Uma poesia de mosaicos nas Odes de Horácio

Page 1

Guilherme Gontijo Flores

UMA POESIA DE MOSAICOS NAS ODES DE HORÁCIO

CLÁSSICA

Uma poesia de mosaicos

nas Odes de Horácio

Guilherme Gontijo Flores

CLÁSSICA

Copyright © 2024 Guilherme Gontijo Flores

Copyright desta edição © 2024 Autêntica Editora

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora Ltda. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

EDITORAS RESPONSÁVEIS

Rejane Dias

Cecília Martins

COORDENADOR DA COLEÇÃO CLÁSSICA

Oséias Silas Ferraz

REVISÃO

Lívia Martins

DIAGRAMAÇÃO

Waldênia Alvarenga

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Flores, Guilherme Gontijo

Uma poesia de mosaicos nas Odes de Horácio [livro eletrônico] / Guilherme Gontijo Flores. -- Belo Horizonte, MG : Autêntica Editora, 2024. -- (Clássica)

PDF

ISBN 978-65-5928-380-4

1. Poesia brasileira I. Título. II. Série.

24-190841

Índices para catálogo sistemático:

1. Poesia : Literatura brasileira B869.1

Tábata Alves da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9253

CDD-B869.1

Belo Horizonte

Rua Carlos Turner, 420 Silveira . 31140-520

Belo Horizonte . MG

Tel.: (55 31) 3465 4500

www.grupoautentica.com.br

São Paulo

Av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional

Horsa I . Sala 309 . Bela Vista

01311-940 . São Paulo . SP

Tel.: (55 11) 3034 4468

SAC: atendimentoleitor@grupoautentica.com.br

como na tradução anotada, também aqui, para nanda, íris e dante. no começo desta história éramos 2 em 4 tudo é tanto mais

Agradecimentos

Como livro duplo da tradução das Odes, aqui também é inevitável agradecer a algumas pessoas que me ajudaram muito no desenvolvimento e aprimoramento do ensaio, de modos os mais diversos e muitas vezes mesmo sem perceberem: a eles toda minha gratidão. Em ordem alfabética, sem hierarquias: Adriano Scandolara, Adriano Scatolin, Alessandro Rolim de Moura, Alexandre Hasegawa, Amélia Reis, André Capilé, Bernardo Brandão, Brunno Vieira, Bruno D’Abruzzo, Caetano Galindo, Érico Nogueira, Fernanda Baptista, Fernanda Scopel, Gladys Gontijo, Guilherme Bernardes, João Angelo Oliva Neto, João Paulo Matedi Alves, João Triska, Leandro Battisti, Leandro Cardoso, Leonardo Antunes, Leonardo Fischer, Luana Prunelle, Luciane Alves, Luiza Souza, Marcelo Tápia, Marcio Gouvêa Junior, Maria de Lourdes do Nascimento, Mauricio Cardozo, Nair Rubia Baptista, Nina Rizzi, Odete Gontijo, Oséias Ferraz, Patrícia Lino, Philippe Brunet, Raimundo Carvalho, Raphael Pappa Lautenschlager, Reynaldo Damazio, Roberto Pitella, Robson Cesila, Rodrigo Tadeu Gonçalves, Sandra Bianchet, Sergio Flores, Sergio Maciel Junior, Simone Petry, Valquiria Araujo, Vinicius Barth.

Portanto, é essencial à coisa e ao mundo apresentarem-se como “abertos”, reenviar-nos para além de suas manifestações determinadas, prometer-nos sempre “outra coisa para ver”. E isso que por vezes se exprime dizendo que a coisa e o mundo são misteriosos. (Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção)

Se você mete um prego na madeira, a madeira resiste diferentemente conforme o lugar em que é atacada: diz-se que a madeira não é isotrópica. O texto tampouco é isotrópico: as margens, a fenda, são imprevisíveis. Do mesmo modo que a física (atual) precisa ajustar-se ao caráter não-isotrópico de certos meios, de certos universos, assim é necessário que a análise estrutural (a semiologia) reconheça as menores resistências do texto, o desenho irregular de seus veios. (Roland Barthes, O prazer do texto)

Brink

Abreviações

Bekes

Brink, 1963; Brink, 1971 (Arte poética); Brink, 1982 (Epístolas 2).

Bekes, 2005.

Collinge Collinge, 1961.

Fraenkel Fraenkel, 1957.

Mayer Mayer, 2012 (livro 1).

K-H

N-H

N-R

Kiessling & Heinze, 1968 (Odes e Epodos); Kiessling & Heinze, 1970 (Epístolas).

Nisbet & Hubbard, 1970 (livro 1); Nisbet & Hubbard, 1978 (livro 2).

Nisbet & Rudd, 2004 (livro 3).

Romano Romano, 1991.

Shackleton Bailey Horatius opera, 2001.

Syndikus Syndikus, 1972 (livros 1 e 2); Syndikus, 1973 (livros 3 e 4).

Thomas Thomas, 2011 (livro 4 e Carmen saeculare).

Villeneuve Villeneuve, 1946.

West West, 1995 (livro 1); West, 1998 (livro 2); West, 2000 (livro 3).

Williams Williams, 1969 (livro 3).

2. Uma poética de mosaicos

2.1. Opus musivum

2.2. Callida iunctura e series, a ordem da frase (a)

2.3. Lucidus ordo, a ordem do pensamento (b)

2.4. Dispositio dos livros (c)

2.5. Abre-se a obra?

3.1.

3.2. Horácio – Horácios

3.3.

Aviso aos navegantes 15
peças 17
1. Revendo as
47
47
71
105
115 2.4.1. Metro 123 2.4.2. Posição 134 2.4.3. Temas 136 2.4.4. Subgênero poético 140 2.4.5. Fraseologia
142 2.4.6. Atmosfera 146
e léxico
149
159
3. Da tradução em sua crítica
159
Adeus melancolia, ou transluciferação e política
192
220 4. Envoi 257 Bibiografia 261 Apêndice: Tradutores das Odes 287
Para uma polimetria brasileira nas Odes de Horácio

Aviso aos navegantes

Este ensaio só existe em dupla com a edição da Odes de Horácio: é seu duplo geminado, porque um exige o outro, num frente e verso de teoria e prática em que nenhuma das duas tem precedência. É fruto de um trabalho começado em 2010, com os primeiros rascunhos de tradução, atravessou um Doutorado em Letras Clássicas na USP e passou por inúmeras revisões e experimentos entre poesia e performance, em movimentos solitários ou na coletividade do grupo Pecora Loca. O que se lê nas próximas páginas é uma versão revisada, corrigida e limpa daquela tese defendida em 2014, sob orientação do mestre e amigo João Angelo Oliva Neto. Ela também serve como fundamentação para todo o pensamento e prática que venho desenvolvendo com performance e tradução na última década e, por isso, organiza como introdução geral as ideias para que venha uma publicação poética polimétrica e performática da obra completa horaciana, incluindo os Epodos, as Sátiras e as Epístolas, com a Arte poética, que já recebeu uma edição separada em 2020. A ela se junta, portanto, uma terceira parte: a gravação caseira de despretensiosa de cada um dos metros das Odes com uma melodia, disponível online. Teoria, prática, performance, entrelaçados num movimento inacabado. Curitiba, quarta-feira de cinzas de 2024.

15

1. Revendo as peças

Il n’y a pas de vrai sens d’un texte. Pas d’autorité de l’auteur. Quoi qu’il ait voulu dire, il a écrit ce qu’il a écrit; une fois publié, un texte est comme un appareil dont chacun peut se servir à sa guise et selon ses moyens: il n’est pas sûr que le constructeur en use mieux qu’un autre.

(Paul Valéry, “Au sujet du Cimetière Marin”, Variété III)

Alguns estudiosos e críticos de literatura podem se preocupar com a possibilidade de um texto literário não ter um único significado “correto”, mas provavelmente não serão muitos a ter essa preocupação. É mais certo que se deixem seduzir pela ideia de que os significados de um texto não estão encerrados nele como o dente de siso está na gengiva, esperando pacientemente pela sua extração, mas sim que o leitor tem algum papel ativo nesse processo. Nem se preocupariam com a ideia de que o leitor não chega ao texto culturalmente virgem, por assim dizer, imaculadamente livre de envolvimentos sociais e literários anteriores, como um espírito totalmente desinteressado ou como uma folha em branco, para a qual o texto transferirá as suas próprias inscrições. De um modo geral, admite-se hoje que nenhuma leitura é inocente, ou feita sem pressupostos. Poucas pessoas, porém, levarão às últimas consequências as implicações dessa culpa do leitor. (Terry Eagleton, Teoria da literatura)

Antes de começar, pode ser de algum interesse apresentar uma discussão teórica geral: é impossível estudar um texto complexo e extensamente comentado como as Odes sem antes explicitar – um pouco que seja – de onde vem o olhar que apresenta tal estudo. Apesar de discordar de David West, comentador de Horácio, quando afirma que “Escritos sobre teoria literária são tão complexos, obscuros e abstratos, que não

17

prestam qualquer auxílio para o entendimento de Horácio” (1998, p. 47)1, assumo desde logo que ainda ecoa em mim a constatação um tanto triste de Antoine Compagnon (2010, p. 13) de que “o impulso teórico estancou-se desde que forneceu uma certa ciência de apoio à sacrossanta explicação do texto”. Compagnon lastima o engessamento teórico dos últimos anos, com um jargão demasiado técnico que, muitas vezes, se crê suficiente para o domínio de determinadas obras, como se a partir dele tivéssemos receitas prontas de análise e interpretação dos textos; o que leva ao risco maior de acreditarmos na tal “sacrossanta explicação do texto”, ou numa verdade contida no texto e que deve ser descoberta e revelada por meio da aplicação teórica, como se nos textos pudéssemos encontrar um fundo único, um sentido determinado e unívoco que guia toda a obra, quando melhor seria fazer do pensamento teórico um constante devir, um espanto produtivo diante das questões levantadas por cada obra, para a partir desse desencontro produzir uma leitura específica, um diálogo entre leitor e obra, um movimento que se dê a partir da obra, mas que nunca resulte em leitura final, e sim num retorno constante de produção sobre a obra, que se produz sempre teoricamente, haja ou não consciência disso. “Assim como o escritor, o crítico nunca tem a última palavra” (Barthes, 2007, p. 16). Também o texto do crítico se presta a interpretações, no que poderíamos considerar um jogo potencialmente infinito de leituras das leituras das leituras, etc.

Assim, podemos entender mais claramente uma afirmação sumária como a de Simon Goldhill de que a “teoria não é algo que se prega à leitura. Ela é o que torna a leitura possível. Já está lá. Sempre” (2002, p. 277). Nessa perspectiva, ler é sempre um ato criativo e teórico; e não apenas em determinados casos, como o da tradução poética (como se poderia entender pelo título do artigo seminal de Haroldo de Campos “Da tradução como criação e como crítica”, de 1961). Teorizar, do verbo θεωρεῖν, tem o sentido de “olhar”, “ver”, “contemplar”; para depois agrupar também os sentidos de “especular”, “considerar” racionalmente e produzir saberes a respeito de um determinado objeto. A teoria, portanto, não está distanciada do mundo, nem independente da prática

1 Todas traduções são de minha autoria, a não ser quando identificadas com seu devido tradutor nas referências bibliográficas.

18 | COLEÇÃO CLÁSSICA

observatória; ao contrário, ela precisa ser intensa e constantemente permeada pela experiência, que por sua vez nunca se esgota; nas palavras de Henri Meschonnic, “a teoria é [...] a busca pela teoria”, por isso não deve ser entendida como uma teoria única (1982, p. 33). No caso da interpretação poética, essa experiência teórica é atravessada por diversos níveis que extrapolam o especificamente poético para incorporar a própria vida de cada leitor. Nesse sentido, não é fácil teorizar sobre a leitura, já que ela é, por definição, múltipla, como múltiplos são os leitores: mesmo que encontremos dois leitores com a mesma afinidade teórica, suas leituras nunca são idênticas, porque a teoria não se dá de modo estanque, como mera ferramenta de aplicação mecânica. Está implicada na escrita crítica a experiência de cada crítico, que por sua vez se esforça para tornar pública e convincente a sua leitura.

Daí que eu possa dizer que há uma falsa ambiguidade nesta apresentação teórica: neste caso, não pretendo – e que isso fique bem claro – realizar uma incorporação ortodoxa de determinada teoria, para em seguida aplicá-la à leitura das Odes de Horácio. Busco examinar um pouco algumas teorias que se entrelaçam, para, uma vez apoiado nelas, produzir minha leitura idiossincrática, sem filiação dogmática – mantendo a metáfora do apoio, aqui se imagina um salto. Na prática, tenho ciência de que não há como evitar completamente alguns jargões – mesmo a linguagem cotidiana e o senso comum têm os seus, de modo que, como diria Barthes (2007, p. 201), “‘jargão’ é a linguagem do outro”.

Porém, voltando a Compagnon, podemos dizer que é bastante notável o modo como o teórico francês apresenta diversas dicotomias teóricas a partir de cada um dos sete eixos principais tratados no livro, a saber: literatura, autor, mundo, leitor, estilo, história e valor. Em cada um dos casos, ele tenta determinar como, por contraponto à comodidade do senso comum, os radicalismos da teoria, embora bastante sedutores, acabam resultado em aporias, ou no mínimo em considerações inviáveis para a prática da leitura. Gostaria aqui de debater, à guisa de paradigma para a discussão como um todo, um dos pontos mais importantes e retomados criticamente dos últimos quarenta anos, por crer que toca muito sensivelmente no processo interpretativo em geral e nos seus problemas específicos, e por saber que, de certo modo, essa leitura apresenta algum esgotamento por cansaço.

1. REVENDO AS PEÇAS | 19

Em 1968, Roland Barthes terminava “A morte do Autor”, dizendo que “o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do Autor” (1988, p. 70). Está claro que Barthes pretendia com esse texto retirar da perspectiva interpretativa um conceito de intenção do Autor (assim maiúsculo, assim abstrato, para talvez explicitar ainda mais a posição central que essa figura assumiu por muito tempo na interpretação poética, sobretudo no senso comum) como eixo central das leituras, e levá-lo mais diretamente ao texto em leitura. Um exemplo claro de leitura intencionalista pode ser achado, por exemplo num comentário de Wilkinson (1968, p. 132, grifos meus) sobre Horácio: “Seu objetivo era dar a expressão mais viva possível para seus pensamentos e sentimentos, e tudo subordinava-se a isso”; então poderíamos dizer que o principal objetivo do crítico seria descobrir esses pensamentos e sentimentos originários do texto. Contra isso, Barthes responde, com a radicalidade derivada do New Criticism,2 que “a escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo aonde foge nosso sujeito, o branco-e-preto, onde vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve” (1988, p. 65); aqui, a obra deixa de ser confidência biográfica e romântica do autor para tornar-se texto, que por sua vez convida a intervenção ativa do leitor – pouco importa quem o tenha escrito e quais eram as suas intenções originais. Obviamente não posso me deter na complexidade do artigo de Barthes, que trata muito mais do que meros processos de leitura. Penso que o ponto central do artigo é a morte do autor para a literatura contemporânea a Barthes, ou seja, como a literatura a partir de Mallarmé buscou outro modo de se mostrar, sem a tendência romântica do gênio criador, por meio do desaparecimento elocutório do sujeito. Se eu fosse me deter numa análise direta do texto de Barthes, melhor seria contrastá-la com Michel Foucault, no artigo “Qu’est-ce qu’un auteur?” (2004, pp. 290-318), que percebe

2 Cf. “A falácia intencional” de Wimsatt & Beardsley (1983), publicado originalmente em 1954, no qual lemos que “não é tanto uma afirmativa histórica quanto uma definição dizer que a falácia intencional é romântica” (p. 89), ou que “a alusividade na poesia é um dos grandes problemas críticos que usei para ilustrar o tema mais abstrato da intencionalidade [...] como prática poética, a alusividade chega a me parecer, em certos poemas recentes, um corolário extremo da pressuposição intencionalista romântica e, como problema crítico, ela desafia e faz ressurgir de modo especial a premissa básica da intencionalidade” (p. 99).

20 | COLEÇÃO CLÁSSICA

no autor uma função do texto, ou seja, uma relação de discurso, que fica entre o esvaziamento completo e uma presença que ainda dá sentido ao texto; ou então com Bakhtin (2003, pp. 191-192). No entanto, como o texto barthesiano ironicamente existe e significa para além de seu autor, é na desleitura mais corrente que me detenho, a saber: a de que não importa o autor para qualquer tipo de análise literária, qualquer que seja sua época. Essa leitura, a meu ver simplista e ingênua, é devidamente ironizada num diálogo inédito de Ricardo Domeneck publicado apenas em postagem de Facebook:

__ ... porque desde a morte do autor...

___ Deus, por favor, me mate.

___ Você discorda da morte do autor?

___ Qual?

___ O autor em geral.

___ Nunca li nada dele...

___ Estou falando de Barthes.

___ Ah, ESSE autor morreu, infelizmente.

Nesse sentido, poderíamos imaginar uma argumentação simples: o que um autor (portanto, não O Autor em geral) pretende não necessariamente se realiza (não podemos confundir intenção e realização de uma obra), e toda produção de sentido acontece somente durante o ato de leitura, na mente de um leitor (e também não do Leitor ideal). Segundo esse entendimento, as palavras de Paul Valéry apresentadas na epígrafe desta introdução resumem toda a questão: uma vez que a obra foi publicada, o autor passa a ser apenas mais um de seus leitores, e sua opinião não é necessariamente mais interessante ou verdadeira do que a de qualquer outro intérprete da obra; é precisamente o que descreve Mikhail Bakhtin quando afirma que, ao comentar sua própria obra, o autor “se tornou independente de si mesmo – é a pessoa, o crítico, o psicólogo, ou o moralista” (2003, p. 6). É também o convite do poeta Waly Salomão na orelha de sua antologia, O mel do melhor (2001):

...o autor na verdade, é falível, é vulnerável, e sobretudo ele não detém a última palavra, a chave final sobre a propulsão que um poema pode despertar num eventual leitor...

1. REVENDO AS PEÇAS | 21

...como se sabe o leitor é querido e livre pode ler assim ou assado...

É diante desse problema que Umberto Eco, em Os limites da interpretação, veio a formular os conceitos de intentio auctoris (“a intenção do autor”), intentio operis (“a intenção da obra”) e intentio lectoris (“a intenção do leitor”); enquanto a intentio auctoris não necessariamente coincide com a intentio operis, ou seja, com sua materialidade enquanto texto, o leitor pode entrar com sua intentio para produzir leituras inesperadas, imprevistas pelo autor, desde que sustentadas pela intentio operis.

A iniciativa do leitor consiste em fazer uma conjectura sobre a intentio operis, conjectura essa que deve ser aprovada pelo complexo do texto como um todo orgânico. Isso não significa que só se possa fazer sobre um texto uma e apenas uma conjectura interpretativa. Em princípio, podemos fazer uma infinidade delas. Mas no fim as conjecturas deverão ser testadas sobre a coerência do texto e à coerência textual só restará desaprovar as conjecturas levianas (2012a, p. 15).

E o próprio Eco, mais adiante (pp. 87-98), é o primeiro a assumir como teve oportunidade de ler interpretações que ele próprio não previra para seu próprio romance, O pêndulo de Foucault, mas que permaneciam convincentes como interpretação do texto, já liberto das intenções pessoais de seu autor. Mas é claro que é praticamente impossível delimitar a interpretação: um exemplo poderia ser o do uso feito das obras de Friedrich Nietzsche pelos nazistas, graças a certas intervenções políticas e editoriais de sua irmã, Elizabeth Vöster-Nietzsche, após a morte do filósofo; ao passo que hoje há concordância de que o autor do Zaratustra estava longe de pensar em raça ariana quando, por exemplo, formulava sua teoria do Übermensch, e que suas teses defendidas em Além do bem e do mal não se aplicariam à política do nazismo. Claro está, portanto, que a obra não existe na metafísica das intenções do autor, mas no uso derivado de suas leituras, seja por fins políticos, ideológicos, ou meramente poéticos. Se a intenção do autor fosse o centro do texto, nem sequer haveria necessidade de crítica literária, pois que sua univocidade logo se revelaria ao leitor mais atento – não teríamos inúmeras leituras, debates e controvérsias a respeito de cada obra; nem a necessidade aparentemente infinita de entender também o que significariam determinadas leituras feitas pelos

22 | COLEÇÃO CLÁSSICA

comentadores. Assim, para Umberto Eco “a relação entre intérprete e obra sempre foi uma relação de alteridade” (2010a, p. 33); já que é nessa diferença entre os dois que se produz o sentido. Em 1968, mesmo ano do artigo de Barthes, o italiano já afirmava que:

A compreensão da mensagem estética também se baseia numa dialética entre aceitação e repúdio dos códigos e léxicos do remetente –de um lado – e introdução e repulsa de códigos e léxicos pessoais, de outro. É uma dialética entre fidelidade e liberdade interpretativa, onde, de um lado, o destinatário procura captar os convites da ambiguidade da mensagem e preencher de forma incerta com códigos próprios; e de outro, é reconduzido pelas relações contextuais a ver a mensagem tal como foi construída, num ato de fidelidade ao autor e à época em que essa mensagem foi emitida.

Nessa dialética entre forma e abertura (ao nível da mensagem) e entre fidelidade e iniciativa, ao nível do destinatário, estabelece-se a atividade interpretativa de qualquer fruidor e, numa proporção mais rigorosa e inventiva, e concomitantemente, mais livre e mais fiel a atividade de leitura típica do crítico – numa recuperação arqueológica das circunstâncias e dos códigos do remetente, num ensaiar a forma significante para ver até que ponto suporta a inserção de novos sentidos, graças a códigos de enriquecimento, num repúdio de códigos arbitrários que se insiram no duro da interpretação e não saibam fundir-se com os demais (2012b, p. 71).

Assim, a leitura expõe a contradição do sentido inerente a todo texto e a toda a linguagem; no entanto, isso não implica uma morte completa do autor, mas sim uma abertura interpretativa que ao mesmo tempo é sempre cerceada pela materialidade do texto criado pelo autor. Em contraponto à radicalização pela morte do autor e pelo império da linguagem impessoal e anônima propostos por Barthes, pergunta-se Compagnon:

Mas ao afirmar que o autor é indiferente no que se refere à significação do texto, a teoria não teria levado longe demais a lógica, e sacrificado a razão pelo prazer de uma bela antítese? E, sobretudo, não teria ela se enganado de alvo? Na realidade, interpretar um texto não é sempre fazer conjeturas sobre uma intenção humana em ato? (2010, p. 49).

Em outras palavras: ao propor uma interpretação das Odes de Horácio no século XXI, seria possível ignorar que Quinto Horácio Flaco, seu autor, foi um homem que viveu no século I a.C., entre décadas de

1. REVENDO AS PEÇAS | 23

guerras civis, que passou pela guinada política da Pax Augusta e escreveu o Carmen saeculare sob encomenda do próprio Augusto, que mencionou em sua poesia madura a renovação religiosa do princeps, que recebeu uma uilla de seu patrono Mecenas, que leu, como todo romano de sua classe, a poesia grega arcaica e helenística, além da romana, ainda nos seus anos de formação, que viveu num tempo em que retórica e poesia não estavam de todo separados? Diante dessas perguntas, não hesito em afirmar que a morte do autor, ou pelo menos essa morte do autor em geral, tem os seus limites, e que dados biográficos do autor muitas vezes constituem uma espécie de metatexto; se não para encontrar uma verdade em sua obra, ao menos para indicar possíveis balizas mais convincentes de leitura. Doutro modo, teríamos de fingir que as obras surgem do mero acaso, sem ponto de ancoragem, sem ideologias, subjetividades ou poéticas que as permeiem; sem um indivíduo real que as escreva. Já em 1931 Roman Jakobson percebia que um antibiografismo puro e simples seria reducionista, ingênuo:

A crítica literária rebela-se contra as ligações imediatas, diretas, entre a poesia e a biografia do poeta. Mas é absolutamente impossível concluir por uma desnecessária desvinculação entre a vida do artista e sua arte. Tal antibiografismo seria o lugar-comum invertido de um biografismo mais que vulgar (2006, p. 39).

Mas eu poderia questionar o que significa “a morte do Autor” e retomar o problema: seria essa morte declarada por Barthes tão radical quanto foi interpretada por parte dos críticos? Vejamos mais uma passagem do ensaio:

Uma vez afastado o Autor, a pretensão de “decifrar” um texto se torna totalmente inútil. Dar ao texto um Autor é impor-lhe um travão, é provê-lo de um significado último, é fechar a escritura. Essa concepção convém muito à crítica que quer dar-se então como tarefa importante descobrir o Autor (ou suas hipóteses: a sociedade, a história, a psique, a liberdade) sob a obra: encontrado o Autor, o texto está “explicado”, o crítico venceu; não é de se admirar, portanto, que o reinado do Autor tenha sido também o do Crítico (1988, p. 69).

Aqui fica mais claro que não se trata propriamente de ignorar o autor, mas de tirar dele o centro teológico do texto; de retirar do texto uma metafísica última do sentido, que era costumeiramente atribuída

24 | COLEÇÃO CLÁSSICA

à intenção do autor e que poderia ser desvelada pelo bom crítico, que então entraria como o detentor da verdade do texto. Para Barthes, a morte do autor poderia liberar “uma atividade a que se poderia chamar contrateológica, propriamente revolucionária, pois a recusa de parar o sentido é finalmente a recusa de Deus e de suas hipóstases: a razão, a ciência, a lei” (1988, p. 70). Ao ler esse trecho, é possível perceber como o autor Barthes está marcado pelos conflitos de maio de 1968 na França, quando a juventude se insurgiu contra um sistema hierárquico do saber universitário e político em geral. Sua leitura busca a liberdade da interpretação como um novo ato crítico, agora sem metafísica, sem o conceito tradicional de verdade unívoca; o que, no fim das contas, poderia ser lido – e posso dizer que o foi – como uma espécie de “vale-tudo” em nome da nova supremacia do leitor,3 contra o antigo império do Autor e do Crítico. Nesse caso, seria possível entender que “a leitura (ou análise) deve parar em algum momento, e esse ponto de parada é uma escolha arbitrária e, por isso, ideológica”, segundo comenta Robson Cesila (2013, p. 18) quanto às ideias de Don Fowler sobre intertextualidade; assim, “as cadeias intertextuais são infinitas e o leitor/analista é quem decide em que ponto vai parar. Isso nos leva à ideia de que a intertextualidade pode não ser um objeto fixo, pronto, um produto final, mas um processo, um fenômeno em movimento, uma ação inacabada” (2013, p. 19). Cada leitor impõe as próprias delimitações de sua leitura, quer ele tenha ou não consciência desse ato.

