O sol e o peixe

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M imo

“Aquários recortados na uniforme escuridão encerram regiões de imortalidade, mundos de luz solar constante onde não há chuva nem nuvens. Seus habitantes fazem, sem parar, evoluções cuja complexidade, por não ter nenhuma razão, parece ainda mais sublime. Exércitos azuis e prateados, mantendo uma distância perfeita apesar de serem rápidos como flecha, disparam primeiro para um lado, depois para o outro. A disciplina é perfeita, o controle, absoluto; a razão, nenhuma. A mais majestosa das evoluções humanas parece fraca e incerta comparada com a dos peixes.”

Virginia Woolf O sol e o peixe

Um mimo é um dom. Uma dádiva. Um agrado. Uma graça. Um mimo não é nada. Mas pode ser muito. Não tem cálculo. Nem intento. Não é pensado. E, contudo: escolhido a dedo. Um mimo é generoso, gentil, delicado. Uma joia rara. (Mas não cara.) Pra alguém que faz anos. Ou sofreu desenganos. Mas também a pretexto de nada. Simplesmente porque você gostou. E lembrou de alguém que gostaria. Porque você botou o olho e pensou: é isso! Um mimo não é um objeto de desejo. Porque não é pra si. É pra outrem. E não é pra ostentar. É pra dar. Discretamente. Na cumplicidade de uma amizade. Ou na clandestinidade de um amor. Não é pra guardar como um tesouro. Porque não é pra dentro, mas pra fora. E não é da ordem da usura, mas da generosidade. É gratuito. Não espera nada em troca. Mas sem que você o saiba, acaba depositado. No fundo perdido do dom universal. Até que um dia, do nada, quando menos esperava, você recebe um. E o circuito se completa, mas também recomeça. E a lei do mimo se cumpriu. Quem mima mimado será. Como na história contada por Paul Auster (Collected Prose, Picador). Um amigo andava deses­peradamente atrás de um livro que queria muito, mas não conseguia encontrar em lugar algum. Após meses de busca, passando pela Grand Central Station, em Nova York, avista uma moça que lia exatamente o cobiçado livro. Aborda-a, conta que andava atrás do livro e pergunta onde poderia encontrá-lo. Ela diz que o livro é maravilhoso. “É para você”, disse. “Mas é seu”, disse ele. “Era”, respondeu ela, “mas terminei de lê-lo. Vim aqui hoje para dá-lo a você”.

É Virginia Woolf, em “O sol e o peixe”, ensaio que dá título à presente coletânea, na qual se reúnem nove de suas prosas mais poéticas. Nelas, Virginia contrasta a visão de um eclipse total do sol com a dos peixes num aquário de Londres; discorre sobre Montaigne e sobre a paixão da leitura; relembra, em traços delicados e comoventes, a convivência com o pai; teoriza sobre a nascente arte do cinema e sobre as relações entre a literatura e a pintura; enaltece as paradoxais vantagens de se ficar doente; celebra as belezas naturais de Sussex e as delícias urbanas de uma caminhada fortuita por Londres. Eis aqui Virginia, em toda a força poética de sua prosa. Leia também, de Virginia Woolf, pela Autêntica: • Ao Farol • Mrs Dalloway • O tempo passa

Virginia Woolf O sol e o peixe Prosas poéticas

ISBN: 978-85-8217-487-6

9 788582 174876

Seleção e tradução

Tomaz Tadeu

Que sei eu? Pergunta Virginia, ecoando Montaigne, num dos ensaios desta coletânea. Que sei eu do eu? E de quantos eus somos, afinal, feitos? Entendem-se entre si? Ao menos se falam? Um sabe o que o outro faz? É o de hoje o mesmo que o de ontem? O de hoje lembra o que o de ontem fez? Ou o de hoje apenas fantasia o que o de ontem não fez? E as nossas memórias? Como se formam? São realidade ou ficção? Retratos ou borrões? Um rosto refletido num espelho cristalino ou cacos coloridos num caleidoscópio? Que tem o lembrado a ver com o visto, ouvido e sentido? Que ruídos e interferências, mutilações e próteses, perdas e deformações desfazem o frágil elo entre o vivido e o lembrado? Não é sempre invenção o que chamamos de lembrança? Os nossos sentidos, então, não vivem de nos enganar? O que julgamos ouvir é o que foi dito? O que julgamos ver, o que aconteceu? Os nossos sentidos, são eles assim tão confiáveis? São nossa porta de entrada para o mundo ou uma barreira? Não são, por acaso, todos precários e falíveis? Será por isso que precisamos de um sexto? E a coisa com o outro? O outro mesmo, o de fora, não o “nosso” outro, tão íntimo? Consigo, em algum momento, em um único momento, chegar até ele? Chega do outro lado o que, do meu, mal sei o que é? Falo o que penso ou apenas penso que falo o que penso? E o que falo é o que penso ou apenas o que quero que ele pense ser o que penso? Que sei eu? Pergunta Virginia, ecoando Montaigne. De alguma maneira, a pergunta se amplifica e se estende por todos os ensaios da presente coletânea. A certeza é a prova da dúvida. E a dúvida, a assombração da certeza. Virginia não filosofa nestas prosas. Ela poetisa. Mas há nelas muita filosofia. Sua filosofia nos deixa perplexos. Sua poesia, extasiados.


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O sol e o peixe by Grupo Autentica - Issuu