Os olhos do gato

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PREFÁCIO Foi o acaso que determinou o meu encontro e a minha amizade com Moebius. A força que nos levou a criar juntos nossa obra em quadrinhos era, sem dúvida, mágica. Naquele ano tinha sido anunciado, no Festival de Cinema de Cannes, que eu realizaria o monumental filme de ficção-científica Dune. Voltávamos de carro para Paris com Michel Seydoux, o produtor. Paramos para tomar um café num desses postos de gasolina que ocasionalmente vendem livros e quadrinhos. Meu queixo caiu diante de belíssimos desenhos de naves espaciais e astronautas. Olho o nome do artista, está assinado “Moebius”. Mostro essas páginas a Michel: “É o estilo que estou procurando para meu filme. É este o artista que eu quero para meus figurinos”. Percorrendo outros álbuns de quadrinhos, descubro As Aventuras de Blueberry, desenhadas por Jean Giraud. “Aqui está o artista que eu preciso para desenhar o storyboard de Dune.” Muito bem, mas como contatar todos esses novos colaboradores? Precisava agir rapidamente: dentro de três dias haveria uma reunião em Los Angeles com Douglas Trumbull, o criador dos efeitos especiais do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço. A adesão desses dois artistas me era imprescindível. Somente suas ilustrações me permitiriam descrever meu filme àquele reputado técnico exatamente da maneira como eu gostaria de filmar. Chegando a Paris, pedi ajuda ao meu assessor de imprensa, Jacques Itah. Mal pisei na sala dele e logo fui apresentado a Jean Giraud, com quem ele estava em grande discussão sobre a encomenda do cartaz de um filme cujo título já não me lembro. Com estupefação, descubro que os dois homens que eu procurava eram uma única pessoa, e essa pessoa estava na minha frente. Giraud é Moebius, Moebius é Giraud. Imediatamente, o convido para ir comigo aos Estados Unidos, mas ele reluta, alegando ter muito trabalho. Respondo que se ele não se decidisse naquele instante, eu contrataria Philippe Druillet em seu lugar. Imediatamente Jean aceita e declara: “Estou indo!”. Era o início de uma longa e grande aventura. Trabalhamos cerca de dois anos no roteiro de Dune. Moebius desenhou pelo menos três mil esboços. Com uma energia infinita, depois de oito horas trabalhando no filme, ele passava as últimas horas do dia debruçado numa história em quadrinhos intitulada Arzach. Ele me mostrou as primeiras páginas. Eu estava rendido. Ainda mais que aquelas páginas soberbas eram mudas: nenhum balão, nenhum texto perturbava a magnificência do desenho. De repente, mas com o maior respeito, proponho-lhe uma ideia: “Por que você não desenha, numa página dupla, uma única imagem na qual seu herói sobrevoasse uma guerra completa, desde a invasão dos guerreiros bárbaros no horizonte distante até a derrota no primeiro plano do quadro?”. Moebius gostou dessa visão e a desenhou. Era a primeira das nossas colaborações no universo dos quadrinhos. Apesar do nosso entusiasmo, o projeto Dune infelizmente foi um fracasso. Quando os colaboradores do filme, H.R. Giger, Foss, O’Bannon e, claro, Moebius, souberam que pararíamos tudo, uma severa depressão assolou a todos. O’Bannon precisou até mesmo internar-se numa clínica psiquiátrica. Dois anos mais tarde, ele saiu de lá com o roteiro de Alien debaixo do braço. Giger, que mais tarde se tornaria o criador do cenário e do monstro de Alien, voltou para a Suíça. Foss, para a Inglaterra. Uma noite, encontro Moebius num espetáculo da cantora Barbara. Por um puro e mágico acaso, estávamos assentados um ao lado do outro. Vi nisso um sinal do destino.