Ora, é certo que uma total supremacia do leitor é passível de questionamento, porque está em algum ponto limitada como discurso social: o texto/leitura também é passível de outra leitura, que o submete ao seu crivo; portanto, entra na ordem do discurso, se pretende ganhar existência. Desse modo, podemos chegar à seguinte situação: se,

3 Ou, em muitos casos mais acertados, como o de Conte e Barchiesi (2010, p. 97, n. 13), em que a intenção se desloca do autor para o texto. Mais adiante, no mesmo artigo, eles afirmam (p. 99) que “depositar a ênfase na funcionalidade e no efeito verificável e não na intencionalidade do autor [...] previne contra um risco frequente em filologia”. Para melhor entender a crítica ao conceito de arte allusiva e intencionalidade em Pasquali, cf. também Conte (1986, p. 28): “My intention is to purge any excess of intentionalism from the concept of imitatio. [...] my concern is with describing how such resemblances function within the literary text”.

1. REVENDO AS PEÇAS | 25

por um lado, a obra só pode acontecer nas diversas leituras e só pode ganhar sentido diante de leitores que lidam com sua própria bagagem de leituras prévias (da literatura e do mundo); por outro, para além do âmbito específico da intertextualidade, um leitor não pode fazer qualquer leitura sob o argumento de “ação inacabada” ou “arbitrária”, ou de “escolha ideológica”. Aqui se separa o leitor geral (qualquer um, que pode, de fato, produzir qualquer leitura, uma fruição do texto) do crítico (de quem se espera uma leitura capaz de produzir κρίσις, crise, e novos sentidos), com um cuidado importantíssimo: “resta ainda uma última ilusão à qual se deve renunciar: o crítico não pode, de modo algum, substituir o leitor” (Barthes, 2007, p. 228); noutras palavras, a leitura crítica não é mais verdadeira que a geral, ela apenas obedece uma determinada “ordem do discurso” – se insistirmos no conceito de Foucault (1970) – e pode ser questionada diante da obra criticada. De qualquer modo, não ficamos sem objeto interpretativo, apenas saímos da metafísica intencional para cairmos na concretude do texto e das suas relações, agora talvez mais interessados numa análise dos possíveis efeitos, independentemente do que possa ter sido ou não premeditado pelo autor: é na alteridade entre texto e leitor que se funda um sentido. No caso específico dos estudos sobre poesia antiga, por exemplo, é preciso levar em conta a poética vigente que, longe de valorizar o gênio individual, estabelecia diversas maneiras de construir um poema. Nesse sentido, todo texto antigo partilha de uma poética coletiva; porém, ainda assim, os exemplares individuais (a obra concreta) sempre escapam à categorização pura e simples, do mesmo modo que os discursos extrapolam a língua como abstração estruturada. É diante dessa duplicidade do texto (por um lado, sua fôrma coletiva, por outro, sua forma única) que o estudo da poesia precisa acontecer.

O fato, portanto, é que Barthes, embora tenha sido lido assim, não estava propondo um “vale-tudo”, e sim um enfoque sobre o texto; o desligamento da tradicional máquina de verdade autoral, para pensarmos nas possibilidades de leitura diante de um determinado texto material. E precisamos assumir que suas possibilidades, por mais que limitadas e discutíveis pela própria materialidade do texto, uma vez que sem metafísica, não são mais preestabelecidas: é necessário sempre testar e retestar esses limites, por vezes com radicalidade e com

26 | COLEÇÃO CLÁSSICA

superinterpretações; porque um texto não permanece interessante ao longo dos séculos graças a um sentido imutável que continua instigando seres humanos de épocas bastante diversas: ele permanece porque é capaz de receber interpretações diferentes a partir de pontos de partida variados. Mas convém estar sempre diante do texto, da sua materialidade, para produzir uma interpretação. Sem o recurso à intenção do autor, Compagnon, por exemplo, lembra o recurso ao método das passagens paralelas (Parallelstellenmethode):

quando uma passagem de um texto apresenta problema por sua dificuldade, sua obscuridade ou sua ambiguidade, procuramos uma passagem paralela, no mesmo texto ou num outro texto, a fim de esclarecer o sentido da passagem (2010, p. 67).

Assim, podemos garantir um pouco mais de confiança na leitura e saímos do suposto “vale-tudo”; nem é à toa que a filologia antiga – uma área que pouco consegue se valer de outras informações extratextuais por causa do problema material da perda de dados – se fia constantemente nesse método para produzir comentários. Isso se dá porque um texto só existe em sua relação consigo mesmo e com outros textos, e não num vácuo atemporal. De algum modo, nessa técnica, mesmo que se descarte a intenção, ainda ficamos com algum substrato importante para justificar interpretações da obra pelo seu diálogo com outras passagens da mesma obra ou de outras obras próximas, seja por gênero, língua, léxico, etc. Mas, até nesses casos, é preciso lembrar – ainda mais no caso da filologia antiga – que, pelo contraste de passagens, temos apenas maiores argumentações interpretativas, “jamais, é claro, uma prova” (2010, p. 69); pois nada garante que, por serem passagens paralelas, as duas comportem o mesmo sentido em uma palavra idêntica, por exemplo. Nem mesmo em uma passagem paralela de um mesmo autor – e eu acrescentaria, de uma mesma obra – nós teremos tal garantia (a coerência interna do autor também é, no fim das contas, uma ficção reconfortante), mas ela torna nossa discussão mais afiada, menos errante. Segundo Foucault (2004, pp. 305-307), a busca por coerência interna e manutenção estável de valor são dois dos critérios da crítica para enquadrar o nome do autor, a partir de São Jerônimo. Por exemplo, como realizarmos uma coerência perfeita autoral diante das variedades dos gêneros literários de um mesmo autor? Giuliano Bonfante (1994, p. 159) comenta Horácio:

1. REVENDO AS PEÇAS | 27

As Odes e as Sátiras, obras da mesma época e do mesmo autor, ocupam aqui aquilo que podemos definir como os dois polos opostos da língua latina: as Odes estão escritas na língua mais nobre, mais refinada, mais pura que se possa imaginar; as Sátiras naquela mais popular que o estilo literário da época poderia permitir.

Então em Horácio temos um autor que escreveu ao longo de décadas, em gêneros diversos. No caso de um contraste de passagens paralelas, é preciso levar em conta que os textos são de períodos distintos, que o gênero diferente resulta em elocução e vocabulário diferentes, etc. Além disso, é importante lembrar que uma obra poética não se submete ao mesmo critério de coerência que uma obra filosófica; por exemplo, o uso assistemático de filosofia(s) em Horácio, no mesmo gênero das Odes, poderia causar espanto no crítico que procura por unidade dogmática, mas logo vemos que o poeta usa filosofias diferentes para temas diferentes, segundo o efeito poético. Nesse caso, as inconsistências do texto fazem parte do seu funcionamento; não são falhas ou equívocos a corrigir.

Outro exemplo claro de momentos em que a intenção se anula como categoria interpretativa, e o método das passagens paralelas pode fracassar completamente, é a ironia: uma vez percebido um mote irônico em determinado autor, é bastante difícil estabelecer o ponto em que ele começa e o ponto que acaba, ou como interpretar a direção do sentido.4 Afinal, mesmo na filosofia, onde é que o Sócrates platônico é completamente sério em seus argumentos, e onde ele simplesmente usa o que tem à mão para desmontar o pensamento alheio?5 Na poesia, onde é que a elegia erótica romana deixa de ser tipicamente augustana para apresentar uma crítica à moral tradicional romana?6 Perguntas desse tipo poderiam se multiplicar indefinidamente. Sem o Autor como centro da interpretação, leituras contraditórias podem/devem coexistir, porque toda obra

4 Cf. Flores, 2010, artigo em que trato dos problemas derivados da ironia, numa passagem do livro 3 das Argonáuticas de Apolônio de Rodes.

5 Cf. Blondell, 2000, Tarrant, 2000, Levett, 2005, e Scott & Welton, 2000.

6 Cp. os resultados aparentemente irreconciliáveis a que chegam Sullivan, 1976 (Propércio como crítico da política de Augusto), Benediktson, 1989 (Propércio como modernista avant la lettre), e Cairns, 2006 (Propércio como autor clássico partidário de Augusto).

28 | COLEÇÃO CLÁSSICA

é, de algum modo, aberta; e abertas também estarão as interpretações, desde que de algum modo centradas sobre o texto.

Nisso chego de fato à filologia antiga, chego também a uma prévia deste trabalho. É claro que os Estudos Clássicos não são uma pedra uniforme de concordância, e inúmeros modos de trabalho coexistem ao mesmo tempo, inclusive num só determinado departamento de uma universidade específica. Porém arrisco-me a dizer que, na maior parte dos nossos estudos, há uma tendência para a leitura de fundo hermenêutico, que se daria por tentativa de reconstrução fiel do passado, dos modos de pensamento, de produções da escrita, dos critérios dessa escrita – em geral retóricos – dos gêneros determinados, do gosto de época, dos costumes sociais e discursivos, do estudo dos tópicos, etc. É, por exemplo, boa parte do que se pode depreender de um clássico contemporâneo como Generic composition in Greek and Roman poetry, de Francis Cairns. Para simplificar bastante, vejamos apenas sua exata primeira oração: “O intuito deste trabalho é sugerir uma abordagem pela qual a matéria da literatura antiga seja mais bem compreendida” (1972, p. v, grifos meus). Apesar do termo “sugerir”, vemos no fim da oração a ideia clara de que um texto antigo poderá ser “mais bem compreendido”, portanto mais próximo de sua verdade, mediante sua “abordagem”. Essa abordagem – e não pretendo em nada desmerecê-la como abordagem fundamentada, mas apenas testar seus limites – é sobretudo embasada na análise de obras de retórica e oratória, para definir os gêneros e lugares-comuns da poesia antiga como o melhor modo de ler essa poesia. Seu principal recurso é a obra de Menandro, o Rétor, autor do século III d.C., de modo que o argumento geral é simples: seu método seria mais certeiro porque tenta entender os antigos pelos critérios dos próprios antigos, suas categorizações e prescrições de escrita. De modo similar, Paulo Martins afirma que, “antes, procura-se reproduzir uma forma mentis romana dos primeiros séculos antes e depois de Cristo” (2011, p. 31), para em seguida propor que se deve, “pelo menos teoricamente, recuperar uma forma mentis romana para que as análises feitas não atribuam aos objetos analisados algo alheio a eles, em seu período de invenção e circulação”. Convém lembrar que, nos dois casos, não se trata de purismo ingênuo, nem corte absoluto do anacrônico, já que o próprio Martins faz uso de Foucault em seu trabalho teórico. Mas como averiguar de fato essa forma mentis? Para Eco, devemos levar em consideração que

1. REVENDO AS PEÇAS | 29

a obra [...] poderá ter fraquíssimas conexões com seu próprio momento histórico, poderá expressar uma fase subsequente do desenvolvimento geral do contexto, ou poderá expressar, da fase em que ele [o autor] vive, níveis profundos, que ainda não aparecem muito claros a seus contemporâneos (2010a, p. 34).

Em resumo, mesmo o conhecimento da forma mentis não dá garantias de um domínio do texto, porque este potencialmente a extrapola: a obra nunca é um espelho fiel do tempo histórico em que ela se inscreve, por mais que partilhe de seus valores e de sua episteme. Simon Goldhill diz que, para os classicistas, “é uma mitificação lúdica fingir que hoje fazemos o que sempre fizemos. Que haja – de modo simples e autoevidente – um modo natural de leitura. Uma tradição clássica imutável” (2002, p. 278). É o mesmo que pensa Charles Martindale (1993, p. 6) quando afirma que “lemos a partir de conflitos de interesse do presente, com um desejo por alteridade e um suposto reconhecimento, ou experiência dessa alteridade durante o ato de leitura”. Não quero desmerecer tais linhas de trabalho, nem sequer sugerir que Cairns ou Martins caiam em tal ingenuidade: na verdade, os dois trabalhos são de grande importância para o meu trabalho e constituem verdadeiros pilares interpretativos. Desejo aqui apenas apresentar como uma determinada visão sobre “melhores métodos” de “melhor compreensão”, ou de confiança na recriação ou recuperação fiel do passado, que correm o risco de incorrer num ponto de leitura tido como “mais natural” ou “metodologicamente correto”, podem ser, em parte, tomados por contraposição ao que pretendo fazer (que não é, ao fim e ao cabo, tão diverso do trabalho deles). Eu arriscaria, no entanto, dizer que tanto a proposta de Cairns como a de Martins – um sobre discurso poético, outro sobre relações entre o poético e as imagens – de certo modo tentam buscar, como dizia Barthes, “descobrir o Autor (ou suas hipóteses: a sociedade, a história, a psique, a liberdade) sob a obra” (1988, p. 69); mas sobretudo pelas “hipóteses”. Nos Estudos Clássicos, Duncan F. Kennedy critica esse tipo de procedimento como “efeito de realidade”, nos seguintes termos:

A crescente concentração nos meios, em vez de nos objetos, gera uma questão crucial que pode ser enquadrada em termos de “efeito de realidade”: onde ele para? Qualquer determinação de que uma afirmação qualquer num texto representaria a realidade está aberta para a contra-

30 | COLEÇÃO CLÁSSICA

determinação de que seria um caso do efeito de realidade, que o que é representado como realidade é precisamente isso, outra representação (1993, p. 6).

Ao lermos estudos sobre a organização das Odes horacianas em cada livro, encontramos esse tipo de determinação da realidade do autor a partir do texto. No seu importantíssimo trabalho, Alessandra Minarini, por exemplo, afirma:

É óbvio que a questão sobre dispositio das Odes só ganha sentido se receber uma resposta positiva à precedente, fundamental pergunta: foi realmente o poeta de Venúsia que publicou seus livros com os carmes dispostos na ordem que lemos hoje? (1989, p. 19).

Para Minarini, como para boa parte dos estudiosos do assunto, a interpretação de uma determinada organização poética pressupõe “uma vontade ordenadora desde o início” (1989, p. 19), portanto da descoberta do autor ou de suas hipóteses. Essa ideia se repete, poucas páginas depois, quando ela afirma que “é difícil pensar que Horácio tivesse em mente desde o início um projeto global” (p. 21), como se o projeto do homem Horácio fosse determinante para o nosso processo interpretativo; ou seja, para Minarini, a interpretação passa pela tentativa de desvelamento do que foi o projeto pessoal horaciano (intentio auctoris), e não do que é seu resultado material (intentio operis), e aquilo que não é compreendido como intenção autoral deve deixado de lado pelo trabalho crítico. Como Barthes, desconfio bastante da possibilidade de acessar com confiança quaisquer dessas instâncias; porque sempre há um espaço, uma alteridade que intervém e necessita da tomada de partido, do interesse crítico ativo. No recurso de Cairns a Menandro, o Rétor, por exemplo, seria criticável que se trata de um autor posterior – bastante posterior, por sinal (cerca de meio milênio), se formos tratar, por exemplo, de poesia helenística – à maior parte das obras que ele se propõe a comentar (cf. Martindale, 1993, p. 14). Assim, usando os critérios apresentados por Martins (à primeira vista similares aos de Cairns), poderíamos nos perguntar se tomar por base os textos retóricos de Menandro também não seria um padrão anacrônico de leitura da forma mentis: a apresentação de gêneros retóricos não seria ela mesma uma representação e, portanto, uma interpretação das possibilidades dos textos? Não estaríamos diante, afinal,

1. REVENDO AS PEÇAS | 31

de uma leitura crítica, por sua vez passível de outra leitura interpretativa e crítica?7 É claro que há um certo simplismo nessas perguntas, já que a distância de Menandro em relação aos poemas originais é muito menor do que a nossa, que ainda por cima nem sequer fomos criados na mesma língua (grego, no caso de Menandro, latim no caso de diversos poemas). Não obstante, é preciso ressaltar que o que Menandro afirma não é a forma mentis de Propércio (autor analisado já no primeiro capítulo de Cairns); nem Suetônio (embasamento para Martins) – séculos I-II d.C. –compreende de fato a forma mentis dos pintores e escultores sob o principado de Augusto (séc. I a.C.). Eles podem ter, no máximo, uma posição privilegiada para angariar maior autoridade em suas opiniões; mas é preciso ter em mente que nem mesmo um contemporâneo sabe tudo sobre sua própria época: doutra forma, não precisaríamos hoje de estudos sobre a pós-modernidade, ou sobre a literatura e a arte contemporâneas, porque, como indivíduos do nosso próprio tempo, teríamos de saber o que elas são. Se há algo fundamental decorrente da teoria psicanalítica do início do século passado e que alterou nossa episteme, é a visão do homem como alteridade fraturada de si mesmo (o inconsciente), incapaz de tomar conhecimento total de si: ele também não tem conhecimento total do que o cerca, mas lança perguntas, que inevitavelmente retornam a si, numa dobra da linguagem que de certo modo molda o mundo, dá-lhe sentido; de modo similar, o Dasein heideggeriano encontra-se aberto diante da abertura do mundo, num processo inacabado. Se, por um lado, não pretendo afirmar que as pretensões da teoria psicanalítica ou ontológico-fenomenológica se apliquem facilmente ao homem antigo, que por certo pensava e vivia de modo muito diverso, por outro, creio

7 Cf. a crítica de Paolo Fedeli (2010) ao trabalho de Cairns, como, por exemplo: “é fácil objetar que os rétores tardios teriam construído esses preceitos justamente sobre a base do material literário de que dispunham: mas que esses grilhões preexistissem de modo tão rígido parece difícil admitir” (p. 393); ou “o defeito de base do, não obstante isso, útil e meritório trabalho de Cairns consiste no fato de que ele limitou a investigação ao que se atém ao nível dos conteúdos e negligenciou o que concerne ao nível expressivo dos conteúdos mesmos” (pp. 394-395). Ainda Gian Biagio Conte (1991, pp. 150-159) critica a análise de Cairns por se centrar no conteúdo para determinar o gênero, sem levar em conta as diferenças da forma; mas esse aspecto de crítica ao trabalho de Cairns já se afasta do ponto que aqui comento. Cf. Martindale, 1993, p. 14.

32 | COLEÇÃO CLÁSSICA

que um dos nossos deveres é rever a Antiguidade sob o prisma das teorias modernas e contemporâneas que interferem sobre o nosso modo de estar no mundo. Exemplo: o homem antigo realmente não se via como construção subjetivamente fraturada, porém, se não conseguimos mais confiar na unidade simples da personalidade humana, como nós o veremos? Assim, se pensarmos que o homem não é idêntico a si mesmo, mas uma construção complexa e desigual cuja consciência é apenas uma superfície, também nenhuma leitura será igual a si mesma, nem pela reprodução idêntica de seus termos. É exatamente isso que aprendemos com o Don Quijote escrito pelo Pierre Menard de Jorge Luis Borges (1992): a obra não é igual a si mesma. Maurice Blanchot já comentou com minúcia a imagem da tradução que aparece incrustada nesse conto borgiano: Quando Borges nos propõe imaginar um escritor francês escrevendo, a partir de pensamentos que lhe são próprios, algumas páginas que reproduzam textualmente dois capítulos de Dom Quixote, essa absurdez memorável nada mais é do que aquela realizada por toda tradução. Numa tradução, temos a mesma obra numa linguagem duplicada; na ficção de Borges, temos duas obras na intimidade da mesma linguagem e, dessa identidade que não é uma identidade, a miragem fascinante da duplicidade dos possíveis. Ora, ali onde há um duplo perfeito, o original é apagado, e até mesmo a origem (2005, p. 139).

Não seria também a conclusão inevitável a que chegamos ao contrastar os raros casos de autotradução – como os de Samuel Beckett e Vilém Flusser – quando constatamos que os textos traduzidos não são “fiéis” ao original? Beckett recriava seus próprios jogos de linguagem, que explodiam contra qualquer pretensão de pureza semântica, ou seja, traiu-se a si mesmo (Cf. Souza, 2012); enquanto Flusser fazia várias versões de autotradução, alterando o texto, de modo que nem sequer podemos definir o que seria seu original: no caso do artigo “Der Boden unter den Füssen”, ele mesmo apresentou o texto em alemão, inglês, francês e português. Só em português temos quatro versões diferentes em tamanho, ordem, argumentos, etc.:

Para traduzir, Flusser descobre que não é suficiente recorrer ao texto inicial em alemão, mas que é também necessário retornar àquilo que inicialmente inspirou a redação do texto. Nesse processo, o texto é reformulado, mas de um modo que incorpora os passos anteriores.

1. REVENDO AS PEÇAS | 33

Como um palimpsesto, o texto em português conterá, de alguma forma, o texto alemão e as associações alemãs eliminadas de dentro dele pela necessidade de adequação à outra língua (Martins, 2011, p. 157).

Em outras palavras: mesmo o próprio autor, ao se traduzir, altera o texto por contingências da nova língua e do novo contexto. Ele age como interpretante crítico de sua própria obra. E mais, um mesmo autor também comenta sua própria obra de modo bastante diferente ao longo do tempo, como podemos perceber quando nos é possível conferir entrevistas tais como as de Roberto Piva (apud Cohn, 2010) e Carlos Drummond de Andrade (apud Ribeiro, 2011), publicadas na série Encontros: a cada entrevista, o poeta revê sua própria obra, o que demonstra que não existe uma intenção unívoca por trás da obra, e que uma leitura não é mais verdadeira quando emitida pelo próprio autor. Por isso a necessidade de um olhar inevitavelmente contemporâneo, porque é na contemporaneidade que esse tipo de acontecimento poético ganha enfoque por parte da teoria e da crítica; assim as relações entre autor, obra e leitor não precisam pender drasticamente para um dos lados, mas se estabelecem como uma relação sempre renovada: o sentido de um texto é resultado dessa relação entre a materialidade desse mesmo texto (portanto limitada) e as variantes inumeráveis de leitura.

Com isso, não quero dizer que não devemos ou não precisamos fazer uso das fontes antigas como base nos estudos; mas apenas determinar que, se desconfiarmos minimamente do Autor, como Barthes (ainda que tenhamos reservas ao seu radicalismo e sobretudo aos leitores que o radicalizaram ainda mais), nada nos impede de fazer um esforço a princípio anacrônico de leitura, com bases teóricas historicamente afastadas, desde que elas possam contribuir para fazer uma leitura de determinada obra que se sustente no confronto com a materialidade do texto (ou das imagens) e nos permita repensar tanto o passado como o presente a partir de indagações diversas. E isso se dá mesmo no estudo antropológico de culturas do presente porque, como observa James Clifford a respeito dos trabalhos de campo em pesquisas etnográficas, “muito do nosso conhecimento sobre outras culturas deve agora ser visto como contingente, o resultado problemático do diálogo intersubjetivo, da tradução e da projeção” (2014, p. 73); ou seja, como um processo interpretativo em que um etnógrafo se relaciona

34 | COLEÇÃO CLÁSSICA

com um determinado grupo que lhe era inicialmente alheio; o mesmo sugere Eduardo Viveiros de Castro, ao lembrar como é costumeira, e mesmo clichê, a comparação entre antropologia e tradução (2002, p. 15 e 2009, p. 54). E, para além do processo de pesquisa, o texto que nos resta como documento final da pesquisa estará sempre aberto às interpretações do leitor.

Os significados de um relato etnográfico são incontroláveis. Nem a intenção de um autor, nem o treinamento disciplinar, nem as regras do gênero podem limitar as leituras de um texto que emergirão como novos projetos históricos, científicos ou políticos. Mas se as etnografias são suscetíveis a múltiplas interpretações, estas não são, em qualquer momento, infinitas, ou meramente “subjetivas” (no sentido pejorativo). A leitura é indeterminada apenas na medida em que a própria história é algo em aberto (Clifford, 2014, p. 86).

O resultado é que haverá sempre uma vasta possibilidade interpretativa em cada momento histórico, que amplia por caminhos imprevistos a interpretação de qualquer texto e de qualquer cultura “para o leitor competente (o leitor cuja interpretação será considerada plausível por uma específica comunidade)” (Clifford, 2014, p. 74): as novas interpretações buscam uma ordem do discurso. Em outras palavras, não existe um acesso real à forma mentis de qualquer autor, muito menos dos antigos; e mesmo que possamos recuperar inúmeras informações sobre as regras de composição e leitura de uma determinada época, nada impede que haja acontecimentos artísticos em geral que tenham passado despercebidos pelos leitores contemporâneos e subsequentes ao autor e que, portanto, não se enquadram em nenhuma perspectiva de sua época – um detalhe imprescindível é que a categorização prescritiva é quase sempre posterior e nem sempre completa; basta notar como a leitura que Aristóteles faz da tragédia ateniense não se aplica a todo o corpus de tragédias que chegou até nós, portanto sua obra hoje fundamental é apenas uma leitura – insisto, fundamental – da tragédia, historicamente mais próxima (cf. Dupont, 2007). Não se trata, é claro, de equívoco (logo digno de descarte) do estagirita, mas de atentarmos para o fato de que ele, estudando e comentando a tragédia, fazia sua própria filosofia, isto é, produzia um novo discurso que obedece a outras regras de composição. Não podemos esquecer que, na prática da criação artística, como argumenta Conte, o poeta

1. REVENDO AS PEÇAS | 35

pode realizar uma nova distribuição dos traços constitutivos do modelo, pode na prática modificar o modelo entendido como código, utilizando certas possibilidades do modelo entendido como sucessão de textos: mas, fazendo isso, propõe ele mesmo um novo modelo, funda ele mesmo, por assim dizer, uma tradição (apud Fedeli, 2010, p. 395).

