Izabella Miranda

capa

Diogo Droschi (Sobre imagem de iStock Photo)

diagramação

Waldênia Alvarenga

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

Maalouf, Amin

O rochedo de Tânios / Amin Maalouf ; tradução Julia da Rosa Simões. -- 1. ed. -- São Paulo : Vestígio, 2025.

Título original: Le rocher de Tanios.

ISBN 978-65-6002-069-6

1. Ficção libanesa I. Título.

24-242875

CDD-L892.73

Índices para catálogo sistemático:

1. Ficção : Literatura libanesa L892.73

Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380

A VESTÍGIO É UMA EDITORA DO GRUPO AUTÊNTICA

São Paulo

Av. Paulista, 2.073 . Conjunto Nacional

Horsa I . Salas 404-406 . Bela Vista 01311-940 São Paulo . SP

Tel.: (55 11) 3034 4468

www.editoravestigio.com.br

SAC: atendimentoleitor@grupoautentica.com.br

Belo Horizonte

Rua Carlos Turner, 420 Silveira . 31140-520

Belo Horizonte . MG

Tel.: (55 31) 3465 4500

À memória do homem de asas quebradas

Este é um povo para o qual se formaram esses Alleghanys e esses Líbanos de sonho! [...] Que bons braços, que bela hora irão devolver-me essa região de onde vêm meus sonos e meus menores movimentos?

Arthur Rimbaud Iluminações.1

1 Arthur Rimbaud, Um tempo no inferno e Iluminações. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. São Paulo: Todavia, 2021. [N.T.]

Naaldeia onde nasci, os rochedos têm nome. Há o Navio, a Cabeça de Urso, a Emboscada, o Muro, e ainda os Gêmeos, também chamados de os Seios da Ghoula. E especialmente a Pedra dos Soldados; era lá que antigamente se ficava à espreita quando a tropa perseguia os insubmissos; nenhum lugar é mais venerado, mais carregado de lendas. No entanto, quando me acontece de rever em sonho a paisagem da minha infância, é outro rochedo que me aparece. Ele parece um trono majestoso, escavado e como que desgastado no lugar correspondente ao assento, com um encosto alto e reto que desce de cada lado como um apoio para os braços – é o único, creio eu, a ter um nome de homem, o Rochedo de Tânios. Contemplei esse trono de pedra por muito tempo sem ousar me aproximar. Não era o medo do perigo; na aldeia, os rochedos eram nosso terreno de brincadeiras preferido, e, mesmo criança, eu costumava desafiar os mais velhos nas escaladas mais perigosas; não tínhamos outro equipamento além de nossas mãos e pernas nuas, mas nossa pele sabia se grudar à pele da pedra e nenhum colosso podia resistir.

Não, não era o medo de cair que me detinha. Era uma crença, e um juramento. Exigido por meu avô, alguns meses antes de sua morte. “Todos os rochedos, mas aquele jamais!” Os outros meninos se mantinham à distância, como eu, com o mesmo temor supersticioso. Eles também deviam ter prometido, com a mão sobre a penugem do bigode. E ouvido a mesma explicação: “Ele era chamado de Tânios-kishk. Sentou-se naquele rochedo. E nunca mais foi visto”.

Esse personagem, herói de tantas historietas locais, era mencionado com frequência em minha presença, e seu nome sempre me intrigava. Tânios, eu compreendia, era uma das muitas variantes locais de Antônio,

como Antoun, Antonios, Mtânios, Tanos ou Tannous... Mas por que o ridículo apelido “kishk”? Isso meu avô não quis me revelar. Ele disse apenas o que achava poder dizer a uma criança: “Tânios era filho de Lâmia. Você certamente já ouviu falar dela. Foi num passado muito remoto, eu ainda não havia nascido, nem mesmo meu pai. Naquela época, o paxá do Egito estava em guerra com os otomanos, e nossos ancestrais sofreram. Sobretudo depois do assassinato do patriarca. Ele foi morto bem aqui, na entrada da aldeia, com a espingarda do cônsul da Inglaterra...”. Era assim que meu avô falava quando não queria me responder, ele dizia fragmentos de frases como se indicasse um caminho, depois outro, depois um terceiro, sem, contudo, seguir nenhum. Tive que esperar anos para descobrir a verdadeira história.

Mas eu segurava a ponta certa do fio, porque conhecia o nome de Lâmia. Todos nós o conhecíamos, na região, devido a um ditado que, por sorte, atravessou dois séculos para chegar até nós: “Lâmia, Lâmia, como poderias esconder tua beleza?”.

Assim, até os dias de hoje, quando os jovens reunidos na praça da aldeia veem passar alguma mulher envolta em um xale, sempre há um para murmurar: “Lâmia, Lâmia...”. O que costuma ser um elogio autêntico, mas que às vezes pode conter a mais cruel zombaria.