“Fracassar não é nada mais que mudar de caminho. Proponho recuperarmos todas as nossas criações de Dune e fazer com elas uma série de histórias em quadrinhos.” Moebius era a favor, mas não via como nós poderíamos encontrar uma história de força e inventividade comparáveis a Dune. Ele estava certo. Sem dissimular nossa tristeza, nos separamos no final da noite… Mas nessa mesma noite, tive um sonho em que eu me via voando no espaço intergaláctico. Um ser cósmico, formado de duas pirâmides superpostas, uma branca e uma preta, me chamava. Eu ia ao seu encontro para me fundir no seu centro. Nós explodíamos. Meu inconsciente acabava de me oferecer O Incal! Louco de felicidade, liguei para Jean e nós iniciamos a série na revista Métal Hurlant. O primeiro álbum, O Incal Negro, hoje é considerado um clássico. Os Humanoïdes Associés, que editavam os álbuns da revista, inauguraram uma bela campanha de publicidade. Eles lançaram uma nova coleção de pequenos livros, de tiragem limitada, batizada Mistral. Cada um desses livros trazia a seguinte mensagem: “Esta edição não pode ser vendida. Trata-se de uma cortesia oferecida a todos os que acompanham os Humanoïdes Associés”. Dionnet e Manœuvre, os diretores da revista, nos pediram para criar uma história curta… É essencial que o leitor entenda uma coisa: quadrinho é uma arte industrial. Nós, os artistas, somos os artesãos, fazemos nosso trabalho e recebemos por página. Isso é nosso modus vivendi… Os Humanoïdes Associés estavam nos pedindo para trabalhar gratuitamente, ou seja, sem receber nenhum direito autoral. Por amor ao Incal, nós aceitamos. Submeti a Jean uma ideia na qual eu contava, em cinco quadros, a história de um menino cego. Moebius ficou fascinado pela história, mas retrucou que era curta demais: a história se fechava em cinco páginas, quando deveria preencher vinte e cinco. “Nós não vamos nos ater à forma tradicional”, respondi. “Em vez de criar páginas compostas de quadros, vamos apresentar a história numa série de ilustrações tão solitárias quanto o menino e o gato, e cada quadro ocupará uma página inteira. Frente a cada quadro você colocará um padrão que vai se repetir, a silhueta do menino olhando pela janela. Você vai multiplicá-la dezoito vezes. Na primeira, colocará simplesmente a águia, ao longe, que parte para caçar. E quando a águia volta, depois de uma longa espera, você começará a animar o menino, modificando as sombras, que funcionarão como um contraponto da imagem à direita.” Assim nasceu Os olhos do gato. Os leitores puderam adquirir essa história gratuitamente. Mas no mercado de segunda mão, os exemplares acabaram sendo negociados a valores hoje equivalentes a cem euros. Era possível encontrar também uma edição pirata. Os escrotos ganharam muito dinheiro; Moebius e eu ganhamos um imenso prazer estético. Naquela época, entre 1977 e 1978, Moebius morava numa casa longe de Paris. Sempre que terminava uma página, ele me telefonava. E eu, movido por uma curiosidade irrefreável, pegava meu carro e ia visitá-lo. A cada vez que eu botava os olhos numa página, juro pela vida do meu gato Kazan, o prazer espiritual que eu experimentava era de um nível superior ao do orgasmo. Na minha frente, estava a prova indiscutível de que quadrinho é uma grande arte, merecendo o mesmo respeito que aquele dispensado aos quadros pendurados nas paredes dos museus. Para admirar cada uma dessas páginas, tinha de percorrer cinquenta quilômetros de ida e cinquenta quilômetros de volta. Cem quilômetros de uma rota que eu fiz vinte e cinco vezes. Ou seja, são 2.500 quilômetros que eu dedico à honra de Os olhos do gato. E isso não me custa nada. A arte de Moebius merece isso e muito mais. Alexandro Jodorowsky – Paris, 29 de julho de 2011.


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Estou sentindo o calor

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Enfim um raio de sol

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Os Olhos do Gato originalmente publicado em francês por Les Humanoïdes Associés. Copyright © 2012 Humanoids, Inc. Los Angeles. Todos os direitos reservados. Todos os personagens, suas características e todos os símbolos relacionados são marcas registradas de Humanoids, Inc. Humanoids é uma marca de Humanoids, Inc. Los Angeles. A história, personagens e incidentes mencionados neste livro são totalmente ficcionais. Copyright da tradução © 2015 Editora Nemo Título original: Les Yeux du Chat Todos os direitos reservados à Editora Nemo. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

gerente editorial

Arnaud Vin editores assistentes

Carol Christo Eduardo Soares revisão

Renata Silveira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Moebius Os olhos do gato / Moebius & Jodorowsky ; [tradução Arnaud Vin]. -- São Paulo : Nemo, 2015. Título original: Les yeux du chat ISBN 978-85-8286-173-8 1. Histórias em quadrinhos I. Jodorowsky. 15-01953

CDD-741.5

Índices para catálogo sistemático: 1. Histórias em quadrinhos 741.5

A NEMO É UMA EDITORA DO GRUPO AUTÊNTICA

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