Na realização dos nossos estudos, não podemos partir do pressuposto de que uma obra seja estanque e se exaura no conhecimento de seu tempo, que ela apenas se utilize de parâmetros preestabelecidos sem burlá-los, ou que se dê inteiramente ao leitor de sua época: os princípios de variedade (ποικιλία) e cruzamento de gêneros (Kreuzung der Gattungen) presentes na poética de Horácio nascem exatamente do apagamento programático das categorizações rígidas, uma prática poética mais ou menos regular pelo menos desde os séc. IV-III a.C. Se confiássemos na ideia de um leitor antigo capaz de decodificar completamente as obras por meio de sua categorização preestabelecida, estaríamos dando a supremacia ao Leitor unívoco ideal, outro conceito muito perigoso, já que na prática só existem leitores carnais, como venho argumentando. É claro que podemos analisar a poética em sua comunidade como uma escrita inter pares que partilham de um sistema de valores éticos e poéticos, para contrastarmos a obra com seu tempo; mas mesmo assim não existe uma totalidade do texto a ser compreendida como resumo desses valores. O leitor, mesmo que do mesmo grupo que o autor, permanece sempre outro: alguém que precisa criar sentido para o texto diante da sua leitura/audição. Nós até poderíamos supor uma espécie de “autor implícito” que constrói seu leitor (Compagnon, 2010, p. 148); mas nada garante que ele seja o mesmo ao longo de leituras diversas: não seria esse “autor implícito” também um resultado de interpretação do leitor? Por outro lado, como se disse, é praticamente impossível teorizar sobre a leitura empírica, já que suas variáveis são vastas. No máximo, o comentador apresenta uma possibilidade de leitura, mais ou menos convincente, que por sua vez será dada a outro leitor, que pode julgá-la bem ou mal resolvida a partir do contraste com suas próprias leituras. Em sua resposta a algumas críticas, nos seminários de Interpretação e superinterpretação, ao comentar seus estudos coletivos sobre Sylvie de Gérard de Nerval, Umberto Eco sugere uma possibilidade mais ambiciosa para o trabalho crítico, que poderia interpretar “através de que meios semióticos aquele texto cria seus efeitos

36 | COLEÇÃO CLÁSSICA

múltiplos e mutuamente contraditórios e por que na história de sua interpretação conseguiu suscitar e comportar tantas leituras diferentes” (2005, p. 173); ou seja, uma espécie de arqui-interpretação que explique como repostas diversas aparecem para um mesmo texto. Porém, como o próprio italiano observa logo em seguida, “devido à falibilidade do conhecimento, suponho que outras descrições descobrirão outras estratégias semióticas que subestimamos, assim como podem ter condições de criticar muitas de nossas descrições” (pp. 173-174).

Assim, retornamos aos critérios de leitura; e as palavras de Hans Robert Jauss podem ser bastante elucidativas, se quisermos pensar o que torna possível a coexistência de leituras diversas de um mesmo texto:

Se uma interpretação anterior pode ser reconhecida como errada, isso não se deve, em geral, a enganos históricos ou “erros” objetivos, mas à formulação incorreta das perguntas por parte do intérprete ou a perguntas que não podem ser legitimadas. Na análise das obras literárias, perguntas são legítimas quando se revelam como eficazes diante do texto, como antecipação da interpretação ou, em outras palavras: quando se pode provar que o texto pode ser compreendido como uma nova resposta e não apenas como uma resposta casual à pergunta feita. Com isso, exige-se que o texto possa ser interpretado consistentemente como significado dessa resposta. Se, na história da interpretação das obras de arte, respostas divergentes não se falsificam mutuamente, mas atestam a historicamente progressiva concretização de sentido que se realiza ainda por meio do conflito das interpretações, a que mais isso seria devido, senão à possiblidade de conciliação de perguntas legitimáveis – manifestada ao menos na vivência da arte? (1983, p. 350).

O que quero dizer com isso tudo é que vejo, em geral, duas posições supostamente antagônicas sobre como ler um poema antigo: a) recriar o seu contexto por meio de uma pesquisa histórica, antropológica e discursiva; ou b) apresentar um novo recurso teórico – com o risco de anacronismo – para produzir uma nova leitura. Até segunda ordem, não vejo bom motivo para considerar uma dessas hipóteses seguramente mais confiável do que a outra, nem creio que sejam de fato antagônicas, ou excludentes. A bem da verdade, nenhuma das duas existe em estado puro, mas trabalhamos sempre numa mistura entre esses dois polos aparentemente opostos. É impossível, para qualquer leitor, desvencilhar-se inteiro de seu próprio tempo, do mesmo modo que é impossível ler o passado

1. REVENDO AS PEÇAS | 37

sem ser invadido por ele: na prática, o trabalho mais tradicionalmente filológico está permeado pela reflexão teórica (consciente ou não) de seu próprio tempo; e não é à toa que os séculos produzem leituras diferentes acerca das mesmas obras clássicas, mesmo que se suponha uma tradição contínua. Se confiássemos em “uma leitura mais adequada”, teríamos de refutar por completo todo o desenvolvimento dos Estudos Clássicos como uma espécie de escada de Wittgenstein, que convém derrubar assim que subirmos por ela (cf. Tractatus, 6.54, 1990, p. 85). Como argumenta Costa Lima, o movimento não é bem esse:

A análise da ficção verbal (em prosa ou poesia) não supõe o emprego de métodos porque romances e poemas, telas e partituras não são corpos convergentes entre si. (Assim, o fato de a écfrase ser um recurso retórico e, como tal, já empregado milhares de vezes não torna entre si comparáveis as obras que a tenham preferido.) [...] Tanto nas ciências propriamente ditas, como nas humanidades, tanto na filosofia como na abordagem reflexiva da arte, tem-se sempre a possibilidade de descobrir um novo acesso a seu objeto. [...] Da mesma maneira que o cosmo está sempre aberto a novas investigações, a indecidibilidade interpretativa de um poema ou de uma ficção verbal ou de uma tela só subsiste enquanto não houver aparecido uma alavanca analítica mais eficiente. Dito de modo mais impessoal, sua interpretação acatada ou aceitável deixa de sê-lo quando uma mudança na ordenação sociocultural de certa sociedade provoque uma anulação diversa e então motive outro entendimento (2012, p. 187, grifos meus).

Eu acrescentaria que, apesar das mudanças socioculturais em acontecimento, as interpretações passadas sempre podem ser retomadas, relidas, alteradas: as antigas coexistem com as novas, são reinterpretadas, por vezes até se confundem, e seria muito difícil definir estratos claros entre elas. Um exemplo, talvez básico, desse processo de “angulação diversa” é o espaço acadêmico que a tradução poética ganhou nos últimos anos: apesar de ser um recurso literário recorrente do ocidente nos últimos milênios, e fundamental para a constituição das literaturas modernas, foi só no século XX que ela passou a receber com mais frequência um estatuto de trabalho crítico (em grande parte pela prática tradutória do make it new de Ezra Pound e pelo famoso texto sobre “A tarefa-renúncia do tradutor” de Walter Benjamin, embasado na teoria romântica e nas propostas tradutórias de Schleiermacher), que no Brasil se estabeleceu,

38 | COLEÇÃO CLÁSSICA

nos anos 1960, com o importantíssimo ensaio de Haroldo de Campos, já mencionado, e mais especificamente nos Estudos Clássicos a partir dos trabalhos de João Angelo Oliva Neto (O livro de Catulo, 1996) e de Raimundo Carvalho (Bucólicas de Virgílio, 2005), ambos produzidos da década de 1990, resultados de pesquisas acadêmicas que inseriam o fazer tradutório em seu projeto interpretativo. A tradução poética, como argumentarei mais adiante, é precisamente o processo do anacrônico como movimento interpretativo, do deslocamento, diferenciamento, da diversão como ferramenta para se produzir um saber sobre o passado.

Como tentarei demonstrar, uma leitura das Odes pode se formular exatamente pela tendência de conectar níveis heterogêneos (tema, metro, fraseologia, léxico, figuras, contextos, etc.), e, por isso, cada ode convida o leitor a entrecruzar informações para produzir leitura, por tópica, métrica, sintagma, ou o que mais se sugira; a delimitação dessas correlações acaba sendo a função do leitor em resposta à materialidade da obra. No caso das Odes, ainda mais, porque o excesso imediatamente impõe a delimitação, por oposição às suas multiplicidades. Nesse sentido, graças a tal entrecruzamento de feixes heterogêneos, sinto-me tentado a sugerir que uma leitura em obra aberta das Odes horacianas poderia também dialogar com o conceito de rizoma em Deleuze & Guattari. Para estes, seu principal efeito é aplicável ao nosso entendimento do real e, por conseguinte, ao nosso pensamento sobre as subjetividades; para eles “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem” (1995, p. 15), e essa ideia pode ser aplicada ao modo de um conceito para efeitos diversos. Ainda segundo Deleuze & Guattari, “toda vez que uma multiplicidade se encontra presa numa estrutura, seu crescimento é compensado por uma redução das leis de combinação” (p. 14). Do ponto de vista dos filósofos, esse seria o grande mal do pensamento dicotômico (radicular, portanto) ocidental, porque encerra a multiplicidade na racionalidade categórica do pensamento num centro unitário, dando assim um formato simplificado ao caos (ou caosmo, como preferirá Guattari anos mais tarde) inapreensível da

1. REVENDO AS PEÇAS | 39
§

realidade e reduz as leis de combinação à simplicidade da explicação lógica, sem assumir que algo escapa ao pensamento. Na mira deles, é claro, não está a poesia romana, mas o estruturalismo francês, com sua tendência a delimitar uma pequena série de regras que possam explicar a complexidade dos acontecimentos empíricos, como no caso exemplar das Estruturas elementares do parentesco, de Lévi-Strauss, ou da Morfologia do conto maravilhoso, de Vladimir Propp (publicado originalmente em russo em 1928, mas bastante usado na França dos anos 1960), que resumia os contos maravilhosos a apenas 31 funções diferentes (1984). De modo um pouco diverso, eu diria que toda multiplicidade demanda uma redução, que faz dela um processo estruturante por onde se inicia o processo humano de interpretação e produção de sentido. Uso o termo “estruturante” (derivado do particípio presente latino, portanto infectum, inacabado, a caminho), e não “estrutural”, por não ver nas Odes uma estrutura fechada, mas uma série heterogênea (daí possivelmente rizomática) que pode se fechar estruturantemente diante de cada leitor para assim ganhar sentido. Jacques Derrida (1971, p. 30) já criticava o risco da leitura estruturalista:

Por um lado, a estrutura torna-se o próprio objeto, a própria coisa literária. Já não é o que era quase sempre noutros lugares: ou um instrumento heurístico, um método de leitura, uma virtude reveladora do conteúdo e dos termos; a maior parte das vezes as duas coisas ao mesmo tempo, pois a sua fecundidade não excluía, pelo contrário implicava que a configuração relacional existisse do lado do objeto literário; era sempre praticado, mais ou menos explicitamente, um realismo da estrutura. Mas nunca a estrutura era, no duplo sentido desta palavra, o termo exclusivo da descrição crítica. Era sempre meio ou relação para ler ou para escrever, para reunir significações, reconhecer temas, ordenar constâncias e correspondências.

Eco (2012b, p. 37) também tentava separar um estruturalismo ontológico, que buscava a estrutura na coisa em si, ou uma estrutura final, e o estruturalismo metodológico (preferível), que fazia o recurso à estruturação apenas como meio de se compreender alguma coisa, sem pretensão de que a coisa em si realmente se submetesse a tal estrutura. E Viveiros de Castro ainda diz de modo diverso, mas muito preciso, que não pretenderia se situar em um ponto exterior ao estruturalismo, mas no exterior do estruturalismo, “no interior da dimensão de exterioridade

40 | COLEÇÃO CLÁSSICA

que lhe é imanente” (2002, p. 19, cf. também p. 433). Deixo claro, portanto, que, neste trabalho, qualquer estrutura fica no meio de tentar observar, e não no termo.

A proposta deste trabalho é mostrar um caminho possível, ainda que bastante aberto; para tanto, não posso me fiar numa tentativa de recriação da forma mentis, porque simplesmente não existe uma teoria antiga específica sobre o que pretendo tratar: não há um conceito bem definido de abertura textual entre os antigos; não nos chegou uma clara teorização antiga sobre o que fazer com um livro composto, por exemplo, de vários metros diferentes (Horácio é um caso peculiar na poesia romana, com pouquíssimos sucessores)8; e praticamente nada acerca de como iunctura e series se inter-relacionam num poema para criar um efeito poético, que não é necessariamente o mesmo da oratória; a não ser, é claro, nas palavras do próprio Horácio, que pretendo interpretar à luz do projeto proposto. Isso não implica, como já se pode depreender, que deixarei de lado a pesquisa filológica, os comentadores, o aparato crítico editorial ou as informações sociais, religiosas, políticas, históricas, etc. que hoje temos à nossa disposição. Não desejo reafirmar nenhuma espécie de polarização entre, de um lado, os “teóricos” e, de outro, os “tradicionalistas”, como aponta Susanna Morton Braund (2002, pp. 55-56); já que ela mesma afirma que hoje temos uma variedade muito maior de modos de leitura dos textos antigos do que há cem anos atrás e que isso deveria gerar maior versatilidade e tolerância mútua (pp. 5960). Ao contrário, pretendo, tanto quanto possível, tirar proveito de tudo que puder, por ver, como Gian Biagio Conte que “a boa filologia é aquela que [...] desqualifica tanto o empirismo como atenção obsessiva

8 Podemos ver um antecedente nas Sátiras de Ênio, nos primeiros livros das Sátiras de Lucílio, na lírica de Lévio (que praticamente desconhecemos), no Livro de Catulo e nos próprios Epodos horacianos. Destes, temos conhecimento mais detalhado apenas dos Epodos e de Catulo, mas no caso deste não temos tanta clareza sobre sua disposição original (há uma tendência para a tripartição, que resultaria em pelo menos duas obras polimétricas catulianas, Cf. Skinner 2003 e 2007 e Oliva Neto, no prelo). Outro ponto a ser lembrado é a herança alexandrina da variedade (ποικιλία); cf. Fedeli, 2010: “O livro de poesia era vário pela estrutura, motivos, metro e estilo: o exemplo típico é constituído pelo livro dos Jambos de Calímaco”, mas mesmo nesse caso, ainda é pouco o que sabemos sobre a organização métrica, e nada resta de teorização a respeito.

1. REVENDO AS PEÇAS | 41

[...], quanto a teoria como algo de nebuloso, genérico, que perde de vista as articulações ou o tecido fino e específico do texto” (1991, p. 145).

Assim, este trabalho tem seu lugar no entrecruzamento premeditado das duas frentes; ao tentar rastrear uma tradição desse gênero de fusão nos Estudos Clássicos brasileiros, o livro de Francisco Achcar (1994) é um precursor, por seu trabalho de análise com entrelaçamento entre teoria bakhtiniana e erudição filológica, entre o estudo das tópicas antigas e os comentários a diversas traduções poéticas em língua portuguesa. Entre os trabalhos estrangeiros, eu poderia citar vários que fazem um entrelaçamento possível, além de Conte, Barchiesi e Fedeli, já mencionados: Hinds, 1998 (sobre intertextualidade); Kennedy, 1993 (sobre elegia romana); O’Hara, 2007 (sobre o problema da potencialidade interpretativa das inconsistências da épica romana); Wray, 2001 (sobre masculinidade na poesia de Catulo, com a inserção, por exemplo, das controversas traduções sonoras de Louis Zukofsky); Janan, 2001 (que utiliza o aparato teórico lacaniano para analisar o livro 4 de Propércio); etc. Cada um desses trabalhos “híbridos” tem capacidade de provocar aquela “angulação diversa”, ou uma nova “alavanca analítica” mencionada por Costa Lima; ou aquilo que Slavoj Žižek chama dialeticamente de lacuna paraláctica: “o confronto de dois pontos de vista intimamente ligados entre os quais não é possível haver nenhum fundamento neutro comum” (2008, p. 15); como Žižek, eu aposto que “longe de constituir um obstáculo irredutível para a dialética, a noção de lacuna paraláctica é a chave que nos permite discernir seu núcleo subversivo”. Ou, talvez com mais clareza a partir das palavras de Pierre Vidal-Naquet: Não há dúvida de que toda história é cruzamento, diálogo entre presente e passado. Os que se interessaram pela Grécia, só pela Grécia [...], não foram obrigatoriamente os que nos trouxeram mais novidades sobre o mundo grego. [...] O estudo da tragédia grega oferece perigos de atualização selvagem e até de procura da “essência do trágico” mas, para compreendê-la, não é inútil, como os pesquisadores britânicos já perceberam há tempo, ter lido Shakespeare (2002, p. 32).

Não custa lembrar que diversos anacronismos permeiam mesmo o discurso mais bem aceito na academia, bem como qualquer discurso; como bem observara Carl Einstein na introdução fundamental do livro Negerplastik, “o que assume importância histórica é sempre função do

42 | COLEÇÃO CLÁSSICA

presente imediato” (2011, p. 31), e assim Einstein passava a se utilizar da arte modernista para entender diversos procedimentos da escultura produzida na África e na Oceania. Um bom exemplo no campo dos estudos clássicos são as palavras “arte” e “literatura” para designar textos romanos da época de Augusto. Sander M. Goldberg (2005, p. 208) nos lembra que “literatura” permanecerá um termo problemático, mesmo que os romanos utilizassem litterae num sentido similar aos seus cognatos contemporâneos; eu diria que, no caso de “arte”, o problema é bem maior e provavelmente insolúvel, a não ser que assumamos todo pensamento como provisório. Desse modo, minha aposta, como já disse, é a de certo anacronismo premeditado (de teoria contemporânea e de leitura constante da poesia moderna e pós-moderna em geral), que é inevitável, já que derivado do meu lugar no mundo, como leitor do século XXI; porém esse anacronismo está profundamente permeado por um embasamento no estudo do contexto romano, para, evitando o risco da atualização selvagem temida por Vidal-Naquet, tentar criar uma alavanca analítica razoavelmente nova para a interpretação geral das Odes como um todo; mas tudo isso com a clara consciência de que a priori a variedade das coisas ultrapassa qualquer classificação teórica, não somente no plano da intertextualidade, mas em todo processo poético, seja ele antigo ou moderno.

Uma breve consideração sobre os livros de Odes, feita por Gordon Williams, pode nos servir de ponto de partida:

A amplitude das Odes de Horácio é impressionante em sua imensidão: algumas são bem-humoradas, [...] outras são profundamente sérias. Essa é uma amplitude de tom. Mas há também uma amplitude imensa de tema: as Odes são uma coleção de poesia incrivelmente variada (1969, p. 10).

O que impressionava o crítico nos anos 1960, e ainda nos impressiona, é a incrível variedade (uariatio, ou ποικιλία) que atravessa os livros de Odes, uma variedade que, para além de incluir 13 tipos de metros diferentes, abriga ainda uma gama imensa de elocuções e temas, personas, contextos, etc. O que almejo aqui é apresentar uma possibilidade de leitura que tende a ver nas Odes de Horácio uma espécie de mosaico

1. REVENDO AS PEÇAS | 43
§

poético no qual cada peça pode contribuir para uma visão de todo cada vez mais complexa, já que o leitor pode realizar, em seu processo individual de leitura, inúmeras conexões a partir desses eixos heterogêneos (registro, tema, metro, persona, contexto, subgênero, fraseologia, etc.); de modo que busco apresentar uma espécie de maquinário aberto de leitura que, mais do que apresentar uma determinada interpretação das Odes, tenta estabelecer um fundamento para múltiplas leituras a partir das variedades de sua construção, por ver nessa variedade constitutiva das Odes um grau de abertura maior que a de outras obras poéticas de seu tempo, sobretudo por abrigar uma variedade métrica maior do que qualquer outro exemplar de poesia antiga que nos chegou. Pretendo, portanto, observar um grau de abertura inerente à interpretação das Odes que é derivado do excesso de possibilidades de leitura em níveis heterogêneos que se cruzam e acabam por tornar mais complexa sua configuração como gênero,9 para assim dar ao leitor uma maior consciência de sua liberdade interpretativa. Por isso o método será, em primeiro lugar, apresentar algumas similaridades composicionais entre o mosaico romano e a poesia de Horácio, para depois analisar algumas passagens importantes da Arte poética que esclarecem a composição horaciana sob o ponto de vista dos seus efeitos.

No caso das Odes, analisarei – a partir da ideia de opus musivum (mosaico) e dos conceitos de callida iunctura (junção hábil), series (série), lucidus ordo (ordem lúcida) e dispositio (disposição) – as relações de três níveis sintáticos diferentes que estão presentes na obra como um todo. De modo crescente, eles formam as sintaxes: (a) da frase, (b) do poema e (c) do livro, que funcionam de modo similar a um fractal, onde as partes menores têm o mesmo formato das partes maiores. Nos três casos, além de analisar a sequência de apresentação (series), demonstro como relações de proximidade e distância na series podem ser retomadas como uma produção de iunctura, seja na construção frasal (series e iunctura), na organização interna de um poema (ordo) ou na disposição dos poemas

9 A fluidez dos gêneros no período helenístico e a poética que envolve o registro de leis relativas a esses gêneros com a subsequente quebra de expectativa que eles produzem são estudados por Rossi em dois artigos (1971 e 2000), com uma frase que a poderia resumir do seguinte modo: “leis escritas e não respeitadas” (1971, p. 83). O tema da fluidez genérica é bastante discutido por Oliva Neto (2013).

44 | COLEÇÃO CLÁSSICA

no interior do livro (dispositio). Somadas a esses arranjos, ainda podemos passar a leituras transversais de cada ode, quando começamos a relacioná-la com outras odes de um mesmo livro, por similaridade temática, métrica, contextual, frasal, ou por retomada de figuras, personas, tópica, etc., formando aquilo que chamarei callida iunctura do(s) livro(s). Além disso, como no caso de toda poética romana, os poemas amiúde apontam para diversas obras de autores, aumentando ainda mais as intertextualidades possíveis. Em resumo, minha hipótese é que, se considerarmos a primeira parte deste trabalho como passível de aplicação nas leituras e tentarmos analisar todos os diálogos temáticos, métricos e intertextuais de uma determinada ode nos três níveis propostos, além de suas próprias complexidades sintáticas internas, das categorizações retóricas ali implicadas, das interferências religiosas, políticas, históricas, antropológicas inevitavelmente importantes, nós praticamente nos deparamos com uma espécie de monstro interminável da leitura, decorrente em grande parte desse grau de abertura ou multiplicação interpretativa específico das Odes. Certamente, a obra de Horácio não é um caso único de grande abertura interpretativa nos textos da Antiguidade: se considerarmos, por exemplo, o comentário de Fedeli (2010, pp. 412-416), em que ele analisa a citação que Encólpio faz da Eneida no cap. 132 do Satyricon, retomando a figura cabisbaixa de Dido no Orco (Eneida 6.469), que por sua vez evoca a cena de Ajax Telamônio fugindo de Odisseu no Hades (Odisseia 11.5634), logo perceberemos como um pequeno trecho é capaz de estabelecer uma gama de intertextualidades que nos remetem a mais de um texto, tornando sua análise extremamente complexa. Casos em que um texto aponta para vários outros são inúmeros na poesia romana, mas um caso de multiplicidade interna, envolvendo ainda uma trama complexa de metros, é mais variado nas Odes. Chegamos, desse modo, à questão de que é necessária uma delimitação arbitrária e ideológica (e, portanto, política) de toda leitura. A especificidade deste trabalho é ver como essa multiplicidade inerente a toda poesia está radicalizada no processo de composição das Odes, de modo tal, que essas obras de Horácio marcam um ponto singular na arquitetura poética romana. Mas insisto que esse processo, radicalizado nas Odes, não seria estranho a qualquer estudo humano, porque a realidade sempre explode a capacidade de análise. O primeiro passo de qualquer leitura é a delimitação da própria leitura; ou,

1. REVENDO AS PEÇAS | 45

no nosso caso, de quanto um leitor pode produzir diante dessa imensa série de feixes heterogêneos, porque a leitura total das Odes seria puro ruído de excessos, ou o silêncio. No centro desse pensamento está a tradução, como união da teoria crítica e da recriação contemporânea para a leitura do texto poético. Assim, chegamos ao ponto axial: por um lado, a apresentação de uma máquina aberta de leitura, decorrente das complexidades da iunctura e da series, sobretudo quando amplificadas em escala para a ordo interna composicional de cada ode e, ao fim, para a dispositio dos livros que formam um todo maior, para tentar depreender uma gramática das odes horacianas; por outro, a realização poética dessa mesma leitura, por meio de uma tradução poética que tente realizar no seu aspecto criativo (decorrente das teses de Haroldo de Campos e Henri Meschonnic) uma nova obra que expresse em si mesma os pontos centrais da parte teórica nas minúcias do texto.

Gostaria ainda de confessar que o principal esforço na criação das traduções foi exatamente o de reler e desler Horácio. Com isso, quero dizer que precisei fazer o movimento duplo de também me desapegar um pouco do conhecimento acumulado ao longo dos anos, do grande número de leituras críticas que sempre acompanham nossa formação filológica, para também reencenar uma leitura poética e depois retornar a esse mesmo aparato, para assim evitar a ingenuidade da leitura solitária. Não se trata de pureza, ou de desejo de encontrar o “verdadeiro” Horácio – tudo que disse logo acima deveria deixar claro que nem sequer penso nesses termos –, mas de tentar rever como aconteceria a impressão de leitura diante de um texto aberto, de seus problemas, como se já não houvesse esse imenso aparato ao redor da obra, que aparece nas notas e comentários. Há nisso um claro intuito de leitura poética das Odes de Horácio, que permita por fim uma tradução também poética. No entanto, para que esse processo poético se realize com todo seu potencial, ele deve se unir à parte mais teórica deste trabalho, a fim de fazer um todo: a teoria lança luz sobre a prática, e a prática, por sua vez, dá as bases para a teoria ao mesmo tempo que a realiza poeticamente. Trata-se, portanto, de um trabalho crítico em duas frentes que são apenas aparentemente pouco conciliáveis; no fim das contas, um encontro entre filologia e poética.

46 | COLEÇÃO CLÁSSICA

2. Uma poética de mosaicos

2.1.

Aut Lux hic nata est aut capta hic libera regnat (descrição de mosaicos na Capela do Arcebispo, Ravena)

Opus musivum

O breve comentário de Nietzsche sobre as Odes de Horácio já é, hoje, um lugar comum da crítica; entretanto, ainda vale a pena retomá-lo para início do debate:

Até hoje não senti com outro poeta o arrebatamento artístico que uma ode de Horácio me proporcionou desde o início. Em algumas línguas o que ali foi alcançado não pode nem ser desejado. Aquele mosaico de palavras, em que cada palavra, como som, como lugar, como conceito, irradia sua força para direita, para a esquerda e sobre o conjunto, aquele mínimo em extensão e número de signos, e o máximo que obtém na energia dos signos – tudo isso é romano e, se acreditarem em mim, nobre por excelência. Todo o restante da poesia se torna popular demais em comparação – apenas tagarelice sentimental... (2006, pp. 101-102).

