Tinta

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Fernando Trías de Bes ROMANCE

TRADUÇÃO CRISTINA ANTUNES




Fernando Trías de Bes

Cristina Antunes TRADUÇÃO


© Fernando Trías de Bes, 2011 Direitos exclusivos de edição em espanhol reservados para todo o mundo © Editorial Seix Barral, S.A., 2011 Copyright desta edição © 2013 Autêntica Editora título original

tradução

Tinta

Cristina Antunes

projeto gráfico

revisão

Diogo Droschi

Cecília Martins

editoração eletrônica

editora responsável

Christiane Morais de Oliveira Tamara Lacerda

Rejane Dias

Revisado conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde janeiro de 2009. Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

AUTÊNTICA EDITORA LTDA. Belo Horizonte Rua Aimorés, 981, 8º andar . Funcionários 30140-071 . Belo Horizonte . MG Tel.: (55 31) 3214 5700 São Paulo Av. Paulista, 2.073 . Conjunto Nacional Horsa I . 11º andar . Conj. 1101 Cerqueira César . 01311-940 . São Paulo . SP Tel.: (55 11) 3034 4468 Televendas: 0800 283 1322 www.autenticaeditora.com.br Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Trías de Bes, Fernando Tinta / Fernando Trías de Bes ; tradução Cristina Antunes. – Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2013. Título original : Tinta ISBN 978-85-8217-134-9 1. Ficção espanhola I. Título. 12-15634

CDD-863 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura espanhola 863


Para MarĂ­a, minha mulher, que sempre acreditou neste livro.



Ela

13

O livreiro

19

O autor

27

O impressor

55

O revisor

85

O editor 109 Ela 127 Agradecimentos 133



Nunca se deve subestimar o poder dos livros. Brooklin Follies, Paul Auster

Oceano mar, óleo sobre tela, 15 x 21,6 cm. Col. Bartleboom Descrição: Completamente branco. Alessandro Baricco



Todo mês de junho, em Mogúncia (Alemanha), celebra-se a festa de São João. O momento culminante dos festejos acontece no dia 21 de junho com o batismo dos novos impressores. Em plena Ludwigstrasse, juram lealdade à sua profissão e são batizados, mergulhando completamente numa grande tina de água do Reno.



ELA

Maio de 1900



A

lice Thiel entrou no quarto número onze do hotel Schwarzkopf quando seu amante já a esperava, despido, na cama. A luz do sol passava entre os edifícios avermelhados da Marktplatz de Mogúncia, filtrava-se através das cortinas, percorria o tapete e subia pelos lençóis, um feixe preciso, uma perfeita linha secante. O calor da luz não alterou a indiferença de Alice. – Chegou tarde – disse ele. Alice não respondeu. Tirou a roupa como uma autômata, como uma profissional do sexo. A blusa caiu no chão; depois, a saia. Livrou-se da roupa de baixo e olhou, contendo o rancor, para o homem cuja atração seguia sem compreender. Depois passeou o olhar pelo aposento. Reconheceu a mancha azul junto ao armário, a larga rachadura da parede, a queimadura da lâmpada de gás. E pensou que a rotina não era uma sensação nem um sentimento, e sim algo físico. Alice sabia que ele não sentia mais que um afã de posse, de poder ou de submissão alheia. Não estava segura. Mas Alice não podia fazer nada para se esquivar de seu encontro semanal no hotel Schwarzkopf. Havia tentado muitas outras vezes. Lembrou-se daquela ocasião em que ordenou à sua criada que a trancasse à chave em seu próprio quarto. – Não abra. Nem que eu suplique. 15