A maioria desses jovens não sabe grande coisa sobre Lâmia, nem sobre o drama preservado por esse ditado. Eles se limitam a repetir o que ouviram da boca de seus pais ou avós e, às vezes, como eles, acompanham suas palavras de um gesto com a mão em direção à parte alta da aldeia, hoje desabitada, onde ainda se veem as imponentes ruínas de um castelo.

Por causa desse gesto, tantas vezes repetido na minha presença, por muito tempo imaginei Lâmia como uma espécie de princesa que, atrás daqueles muros altos, escondia sua beleza dos olhares dos aldeões. Pobre Lâmia, se eu tivesse podido vê-la atarefada nas cozinhas, ou percorrendo descalça os vestíbulos, com uma moringa nas mãos, um lenço na cabeça, eu dificilmente a confundiria com a senhora do castelo.

Ela tampouco foi uma criada. Hoje sei um pouco mais sobre ela. Graças, em primeiro lugar, aos anciãos da aldeia, homens e mulheres, que interroguei incansavelmente. Isso foi há mais de vinte anos, hoje todos já morreram, com exceção de um. Seu nome é Gebrayel, ele é primo do meu avô e hoje está com noventa e seis anos. Se o menciono, não é apenas

porque ele teve o privilégio de sobreviver, mas sobretudo porque o testemunho desse antigo mestre-escola, apaixonado pela história local, foi o mais valioso de todos; insubstituível, na verdade. Eu ficava horas olhando para ele, que tinha narinas largas e lábios grossos sob uma cabecinha calva e enrugada – traços que a idade certamente acentuava. Ultimamente não o tenho visto, mas me garantiram que ele ainda tem o mesmo tom de confidência, com o mesmo ritmo ardente, e uma memória intacta. Nas palavras que me preparo a escrever, muitas vezes será sua voz que deverá ser ouvida.

Devo a Gebrayel muito cedo ter adquirido a íntima convicção de que Tânios, para além do mito, foi um homem de carne e osso. As provas vieram mais tarde, anos mais tarde. Quando, com a ajuda da sorte, finalmente consegui pôr as mãos em documentos autênticos.

Três deles citarei com frequência. Dois provêm de personagens que conheceram Tânios de perto. E um terceiro mais recente. Seu autor é um religioso falecido logo depois da Primeira Guerra Mundial, o monge Elias de Kfaryabda – este é o nome da minha aldeia, acho que ainda não o mencionei. Sua obra tem o seguinte título: Crônica montanhesa ou História da aldeia de Kfaryabda dos povoados e fazendas que dela dependem dos monumentos que nela se erguem dos costumes que ali são observados das pessoas notáveis que ali viveram e dos acontecimentos que ali se desenrolaram com a permissão do Altíssimo.

Um livro estranho, desigual, desconcertante. Em certas páginas, o tom é pessoal, a escrita se inflama e se liberta, nos deixamos levar por alguns arroubos, por alguns desvios audaciosos, nos sentimos diante de um verdadeiro escritor. E então, de repente, como se temesse ter pecado por orgulho, o monge se retrai, se apaga, seu tom se torna plano, ele se rebaixa para fazer penitência ao papel de piedoso compilador, então acumula citações dos autores do passado e dos notáveis de seu tempo, preferencialmente em versos, aqueles versos árabes da era da Decadência, repletos de imagens convencionais e sentimentos frios.

Só fui perceber isso depois de concluir a segunda leitura minuciosa de suas mil páginas – novecentas e oitenta e sete, para ser exato, do preâmbulo ao tradicional verso final, que diz “tu que lerás meu livro mostra-te indulgente...”. No início, quando tive nas mãos essa obra de encadernação verde ornada com simplicidade por um grande losango preto e a abri pela

primeira vez, notei apenas a escrita compacta, sem vírgulas nem pontos, também sem parágrafos, nada além de ondulações caligráficas confinadas dentro de suas margens como uma tela em sua moldura, com uma palavra flutuante aqui e ali para lembrar a página anterior ou anunciar a seguinte.

Hesitando iniciar uma leitura que ameaçava ser desanimadora, eu folheava o monstro com a ponta dos dedos, com o rabo dos olhos, quando as seguintes linhas se destacaram diante de mim – copiei-as na mesma hora, e mais tarde as traduzi e pontuei:

“De 4 de novembro de 1840 data o enigmático desaparecimento de Tânios-kishk... No entanto, ele tinha tudo, tudo o que um homem pode esperar da vida. Seu passado se desemaranhara, o caminho do futuro se aplainara. Ele não pode ter deixado a aldeia por vontade própria. Ninguém pode duvidar que uma maldição está associada ao rochedo que leva seu nome.”

Naquele instante, as mil páginas deixaram de me parecer opacas. Comecei a olhar para esse manuscrito de uma maneira totalmente diferente. Como um guia, um companheiro. Ou talvez como uma montaria.

Minha viagem podia começar.

www.vestigioeditora.com.br www.twitter.com/vestigio_editora www.facebook.com/vestigioeditora

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.