Essa afirmação sobre posicionamento de palavras ecoa alguns comentários antigos sobre Horácio que encontramos em Quintiliano (10.1.96, uerbis felicissime audax, “fertilissimamente audacioso nas palavras”)10 e na fala de Eumolpo, em Petrônio (curiosa felicitas, “fertilidade

10 Um termo me intriga aqui, audax: Quintiliano vê no projeto horaciano uma audácia (e talvez insolência) além do comum no uso das palavras, porém fértil, produtiva, bem realizada (felicissime). Seria essa audácia verbal a causa do fracasso das Odes em Roma, por contraponto ao registro mais mollis da elegia, que no mesmo momento histórico fazia tanto sucesso? Nesse ponto de vista, a análise mecanicista de Collinge

47

minuciosa”),11 bem como em estudos mais recentes sobre o estilo de Horácio ( e.g . Harrison, 2007b, p. 264, “uma cuidadosa ordem de palavras é um aspecto chave de Horácio”). Embora Nietzsche pareça estar, no seu pensamento filosófico, sobretudo interessado na nobreza da poesia horaciana, no seu caráter aristocrático, é outro aspecto que aqui nos interessa: o “mosaico de palavras” e o “mínimo em extensão” (cf. Pound, 1961, p. 36, dichten = condensare) que constituem sua poesia. Para Nietzsche, a arte horaciana, que ele identifica à arte romana em geral, está no posicionamento sintático das palavras, aliado a uma escolha minuciosa da “palavra justa” de gosto helenístico,12 que é capaz de ampliar seu sentido para além do mero jogo de significação; em outras palavras, o que vemos aqui é o sentido poético, que transcende a interpretação semântica, por adicionar camadas interpretativas – por sua posição, suas contraposições, inter-relações, sua sonoridade, etc. – num formato conciso de escrita. Neste ponto, a distinção que faço entre sentido e semântica é, de certo modo, similar à diferenciação

(“Horace is developing an exciting product from a cautious process”, p. 30) perde o senso de risco implicado na sua radicalidade, como tentarei demonstrar.

11 Ele indica que essa curiosa felicitas está relacionada à seguinte precaução: “Praeterea curandum est ne sententiae emineant extra corpus orationis expressae, sed intexto uestibus colore niteant” (“Ademais, é preciso cuidar para que as sentenças não extrapolem o corpo da oração, mas brilhem com uma cor tecida nas vestes”, Satyricon 118). Nas palavras de Tarrant: “The two aspects of the Odes most prized by ancient opinion are their metrical virtuosity and consummate verbal artistry” (2007, p. 280).

12 É o que vemos sugerido, por exemplo, num epigrama de Filetas de Cós (Estobeu, 2.5):

Destes montes nenhum campestre brutamontes, mão no machado, arranca-me, um amieiro; mas quem labute, saiba a forma das palavras e conheça as estradas das histórias.

O poema parece ser enunciado pela árvore (o amieiro), mas permite uma leitura alegórica de uma jovem ainda virgem que prefere um poeta a um camponês, ou dos próprios poemas de Filetas, numa referência à defesa do labor limae erudito que se está firmando no tempo do poeta. Cf. ainda Calímaco Epigramas 27 Pfeiffer (sobre Arato).

48 | COLEÇÃO CLÁSSICA
Οὐ μέ τις ἐξ ὀρέων ἀποφώλιος ἀγροιώτης αἱρήσει κλήθρην, αἰρόμενος μακέλην· ἀλλ’ ἐπέων εἰδὼς κόσμον καὶ πολλὰ μογήσας, μύθων παντοίων οἶμον ἐπιστάμενος.

entre “ponto de vista semântico” e “ponto de vista estético” proposta por Abraham Moles em sua Teoria da informação e percepção estética (1969, pp. 189-199); com pelo menos uma diferença fundamental: não penso que a informação estética seja intraduzível. Como Moles, não julgo ser possível, em última análise, traçar um limite claro entre informação estética e semântica, pois isso acontece na especificidade do leitor (de certo modo, isso está implícito nos ready-mades de Marcel Duchamp, por um lado, e na retórica clássica, por outro): “mensagens de conteúdo puramente semântico e puramente estético não são senão limites, polos dialéticos. Toda mensagem real comporta sempre, intimamente misturadas, certa proporção de uma e de outra” (ibid., p. 196). Assim, o sentido é um ponto da semântica que extrapola o estado de dicionário e pressupõe uma relação ativa entre obra e leitor. Certamente Hegel, na Estética, já havia chegado a uma conclusão similar, porém menos positiva, ao afirmar que Horácio, pelo contrário, precisamente nos lugares em que mais se quer elevar, mostra-se frio e rude, e manifesta uma “artificialidade imitativa que não dissimula convenientemente a delicadeza de uma composição onde tudo está calculado” (1993, p. 622). A conclusão pela artificialidade calculada é a mesma de Nietzsche, porém o gosto romântico da Estética hegeliana dificilmente veria um ponto positivo nessa “inibição” do gênio. Nietzsche percebe nessa concisão concentrada pela força posicional das palavras um mote para a comparação com o mosaico romano, porque nele vemos um sentido maior pela junção de pequenos quadros pintados. O que podemos depreender dessa comparação é que, muito maior do que as partes separadas, seria a relação estabelecida entre elas, seus contrastes de cor e forma, que criaria um sentido maior. Em outras palavras, num mosaico não vemos um conjunto incoerente de pedras, mas uma imagem derivada dessa conjunção, tema que é muito caro à teoria da Gestalt; porque, diante de uma variedade imensa de subconstruções, o ser humano tende, como que instintivamente, a fazer dela uma imagem com a qual possa dialogar, por meio da formação contrastiva entre forma e fundo. No entanto, está longe do meu propósito tentar compreender leis da visão ou compreensão humana. O que me interessa talvez aprofundar é a visão de poesia como mosaico apresentada por Nietzsche para testá-la em seus limites. O único caso de um estudo similar de que tenho conhecimento é Ludic Proof, de

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 49

Reviel Netz (2009), que analisa como as obras matemáticas do período helenístico obedeciam a um modelo de escrita próximo ao do mosaico e que, por sua vez, isso seria um traço da escrita helenística em geral, como se demonstra na comparação com a poesia. Para Netz (2009, p. 220), o que ele denomina mosaic-structure, ou “estrutura de mosaico”, seria o equivalente ao que Fantuzzi & Hunter (2004), em seus estudos sobre poesia helenística, chamam contamination, ou “contaminação”. Em outras palavras, o mosaico seria “a construção de uma única obra a partir de elementos diversos” (Netz, 2009, p. 228), tais como a incorporação de cálculos ou de elementos da física a um tratado geométrico. Um exemplo notável estaria na estrutura criada em De lineis spiralibus, de Arquimedes: a abertura do tratado apresenta uma série de proposições que parecem não ter relação alguma com o tema central; porém, quando nos aproximamos do fim da obra, os dados são retomados para criar maior efeito na composição do livro:

O choque da surpresa é duplo: quando entramos na proposição 24, não sabemos o que esperar; quando saímos, é possível perceber por que a proposição 10 estava lá desde o início. Esse momento de dupla surpresa é com certeza o clímax retórico do tratado, que aparece devidamente em seu clímax geométrico” (Netz, 2009, p. 11).

Esse efeito passa a ser de importância lógica, porém também estética para o texto matemático, já que não altera as leis fundamentais do assunto, mas é capaz de mudar a visão do leitor diante dos problemas apresentados por Arquimedes. Procedimentos similares aconteceriam em outros tratados arquimedianos, bem como nas obras de outros matemáticos gregos, como Euclides. O problema da abordagem de Netz é, no entanto, dupla: por um lado, ele apresenta análises quase que exclusivamente no campo da macroestrutura dos livros, deixando de lado a minúcia constitutiva desses mesmos textos, de modo que ficamos sem um estudo sobre as possibilidades de mosaico em outros níveis. Em segundo lugar – e o problema mais importante –, como aponta Markus Asper (2013, p. 76) numa resenha sobre o livro, Netz “poderia ter tornado seu estudo ainda mais convincente se integrasse algumas passagens sobre materiais visuais”. Asper observa, com isso, um problema fundamental no trabalho em questão: ao usar o conceito de mosaico, Netz faz um uso instintivo do termo e em momento algum analisa as técnicas do

50 | COLEÇÃO CLÁSSICA

mosaico, ou as reais similaridades entre um mosaico helenístico e um tratado matemático da mesma época. Para ele, o mosaico é, de modo mais abstrato, um dispositivo que gera “suspense e surpresa, transições abruptas, expectativas criadas e frustradas [...]” (2009, p. 3). Como veremos mais adiante, os processos que analiso em Horácio são muito similares aos propostos por Netz, porém pretendo demonstrar tanto algumas similaridades como algumas dissonâncias entre o mosaico das artes visuais e o mosaico da poesia, ao mesmo tempo que sugiro diversos níveis simultâneos da estrutura de mosaico. Para isso, podemos nos deter um pouco sobre o que era o mosaico romano, em geral nomeado como opus musivum. Em primeiro lugar, é importante notar que o termo demora a aparecer na literatura romana, e o que vemos é muitas vezes uma paráfrase explicativa da técnica em questão: Plínio, por exemplo, o descreve sempre como pauimentum tesseris structum (“pavimento composto por tésseras”). Num artigo intitulado “Imagens ‘bordadas’ na pedra” (2013), Gilvan Ventura da Silva tenta analisar a feitura dos mosaicos romanos e suas relações com o contexto cultural. Como atenta Silva,13 opus musivum é derivado das Musae – as divindades patronas das artes comumente evocadas na poesia – pelo menos a partir da História Augusta (Vida de Pescênio 6.8), onde lemos pictum de musio, para depois vermos hominum genera musivum picta aparecer em Agostinho (Cidade de Deus 16.8). Silva, portanto, deixa de lado o fato de que o termo aparece apenas no corpus literário da Antiguidade Tardia romana. Um pouco antes, o que temos são: a) o termo grego lithostrotum, mencionado por Varrão (Res rusticae 3.1.10 e 3.2.4) e Plínio (História natural 36.184 e 36.189); e b) também os termos tessellata e sectilia em Suetônio (Vida de Júlio 46.1), pauimenta sectilia aparece na Architectura de Vitrúvio (7.1.3-4). Por isso, tudo nos leva a crer que a relação com as Musas seja provavelmente mais derivada do espaço reservado aos mosaicos pelos romanos: os jardins de uma uilla, onde poderíamos encontrar grutas reservadas às ninfas (o nymphaeum) ou às musas (o musaeum); nesse caso,

13 Boa parte das informações subsequentes são profundamente debitárias a esse artigo (sobre o assunto, é um dos poucos em português), bem como da entrada “Mosaico” da Gedea Arte, v. 9 (1999, pp. 671-706), com contribuições de vários estudiosos, e de King, 2002, Dunbabin, 1999 e Pappalardo & Ciardiello, 2012.

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 51

um opus musivum designaria apenas a obra feita no musaeum. Mas, ut pictura poesis, o mosaico partilhava aspectos comuns com a poesia, por isso vejamos um resumo de detalhes do seu desenvolvimento.

Apesar de o mosaico ter grande fama ligada ao seu desenvolvimento entre os romanos, sua origem técnica é datada em cerca de 3.000 a.C. (fig. 1), no Oriente Próximo, e também temos exemplares micênicos datados do séc. VIII, em Górdio, antiga capital da Frígia. No entanto, seu principal desenvolvimento técnico teria ocorrido entre os gregos a partir do séc. V a.C., tal como já pensava Plínio (História natural 36.184), de modo que hoje muitos estudiosos compreendem que o mosaico helênico tenha origem autóctone (Dunbabin, 1999, p. 5). Como observa King (2002), os mosaicos mais antigos da Grécia já apresentam apuro técnico no uso de seixos para desenhos relativamente complexos (fig. 2), apesar das poucas cores e das estruturas mais lineares, o que sugere uma tradição mais antiga que não chegou até nós. Dado seu trabalho lento, tudo nos leva a crer que, em Olinto, os mosaicos eram um luxo reservado a poucos membros de uma elite econômica; alguns exemplares em casas privadas mostram que o lugar mais comum desses mosaicos eram salas de jantar (ἀνδρώνες), ou seja, o espaço de convívio com visitas; isso já demonstra no mosaico antigo sua vocação para espaços limítrofes entre o privado e o público: o banquete é exatamente esse espaço, quando um cidadão recebe outros cidadãos em sua própria casa e assim abre a vida privada à discussão política, filosófica, estética, etc. Nos mosaicos de Olinto, encontramos inscrições tais como ἀγαθή τύχη (boa fortuna), que levam Dunbabin (1999, p. 8) a considerar funções apotropaicas para essa arte.

52 | COLEÇÃO CLÁSSICA
Fig. 1: Mosaicos de argila colorida em semicolunas de Uruk, (c. 3.000 a.C.).

Fig. 2: “Belerofonte mata a Quimera”, mosaico pavimental de Olinto (séc. V-IV a.C.), seixos.

Fig. 3: Uma casa de Delos (séc. II-I a.C.). O uso de seixos persiste, mas já não é restrito à elite (há mais de 350 pavimentos na ilha). Importante ver a coexistência de mosaicos preto e branco de seixos com mosaicos coloridos em tessellatum, nessa mesma imagem.

No período helenístico, nos séc. IV-I a.C. (fig. 3), primeiro em Pela, depois em Pérgamo e Alexandria vemos um desenvolvimento técnico que apresenta desenhos mais complexos, busca por maior realismo, mais cores e clara influência da pintura; é então que aparece a primeira menção a um mosaico na literatura grega (Ateneu 206d) a respeito da ornamentação de um barco de Hierão II feita com pequenos cubos (ἀβακίσκοι); é também datado de meados do séc. III o papiro Cairo

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 53

Zenon 59.665, no qual lemos algumas especificações sobre mosaicos. Nesse período de experimentação técnica, aparece o único mosaicista cujo nome é recordado na literatura antiga: Soso de Pérgamo (fig. 4). Plínio (NH 38.184) afirma que ele teria sido famosíssimo; além de ter inventado o mosaico pavimental da casa não varrida. Entre os alexandrinos, temos uma obra impressionante em uermiculatum assinada por Sófilos, em Tmuis (c. 200 a.C.), em que aparece representada Berenice II. Temos aí um uso constante de tésseras (tesserae ou tessellae), ou seja, cubos cortados de pedra, vidro ou terracota com cerca de 4 ou 5 centímetros, cuja principal vantagem, em comparação aos seixos, era a possibilidade de ampliar a gama de cores (Dunbabin, 1999, pp. 18-19). O termo, no entanto, é de origem romana: tessella aparece em Sêneca (Questões naturais 6.31.3) e nas Sátiras de Juvenal (11.132) em casos em que há clara referência à arte do mosaico. E, por fim, também se desenvolve a técnica do uermiculatum minucioso, que podemos conferir na fig. 4.

Fig. 4: “Pombas Capitolinas” da uilla do imperador Adriano (c. 120 d.C.). O mosaico é provavelmente uma cópia do original grego feito por Soso de Pérgamo (séc. II a.C.).

Esses opera uermiculata costumavam ocupar uma parte menor do mosaico como um todo, e eram amiúde feitos nas oficinais dos mosaicistas (e não in loco, como o resto do mosaico), por isso ganhavam o nome específico de emblema, derivado do grego (cf. Pappalardo & Ciardiello, 2012, pp. 12-13): “em geral, os emblemata, quer fossem temas originais ou

54 | COLEÇÃO CLÁSSICA

cópias de pinturas famosas, eram peças de luxo, facilmente transportadas graças ao seu pequeno tamanho”. Foi só com a crescente expansão romana dos séc. II-I a.C. por territórios gregos, que Roma finalmente passou a ter contato mais constante com uma técnica já bastante desenvolvida, um processo que ocorreu junto com a adaptação dos gêneros poéticos gregos aos modos latinos num progressivo desenvolvimento imitativo dos resultados: “No mosaico, assim como nas outras artes, a Itália, nos últimos dois séculos a.C. absorveu todo o impacto da influência helenística” (Dunbabin, 1999, p. 38). Por isso, Suetônio relata que César levava tessellata e setilha pavimenta em campanhas bélicas (Júlio César 46). Mas o mosaico romano deve ter trazido suas especificidades: um exemplo é a probabilidade de que os mosaicos parietais (fig. 16 e 17) tenham sido invenção itálica (cf. Plínio, História natural 36.189, em que teriam sido criados no tempo de Sula), já que não encontramos resquícios de exemplos gregos (cf. Dunbabin, 1999, pp. 236-253 e Papparlado & Ciardello, 2012, p. 55). Essa mudança de posição do mosaico altera também as relações de observação, jogos de luz, etc. Um dos exemplos mais notáveis dessa arte no mundo romano é o imenso mosaico do Nilo, no Templo da Fortuna, em Preneste, composto no início do século I a.C. “sem dúvida atribuível à escola alexandrina”, segundo Kurt Körbel (“Mosaico” in Gedea Arte, 1999, p. 676), enquanto Dunbabin (p. 51) ainda comenta a minúcia factual da obra. Seja qual for a origem, o estado atual do mosaico apresenta problemas: ele foi retirado do local no séc. XVII e depois remontado a partir de desenhos. Com isso, há uma série de falhas, embora a iconografia geral, e talvez o estilo, pareça ter sido reconstituída de modo confiável (cf. Dunbabin, p. 49; e Pappalardo & Ciardiello, pp. 125-126). Tratase de uma descrição da enchente anual do Nilo desde sua nascente (no alto) até desaguar junto ao porto de Alexandria (em baixo à direita): uma narrativa imagética composta de uma sucessão de imagens em ziguezague que revela os monumentos arquitetônicos que cercam o leito do rio, ao mesmo tempo que faz um erudito manual de zoologia antiga. Sobre este mesmo mosaico, Barbara Hughes Fowler foi ainda mais longe, ao compará-lo com as técnicas da poesia helenística: “[...] esse impressionante mosaico [...] reflete ou partilha da mesma estética que governa a épica de Apolônio” (1989, p. 121); nesse caso, o que se partilha não é propriamente o procedimento, mas uma poética geral.

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 55

Fig. 5: “Mosaico do Nilo”, Templo da Fortuna, Preneste, séc. I a.C. 5,8 m x 4,3 m. É, talvez, a imagem mencionada por Plínio (História natural 36.189).

A técnica, portanto, variava entre a inserção de pequenas peças sobre o cimento, ou algum tipo de reboco, para a produção de temas geométricos mais abstratos (fig. 1), ou para a representação de homens, plantas e animais em geral (fig. 3, 4 e 5), “o que lhes permitiu inclusive suplantar a pintura como principal técnica” (ibid.). De tal modo os mosaicos invadiram a vida dos romanos, que é comum dividi-los em alguns tipos principais quanto à disposição. Na verdade, como há poucos casos de teorização sobre o mosaico na Roma antiga, os conceitos são vagos e acabaram sendo organizados posteriormente. Deixo de comentar ao menos quatro tipos famosos da terminologia do mosaico: palladianum (mais moderno, feito com peças de tamanho e colagem desiguais); classicum (uma mistura de uermiculatum com tessellatum ou regulatum); circumactum (em círculos concêntricos); e o micromosaico, mais usado no período bizantino. Assim, os termos que se aplicam aos antigos são os seguintes:

a) opus regulatum, feito de peças quadradas regulares, tanto na horizontal como na vertical.

56 | COLEÇÃO CLÁSSICA

b) opus sectile, feito de peças maiores, crustae, que costumam ter a forma desejada (na imagem abaixo, imagina-se que o peixe seja feito de apenas uma peça).

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 57
Fig. 6: Regulatum. Fig. 8: Mosaico sectile do séc. IV d.C., da Basílica de Júnio Basso, no Monte Esquilino.

c) opus tessellatum, similar ao regulatum, porém neste caso as peças são enfileiradas apenas no sentido vertical ou horizontal (parece ser o caso da fig. 1, porém naquele caso as peças foram feitas em formatos cilíndricos).

d) opus uermiculatum, uma técnica mais complexa formada por tésseras bem pequenas (uermiculus significa “vermezinho”) que se sobrepõem em camadas similares e criam uma aura em torno da imagem. O termo aparece em um fragmento de Lucílio citado por Plínio (História natural 36.185), como emblemate uermiculato.

58 | COLEÇÃO CLÁSSICA
Fig. 9: Tessellatum. Fig. 10: Séc. III a.C., no Monte da Justiça, em Roma.

e) opus musivum, a forma mais complexa, que é quando o uermiculatum se expande até ocupar toda a área, criando uma textura contínua. Nas palavras de Kitzinger, “mosaico parietal derivado do opus uermiculatum” (Gedea Arte, 1999, p. 673).

14 Pappalardo & Ciardiello (2012, p. 138), ao comentarem outro mosaico duplo com os mesmos desenhos, que se encontra na Casa do Fauno, lembram como a

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 59
Fig. 11: Uermiculatum em torno de um sectile. Fig. 12: Musivum. Fig. 13: Painel central de um mosaico de chão, séc. I a.C.14

Desses, os principais são o tessellatum, que costumava ser instalado no pavimento dos edifícios, e o musivum, nas paredes e abóbadas (mais comuns nos edifícios ricos, como palácios e termas); como se poderia imaginar, os que temos hoje são majoritariamente tessellata, porque não ruíram com os anos e se mantiveram em melhor estado. Um detalhe ainda importante sobre mosaicos é sua distribuição social. Körbel (“Mosaico” in Gedea Arte, 1999, p. 678) afirma que, até o séc. I a.C., o mosaico era um gênero de luxo cujo emprego era limitado a lugares específicos, mas comenta que a partir de então a técnica começa a se difundir mais, como podemos depreender pela gama de exemplos em Pompeia e Herculano. De qualquer modo, uma arte de e para ricos:

a arte musiva não se encontrava à disposição de todas as camadas da população. Pelo contrário, os mosaicos constituem uma técnica de decoração refinada ao alcance principalmente da aristocracia e, quando muito, de alguns setores médios urbanos, como os comerciantes. [...] os mosaicos romanos que conhecemos provêm, em sua maioria, das residências de elite [...] não sendo por acaso que os mosaicos maiores e mais suntuosos eram instalados nas salas de recepção (oeci) e de jantar (triclinia) (Silva, 2013, p. 167).

Fig. 14.

temática da caça e da pesca implicada pelas imagens fazia parte da epigramática helenística.

60 | COLEÇÃO CLÁSSICA

Fig. 14 e 15: “Batalha de Isso”, Pompeia, na Casa do Fauno (c. 100 a.C.).

Talvez cópia da pintura homônima atribuída a Helena, filha de Timão. O mesmo mosaico visto in situ. Foram usadas cerca de 1,5 milhão de tésseras para compô-lo no formato uermiculatum.

Mais uma citação longa ajudará a explicitar seu caráter social para essas elites:

Os mosaicos mais luxuosos, ou seja, os policromáticos e figurativos, alguns dos quais de amplas proporções [cf. fig. 14 e 15], eram destinados aos oeci e triclinia [cf. fig. 16 e 17], constituindo parte integrante de celebrações nas quais anfitriões e convidados discutiam os mais variados assuntos e assistiam a performances literárias e artísticas, como recomendavam as regras do symposium. Isso implica concluir que os mosaicos, embora circunscritos ao interior das residências urbanas e rurais, adquiriam, em certa medida, uma dimensão pública, pois eram consumidos por integrantes da elite local e das ordens superiores da sociedade romana. [...] Em recintos tão valorizados [...] a arte musiva desempenhava um papel central em termos decorativos, dado que não deve ser desprezado quando se trata de avaliar seu impacto social (Silva, 2013, pp. 167-168).

Das palavras de Silva, podemos depreender uma presença constante dos mosaicos nas partes mais públicas do espaço privado romano, sobretudo aqueles dotados de maior extravagância e ποικιλία (aqui o

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 61

termo sai de seu uso retórico e retorna ao sentido inicial de “colorido”, “bordado” e “variegado”, bem como uariatio em latim).15 E mais, como observa Dunbabin (1999, p. 304), a imensa maioria dos mosaicos antigos foram feitos em casas, e não nos espaços exclusivamente públicos. “Na maior parte das casas, em todos os períodos, as decorações principais se concentram nas áreas utilizadas na recepção de visitantes e no entretenimento de convidados, embora as formas arquitetônicas dos edifícios variem” (p. 305). Sua existência ao mesmo tempo pública e privada deriva exatamente de sua posição dentro do lar, nos espaços em que os convidados para um banquete se demorariam, entrelaçando as experiências de amizade, comida e vinho às discussões sobre poesia e outras artes, ou vivendo performances poéticas e musicais. Katherine Dunbabin comenta alguns mosaicos de Pompeia em contexto:

[...] há por vezes sinais de que um mosaico figurativo era escolhido para adequar-se ao local: assim, uma cena erótica de sátiro e mênade, na Casa do Fauno, vem de um quarto, um painel com peixe e vida marinha na mesma casa vem de um triclinium (sala de jantar), ao passo que uma mesa de triclinium , na Casa I 5,2, tinha um emblema em sua superfície com um esqueleto e outros símbolos alegóricos da fragilidade da vida, tema muito favorecido como assunto nas conversas dos banquetes, no fim da República e no início do Império (1999, p. 39).

Assim, os mosaicos de um triclinium, por anunciarem temas de banquete, tratam dos mesmo temas que a poesia lírica simpótica. É o que se comprova com os mosaicos de Herculano, como na Casa de Netuno e Anfitrite (fig. 16 e 17), em que temos um triclinium pergolado com uma fonte ao ar livre e uma gruta (um nymphaeum), provavelmente reservado para o verão. O mosaico principal, que retrata Netuno e Anfitrite, evoca o tema amoroso a partir de uma narrativa mítica. A similaridade ainda pode estar em certos gostos artísticos, como o da alusão erudita, a recorrência

15 Cf. Roberts, 1989, pp. 46-48, no qual lemos as relações entre os conceitos retóricos de uariatio, flos e ornatus. Um trecho de Cícero (De finibus 2.3.10) explicita melhor o ponto: “Varietas enim Latinum uerbum est, idque proprie quidem in disparibus coloribus dicitur, sed transfertur in multa disparia: uarium poema, uaria oratio, uarii mores, uaria forma” (“A variedade é uma palavra latina usada originalmente para cores diversas; porém transferida para muitas diversidades: poema variado, oração variada, costumes variados, fortuna variada”). Cp. Cícero, Orator 19.65.

62 | COLEÇÃO CLÁSSICA

temática, a conexão entre espaço e poética, o gosto pela variedade, a junção de imagens diversas separadas (no caso, o mosaico central e os mosaicos do nymphaeum) para formar um todo harmônico maior e mais complexo, etc.

Uma estrutura cheia de mosaicos parietais num ambiente de recepção social.

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 63
Fig. 16. Fig. 16 e 17: Casa de Netuno e Anfitrite, em Herculano (séc. I d.C.).