– Por que, Frau Thiel? Por que devo trancá-la? Naquele dia, Alice amarrou seu corpo à cabeceira da cama usando seus próprios lençóis. Jurou permanecer amarrada até que os sinos da catedral de Mogúncia batessem doze horas. Desta vez não se encontraria com ele. Porém, passadas algumas horas, pouco antes do meio-dia, qual loba subjugada pela lua cheia, desatou os nós brancos, vestiu-se novamente e, da janela, com voz impostada, mentiu para a sua criada: – Abra a porta, tudo passou. Em seguida, Alice saiu de casa, percorreu as ruas de Mogúncia como se fosse levada pelo diabo, entrou pela porta dos fundos do hotel, subiu as escadas de serviço e se dirigiu para o quarto onde seu amante a esperava, faminto de submissão. Conheceu-o nesse mesmo ano: 1900. Mogúncia havia dado as boas-vindas ao novo século com festas. Alguns adivinhos e charlatões haviam profetizado o fim do mundo, diziam que estava escrito nas profecias de Nostradamus, na Bíblia, no Alcorão, que todos os textos apontavam a mesma data. Mas no dia 1º de janeiro o Sol, a Lua e os astros seguiram seu curso. Seu primeiro encontro ocorreu no domingo 13 de maio, isso Alice não podia esquecer. Aconteceu como começam as relações mais complicadas: de uma forma simples. Alice tomava chá numa das cafeterias de Mogúncia, perto da Kaiserstrasse, a avenida a partir da qual se estendia a Neustadt, a moderna ampliação de Mogúncia, que crescia com incrível velocidade. Ao seu lado, um homem bebia café. Alice sentiu um estranho chamado. Olhou-o. Primeiro, com dissimulação. Depois, a intervalos. Nunca 16


recordou com exatidão quem falou primeiro. A conversa foi desajeitada, entrecortada. Ele não tinha nenhum atrativo, seu semblante era bastante fechado. O desconhecido percebeu que havia exercido uma singular atração sobre Alice. Tal era a evidência, que se questionou se se tratava de uma brincadeira de mau gosto ou de uma cilada sem sentido. Ultimamente, suas únicas relações haviam sido pagas. Sua misoginia estava se acentuando de maneira alarmante. Por outro lado, aquela desconhecida... O que o levou a fazer sua proposta não nascia do desejo, mas de seu próprio medo. Sentiu frio antes de falar, um frio intenso como gelo. Porém o encantamento exercia sobre ele a mesma força irresistível. Não foi sua vontade nem seu desejo que falaram, mas sim sua história e seu destino: – Conhece o hotel Schwarzkopf? Na próxima terça-feira, às doze e meia, espero-a no quarto número onze. E foi embora com um gesto leve e esquivo. Alice viu-o desaparecer na multidão. Anotou o dia, a hora e o lugar num pedaço de papel. Logo depois o rasgou e sentiu nojo de si mesma, seguido de um estranho desejo de posse. Passou os dias seguintes inquieta, desviando os olhos quando seu marido lhe dizia isto ou aquilo, desorientada quando ficava a sós. Procurou esquecer a data, era um pedido absurdo, devia apagá-la de sua memória. Mas a terça-feira chegou, e Alice, com a mente em branco e o coração acelerado, como sonâmbula que obedece às ordens não importa de quem, se dirigiu para o lugar combinado. Fizeram amor. Foi uma consumação triste e vazia. O misterioso amante não lhe perguntou nada. Não desejava saber se era casada ou solteira; se morava na própria Mogúncia ou passava uns dias de repouso no 17


balneário de Wiesbaden; se vinha de uma família rica; se havia sentido algo por ele ou sofria do vício das ninfas. – Na próxima terça-feira, à mesma hora, neste mesmo quarto – sentenciou, dominado por uma intensa culpa, com Alice ainda entre os lençóis, repudiada ao invés de amada. Alice jurou a si mesma não regressar. Mas o fez. E assim, sistematicamente, foi possuída uma vez por semana. No início era um mistério. Pouco a pouco, uma rotina. Finalmente, uma simbiose. Uma simbiose cuja natureza ambos os amantes ignoravam e, a sós, se questionavam. A resposta estava na pele do amante desconhecido que possuía Alice. Seus poros continham minúsculos e invisíveis restos do líquido negro que desperta tantas paixões. Essa mescla escura e densa de ilimitado poder. Era tinta.

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