Desses dois detalhes – ποικιλία e banquete – já poderíamos extrair uma analogia fundamental com a poética das Odes horacianas. Mas o intuito deste trabalho, apesar da sugestão possível por seu título, não é a de realizar uma comparação entre artes visuais e poéticas sob o principado de Augusto (um trabalho já muito bem feito no Brasil por Paulo Martins, 2011). Quando afirmo que haja uma poética de mosaicos, não pretendo dizer que Horácio planejou as Odes segundo a técnica dos mosaicos; mas é possível imaginar um entrecruzamento crítico nos seus processos e resultados. Também uma das marcas mais sobressalentes da poesia horaciana estará na ποικιλία (Cf. Davis, 1991) segundo a variedade básica da poesia lírica simpótica e helenístico-romana. Como veremos, a poesia subjetiva simpótica de Horácio logo se transforma numa poesia pública, num processo que opera interferências desses dois espaços por meio do espaço semipúblico do banquete entre amigos. Sugiro, portanto, que o mosaico fazia parte do imaginário poético e compositivo no fim da república, como um procedimento técnico conhecido por todos, que deve ter gerado algum tipo de relação com a poética de seu tempo, capaz até mesmo de funcionar como um paratexto. Dizer, portanto, que há uma poética de mosaicos não implica relação perfeita ou simétrica, mas apenas uma série – vasta, eu diria – de entrecruzamentos, que tentarei demonstrar tanto pela parte técnica do procedimento como pelos efeitos, na leitura das Odes.

Um elemento diferencial mais importante entre as duas leituras está num ponto que não pode ser deixado de lado neste processo de contraste entre poética visual de linguística. Na poesia horaciana, a análise mais próxima (e.g. a disposição das palavras num poema) oferece mais clareza ao leitor, mesmo nas suas ambiguidades, enquanto cada passo de ampliação na leitura (e.g. a disposição do poema como um todo, ou a disposição dos poemas num livro) gera mais e mais aberturas que tendem a deixar a interpretação mais aberta e variável, ou seja, quanto mais tentamos ver a imagem total, mais vaga essa imagem se apresenta e mais ela cobra do leitor uma intervenção. No mosaico, mesmo nos seus casos mais complexos, a convergência de pedras diferenciadas, tanto em forma como em cor, leva o espectador a formar uma única imagem geral, mesmo que ampla e complexa (fig. 14 e 15 – já que o gosto, por assim dizer, “barroco” por imagens duplas não era apreciado pelos romanos), ainda

64 | COLEÇÃO CLÁSSICA

que formada por diversas figuras, ou seja, no mosaico a imagem maior tende a ser mais concreta, e, num movimento contrário ao da poesia, os detalhes crescem no abstrato até chegarmos no mínimo das tésseras ou seixos – como nos pixels dos monitores atuais –, quanto mais próximos da imagem, mais ela produz ambiguidades, e é à distância que podemos formular uma leitura geral. É o que acontece quando reparamos num detalhe da “Batalha de Isso” (fig. 18), provavelmente o mosaico mais comentado da Antiguidade16:

Fig. 18: “Batalha de Isso”. Detalhe.

16 Em verdade, como aponta Jocelyn Small, não há consenso sobre qual batalha seria apresentada neste mosaico (2008, p. 242). Além disso, a autora ainda apresenta nas páginas seguintes um excelente comentário sobre o estatuto de cópia desse mosaico. Há discussões sobre a sua origem, que talvez esteja ligada à pintura mencionada por Plínio (NH 36.110).

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 65

O detalhe acima já é, por si só, uma cena complexa. Dario, em fuga, apresenta uma expressão que trai o movimento ambíguo entre o desconsolo da derrota e o desejo de retornar à batalha, expressão reforçada pelo gesto de seu braço direito, que aponta para Alexandre (fora do detalhe), de modo a resumir o caráter persa do mosaico, i.e., a representação da dignidade dos derrotados, o que serve para valorizar ainda mais os vencedores. Além disso, há um cavaleiro com uma expressão mais assustada que a de seu senhor, uma série de lanças erguidas, como que realizando uma fuga que guarda proteção sobre o rei. No entanto, o que mais chama atenção é a imagem na parte inferior do detalhe: um guerreiro está caído na parte em que há uma falha no mosaico, talvez sendo pisoteado pelos cavalos em fuga, porém temos sua imagem num espelho (talvez um escudo bem polido?) que se volta para o espectador e lança em reflexo a imagem desse guerreiro anônimo. Onians (1979, p. 45) aponta para o fato de que o tamanho da imagem do rosto colabora com o realismo da representação, pois que tem metade do tamanho do rosto; ao passo que Zanker (2004, p. 60) insiste que o ângulo da reflexão parece equivocado ou mal feito. Seja como for, essa distorção do ângulo ajuda a reforçar a visão sobre esse rosto refletido, porque lhe dá destaque, e sua expressão é capaz de causar ainda mais espanto, já que é mais serena que a de Dario e a do cavaleiro que passa sobre ele: seria uma distorção especular, ou uma serenidade diante da derrota e de uma morte violenta? Há apenas uma tristeza, sem o movimento boquiaberto de seus conterrâneos, o que pode provocar compaixão (Zanker, 2004, p. 56) pelos derrotados, dentro de um quadro maior que louva a vitória de Alexandre. No entanto, esta imagem é uma parte pequena do todo; sua interpretação deve se relacionar, portanto, de modo complexo com esse todo. Mas o observador bem poderia se aproximar ainda mais e ver até mesmo esse rosto desaparecer ou diluir-se num complexo amontoado de pedrinhas coloridas. Outra hipótese complexa é a divisão de um mosaico em diversas cenas (fig. 5), já que nesses casos cada imagem guarda uma unidade em si, mas interfere na visão do todo formado pelas imagens; com isso, as leituras do todo teriam de ser formadas pelos contrastes entre cada uma das partes e suas possíveis relações. Esse processo, por sua vez, guarda similaridades com: os entalhes em pedra, tal como o Grande Altar de Zeus, em Pérgamo, onde vemos uma série de imagens que contam

66 | COLEÇÃO CLÁSSICA

toda a história de Télefo, desde seu nascimento até a morte, numa série narrativa por meio de uma sequência cronológica de quadros (cf. Fowler, 1989, pp. 122-127; e Zanker, 2004, passim); ou com as pinturas, como no caso dos frisos de Odisseu, no Esquilino, datados do séc. I a.C. Nesses casos, cada imagem ajuda a construir um todo maior que se processa por intervenção do observador, que pode criar encadeamento lógico entre elas (cf. Marques & Cavicchioli, 2009).

Uma comparação sobre as tópicas, temas e estilos recorrentes em artes visuais e na poesia já foi feita por vários comentadores17 e não cabe neste estudo; no entanto, pretendo me deter sobre algumas similaridades de efeitos decorrentes da disposição em mosaico nas Odes. Na leitura subsequente, apresento uma tendência para a formação de leituras (no lugar de imagens) cada vez mais variadas, já que o que formaria suas pedras (a sintaxe do léxico, do poema, do livro) convida cada leitor a preencher uma lacuna de sentido que não é dada pelo deciframento semântico. Na verdade, até certo ponto, a imagem também permanece aberta ao espectador, como se pode depreender do famoso exemplo de Wittgenstein, da cabeça de Lebre ou Pato (1990, Investigações filosóficas, II, 11, pp. 519-520), que o filósofo tomou de Jastrow, e é o que sugere King (2002, p. 100) sobre mosaicos. No caso do mosaico antigo em sua relação com a poesia, o que entra no estudo é, sobretudo a ἁρμογή, termo utilizado por Dionísio de Halicarnasso (De comp. 8.22-23) para designar a junção de letras, palavras e orações na poesia e na oratória; que apresenta o sentido médico de “junção de dois ossos imóveis” em (Galeno 19.460); mas que também designa na música o mesmo que ἁρμονία (“afinação de um instrumento de cordas”) em Ptolomeu (Harmonica 2.6) e ainda aparece em Plínio (História Natural 35.29) para designar os encontros entre luz e sombra nas artes plásticas que promovem gradação ou transição (Cf. Fowler, 1989, p. 168 e ss.). Tudo indica que a palavra derivaria de ἁρμόζω, que o dicionário Liddell-Scott indica como sinônimo de “adaptar” (adapt), “acomodar” (accomodate), “juntar” (bind fast), ou até

17 Barbara Hughes Fowler (1989) e Graham Zanker (2004) apresentam leituras sobre aspectos da arte e da poesia helenística que acabam por influenciar as obras romanas do período de Augusto. Dois trabalhos instigantes sobre arte e poesia romana do principado e do império são os de Paul Zanker (1990) e Paulo Martins (2011).

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 67

mesmo “ser conveniente” (suit, apply). Mas ainda poderíamos pensar que haverá certa similaridade, sim, nos casos mais complexos; porque, se por um lado a imagem será una (ou uma coleção de imagens que formam um todo maior), sua interpretação não será simples: no caso do “Mosaico do Nilo” (fig. 5), a interpretação sobre a função e inter-relação das cenas se torna mais complexa18 do que no caso de imagens menores (fig. 10). Essa complexidade que convida a intervenção ativa do observador como formador de sentido está bem próxima da arte helenística, se concordarmos com a observação de Barbara Fowler (1989, p. 7): “O grande feito da escultura e da pintura helenísticas foi elevar a sugestão, tornar óbvia uma presença da mente, um toma lá dá cá da conversa”. Modo similar aparece também em Zanker (2004, cap. 2, 3 e 4), em que se argumenta que, na poesia e nas artes visuais helenísticas, acontecia uma expectativa de suplementação do leitor ou espectador, que deveria preencher a cena com seus conhecimentos de mito, poesia e história, para então dar sentido. Outro recurso apresentado por Zanker é o da integração do leitor ou espectador, que passaria a partilhar do acontecimento da obra, tal como nos hinos de Calímaco, em que o leitor toma parte dos ritos descritos, quase em tempo real. Essa afirmação decerto se aplica a todas as artes helenísticas, no entanto é passível de radicalização pela técnica inerente ao mosaico, com sua colagem de peças, em vez da passagem contínua do pincel na pintura, ou da superfície da escultura.

E mais, assim como no caso das Odes, certamente haverá uma diferença de efeito se a observação do mosaico for feita de perto ou de longe, em pelo menos três níveis, como já demonstrei: a imagem como um todo, as imagens menores que constituem o todo e as peças que constituem cada imagem. A minúcia do entrelaçamento das peças será diferente do seu resultado global, já que pressupõe dois olhares diversos. Nisso, meu intuito é bastante diverso do de Michael Robert (1989) quando comenta as relações entre os mosaicos e a poesia da Antiguidade Tardia: Roberts demonstra uma estilística em comum entre as artes (ut pictura

18 Fowler (1989, p. 118) compara esses mosaicos nilóticos aos Phaenomena de Arato; porém argumenta: “The mosaic technique in itself lends to the whole a glitter that helps to create a sense of ‘magic realism’ which goes beyond what Aratus has achieved”. Já Graham Zanker (2004, p. 51) pensa ver nesses mosaicos uma influência de Apolônio de Rodes.

68 | COLEÇÃO CLÁSSICA

poesis, similaridades estilísticas de uma mesma época para artes diversas, que incluem ainda a pintura, a escultura e os sarcófagos); da minha parte, aproximo a especificidade da técnica do mosaico em geral (e ainda mais os gostos de época do período helenístico e augustano) ao funcionamento das Odes horacianas. Por isso, penso que as Odes funcionam com um modelo similar ao da complexidade de um opus musivum, por ser uma espécie de uermiculatum poético que ocupa toda a área do mosaico; tal como nos casos da “Batalha de Isso” (fig. 14 e 15) ou do “Mosaico do Nilo” (fig. 5), esse opus musivum, sendo ademais policromático, convida ao exame das minúcias, ou tésseras, para depois contrastá-las ao todo, ao mesmo tempo que podemos a todo instante fazer suplementos de sentido por meio de relações com a poesia e a cultura antiga greco-romana; e é basicamente isso que pretendo fazer agora acerca das odes horacianas. Contra meu esforço de contexto histórico, poderíamos lembrar que Dunbabin (1999, p. 67) atesta um declínio geral no uso do mosaico pavimental policromático sob o principado de Augusto até o séc. III d.C., por causa do neoclassicismo; porém esse dado é pouco relevante aqui, porque o contraste da poesia horaciana com um mosaico preto e branco já seria suficiente para sustentar a ideia de uma multiplicação de feixes heterogêneos; além disso, a própria Dunbabin demonstra em outros pontos como o retorno do interesse pelo preto e branco também levou a outros movimentos bastante complexos, como o da multiplicação do ponto de vista (p. 57), que era impedida pelo jogo de luzes inerente ao mosaico multicolorido. E mais, a autora ainda sugere que parte do interesse policromático saiu apenas dos pavimentos para as paredes (p. 244). O melhor, portanto, é assumir que um romano da segunda metade do séc. I a.C. convivia com uma imensa variedade de mosaicos de estilos e épocas bem diversos, a ponto de talvez não ser exagero uma afirmação como a de Pappalardo & Ciardiello (2012, p. 36), de que “no tempo de Augusto, a arte do mosaico já estava tão difundida pelo império romano que não havia casa que não tivesse alguns exemplares”; casas de uma nobreza romana, por certo. Assim retornamos a Nietzsche. Se o filósofo alemão pensava ou não num contraste entre técnicas importantes de uma mesma época, seu texto não nos dá nenhum sinal para uma resposta afirmativa ou negativa. Além desse aspecto, poderíamos tomar La Penna para completar a ideia de mosaico com a de condensação: a típica ieiunitas das Odes, em que

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 69

vemos poucos adjetivos e uma “redução dos meios expressivos ao mínimo” (1989, p. cxxxiii), um efeito que é muitas vezes ainda mais acentuado por séries de cavalgamentos (p. cxxxiv); assim, ut pictura poesis, sua poesia de mosaico muito se aproximaria também do trabalho da escultura, embora aqui não seja este meu propósito. Nessa poesia de minúcia, como atentou Nietzsche, o que constatamos é que, para além da semântica estrita, a poética horaciana prima por adicionar novas camadas de sentido aos poemas e à obra como um todo a partir de um recurso poético sutil. Desse ponto de vista, a argumentação de Nietzsche já foi bastante retomada no estudo estrutural das Odes, sobretudo no nível da palavra e da oração. Collinge, por exemplo, tentou pensar em termos de mosaico, mas não se sentia convencido, como ele mesmo afirma: “Claro que num mosaico cada peça tem seu lugar e sua função, e a função de algumas é ser neutra” (1961, p. 2). No entanto, podemos discordar em dois pontos. Em primeiro lugar, mesmo no mosaico, o neutro é funcionalíssimo, ele forma o fundo e dá sentido ao que se pode destacar: é a teoria da Gestalt; é, por exemplo, a importância das polaridades negativa e positiva nos sistemas elétricos; se pensássemos no séc. XX, ainda poderia acrescentar o branco de Blanchot, o silêncio de Cage, etc. Em segundo lugar, trata-se de um livro de poemas: não existe poema neutro, tal como “no trabalho estético não existem variantes facultativas: toda diferença assume valor ‘formal’” (Eco, 2014, p. 226). Muito menos haverá em Horácio um poema ou trecho neutro, senão por/para criar contraste; nesse sentido, a analogia com o mosaico persiste, porque na ode horaciana tudo é significativo e ativo, ou ao menos depende do olhar do leitor/crítico que passa a dar sentido às complexidades com que se depara. Numa poética de mosaicos, a visão do todo não exclui a minúcia, e é também nas descontinuidades que se funda o sentido do texto. Duas citações de Dunbabin (1999) sobre mosaicos em geral vão deixar o processo mais claro:

Um mosaico é uma superfície composta por peças descontínuas, e seu caráter reflete antes e acima de tudo a natureza dos materiais de que é composto. A forma, tamanho, coloração e textura das peças ditam o uso que lhes pode ser dado e o efeito que pode ser criado (p. 279).

A técnica de justapor pequenas peças de material que sempre permanece distinto, por mais refinada que seja a construção, também partilha seu próprio caráter (p. 327).

70 | COLEÇÃO CLÁSSICA

Essa descontinuidade explícita do mosaico (que nisso diverge da pintura, pelo menos até o impressionismo) é um traço constitutivo do nosso modo de encará-lo, ele produz efeitos peculiares que não podem ser ignorados. “Cada peça, ou téssera, retém sua identidade individual, no entanto o olho assimila as peças no todo da imagem” (King, 2002, p. 9). Por isso, a sugestão, ou insight, de Nietzsche merece uma leitura atenta, que pretendo levar para uma reflexão sobre as Odes em três níveis de ordenação: (a) a disposição da frase, ou seja, a posição significativa dos vocábulos; (b) a disposição do poema, ou seu modo específico de construção; e (c) a disposição da obra, porque a posição de cada ode no(s) livro(s) também interfere no sentido geral. Com isso, o objetivo é aventar efeitos desse mosaico verbal nos diversos níveis de suas descontinuidades. Para tanto, faço a partir de agora uma análise separada de como funcionaria cada um desses três níveis, a partir de três expressões horacianas presentes na Arte poética (callida iunctura, series e lucidus ordo) e do conceito retórico de dispositio, então aplicado ao livro de poesia.

2.2. Callida iunctura e series , a ordem da frase (a)

Quando se pensa na posição das palavras numa oração latina, por mais que estudemos que o significado pouco muda pela ordem de apresentação, é impossível dizer que o sentido geral permanece idêntico. Trata-se de uma questão linguística, e não apenas poética.

A ordem das palavras não é um assunto que um leitor de latim possa se dar o luxo de ignorar: antes de mais nada, a ordem das palavras é o que nos leva de orações soltas a um texto coerente. Ler um parágrafo de latim sem atenção para a ordem das palavras implica perder o acesso a toda uma dimensão de sentido, ou, na melhor das hipóteses, usar de procedimentos inferenciais para imaginar o que de fato está abertamente codificado na sintaxe (Devine & Stephens, 2006, p. iii).

Nesse sentido, não é exagero dizer que ler latim sem atentar para a ordem das palavras é como tirar uma foto em preto e branco (Devine & Stephens, 2006, p. 5): a imagem está lá, mas com um grau muito menor de complexidade, se comparada com o objeto real. O que dizer, então, se não atentarmos para a ordem das palavras na literatura, na poesia, ou mais especificamente nas Odes? Os dois linguistas estão mais preocupados

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 71

em encontrar um grau zero dos posicionamentos lexicais em latim para melhor entender os efeitos derivados dos desvios da norma, um estudo que, embora válido, tende a ser muito infrutífero. Mas poderíamos inverter o problema e pensar se na poesia, a linguagem de desvios por excelência, até mesmo a ordem “normal” não implicaria algum sentido. De modo similar, podemos refletir sobre os efeitos de um hipérbato alongadíssimo. Sêneca, na epístola 114.11, comenta o recurso estilístico:

Sunt qui sensus praecidant et hoc gratiam sperent, si sententia pependerit et audienti suspicionem sui fecerit; sunt qui illos detineant et porrigant; sunt qui non usque ad uitium accedant (necesse est enim hoc facere aliquid grande temptanti) sed qui ipsum uitium ament.

Há aqueles que cortam os sentidos e o fazem com esperança de agradar, caso a sentença se suspenda e crie para o ouvinte uma suspeita; há aqueles que detêm [os sentidos] e os alongam desmedidamente; há ainda aqueles que, sem chegar a cair no vício (pois é inevitável a quem tenta fazer algo grandioso), mesmo assim amam tal vício.

Sêneca está fazendo uma crítica do estilo afetado/vicioso e assim descreve alguns exemplos. O caso mais central aqui é o de adiamento do sentido, com seus eventuais cortes e suspensões, para criar uma determinada suspeita ou desconfiança no ouvinte que ainda não sabe como a frase se encerra – uma crítica similar à desenvolvida por Aristóteles, Retórica (3.9, 1409a) a respeito da λέξις εἰρομένη (palavra ordenada). Desse ponto, Sêneca desenvolve duas variantes: os que exageram no alongamento (porrigant, um verbo que já expressa por si só a demasia); e aqueles que, apesar de realizarem tal empreitada inevitável a quem tenta um feito grandioso (algo que evoca tenues grandia de Odes 1.6.9), não chegam a cair no vício. Isso fica ainda mais claro no trecho seguinte (114.12):

Da mihi quemcumque uis magni nominis uirum: dicam quid illi aetas sua ignouerit, quid in illo sciens dissimulauerit. Multos tibi dabo quibus uitia non nocuerint, quosdam quibus profuerint. Dabo, inquam, maximae famae et inter admiranda propositos, quos si quis corrigit, delet; sic enim uitia virtutibus inmixta sunt ut illas secum tractura sint. Cita-me um homem qualquer, de grande renome, e eu te direi o que sua época lhe perdoou, o que ela dissimulou declaradamente a respeito dele. Citarei muitos cujos vícios não os prejudicaram, e alguns para os quais foram proveitosos. Digo mais, citarei outros, admiráveis e de imensa fama, que se alguém corrigir, há de arruinar; pois de tal

72 | COLEÇÃO CLÁSSICA

modo estão entrelaçados as virtudes e os vícios, que estes as levarão embora consigo.

Em resumo, Sêneca aponta o vício, mas esse mesmo vício pode ser parte da virtude da obra; nos casos mais extremos, como ele mesmo afirma, não convém sequer tentar corrigir os defeitos, porque isso arruinaria o todo, já que levaria consigo também todas as virtudes do texto; o resultado é que não podemos determinar um estilo absoluto a ser seguido, oratio certam regulam non habet (“a oração não tem régua certa”, 114.13); e assim, mais adiante (114.17-18), Sêneca deixa ainda mais clara sua crítica, quando demonstra que determinado efeito do estilo de Salústio, ao ser sistematicamente imitado por Arrúncio, torna-se uma espécie de cacoete. Quintiliano (Instituição oratória 9.3.27), também vê a mesma potencialidade, depois de citar diversas figuras de linguagem:

Haec schemata aut his similia, quae erunt per mutationem, adiectionem, ordinem, et conuertunt in se auditorem nec languere patiuntur subinde aliqua notabili figuram excitatum, et habent quandam ex illa uitii similitudine gratiam, ut in cibis interim acor ipse iucundus est. Esses tropos, ou outros similares a eles, que acontecem por meio de mudança, acréscimo, subtração e ordem, chamam para si o ouvinte sem deixá-lo cansado, pois este logo se excita com alguma figura notável, e detêm parte de sua graça por semelhança ao vício, tal como nos alimentos por vezes um sabor azedo é agradável.

O desvio pode ser, portanto, produtivo, e isso se dá precisamente pelo efeito, como nota também Quintiliano ao inserir a figura do ouvinte; nesses casos, o defeito pode ser o ponto forte da obra. Tentemos, portanto, analisar o que temos no próprio Horácio, para determinar um modo possível de leitura desses processos de mosaico a partir de uma ideia de adiamento sintático, sobretudo nos seus efeitos, como atentava Sêneca, mas deixando de lado qualquer avaliação sobre vícios e virtudes. Em sua Arte poética 46-8, o poeta fez uma formulação hoje incontornável para quem tenta ler sua poesia. É por ela que começo:

In uerbis etiam tenuis cautusque serendis dixeris egregie, notum si callida uerbum reddiderit iunctura nouum . Nas palavras, seja cauto e sutil no entrelace, pois notável será,se ao termo mais conhecido

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 73

uma junção sagaz converrte em novo (tradução e grifos meus).19

Os grifos indicam os dois maiores problemas interpretativos da passagem: afinal, o que podemos entender por uerbis serendis e callida iunctura? Traduzi a primeira construção por “entrelace das palavras”: serendis, derivado do verbo sero, “enlaçar, entrelaçar, travar, ajunctar”, segundo o dicionário Saraiva; mas também de sero “plantar, semear”; respectivamente como entwine, join in a series e como to plant, to sow, to procreate, to sow seeds segundo o Oxford Latin Dictionary; na prática da leitura e da convivência de ambiguidades num texto, sero também pode ser entendido com o significado de “plantar”, ou mais especificamente de “enxertar” (proposta de Rostagni e Dacier), pode realizar também um efeito produtivo – por meio do enxerto de palavras comuns, surgiria a palavra nova. Fedeli entende o sentido de “entrelace”, afirma que o sentido de uerbum serere teria de ser o de associar palavras, e não o de criar palavras, nisso tendo a seguir sua opinião (Fedeli & Carena, 1997, v. 4, ad loc.), embora continue acreditando que a ambiguidade só vai se resolver plenamente no contraste com a outra passagem mais adiante, em que o termo series aponta para a etimologia de sero. A segunda expressão verti como “astuta junção”: de callidus, “versado, exercitado, practico, adestrado, experimentado, hábil”; mas também “manhoso, astuto”, adjetivos que serviriam tanto a Ulisses como ao escravo malandro, seruus callidus, da comédia plautina. Mas de que modo devemos entender que o poeta deve ser tênue e cauto no entrelace das palavras, e como essa astuta junção transforma um termo conhecido em novidade?

19 “Escasso e parco em engendrar palavras,/Fallarás com primor, se remoçares/Com engenhosa liga usado termo” (trad. de Seabra); “No forjar de palavras peregrinas/Te mostrarás tambem discreto, e parco:/E dirás muito bem, se judicioso/Soldando duas vozes já sabidas/Subtilmente formares uma nova” (trad. de Lusitano). “No arranjo das palavras deverás também ser subtil e cauteloso e magnificamente dirás se, por engenhosa combinação, transformares em novidades as palavras mais correntes” (trad. de Rosado Fernandes). Vieira (2015): “Também sutil e parco em semear palavras/algo exímio dirás, se palavra corrente/um hábil arranjo fizer nova”. Mauri Furlan (1998, pp. 56-59) apresenta outras traduções em prosa e analisa os principais problemas gramaticais, bem como suas soluções. Eu mesmo apresentei outra tradução na minha publicação da Arte poética (2020), com intuitos que não são os argumentativos aqui apresentados, cuja única diferença é a tradução de iunctura por “costura”, em vez de “junção”.

74 | COLEÇÃO CLÁSSICA

Charles Brink (ad loc.) afirma que a expressão uerbis serendis seria inovação horaciana derivada de expressões já utilizadas anteriormente, como sermones/orationes/colloquia serere, mas estas teriam o sentido tradicional de “conversar com uma pessoa” (join speech with a person), ou “mudar de/inserir um assunto na conversa” (interchange a subject in speech), como podemos ler em Virgílio, Eneida 6.160 (multa inter sese uario sermone serebant). Em Varrão (De lingua Latina 6.64) ainda vemos que o termo sermo seria etimologicamente derivado de series (sermo... a serie); mas só veremos a expressão uerba serere em Sêneca, Medeia 26 (querelas uerbaque in cassum sero), que é muito posterior a Horácio. Assim, Brink termina por seguir os comentários de Pseudo-Acrão e a ideia de que sero, nesta passagem, talvez tenha o sentido derivado de “plantar”, ou “posicionar” (talvez o nosso verbo “inserir”)20; porém termina retornando à leitura mais comum de que “unir” (join) possa fazer mais sentido, para indicar a ideia de composição. Daí Brink chega à conclusão de que series e iunctura tenham um sentido quase idêntico, que representariam vagamente conceitos aristotélicos21 e de outros teóricos gregos, como Dionísio de Halicarnasso: ὀνομάτων σύνθεσις (“composição de palavras”, Aristóteles, Poética 22, 1458a.25; em latim, uerba continuata ou coniuncta) e ὀνομάτων ἐκλογή (“a escolha das palavras”, Dionísio de Halicarnasso, Isócrates, 3; em latim, delectus uerborum).22 Tal conclusão é, no mínimo, simplista, já que elimina as peculiaridades de duas palavras diversas como iunctura e series; ainda mais simplista seria a de K-H, ad loc., quando propõem que toda a passagem trate apenas da construção de neologismos. Porém, para chegar ao ponto que interessa, antes temos de analisar o outro problema interpretativo. Para tanto, farei uma digressão

20 Brink se confunde um pouco, pois Pseudo-Acrão não se detém tanto no ponto por ele marcado: Si noto uerbo conpositio artifex instruatur [...] Callida iuncutra uerborum elegans et noua elocutio uel cohaerens sermo (ad loc.). Porfirião vai num caminho parecido: Nam licet aliqua uulgaria sint, ait tamen illa cum aliqua conpositione splendescere (ad loc.).

21 A quem se interessa pela relação entre a formulação horaciana e o pensamento aristotélico, é bom contrastar as passagens da Arte poética com os caps. 21-2 da Poética e com a Retórica 3.1-12.

22 Em Cícero, Do Orador 3.150 e ss., e no Orador 79-80, vemos uma gama de termos ligados a usitata, inusitata, nouata e translata, para a escolha de palavras na oratória.

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 75

sobre as poucas aparições de iunctura na literatura latina, para tentarmos determinar qual era o seu uso.

O termo aparece em Lucrécio uma única vez, numa passagem de Da natureza das coisas, 6.1078-86:

Denique non auro res aurum copulat una

Aerique aes plumbo fit uti iungatur ab albo?

Cetera iam quam multa licet reperire! Quid ergo? Nec tibi tam longis opus est ambagibus usquam, nec me tam multam hic operam comsumere par est, sed breuiter paucis praestat comprendere multa. quorum ita texturae ceciderunt mutua contra, ut cava conveniant plenis haec illius illa huiusque inter se, iunctura haec optima constat. Então, não une uma só coisa o ouro ao ouro, E o bronze com o estanho não se junta ao bronze?

Há muitos outros casos mais. Mas para quê?

Tu não precisas labutar por tantas voltas, e eu em tanto labor não devo me deter, mas encerrar o máximo num parco espaço.

Corpos cujas texturas mútuas se debatem, pra que o vazio englobe o pleno, este daquele e aquele deste, assim faz-se a junção perfeita (grifos meus).

Neste passo, Lucrécio está tratando de atração e união dos corpos, como fundir ouro com ouro e bronze com bronze, fazendo uso de uma segunda matéria que possa realizar a solda dos metais, como o estanho, no caso do bronze, ou, no caso do ouro, provavelmente o bórax, de modo que o termo parece ser a simples “junção”, sem aplicação técnica específica para a poética. Assim ele faz a figura etimológica de iungatur (v. 1079) e iunctura (v. 1086), relacionando verbo e resultado, do mesmo modo que amplia o conceito: iungatur é usado para descrever um caso específico de junção de ouro com ouro, enquanto a iunctura, em sua maior abstração, descreve o que acontece nos casos gerais, quando qualquer corpo se une pelo encontro de espaços vazios com sobressalências.

Em Júlio César, também temos um aparecimento do termo, na construção de uma ponte, em De bello Gallico 4.17.3 e 4.17.6:

76 | COLEÇÃO CLÁSSICA

rationem pontis hanc instituit: tigna bina sesquipedalia paulum ab imo praeacuta dimensa ad altitudinem fluminis intervallo pedum duorum inter se iungebat. [...] haec utraque insuper bipedalibus trabibus immissis, quantum eorum tignorum iunctura distabat, binis utrimque fibulis ab extrema parte distinebantur.

Determinou a seguinte medida da ponte: vigas duplas e sesquipedais com a parte de baixo afiada e medida na fundura do rio se juntavam num intervalo de dois pés. [...] ambas vinham sobre traves bipedais predispostas, e tanto quanto distasse a junção de suas vigas, em cada lado com fivelas duplas eram presas pela ponta(grifos meus).

Novamente, o termo não assume acepção específica para retórica ou poética, mas se restringe ao uso mais comum; podemos ver, também aqui, uma retomada do verbo iungebat com o seu resultado em iunctura, mas neste caso a união determina a ligação necessária para se fazer a construção. Columela, De re rustica (1.16.12-13) usa o termo em acepção similar, com contexto de construção de adegas e armazéns de grãos, e em 2.2.22 ele ensina como atrelar corretamente os bois ao jugo, fazendo um jogo etimológico entre iunctos, iuncturae e iugum. É com esse sentido preciso que a palavra aparece em três passagens de Vitrúvio, De Architectura: duas vezes em 2.8.4 e uma em 5.12.6. Cícero também usa o termo, na sua forma composta, coiunctura, apenas uma vez, numa carta a Pompeu (Ad fam. 5.7.2):

illud non dubito, quin, si te mea summa erga te studia parum mihi adiunxerint, res publica nos inter nos conciliatura coniuncturaque sit.

Não duvido que, se meus grandes esforços para contigo pouco te ajuntaram a mim, a república será entre nós a conciliação e conjunção.

O termo aqui se assimila a iunctura, porém é mais provável que seja utilizado neste trecho como um particípio futuro derivado do verbo coniungo, tal como conciliatura deriva do verbo concilio; Tito Lívio (27.39.2) também usa coniunctura com acepção muito similar. Mais curioso é perceber como também nessa passagem de Cícero há uma recorrência etimológica entre adiunxerit e coniunctura, o que ressalta o caráter menos técnico e concreto dos termos, que estão mais ligados à ideia abstrata de união em sociedade; aliás, essa é a acepção mais recorrente para o verbo coniungo, segundo o dicionário Saraiva e o Oxford Latin Dictionary. Por fim, num momento já bem posterior, vemos o

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 77

mesmo jogo também em Celso, acerca da anatomia das partes internas (De medicina 4.1.7; cf. também 8.1.25); e Plínio também usa iunctura para expressar as juntas do corpo (NH 12.214), ou para determinar a junção de pedras (36.98).

Na poesia, o termo também aparece antes em Virgílio, Eneida 2.463-4, para descrever as junções da construção civil: qua summa labantis iuncturas tabulata dabant onde os altos forros mostravam bambas suas junções (grifos meus).

E também em 12.273-4, na descrição das roupas de guerra: teritur qua sutilis aluo balteus et laterum iuncturas fibula mordet, roça o ventre um talim leve

E a fivela já morde as junções dos seus flancos (grifo meu).

Nos dois casos, temos acepções bastante similares às de César, com a ideia de ligação e amarra de dois objetos. Há também cinco exemplos em Ovídio, pelos quais podemos passar brevemente; um em Amores 3.14.9,

ignoto meretrix corpus iunctura Quiriti

Meretriz juntará o corpo ao Quirite ignoto (grifos meus).

Mas neste caso estamos diante de um particípio futuro feminino de iungo, como em Cícero, para demonstrar a união sexual, então não se trata de seu uso substantivo. Há também um em Heroides (4.135-6)

Illa coit firma generis iunctura catena inposuit nodos cui Venus ipsa suos.

Tal junção forma a firme corrente da raça à qual Vênus impôs seus próprios laços (grifos meus).

Nesse trecho, o termo hesita entre a união sexual (já ovidiana) e a reunião social ou familiar (de Cícero), donde podemos concluir pela ideia de consanguinidade. Por fim, temos 3 aparições nas Metamorfoses:

78 | COLEÇÃO CLÁSSICA

digitosque ligat iunctura rubentis

e uma junção liga os dedos vermelhos (2.375)

sed genuum iunctura riget

mas a junção dos joelhos se enrijece (2.823)

terque quaterque gravi iuncturas verticis ictu rupit

com três ou quatro golpes as junções da cabeça estoura

(12.288-9) (grifos meus)

Porém, em todos os casos, designa a ligação de partes do corpo (dedos, joelhos, cabeça), o que aponta para seu uso medicinal, como já apontei que se verá muitos anos depois em Celso e Plínio. Vale a pena também citar as duas aparições de iunctura nos comentários Porfirião a Horácio. Em uma delas, ele comenta, em Sátiras 1.5.32-3, a expressão ad unguem factus homo (“homem feito até a unha”):

Translatio a marmorariis, qui iuncturas marmorum tum demum perfectas dicunt, si unguis superductus non offendat.

Metáfora dos marmoreiros, quando dizem que suas junções estão perfeitas apenas quando não mais agride à unha que passa por cima (grifos meus).

Aqui a acepção está claramente ligada à junção de diferentes partes da peça de mármore, usadas para fazer o todo da composição, mas que devem ser limadas até que se atinja um grau de perfeição sem aspereza que não seja mais notável ao toque a unha. Em outro comentário de Porfirião, dessa vez à Arte poética, 232-233, quando Horácio explica que o trímetro jâmbico tem seis pés, eis o que ele afirma:

Quoniam scilicet tanta breuitas est pedum, ut iuncturae binos complectantur pedes.

Pois por certo tamanha é a brevidade dos pés, que as junções são completadas por pés duplos (grifos meus).

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 79

Porfirião, portanto, tenta explicar por que Horácio fala da velocidade dos pés para explicar que o jambo seja um trímetro (três metros), mas formados de seis pés, já que o nome esperado seria “hexâmetro”. A explicação, para ele, é simples: o jambo (constituído de uma sílaba breve e outra longa) é muito breve, então é possível formar uma junção de pés duplos (dois jambos) num só metro. Não temos nenhuma acepção técnica, mas apenas o uso comum23 já apresentado de iunctura aplicado ao campo da métrica. É bem o que parece acontecer com Honorato (De iambis, Keil, 1864, v. 4, p. 258): ut multarum brevium iunctura vitetur, trata-se do resultado da transposição de um pé longo por dois breves, mas que deve ser evitado, por causa da “junção de muitas sílabas breves”. A conclusão a que se pode chegar é que nenhum dos escritores anteriores ou contemporâneos de Horácio supérstites usavam iunctura numa acepção técnica específica da retórica ou da poética, e que a maioria esmagadora dos escritores que se seguiram também não indicam qualquer uso específico; mas que o termo tinha um uso comum com o sentido de “junção”, “união”, “ligação” de materiais (ou do corpo), que se desdobrava metaforicamente para o campo social e erótico (cf. Adams, 1982, pp. 103-104, a respeito dos sentidos sexuais do verbo iungo). É dessas ideias mais comuns que trata Sêneca (Dialogi 7.13.5), ao mencionar a iunctura, junção, entre virtude (uirtus) e prazer (uoluptas); e em Epist. Mor. 92.10, ao caracterizar os resultados da vida guiada pelo prazer (uoluptas) como uma discors iunctura corporum, uma “discorde junção dos corpos”, por eliminar o vigor. Isso se dá porque ele entende que o homem é feito de diversas partes, e que a primazia do prazer arruína a coerência desse corpo humano. De modo similar, em Epist. Mor. 30.2, ele usa iunctura para descrever a junção de um edifício em seus materiais, como já vimos. Já Apuleio, Met. 4.15, só usa o termo uma vez para descrever uma costura, como na passagem da Eneida que já citei.

Restam apenas quatro autores em que podemos encontrar uma formulação mais próxima à de Horácio, e todos lhe são posteriores: Sêneca, Aulo Gélio, Quintiliano e Pérsio. Analisarei nessa ordem para tentar dar conta também das variedades de gênero em que cada um

23 Sempre que eu me referir a um “uso comum”, tenho em mente a acepção aristotélica dada na Poética 21 (1457b):

80 | COLEÇÃO CLÁSSICA
δὲ κύριον [ὄνομα] μὲμ χρῶνται ἕκαστοι.
λέγω

escreve. Com isso, deixo Pérsio por último, por se tratar de uma formulação escrita em versos, para primeiro vermos como ela acontece na retórica da prosa. Sêneca, numa epístola (102.6) comenta os modos de composição dos corpos:

quaedam continua corpora esse, ut hominem; quaedam esse composita, ut navem, domum, omnia denique quorum diversae partes iunctura in unum coactae sunt ; quaedam ex distantibus, quorum adhuc membra separata sunt, tamquam exercitus, populus, senatus.

[...] que alguns corpos são contínuos, como o homem; outros são compostos, tal como o barco, a casa, e todas as coisas cujas diversas partes são reunidas numa só pela junção; outros por coisas distantes, cujos membros estão separados, tal como o exército, o povo, o senado (grifos meus).

Embora não trate de retórica, a formulação do filósofo é bastante interessante para o nosso ponto. Para ele, há três tipos de corpos: os contínuos, os compostos e os distantes. No primeiro caso, ele cita como exemplo o corpo humano, dotado de uma inteireza única, que não pode ser desmontada sem destruir o todo. No segundo – o mais importante para nós – as coisas que são compostas de partes diversas, mas que precisam ser reunidas numa junção, que assim cria uma unidade artificial, tal como a casa e o barco, que são feitos de materiais diferentes, mas ao fim contam como apenas um corpo. Por fim, os corpos feitos de coisas distantes, que permanecem conceitualmente unos embora seus corpos estejam espalhados, ou seja, um povo não se constitui de uma série de pessoas lado a lado, mas de indivíduos distantes fisicamente que compõem um todo maior independente de suas posições geográficas num dado instante; do mesmo modo, o senado permanece o mesmo, ainda que um senador esteja afastado por um motivo qualquer. O importante, nesse caso, é que a junção realiza um trabalho de unificação a partir de partes diversas, ela cria unidade a partir de pontos diferentes. Certamente ainda não temos nada de retórica, mas Sêneca é o primeiro a nos dar um pensamento mais detalhado sobre os usos do termo. Noutro momento das Epístolas, ele trata com mais especificidade sobre a composição de discursos (114.15):

Ad compositionem transeamus. Quot genera tibi in hac dabo quibus peccetur? Quidam praefractam et asperam probant; disturbant de industria si quid placidius effluxit; nolunt sine salebra esse iuncturam ;

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 81

virilem putant et fortem quae aurem inaequalitate percutiat. Quorundam non est compositio, modulatio est.

Passemos à composição. Quantos tipos de erro te darei neste assunto?

Alguns aprovam a composição quebrada e áspera, perturbam-na deliberadamente, se algo flui de modo mais tranquilo; não querem uma junção sem dureza ; julgam ser viril e forte o que atinge os ouvidos com irregularidade. O que fazem não é composição, é modulação. (grifos meus)

Embora a passagem não seja de fácil interpretação quanto aos detalhes, podemos perceber que a iunctura, para Sêneca, implica aqui uma junção de partes do discurso;24 portanto ela é a solda da composição, sobretudo da oração, já que o tratamento do léxico não parece estar embutido na questão. E mais, ele nota que alguns oradores – não nomeados – preferem um tratamento mais áspero, não aceitam sine salebra iuncturam (“junção sem dureza”), e fazem da irregularidade (inaequalitate) uma marca. Infelizmente, Sêneca não nos dá exemplos sobre como operar uma iunctura mais ou menos áspera, usando tanto o termo como o conjunto da formulação, num registro, em geral, mais vago e menos técnico. Talvez isso explique o único aparecimento de iunctura com tal acepção no corpus da sua obra, porque também aqui ele estaria usando o termo no sentido mais comum, sem uma necessária acepção técnica e retórica, sobretudo se levarmos em consideração que se trata de uma epístola, e não de um tratado retórico.

É muito similar ao que acontece, por exemplo, em Aulo Gélio, no qual o termo iunctura aparece cinco vezes, sendo que, dessas, três tratam do discurso, sem rigor técnico: em 5.3.4.2, o termo tem claramente seu uso ligado à união de materiais; e, em 17.9.9-10, embora o termo trate de escrita, também iunctura faz referência ao material em que se escreve, e não ao discurso. Nos três trechos em que o termo se aplica mais diretamente à escrita ou à fala, ele trata de iunctura syllabarum (16.18.5.3), a “junção de sílabas”, para designar a elisão; iunctura uocum proximarum (13.21.5.5), a “junção de sons”, também sobre elisão; e num último caso, o mais interessante:

24 J. A. Segurado e Campos traduz iunctura nesta passagem por “transições” (Séneca, 1991, p. 633).

82 | COLEÇÃO CLÁSSICA

Caesellius autem forte ῥαθυμότερον iunctura ista uerborum captus “quem cor” dictum putauit et “quem” accentu acuto legit, quasi ad cor referretur, non ad Hannibalem. Cesélio, talvez mais descuidadamente tomado por essa junção de palavras, pensou que havia sido dito “quem cor ” e leu “quem” com acento agudo, como se se referisse a “cor ”, e não a Aníbal (grifos meus).

Nesse pequeno trecho, Aulo Gélio critica uma leitura equivocada de Cesélio, que, diante de um verso de Ênio, julgou que o poeta arcaico tratava o termo cor (coração) como masculino, em vez do uso mais reconhecido, em gênero neutro. Então Gélio explica que Cesélio fez tal leitura por causa da proximidade de duas palavras quem (masculino, singular, acusativo) e cor (neutro, singular, nominativo), entendendo que cor seria aqui, também masculino e acusativo. Para melhor entendermos a questão, é necessário ler os versos de Ênio, citados pelo próprio Aulo Gélio:

Hannibal audaci dum pectore de me hortatur ne bellum faciam, quem credidit esse meum cor suasorem summum et studiosum robore belli.

Enquanto Aníbal com seu peito audaz me exorta à paz, o qual meu coração sempre julgou o grande conselheiro no valor da guerra (grifos meus).

Dada a proximidade de quem e meum cor no texto latino, Cesélio havia excluído o terceiro verso e interpretado da seguinte maneira:

Hannibal audaci dum pectore de me hortatur ne bellum faciam, quem credidit esse meum cor?

Enquanto Aníbal com seu peito audaz me exorta à paz: que coração julgou que fosse o meu ?

Pelo menos duas coisas podemos depreender desse equívoco mencionado por Gélio: em primeiro lugar, que a posição das palavras podia interferir muito na leitura e nas ambiguidades, tal como levar Cesélio a confundir o gênero de cor; em segundo, tudo nos leva a crer que Gélio usa o termo iunctura ista uerborum não num sentido retórico bem definido de composição para alcançar determinado efeito, mas apenas para apresentar a proximidade das palavras, com um termo aparentemente desprovido de sentido técnico. Isso poderia se dar por serem as Noites áticas um livro

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 83

também distante do registro conceitual mais técnico do tratado, tal como as epístolas de Sêneca também por vezes se afastavam do vocabulário da retórica. Por isso, é melhor passarmos a outro registro, o de Quintiliano. É na Institutio oratoria que o termo iunctura aparece mais vezes numa só obra da literatura latina, sobretudo no livro 9; há ainda uma ocorrência no livro 8, que trata da junção sonora (8.3.45), muito similar ao tratamento por sinalefa que comentarei mais adiante. E mais, aqui seria o único caso da retórica em que o termo assume, de fato, um sentido técnico. Talvez por esse motivo Jerônimo Soares Barbosa tenha optado por traduzir iunctura como “juntura” (Quintiliano, 1944, v. 2, passim), que, por seu pouco uso, dá um caráter mais técnico ao termo. Isso fica claro em frases como (9.4.22):

In omni porro compositione tria sunt genera necessaria: ordo, iunctura, numerus.

Assim, em toda composição há três gêneros necessários: ordem, junção, ritmo.

E mais adiante ele explica (9.4.27):

Felicissimus tamen sermo est cui et rectus ordo et apta iunctura et cum his numerus oportune cadens contigit.

Mais feliz é o discurso que detém uma ordem correta e uma junção adequada, e com elas um ritmo bem cadenciado.

Mas precisamos entender um pouco melhor também o que Quintiliano entende por ordo e numerus para determinarmos o que é a iunctura nessa trama de conceitos. Sobre ordo ele diz o seguinte (9.4.23): Eius obseruatio in uerbis est singulis et contextis (“sua observação está em palavras simples e entretecidas”). Portanto, ordo é o modo como se observa a posição de uma ou mais palavras na oração; para ele (9.4.27), in uerbis enim sermonis uis est (“a força de um discurso está nas palavras”). Em seguida, ele começa a tratar da iunctura, afirmando que ela não se restringe a uma só aplicação: Iunctura sequitur. Est in uerbis, incisis, membris, perihodis: omnia namque ista et uirtutes et uitia in complexu habent (“Segue-se a junção. Ela aparece nas palavras, frases, orações e períodos: pois todas essas coisas têm virtudes e vícios em suas conexões”). Nesse universo, ele analisa até as sinalefas de Cícero (9.4.36), bem como jogos de palavras (9.4.41-2), tais como res mihi inuisae uisae sunt (“vejo coisas invejáveis”, trad. livre), e

84 | COLEÇÃO CLÁSSICA

o fortunatam natam me consule Romam (“Roma afortunada nata em meu consulado”), que são ali consideradas duas soluções de mau gosto pela repetição total da sonoridade da palavra anterior: inuisae uisae e fortunatam natam. Mas a mesma lógica de colocação relacional aparece, ainda que de modo diverso, também em orações e períodos (9.4.44): Membrorum incisorumque iunctura non ea modo est obseruanda quae uerborum (“a junção de orações e frases não deve ser observada do mesmo modo que a de palavras”). Isso não implica um descuido; muito pelo contrário, é apenas o modo que será diverso, mas a lógica geral é a mesma. Eis um exemplo comentado por Quintiliano (9.4.44):

“saxa atque solitudines uoci respondent, bestiae saepe inmanes cantu flectuntur atque consistunt” magis insurgebat si uerteretur: nam plus est saxa quam bestias commoueri; “as pedras e os ermos respondem, e muitas imensas feras se dobram perante o canto e param imóveis”; mais cresceria se invertesse; pois vale mais comover pedras do que feras.

Assim, para ele, iunctura é tanto uma junção cuidada de palavras (incluindo sua seleção), como a junção de um desenvolvimento sintático mais complexo, tal como a oração e os períodos, para criar um determinado efeito. A iunctura para ele é, por exemplo, o cuidado para evitar cacófatos derivados da ligação entre os sons de duas palavras (9.4.33), como vimos nas críticas aos jogos de palavras. Por isso, mais tarde, em 11.3.4, quando retoma pela última vez o termo, ele o caracteriza como iuncturas sermonis (“as junções do discurso”), por se realizar em diversos níveis simultâneos. Por fim, assim ele trata de numerus (9.4.45):

Omnis structura ac dimensio et copulatio uocum constat aut numeris (numeros ῥυθμούς accipi uolo) aut μέτροις, id est dimensione quadam. Toda estrutura, medida e união de sons consta nos números (por números entendo ritmos) ou metros, ou seja, numa certa medida.25

Com isso, Quintiliano prescreve uma determinada construção rítmica para obter efeito retórico. Essa construção, claro está, não pode se desvincular do ordo e da iunctura, de modo que os três gêneros estão

25 Relações entre numerus, mesura e adequação aparecem na Arte poética, vv. 74, pp. 211 e 270-1.

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 85

profundamente entrelaçados um no outro. A escolha de palavra e sua ordenação, que resulta numa junção cuidada deles, precisa levar em conta não apenas o desenvolvimento conceitual do texto (ordo), como também a cadência, o ritmo (numerus), que não deve ser propriamente confundido com o metro, por não ser uma recorrência formal obrigatória na prosa. Podemos, portanto, concluir que em todas as passagens de Quintiliano iunctura aparece como um termo para o entrelaçamento do discurso, até independente de relações sintáticas, mais próximo do resultado imediato da ordenação (ordo) da frase e do discurso, geralmente ligado também ao ritmo (numerus). Do que nos chegou, esse é o único lugar em que o termo recebe tratamento sistemático com esse sentido num texto retórico; porém, pela sua variedade de usos (encontros vocálicos, consonantais, repetições sonoras, ligações entre palavras, orações, períodos, etc.), ele parece ainda ser um termo técnico pouco específico. Isso ainda é reforçado pelo fato de que, mais adiante, Quintiliano usa o termo collocatio para expressar a seleção, o posicionamento (ordo) e o entrelaçamento (iunctura) de palavras, com o intuito de criar determinado ritmo. Além dele, só encontramos um uso sistemático em Horácio e em Pérsio, que analisarei a seguir. Por ora, suponho que o rétor esteja falando de ordenação (ordo, com sentido de dispositio ou tάξις grega, como diz Brink), junção (iunctura, a conexão que liga as partes dispostas, ou ordenadas; ou também elisão de palavras) e ritmo (numerus, metro, ou cadência da prosa). Se compararmos com o que eu disse previamente sobre Horácio, em Quintiliano ordo poderia estar para series, e iunctura se repetiria com maior especificação teórica. Obviamente numerus, tal como o usa Quintiliano, não se aplicaria às Odes, já que o seu sistema de ritmo é completamente regido pelo metro fixo, muito mais rígido que o ritmo da prosa.

O último caso que pretendo analisar é o de Pérsio, nas Sátiras. O termo iunctura aparece três vezes em apenas dois poemas. Em 1.63-5, lemos a seguinte passagem:

quis enim nisi carmina molli nunc demum numero fluere, ut per leue seueros effundat iunctura unguis?

qual, senão os cantos que hoje em suave ritmo fluem, quando sua junção deixa correr as unhas mais severas?

86 | COLEÇÃO CLÁSSICA

Esta afirmação busca responder à pergunta sobre o gosto público (Quis populi sermo est?). Curiosamente, o trecho traça uma dupla intertextualidade com Horácio: por um lado, retoma as duas passagens da Arte poética que tratam de iunctura; e por outro os versos de Sátiras 1.5.32-3 (ad unguem factus homo), citados anteriormente junto com o comentário de Porfirião. Por esse motivo, George Fiske leu tanto Horácio como Pérsio sob a terminologia utilizada por Quintiliano, quando afirmou que: “por iunctura ambos os escritores parecem se referir à ordem correta dos elementos verbais e rítmicos da oração” (1913, p. 21). Porém o que Pérsio realiza aqui (por meio de uma fala atribuível ao seu interlocutor neste poema)26 é mais complexo, pois busca explicitar um dos efeitos de uma junção poética cuidada; ela aproxima a perfeição do poema à da escultura minuciosa: enquanto no poema o trabalho busca ritmo suave (molli numero) para o ouvido; na marmoraria o objetivo é criar suavidade ao tato. Assim, o efeito da iunctura de origem horaciana assume apenas em Pérsio uma explicitação sobre sonoridade poética; para Pérsio, a junção das palavras teria também de causar efeito rítmico, enquanto em Horácio o principal procedimento intervém no sentido das palavras. Pouco adiante, no v. 92, o termo reaparece, ao que tudo indica, mais uma vez na voz do interlocutor, em resposta à defesa anterior, ainda centrada na acepção rítmica da junção:

Sed numeris decor est et iunctura addita crudis.

Mas decorosa é uma junção em ritmos crus.

A resposta rejeita a suavidade anteriormente proposta para a iunctura e prefere um ritmo mais áspero ou rude ( numeris crudis). A fala parece irônica e não consegue se defender das críticas de Pérsio, de modo que acaba por defender uma junção inábil (o contrário da callida iunctura) por meio da crueza, ou do mau acabamento sonoro. Nos dois casos citados até aqui, Pérsio só usa o termo iunctura para tratar da sonoridade por complemento aos ecos horacianos. É apenas num trecho que Pérsio usa

26 A atribuição das falas às personae do poema é um problema editorial imenso que terei de deixar de lado nesta discussão. De qualquer modo, não seria um problema, já que o objetivo aqui não é analisar poemas de Pérsio, mas apenas extrair o que se pode entender por iunctura nos trechos.

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 87

o termo para designar seu próprio estilo em 5.14-16, e que será o ponto final da nossa digressão filológica:

uerba togae sequeris iunctura callidus acri, ore teres modico, pallentis radere mores doctus et ingenuo culpam defigere ludo. Astuto na junção aguda , segues termos de toga, abres modesta boca, ralhas pálidos costumes e atingindo a culpa com nobreza (grifos meus).

No entanto, aqui a fala parece atribuída ao mestre Cornuto. De qualquer modo, podemos notar o que pretende Pérsio: sua junção já não é mais callida como a de Horácio; callidus é o próprio poeta, que busca uma iunctura acri, aguda, afiada, enquanto segue “termos de toga” (i.e., as palavras do homem romano, segundo Ramorino, 1920, ad loc.).

Seu objetivo, com isso, é uma elocução moderada, capaz de criticar os costumes doentios e, mantendo seu estatuto de homem livre (ingenuo, que traduzi por “nobreza”), apontar e atingir a culpa. Fiske (1913, pp. 29-30) analisa essa passagem de Pérsio em comparação a Horácio para concluir que se trata de uma discussão específica sobre o estilo da sátira e do drama satírico: uma conclusão bastante simplista. Mais interessante seria notar de que modo Pérsio, assim como Horácio, realiza na prática aquilo que descreve. Assim como uma construção insólita como uerba togae, feita de duas palavras comuns, resulta numa iunctura acris de um poeta callidus (Cowherd, 1986, ad loc.), do mesmo modo poderíamos analisar pallentis mores (com a associação da doença aos próprios costumes) e culpam defigere (usando uma metáfora da caça, que verti por “atingir”), numa série de recursos inesperados traçados a partir de palavras de uso bastante corriqueiro reunidas num jogo sintático astuto. Mas acontece mais neste trecho: há um efeito que talvez seja considerado uma iunctura para Pérsio, derivado das posições das palavras. Quando lemos iunctura callidus é inevitável recordar a passagem horaciana; porém logo o leitor percebe duas diferenças. Em primeiro lugar, em Horácio a callida iunctura está afastada na series, como já analisei, enquanto em Pérsio iunctura callidus estão colados. Aqui entra o segundo ponto; sua conexão na series reforça o fato de que não estão sintaticamente ligados do mesmo modo: callidus é o poeta, e não mais a iunctura, que agora, por um discreto

88 | COLEÇÃO CLÁSSICA

adiamento, passa a ser acris. A intertextualidade inevitável da passagem faz o leitor criar uma determinada expectativa e logo a frustra para remodelar Horácio. Para Pérsio, faz parte da iunctura também o jogo de expectativas que se cria em relação ao repertório do leitor; é precisamente isso que podemos depreender da fórmula iunctura callidus acri.

Se retomarmos agora tudo quanto foi dito sobre iunctura, podemos apontar algumas conclusões. Em primeiro lugar, fora Quintiliano, não há uso técnico do termo, que é usado mais como tropo, derivado de seu sentido mais comum; é o que podemos concluir pelos usos atestados em César, Lucrécio e Ovídio, além de outros autores, como Celso, Porfirião, Aulo Gélio. Em Sêneca pudemos depreender um detalhe importante: a iunctura implica a união de partes diversas num todo composto, uma unidade a partir de peças desiguais, tal como a iunctura horaciana propõe um efeito renovador a partir de palavras conhecidas; no entanto, Sêneca pouco pensava em iunctura acerca da retórica, como vimos no seu único excerto epistolar, que reforça a hipótese de um caráter informal no uso, tal como em Aulo Gélio. Mesmo em Quintiliano, se considerarmos a extensão da sua obra, iunctura é uma palavra que aparece pouquíssimas vezes e praticamente restrita ao livro 9, em que recebe acepção técnica que é, ao mesmo tempo, bastante simples e aplicável a diversos níveis (palavras, membros, sentenças, períodos), sem maior aprofundamento por parte do rétor; donde poderíamos imaginar que ele deriva o termo de Horácio, ou o usa tecnicamente a partir de seu sentido mais comum. Pérsio viria então apenas reforçar o uso horaciano e fazer dele um motto poético. Daí poderíamos supor que o termo não tinha uso específico, retórico ou poético, no tempo de Horácio, ou ao menos não um uso inequívoco, como podemos assumir a respeito de ordo e dispositio27 (que também têm um uso comum mais geral, que, porém, num contexto retórico, logo assumem sentido mais estrito). Assim, Horácio seleciona um termo também pela sua “normalidade”, o que aumenta o efeito da sua callida iunctura ao mesmo tempo que mantém mais aberta sua interpretação.

27 Rosado Fernandes, ao comentar uerbis serendis, afirma que “Horácio começa a entrar na teoria da escolha de palavras, que propriamente é uma das partes da dispositio” (Horácio, 2012, p. 111, n. 46-71). Embora minha argumentação se afaste um pouco da proposta de Fernandes, a associação à dispositio como um todo é importante.

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 89

No entanto, ao tratar da callida iunctura, Brink afirma erroneamente que o termo não seria atestado antes da passagem horaciana, e que talvez seria mesmo uma invenção do poeta (M. Ruch, apud Brink)28 por razões métricas, para ocupar o lugar de palavras mais comuns como iunctio ou coniunctio, que não cabem no hexâmetro, para indicar a composição de palavras (ὀνομάτων σύνθεσις).29 Como vimos, o termo aparecera antes pelo menos em Lucrécio, Júlio César e Virgílio, embora em nenhum dos quatros casos apresente implicação técnica sobre retórica ou poética.30 Além disso, seja como for, não podemos deixar de lembrar que iunctura aparece, como já foi dito, em alguns autores posteriores, tais como Pérsio, Sêneca, Quintiliano e gramáticos e comentadores. Com isso em mente, é pouco convincente supor que autores posteriores – exceto Pérsio, que sofre grande influência de Horácio – tomariam de empréstimo uma criação horaciana no campo da retórica, se já havia um termo técnico tradicional. Como quer que seja, pela etimologia e pelo uso em contexto, o sentido de “junção” ou “composição” é mais facilmente comprovável, e que Horácio poderia tomar a acepção de iungo e iunctura a partir da física epicurista de Lucrécio (Oberhelman & Armstrong, 1995, p. 251 e ss.). Diante desse problema, Fabio Cupaiuolo (1942) concluía seu artigo sugerindo tratar-se especificamente da composição de palavras sintaticamente ligadas, tal como nome e adjetivo. Um exemplo seria lene tormentum (“leve tormento”), de Odes 3.21.13, em que o adjetivo,

28 O mesmo afirma Fedeli em seus comentários (Fedeli & Carena, 1997, v. 4, p. 1482), provavelmente seguindo a afirmação de Brink.

29 Cândido Lusitano (1778, ad loc.) interpreta a callida iunctura por criação de termos compostos “unindo-se, ou metaforicamente soldando-se huma voz com outra, como v.g. Legistlator, Omnipotens, grandiloquus, altifonus, e infinitas outras que tem a lingua Latina”. Nisso se aproxima da interpretação dada por Costa e Sá (1794, ad loc.) para uerbis serendis como “inventar palavras novas”. Mas vale atentar que Costa e Sá já faz uma leitura mais próxima da que farei nas próximas páginas para callida iunctura: “Se huma união fina, e delicada de huma palavra já conhecida a faz nova, i.h. se pela sua união com aquellas, com que esta se acompanha, se lhe dá um sentido, e acepção nova”.

30 Se confiarmos em Mário Vitorino (Keil, 1864, v. 6, 55, uersus est, ut Varroni placet, uerborum iunctura), Varrão usaria o termo para conceituar o verso. No entanto, há dois problemas: em primeiro lugar, não temos como confirmar que o termo usado por Varrão seria de fato iunctura, e não outro de sentido similar; em segundo lugar, Horácio não está tentando determinar o que é verso, mas demonstrar um modo de escrita.

90 | COLEÇÃO CLÁSSICA

por contrastar com o substantivo que ele altera, cria um conceito ainda mais complexo. O breve comentário de Penna (2007, p. 227), caminha na mesma direção; e Wilkinson segue um rumo similar: “aqueles que seguiram a trilha certa foram os que sustentaram que iunctura inclui a criação de metáforas” (1968, p. 126); porém atenta para a nossa dificuldade de identificação prática desse processo: Devemos lembrar, no entanto, que as metáforas que parecem mansas para nós [...] podem ter sido impactantes para eles. Macróbio louva Virgílio com exemplos que nós mal notaríamos, tais como aquae mons e ferreus imber (1968, p. 125).

No entanto, como questiona Maurice Leroy (1948), suscitado pelo trabalho de Cupaiuolo: que tipo de composição é essa? Sua conclusão é que, para além da proposta de Cupaiuolo, a callida iunctura pode implicar relações menos diretas, como um verbo e um objeto, ou advérbio e adjetivo; talvez pensando na formulação de Aristóteles (Retórica, 3.2, 1404b) sobre a arte de Eurípides como uma influência sobre Horácio:

Melhor esconde, se reúne [as palavras] a partir do estoque comum da língua. Tal como faz Eurípides, o primeiro a indicar o caminho (grifos meus).

Assim, Cupaiuolo trabalhava com contraste, como no exemplo que ele mesmo cita a partir de Sêneca (Cartas a Lucílio, 56.8):

mansuete immansueta tractanda sunt. docilmente tratemos das coisas indóceis (grifos meus)31

A relação sintática, portanto, seria um pouco mais ampla do que o jogo mais óbvio de substantivos e adjetivos, para incorporar outros detalhes da oração. Contudo, o comentário aristotélico se resume à necessidade de reunir, ou colocar juntas (συντιθῇ) as palavras comuns

31 O exemplo marcado por um contraste dos termos é o que propõe Mcdermott (1981, p. 1663), quando sugere as expressões Graia Camena ou lyricus uates, entre outros. Mas, em todos os casos, temos uma conexão sintática entre os termos, e a posição das palavras é analisada como um efeito separado. Mariano Nava (1997) permanece no mesmo ponto.

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 91
κλέπτεται δ’ εὖ, ἐάν τις ἐκ τῆς εἰωθυίας διαλέκτου ἐκλέγων συντιθῇ· ὅπερ Εὐριπίδης ποιεῖ καὶ ὑπέδειξε πρῶτος.

da língua, sem implicação sobre a series, ou sobre como isso funcionaria fora das relações sintáticas.32 Ou seja, se considerarmos a passagem de Horácio como similar à de Aristóteles, ele estaria tratando basicamente do processo de metáfora, como poderíamos depreender de outra menção de Aristóteles a Eurípides, dessa vez na Poética 22 (1458b):

Como Ésquilo e Eurípides, que compuseram o mesmo verso jâmbico; no entanto, este trocou uma palavra comum por outra emprestada; de modo que um parece belo, e o outro banal. Ésquilo, no Filoctetes compôs:

O câncer, que devora a carne do meu pé.

O outro trocou “que devora” por “refestela”.

No caso apresentado por Aristóteles, temos apenas uma mudança lexical no verbo, que, por então ser menos usual, aumenta o efeito poético do texto; mas nada é dito sobre sua relação com a series, ou o entrelaçamento das palavras, uma vez escolhidas. Outro ponto que poderia ser levantado é que numa passagem (Retórica), Aristóteles louva o uso de termos comuns em Eurípides (τῆς εἰωθυίας

); enquanto em outra (Poética), louva Eurípides por trocar uma palavra comum por outra emprestada (ἀντὶ

). De modo similar, Horácio também afirma que é necessário sair das palavras mais comuns em determinados momentos (Arte poética, pp. 234-235): non ego inornata et dominantia nomina solum / [...] amabo. Disso, podemos sem dúvida concluir que nem

32 Pseudo-Longino (De sublimitate, 40.2) faz um comentário bastante similar ao de Aristóteles:

entanto, ele

mais interessado no resultado sonoro da conjunção das palavras, e não necessariamente nas metáforas (cf. Lyne, 1989, pp. 3-4), que tenta discernir as formulações de Aristóteles, Pseudo-Longino e Horácio.

92 | COLEÇÃO CLÁSSICA
οἷον τὸ αὐτὸ ποιήσαντος ἰαμβεῖον Αἰσχύλου καὶ Εὐριπίδου, ἓν δὲ μόνον ὄνομα μεταθέντος, ἀντὶ κυρίου εἰωθότος γλῶτταν, τὸ μὲν φαίνεται καλὸν τὸ δ’ εὐτελές. Αἰσχύλος μὲν γὰρ ἐν τῷ Φιλοκτήτῃ ἐποίησε φαγέδαιναν ἥ μου σάρκας ἐσθίει ποδός, ὁ δὲ ἀντὶ τοῦ ἐσθίει τὸ θοινᾶται μετέθηκεν.
συντιθῇ
κυρίου εἰωθότος γλῶτταν
διαλέκτου ἐκλέγων
ἀλλὰ μὴν ὅτι γε πολλοὶ καὶ συγγραφέων καὶ ποιητῶν οὐκ ὄντες ὑψηλοὶ φύσει, μήποτε δὲ καὶ ἀμεγέθεις, ὅμως κοινοῖς καὶ δημώδεσι τοῖς ὀνόμασι καὶ οὐδὲν ἐπαγομένοις περιττὸν ὡς τὰ πολλὰ συγχρώμενοι, διὰ μόνου τοῦ συνθεῖναι καὶ ἁρμόσαι ταῦτα δ’ ὅμως ὄγκον καὶ διάστημα καὶ τὸ μὴ ταπεινοὶ δοκεῖν εἶναι περιεβάλοντο, καθάπερ ἄλλοι τε πολλοὶ καὶ Φίλιστος, Ἀριστοφάνης ἔν τισιν, ἐν τοῖς πλείστοις Εὐριπίδης, ἱκανῶς ἡμῖν δεδήλωται.
No
parece

Aristóteles nem Horácio apresentam uma exclusividade estilística quanto à escolha lexical. Por esses problemas, precisamos aprofundar a questão suscitada por Horácio um pouco mais. Num artigo recente, de 2007, intitulado “Callida iunctura: da prática à teoria”, Jorge Miguel Tomé Gonçalves propôs uma visão completamente divergente das de Cupaiuolo e Leroy. Para Gonçalves, a iunctura se caracteriza, ao contrário, pela relação posicional entre dois termos sintaticamente desvinculados que, por estarem um ao lado do outro, provocam um efeito inesperado de leitura (algo como o erro de leitura mencionado por Aulo Gélio), que extrapola completamente a semântica do texto. Partindo de uma análise de casos no primeiro livro de Elegias de Propércio, assim ele termina seu artigo, conceituando callida iunctura: figura de construção que assenta no estabelecimento de relações semânticas entre termos – independentemente da classe morfológica, género ou número a que pertencem – que não estão ligados sintacticamente. Em termos pragmáticos, permite a transmissão e/ou sugestão de novos elementos caracterizadores, bem como das posições do sujeito poético ou ainda da sua confusão afectivo-sensorial , tradutoras de uma linguagem carregada com uma grande dose de impressionismo e ambiguidade. As potencialidades significativas desta figura assentam na transferência e/ ou acumulação do valor semântico que têm lugar por parte de um dos termos, normalmente um adjectivo, que vê o seu valor qualificativo ser deslocado para o termo que posicionalmente se encontra mais próximo (Gonçalves, 2007, pp. 93-94, grifos meus).

Nessa leitura, nós poderíamos dizer que o exemplo de Sêneca dado por Leroy não seria callida iunctura, porque ainda são palavras com certa relação sintática (o advérbio altera o modo como o adjetivo deve ser tratado), muito menos um caso como o lene tormentum, sugerido por Cupaiuolo.33 Como contraexemplo, poderíamos citar brevemente Od. 4.1.40, te per aquas, dure, uolubilis.

Nesse verso, vemos que a posição sintática realça ainda mais o contraste entre o interlocutor, Ligurino (dure), e as águas por onde o eu

33 Nenhum dos comentadores considera a callida iunctura como a composição de um neologismo composto, já que não é uma prática horaciana. O único exemplo notável é tauriformis (Odes 4.14.25).

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 93

lírico o persegue (uolubilis); assim a possível relação de mosaico da frase tira todo o proveito das implicações físicas e morais dos adjetivos opostos, graças à sua proximidade por posição, apesar de estarem sintaticamente desvinculados, permitindo até uma leitura dos dois termos como vocativos masculinos no singular, embora o contexto não convide a essa interpretação. Isso cria uma “confusão afectivo-sensorial” porque não se traduz em termos semânticos e interfere na leitura de modo irracional.

Desse tipo de trabalho linguístico, Collinge afirma que podemos ver, resumidamente, três tipos de função relacional:

Não causa surpresa que estruturas mais extensivas e complexas se ocorram nesses poemas: e, na verdade, palavras e frases (e imagens) parecem ter três tipos de funções relacionais: (a) expressar, mais ou menos claramente, a relação entre odes inteiras – daí a citação cruzada, a reminiscência de fraseologia de ode para ode [...]; (b) revelar a “pontuação” estrutural interna a cada ode; e (c) oferecer, no seio de sua própria seção restrita da emissão integral, padrões apreensíveis de si mesmos que podem ser ligados, mas estão separados da sua contribuição descritiva e emotiva (1961, pp. 4-5).

Tal processo, como já afirmava Nietzsche, não seria sequer desejável em línguas, como é o caso do português, que não detêm um sistema de casos complexo, como o que ocorre no latim e no grego, uma vez que a alteração violenta da posição das palavras leva muitas vezes à incompreensibilidade sintática, ou a ambiguidades maiores do que as que aparecem no texto latino. Se, por um lado, Gonçalves leva o conceito para um patamar muito mais radical e interessante do que os outros comentadores, já que deixa de lado as relações sintáticas para analisar a posição dos vocábulos na frase e ampliar o sentido do texto para além da semântica, por outro, ao deixar a relação sintática de lado, ele realiza outro fechamento para o conceito. Isso se dá, provavelmente, porque Gonçalves, como sugerido já pelo título do artigo, parte de exemplos práticos (tirados de Propércio) para formular um conceito teórico, quando na verdade não temos como fixar o conceito desse modo, já que o próprio Horácio não nos dá nem ao menos um exemplo que explicite e unifique o conceito. Por contraponto a essa leitura, e levando em consideração o problema de uerbis serendis, vale a pena analisar outra passagem da Arte poética (240-243), que poderá elucidar os nossos conceitos:

94 | COLEÇÃO CLÁSSICA

Ex noto fictum carmen sequar, ut sibi quiuis speret idem, sudet multum frustraque laboret ausus idem: tantum series iuncturaque pollet, tantum de medio sumptis accedit honoris Do conhecido forjado canto faço, e quem busca vir me igualar, trabalha e ousa em muitos suores sem se igualar; pois tal é o poder da junção e entrelace, tal é o poder de glória que vem do falar mediano (grifos meus).

Pelos meus grifos, indico como esta passagem está intimamente ligada à outra no uso lexical, apesar de distarem cerca de 200 versos. Nos dois casos, Horácio está preocupado em demonstrar como produzir uma formulação nova a partir de palavras comuns: esse é um ponto chave que não podemos esquecer. Novamente vemos a palavra iunctura ligada ao termo series – que, por sua vez, é etimologicamente derivado de sero e, portanto, a serendis no verso 46 –, formando uma relação que começa a ficar mais clara. Porém temos um problema de interpretação contextual a ser resolvido antes de darmos prosseguimento. Horácio trata ali das diferenças de linguagem entre a tragédia e o drama satírico, de modo que o texto, à primeira vista, obriga o leitor a ler esta passagem na mesma chave que a anterior, ou seja, sobre léxico e posição lexical – é essa a leitura já conhecida, proposta por K-H, ad loc. No entanto, Pseudo-Acrão (ad loc.) entende que ela trate apenas de temas e cenas típicos da comédia, porque a conecta com a questão imediatamente subsequente, em que Horácio discute o que é tematicamente próprio ao drama satírico.34 Aqui ficamos com um problema interpretativo: afinal, estes versos se ligam

34 “O argumento satyrico do Dramma/Eu tirara da historia conhecida,/De sorte, que qualquer se persuadisse,/Que faria outro tanto, mas tentando-o,/Visse, que em vão suara: tanto póde/A contextura, e ordem: tão capazes/São de belleza as Fabulas sabidas!” (trad. de Lusitano). “Minhas ficções poeticas fundára/Em conhecida historia: mas de modo/Que esperando qualquer fazer o mesmo/Muito suasse em vão, e em vão lidasse./Tal é da ordem, e do nexo a força!/E de tal arte abrilhantar se póde/O objeto mais trivial” (trad. de Seabra). “Com elementos conhecidos criarei o drama satírico de forma a que todo o que desejar, se julgue capaz de fazer o mesmo, muito embora muito sue e sofra em vão: tão grande é o poder da ordem e da contextura, tão grande é o respeito que se junta ao que for tirado do corrente linguajar!” (trad. de Rosado Fernandes). Os três leem a passagem como se discorresse apenas sobre o argumento do drama, leitura também ressaltada por Costa e Sá (1794) e Tringali (1995); outro ponto importante é notar que nenhum dos dois tentou remeter à passagem anterior

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 95

aos anteriores ou aos seguintes? Dos comentadores recentes, Niall Rudd (1989, ad loc.) e Ugo Dotti (2008, ad loc.), por exemplo, seguem K-H e afirmam que se trata apenas de linguagem poética, que passa a ser novamente desenvolvida nos versos subsequentes. No entanto, Wilkins (1955, ad loc.) já havia conseguido sugerir um meio-termo muito mais interessante: “Essa frase pode ser usada a respeito do assunto, mas é mais naturalmente aceita a respeito da linguagem”; 35 então podemos dar um passo a mais: não precisamos excluir as possibilidades; elas podem conviver. Se partirmos de Wilkins e pensarmos que a própria linguagem horaciana aqui se torna ambígua, podemos supor que nesta passagem Horácio trata simultaneamente do modo de composição de temas do drama satírico e da linguagem com que se pode compor, e não como sugeriu Wilkins, que seja uma coisa ou outra coisa. O que vemos aqui é uma interessantíssima fusão entre níveis, que sugere que os modos de escolha e combinação lexical são os mesmos utilizados na elaboração do desenvolvimento de uma peça (um drama satírico, pelo contexto, mas poderíamos expandir essa ideia para outras composições poéticas). Com isso, diferentemente do que pensava Brink, iunctura e series não podem representar exatamente a mesma coisa.

Diante dos problemas que surgiram, proponho uma maior abertura dos dois conceitos. Mas antes, vejamos a seguinte descrição de series em Collinge: “Series não é nada mais do que a própria ordem das palavras na língua ou na página: seus efeitos são dinâmicos, no sentido de que constituem variações do poder de peso ou impacto ou agudeza das palavras usadas” (1961, p. 24, grifos meus). Por complementação, iunctura para ele é a junção inesperada de duas palavras no sintagma (p. 24). Collinge avança bastante na discussão porque tenta ver a complementariedade entre as duas instâncias, sem torná-las quase sinônimos, como Brink, e sem se olhar apenas um dos dois conceitos. Mas sua visão estruturalista perde aquilo que Gonçalves apontava como confusão entre o sensorial e

pela retomada das palavras iunctura e serendis; muito embora Lusitano, em suas notas, comente que as mesmas palavras assumem sentidos diversos.

35 Commager (1962, p. 88) aponta em Horácio: “fondness for an antithetical arrangement of themes and ideas”; importante notar como Commager também vê uma relação organizacional entre níveis diversos.

96 | COLEÇÃO CLÁSSICA

o afetivo, porque esse tipo de efeito obviamente arruinaria uma análise mecanicista como a de Collinge, um ponto de vista que fica claro em frases como: “A aplicação mecanicista de postulados gêmeos de combinação e contraste é todo o segredo da composição horaciana” (p. 26), ou “De nada vale fingir que o uso horaciano de imagem seja, na maior parte das vezes, algo mais do que permutação de palavras” (p. 29). Em momentos como esses, desconfio de que a mera determinação linguística dos contrastes e combinações que formam o mosaico poético horaciano não serve para tentar explicar o que acontece em sua poética. Mas é a partir desse diálogo conceitual de base linguística estabelecido por Collinge que precisamos dar continuidade à discussão, agora mais aprofundada. Outro ponto importante é observado por Oberhelman & Armstrong:

[...] a synthesis (combinação, composição do estilo) dos elementa (átomos, letras), junto com a positura e ordo dos elementa ( primordia , que é uma tradução do grego soicheia), transforma a materia (substância, conteúdo) num unum . A metátese, segundo Filodemo e Lucrécio, bem como Horácio, realiza uma reordenação dos elementa e assim separa a callida iunctura do unum e gera a novidade (novum). O que fora um pensamento concreto e unificado foi eliminado por uma nova ordem entrelaçada (iungere e serere) (1995, pp. 251-252).

A proposta dos dois estudiosos é bastante instigante, porque consegue ligar o pensamento horaciano à tradição teórica de Filodemo,36 mas também à tradição da filosofia (sobretudo da física) epicurista, a fim de compreender um conceito-chave e determinar como a disposição mais minuciosa importa em poesia e como sua reordenação (metátese) necessariamente produz uma nova construção com novos resultados (cf. Armstrong, 1995). E mais, ambos conseguem uma proposta que separe iunctura de series para tentar compreender como as duas coisas funcionam em conjunto. É desse ponto que pretendo seguir, para refletir sobre o que a maioria dos estudiosos deixam de lado: as possibilidades de efeito geradas pelos dois eixos de iunctura e series, uma vez que a alteração da ordem mudaria o sentido do poema.

36 Para maiores detalhes sobre as relações entre Horácio e Filodemo, cf. os artigos editados por Obbink (1995), as várias notas de Janko (2000), e os dois excelentes artigos de Armstrong (1995 e 2004).

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 97

Ao ponto: nas duas passagens horacianas, arrisco a dizer que o termo iunctura indica, de fato, uma junção das palavras (ὀνομάτων σύνθεσις); porém não por oposição à escolha (ὀνομάτων ἐκλογή), e sim por complementação. Em outras palavras, o dispositivo da callida iunctura funcionaria a partir de uma escolha minuciosa das palavras, para depois realizar sua combinação sintática, de modo similar ao que Cupaiuolo havia pensado e Leroy havia desenvolvido: seja por efeitos sonoros (aliterações e assonâncias, ou o princípio jakobsoniano de paronomásia generalizada; Jakobson, 1975, p. 72), seja por refinamento conceitual (como o caso de lene tormentum, de 3.21.13), com uma relação sintática menos estrita do que a do jogo entre substantivo e adjetivo, incluindo, portanto, aquele exemplo de Sêneca (mansuete immansueta...). O que agora seria necessário levar em consideração é que a iunctura, nos únicos momentos em que aparece em Horácio, está sempre acompanhada da series (ou de um termo relacionado, como serendis). Isso indica que a iunctura ganha ainda mais pelo entrelaçamento das palavras, ou seja, também pela sua posição frasal, como supunha Gonçalves, embora confundisse os conceitos e atribuísse este efeito apenas à iunctura. Nesse caso, se iunctura também tem efeito por causa da series, sugiro que uma relação como dure, uolubilis seria uma espécie de callida iunctura derivada da series. Outro caso que entraria nessa categoria é a ambiguidade momentânea causada pela suspensão do sentido total da frase; tomemos por exemplos os dois primeiros versos de 4.1:

Intermissa, Venus, diu rursus bella moues? Parce precor, precor (grifos meus).

A pontuação contemporânea facilita o entendimento do leitor, mas se imaginamos o texto sem pontuação (tal como se grafava em Roma no séc. I a.C.), nós lemos a abertura do poema como intermissa Venus. Inevitavelmente, a primeira reação de leitor é relacionar intermissa com Venus, supondo que se trate de um adjetivo feminino singular no nominativo ou no vocativo (a métrica permite essa leitura), mas o que seria uma “Vênus interrompida”? Sugeriria, em primeiro lugar, o período de interrupção entre as publicações dos livros 1-3 das Odes e o surgimento do quarto livro (que só aconteceu depois da publicação do primeiro livro de Epístolas); mas também uma expressão poética para o coito interrompido,

98 | COLEÇÃO CLÁSSICA

ou abstinência sexual (cf. Thomas, 2011), essa leitura é ainda mais reforçada pela posição destacada de Intermissa como palavra que abre o poema e o livro ao mesmo tempo. No entanto, na virada do verso, vemos que muito provavelmente não se trata disso, porque, apesar da proximidade da series entre o nome e o adjetivo, o advérbio rursus nos convida a ligarmos intermissa a bella (portanto acusativo neutro plural, e não nominativo feminino singular). Assim chegamos ao significado da frase: “Ó Vênus, moves novamente as guerras há muito interrompidas?”. Porém, mesmo quando chegamos à leitura mais plausível fundada na racionalidade, a sugestão provocada pela ambiguidade morfológica e reforçada pela series nunca se apaga de todo; e assim o sentido se faz pela permanência dessa ambiguidade sintática, que não é analisada na linguística, mas na poética, porque, como percebe Umberto Eco, a ambiguidade “funciona como vestíbulo à experiência estética” (2014, p. 224). Mais um caso que poderia entrar nessa discussão é o efeito por posição relacional, como em 1.12.47-8: uelut inter ignis luna minores (grifo meu).

Além do cavalgamento, há um reforço na imagem pela disposição das palavras, porque, de fato, a lua se encontra no meio dos fogos (astros) menores: ignis luna minores. Mesmo que a substituição do entrelace das palavras fosse metricamente possível sem prejuízo para o significado da oração, o efeito poético se alteraria em latim, porque a series das palavras deixaria de mimetizar a descrição celeste. Por fim, até mesmo a paronomásia poderia entrar no jogo de iunctura e series, se pensarmos no microelemento da letra, como em 3.1.16:

omne capax mouet urna nomen (grifos meus).

Pois, nesse caso, omne e nomen são anagramas quase perfeitos, além de cercarem o verso num efeito de quase simetria. Tento agora resumir este primeiro plano: entendo callida iunctura por uma junção sintática astuciosa de palavras não necessariamente estranhas ao uso comum,37 e com isso tanto sua seleção como sua

37 Dois detalhes a serem levados em conta: 1) obviamente o registro lexical das odes não é o uso comum, como se entende hoje por linguagem cotidiana; trata-se já de uma

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 99

combinação sintática. Por series, entendo o próprio entrelaçamento das palavras na sua ordenação frasal, mas que interferem profundamente na leitura do texto, uma vez que gera efeitos que não podem ser resumidos à semântica, ou ao significado do texto, porque eles no fundo sugerem o tempo inteiro que nós poderíamos fazer outra iunctura, que muitas vezes não se realiza na sintaxe. Por isso, de agora em diante, tentarei tratar desse feito mais complexo como sentido. Com isso, aponto para o que Deleuze, em sua Lógica do sentido, determina como paradoxos do sentido. “O sentido é uma entidade não existente, ele tem com o não sentido relações muito particulares” (1969, p. 7). Portanto, extrapolaria o que tomamos normalmente por significado; e mais: “o bom senso é a afirmação de que, em todas as coisas, há um sentido determinado, mas o paradoxo é a afirmação de dois sentidos ao mesmo tempo” (p. 9). Em determinados casos, a ambiguidade incorporará o paradoxo e o convite a uma escolha semântica que não abole o efeito, mesmo que ele seja paradoxal. Com isso, quero dizer que os efeitos causados pela iunctura e pela series extrapolam a semântica tradicional e aquilo que normalmente delimitamos como significação, para criar algo mais complexo (uma “confusão afectivo-sensorial”, como bem expressou Gonçalves), que não pode ser resumido num sentido único. Uma aproximação viável para esses efeitos é a abordagem de ritmo proposta por Henri Meschonnic (sobretudo em 1982), que será comentada no próximo capítulo. Nos casos mais radicais, como em dure, uolubilis, a semântica implicada pela análise sintática (que seria o significado da “leitura correta” do texto) não anula o eco dissociativo das duas palavras antagônicas; portanto é na coexistência desses dois efeitos, mesmo que contraditórios, que se fundará o sentido poético. Neste momento, é interessante retornar ao trabalho de Reviel Netz, para vermos como ele conceitua uma composição em mosaico como “a justaposição de fios aparentemente sem relação que, uma vez unidos, deleitam pela surpresa de uma combinação frutífera, ou espantam pelo choque da incongruência” (2009, p. 117). A frase poderia linguagem afetada e poética, com mistura de arcaísmos, neologismos e vulgarismos. 2) o próprio encontro desses registros diversos (arcaísmo, neologismo e vulgarismo) pode, por si só, ser considerado callida iunctura. Cf. Bonfante, 1994, pp. 145-146, sobre as variantes de registro na cultura romana, e Wilkinson, 1968, sobre a prática do delectus uerborum (a escolha das palavras) e sua relação com construções prosaicas.

100 | COLEÇÃO CLÁSSICA

quase que perfeitamente ser aplicada ao que venho tentando determinar sobre os efeitos de iunctura e series, já que implicam a justaposição sintática ou posicional de termos, para criar um efeito frutífero ou de aparente incongruência, que mais adiante se resolve. Podemos, portanto, voltar à análise da primeira passagem horaciana que motivou esta discussão, para tentar entendê-la, tal como fiz com Pérsio, em sua proposição teórica e em sua poética (deixarei de lado os possíveis ecos de Lucílio presentes na passagem – cf. Fiske, 1913 –, por julgar que pouco esclarecem nosso problema):

In uerbis etiam tenuis cautusque serendis dixeris egregie, notum si callida uerbum reddiderit iunctura nouum.

Quando começamos a oração, dois efeitos se somam: por um lado, o adiamento de serendis nos deixa sem saber sobre que relação com as “palavras” nós teremos, enquanto vemos que o sujeito é “tênue e cauto”,38 para, ao fim da series, percebermos que a construção que se realiza é inesperada: uerbis serendis é uma callida iunctura! Trata-se de uma invenção horaciana para explicar o que é a series lexical, ou seja, um entrelaçamento das palavras, para o qual é preciso cuidado, se quisermos falar de modo “egrégio”. Mas ainda mais: por seu adiamento e consequente distância entre uerbis e serendis, Horácio aplica na prática um entrelaçamento poeticamente produtivo: a informação sobre o entrelace é mimeticamente ela própria entrelaçada na series, os adjetivos que alteram o sujeito estão no meio do seu próprio ato de entrelaçamento lexical. O resultado disso é uma fala egrégia, dixeris egregie, com o detalhe etimológico bastante significativo, como nota Mariano Nava (1997, p. 71, n. 29): “egregie (ex-grege), ‘fuera del rebaño’”. Logo adiante, temos uma sequência ainda mais difícil: notum (adj. 1) si callida (adj. 2) nos oferece dois adjetivos sem nenhuma resolução (de modo similar à estrutura do verso de ouro, porém em fim de verso, portanto fora do padrão esperado), que se resolvem na mesma ordem: uerbum (sub. 1) reddiderit iunctura (sub.

38 Como atenta Fedeli (1997, ad loc.), “Tenuis, piuttosto che ‘temperato’ (come vorrebbe Rostagni), è sinonimo di subtilis e traduce il greco λεπτός”; uma palavra de clara filiação calimaquiana.

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 101

2). Porém novamente, se por um lado a iunctura resultante de notum uerbum é simplíssima, por outro, a expressão callida iunctura também é em si mesma uma callida iunctura. É precisamente o que diz Lyne para concluir que a imagem ainda poderia dialogar com a carpintaria (1989, p. 7, n. 24). Embora Lyne aponte para efeitos derivados da posição das palavras (na series), ele deixa isso de lado quando trata de iunctura, para favorecer os encontros sintáticos (ou seja, seguindo a teoria aristotélica da metáfora), tal como Cupaiuolo, Wilkinson e Leroy, por exemplo, e o mesmo acontece no recentíssimo artigo de Knox (2013). Callida iunctura como callida iunctura se dá porque, quando lemos que algo conhecido (notum) será alterado por meio de algo astucioso (callida), não conseguimos prever que a palavra decorrente disso será iunctura. Não é à toa, portanto, que uma expressão como essa causa tanto debate entre os estudiosos: ela não se presta a uma leitura unívoca típica do tratado filosófico, ou do estudo filológico, mas a uma leitura poética: entenda-se, a filologia e a sintaxe tradicionais são necessárias para chegarmos a este ponto, porém não suficientes; porque ainda não chegamos ao fim da leitura: é preciso perceber como a junção da expressão callida iunctura ganha força exatamente por seu distanciamento na series; ela cria um efeito de suspense semântico que se resolve de modo inesperado (tal como uerbis serendis) depois de um cavalgamento. E mais: é só depois do aparecimento da palavra iunctura nessa series complexa que podemos finalmente perceber no que tudo resulta (afinal ainda precisamos entender o que o notum uerbum se torna): nouum. Assim, é o entrelaçamento (series), com o adiamento das duas palavras-chave (iunctura e nouum) que explicita seu próprio resultado. Ainda nesse caso, começamos agora a perceber outro efeito no texto latino: uerbum fecha o último verso, e nouum encerra a passagem como um todo; de modo que também essa relação sintática se dá por suspense no adiamento proporcionado pela series, que assim resulta num efeito harmônico de simetria e cercamento. Quando observamos essa minúcia de composição horaciana, não espanta que um crítico como David Armstrong afirme que “claramente Horácio pensava em seus poemas como mosaicos de palavras e letras que não poderiam ser reordenadas, para construir imagens de pensamento complexo” (1995, p. 231). Vemos afinal que a palavra nouum, que encerra o trecho, não é em si uma palavra nova, mas que graças à sua posição e às relações

102 | COLEÇÃO CLÁSSICA

sintáticas ela ganha um aspecto de novidade no sentido geral do texto: ela se performa como nova, renovada pelo contexto em que se encontra.

A questão central, portanto, é que todos esses efeitos ultrapassam o significado estrito do texto; e, diante dessa indissolução entre forma e conteúdo, a tradução poética passa a se tornar uma ferramenta crítica e criativa. Certamente não se trata de uma reapresentação idêntica do texto de partida em nova língua, o que nos levaria ao pouco produtivo conceito de fidelidade; mas de uma criação nova que restabelece procedimentos e efeitos do original a partir de uma determinada leitura crítica. Apresento, portanto, novamente minha tradução, para que se possa pensar, por ora, nos resultados filológicos e poéticos de uma intervenção tradutória:

Nas palavras, seja cauto e sutil no entrelace, pois notável será, se ao termo mais conhecido uma junção sagaz converte em novo.

Diante disso tudo, poderíamos retomar as afirmações de Quintiliano e de Petrônio, uerbis felicissime audax e curiosa felicitas, que também poderiam ser analisadas como uma callida iunctura: nos dois casos, temos uma relação inusitada a partir da junção de termos não necessariamente ligados (fertilidade e audácia, fertilidade e minuciosidade), o que reforça o efeito de sua leitura para além do sentido estrito das palavras. Como observa Steele Commager acerca da formulação petroniana, Felicitas tem uma raiz com o sentido de “fértil”, enquanto curiosa , o adjetivo de cura , não significa “curiosa”, e sim “trabalhosa”. A frase, portanto, implica a união de uma disciplina imposta com a criatividade inata, de ars com ingenium (1962, p. 42).

Podemos mesmo ver com outros olhos a descrição que Sidônio Apolinário (Epistolae 9.13.2) faz da poética das Odes: Jam dudum teretes hendecasyllabos, Attrito calamis pollice lusimus, Quos cantare magis pro choriambicis Excusso poteras mobilius pede. Sed tu per Calabri tramitis aggerem Vis ut nostra dehinc cursitet orbita; Qua Flaccus lyricos Pindaricum ad melos Frenis flexit equos plectripotentibus, Dum metro quatitur chorda Glyconio,

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 103

Nec non Alcaico, vel Pherecratio, Juncto Lesbiaco, sive anapæstico, Vernans per varii carminis eclogas, Verborum violis multicoloribus [...] (grifos meus).

Tempo faz que em sutis hendecassílabos eu brinquei com a mão gasta no cálamo, pois mais fácil serão que os coriâmbicos pra cantares veloz na agitação dos pés. Mas desejas me ver junto ao calábrio, distanciado do meu curso de sempre; onde o Flaco seguiu melos pindáricos e no plectro os corcéis líricos controlou, ao tocar no cordão metro glicônico, metro alcaico e também bom ferecrácio, junto ao lésbio e por fim muito anapéstico, viçando, ao colher versos tão vários, violetas verbais feitas de furta-cor [...] (grifos meus).

Sidônio, no trecho da epístola, imita o asclepiadeu horaciano, mas faz questão de descrever a variedade (ποικιλία) horaciana pela menção das fontes poéticas e dos metros. Depois de tudo isso, chegamos ao cerne do argumento: Horácio floresce numa poesia vária, repleta de flores e cores. Como observa Robert:

varii e multicoloribus são sinônimos; uernans e violis, do mesmo campo semântico [...] qualificam-se e explicam-se mutuamente. [...] A poesia de Horácio mostra a diversidade policromática, tão admirada na Antiguidade Tardia, em dois níveis de composição: o poema inteiro (poemas em metros diferentes ficam um ao lado do outro) e a palavra específica (1989, p. 51).

Isso se dá porque o termo flores já poderia indicar uma variedade de cores (1989, p. 50) Em resumo, Sidônio expressa a variedade da obra horaciana em termos das artes visuais de seu próprio tempo, entrelaçando níveis diversos, desde a palavra até o livro como um todo: nada mais similar a um mosaico, que vai das menores peças à imagem total. Mais uma citação pode encerrar nosso ponto. Trata-se de um trecho do livro Mosaics, de Hans Peter L’Orange, cuja tradução inglesa é manipulada por Robert (1989, p. 71) a fim de demonstrar a similaridade entre mosaico

104 | COLEÇÃO CLÁSSICA

e poesia. Entre parênteses estão os termos originais de L’Orange para as intervenções de Roberts:

Em contraste com os poemas (mosaicos) clássicos [...] toda a estrutura (superfície) está agora partida numa miríade de palavras (pedras) peculiares cromaticamente divididas; as incontáveis unidades (tésseras) reluzem e cintilam com luz e cor refletidas. Aqui cada palavra (pedra) brilhante que os poetas (artistas) da Antiguidade tentaram subjugar e controlar são deliberadamente apresentadas com a plenitude do seu efeito. Em vez de desaparecerem da vista numa descrição realista (numa imitação da forma plástica), cada palavra (pedra) retém qualidades refulgentes de luz e cor.39

De algum modo, isso nos sugere que os leitores das Odes, mesmo que não formulassem uma teoria da iunctura, podem perceber – e têm percebido – seus efeitos na leitura. Assim, chegamos a uma ampliação da questão inicial: se Horácio apresenta as ideias de iunctura e series fazendo da própria exposição teórica uma gramática poética, o que podemos pensar dos outros níveis? É o que passo a analisar a partir de agora.40

2.3. Lucidus ordo , a ordem do pensamento (b)

Eu afirmei na seção anterior que a segunda passagem da Arte poética (vv. 240-3) poderia ser lida simultaneamente como um debate acerca dos temas do drama satírico e da linguagem poética em geral. Se eu estiver correto quanto a essa possibilidade interpretativa, ela passa a ser a porta de entrada para um aspecto fractal. Pensemos num brócoli ou num dente-de-leão, cuja estrutura vai se repetindo cada vez menor em suas pontas. De forma similar, o modo de construção da frase horaciana se assemelha ao modo de construção do poema e ao modo

39 Sonia King (2002, p. 83) faz uma comparação inversa ao comentar os cortes das tesserae: “A mosaicist doesn’t actually cut tiles but rather controls a fracture. [...] The more cutting techniques you master, the greater ‘vocabulary’ you have to work with. This will make things both easier and harder, because the bigger your vocabulary, the more complex your thoughts”.

40 Vários comentários e análises específicos e muito úteis quanto ao nível do léxico aparecem tanto em Collinge como nos comentários de N-H, N-R e West, todos com objetivos muito similares, apesar de não necessariamente apresentarem uma categoria teórica determinada.

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 105

de construção do(s) livro(s). A minha hipótese é a seguinte: o mesmo sistema de contraposições e sobreposições semânticas que rege a series e a callida iunctura pode também reger o princípio de construção de cada ode como ordenação (dispositio ou arranjo)41 do pensamento. Parece ser essa complexidade arquitetural da ode horaciana que Hegel observara em sua Estética (1993, p. 619):

A sucessão de ideias pode então seguir um curso tranquilo, sem intervenções, mas pode também, no seu arrebatamento lírico, passar sem transição de uma ideia a outra, e nesse entusiasmo de inspiração, surgir ao frio intelecto, habituado aos raciocínios lógicos e às transições progressivas como possuída por uma força que a rege e arrebata contra a vontade. O impulso de semelhante paixão e o conflito que origina são de tal modo característicos de certos gêneros líricos que Horácio, por exemplo, se esforçou, num grande número de poesias, por realizar artificial e conscientemente estas bruscas transições, que aparentemente interrompem o encadeamento do conjunto.

Hegel se impressiona com a variedade horaciana do “curso tranquilo” ao “arrebatamento”, mas sobretudo com as dificuldades da transição poética, pois percebe nelas um efeito pela aparente interrupção do encadeamento do conjunto. Em termos mais técnicos, poderíamos invocar as palavras de David West: “Tensão polar é amiúde relevante para o argumento de um poema” (1973, p. 31). Gostaria agora de analisar como funcionam essas transições, porque, bruscas ou não, elas também podem ser pensadas em termos de series e iunctura, segundo leis similares às da construção frasal. Não haverá maior dificuldade em pensarmos a series do poema como sua sequência de ideias, ou orações, ou estrofes, tal como se nos apresenta. O problema maior pode estar na iunctura, quando aplicamos esse conceito ao poema como um todo; afinal, o que se une especificamente para além das palavras? Talvez seja

41 Cf. Ad Herenium 1.3: “dispositio est ordo et distributio rerum, quae demonstrat quid quibus locis sit collocandum”. Cícero De inuentione 1.9: “dispositio est rerum inuentarum in ordinem distributio”. De oratore, 2.179: “qui ordo [...] et quae dispositio argumentorum”. Em todos os casos, dispositio e ordo estão intimamente ligados, por isso os tratarei como sinônimos, com o detalhe de que darei preferência para ordo na composição do poema e para dispositio na composição do livro, apenas para evitar maiores ambiguidades.

106 | COLEÇÃO CLÁSSICA

exatamente isso que Margaret Hubbard aponta: “Por vezes, de modo menos óbvio, somos surpreendidos quando alguma dica posterior no poema nos mostra que, o tempo todo, deveríamos ter imaginado uma cena e situação” (1973, p. 18). É nesse sentido que West relaciona tal efeito ao da sintaxe, ao afirmar que “o efeito de um poema depende da ordem de acontecimentos, e o efeito de um poema latino depende da ordem das palavras latinas” (1995, p. 25, grifo meu). O que se depreende de uma tal afirmação é que os efeitos de funcionamento da series e da iunctura das palavras funcionam de modo muito similar, porque a series interfere no modo como entendemos o desenvolvimento do poema, mesmo que no final possamos ter uma imagem menos ambígua. Eu poderia resumir assim: se entendemos ao fim do poema algum significado, isso não implica que o próprio modo da sua construção não permanece ecoando, talvez ao modo de um pedal, como no canto gregoriano, ampliando o sentido do texto. Vejamos por exemplo as primeiras estrofes de 2.10:

Rectius uiues, Licini, neque altum semper urgendo neque, dum procellas cautus horrescis, nimium premendo litus iniquum.

Auream quisquis mediocritatem diligit, tutus caret obsoleti sordibus tecti, caret inuidenda sobrius aula.

Reto viverás, meu Licínio, se alto mar não queres sempre nem por temeres as tormentas muito te estreitas sobre praia e recife.

Quem adora a áurea mediania salvo evita as máculas de uma casa decadente e sóbrio evita toda corte invejável.

A sequência do pensamento é logo compreensível, com a apresentação da imagem marítima que logo se revela como metáfora da prática ética do indivíduo, questão que na segunda estrofe é explicitada pela máxima

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 107

da aurea mediocritas, de origem aristotélica. Entretanto, o poema não precisa ter uma ordem inalterável, e a disposição dos seus argumentos é, por si só, prenhe de sentido: neste caso, as estrofes se formam como duas ideias fechadas (um caso exemplar para a lex Meinekiana), e o que temos, na verdade, para além de uma sequência, é o processo de uma iluminando a outra, um efeito muito específico da sua ordem. Poderíamos, apenas como experimento hermenêutico, inverter a ordem das estrofes, já que não há nenhuma partícula conectiva entre elas:

Auream quisquis mediocritatem diligit, tutus caret obsoleti sordibus tecti, caret inuidenda sobrius aula.

Rectius uiues, Licini, neque altum semper urgendo neque, dum procellas cautus horrescis, nimium premendo litus iniquum.

Quem adora a áurea mediania salvo evita as máculas de uma casa decadente e sóbrio evita toda corte invejável.

Reto viverás, meu Licínio, se alto mar não queres sempre nem por temeres as tormentas muito te estreitas sobre praia e recife.

A função moralizante do poema se mantém indiferenciada (o que chamaríamos seu significado), mas algo na imagem geral é completamente alterado em seu sentido. O que se depreende disso é, novamente, muito semelhante ao que foi dito sobre a posição das palavras na ode e ao que será comentado a respeito das odes no livro. Quando fazemos nossa alteração, o poema passa a se iniciar explicitamente com a aurea mediocritas na terceira pessoa do singular (uma indicação de sua generalidade), que depois recebe a ilustração da metáfora marítima com a segunda pessoa (Licínio); o que nessa nova ordem acaba sendo redundante e funcionando apenas como um ornamento para algo que já foi esclarecido. Porém, no formato que temos do poema, a

108 | COLEÇÃO CLÁSSICA

imagem marítima da primeira estrofe permanece parcialmente específica (Licínio, na segunda pessoa) e incompreensível até que cheguemos à segunda estrofe, que a ilumina por inteiro; portanto, a terceira pessoa amplia o que foi dado na primeira estrofe, assim como a função moral amplia a prática da navegação: o que então se dá nessa series é um efeito similar ao do adiamento de uma iunctura. Quando lemos na Arte poética “uerbis... serendis”, nós só conseguimos formular com clareza uma ideia do sentido quando chegamos à palavra que ilumina ou complementa o substantivo uerbis; aqui, a imagem marítima da primeira estrofe é completada, ou iluminada, pela explicitação da moral que lemos na segunda. A princípio, poderia parecer uma transição um pouco brusca, pela falta de termos comparativos; mas, em conjunto, percebemos que as mesmas regras que se aplicam à navegação podem ser aplicadas à ética, e com essa comparação sem termo comparativo, eu insisto, o leitor pode formar uma callida iunctura estrófica. Esse tipo de construção é típico da inventividade romana na poesia antiga: não se trata de inventar novas cenas, imagens, lugares-comuns, mas de reelaborá-los de modo novo; ou, adaptando Horácio, no entrelace dos temas, é possível tornar nova a tópica velha por meio de uma junção hábil. Não precisamos concordar sem objeções com a lei de Meineke, de que todas as odes de Horácio estariam separadas em estrofes de quatro versos, para defendermos a inversão aqui proposta. Na verdade, embora encontremos mais casos em que o pensamento se enquadra nos quatro versos, dando maior coesão de som e sentido à unidade da estrofe, também notamos que arranjos semelhantes a esse ocorrem em uma estrofe, ou em grupos irregulares, como duas estrofes e meia, o que rompe com a ideia de que apenas a estrofe, ou apenas quatro versos, daria uma unidade inquebrantável de sentido. É diante dessa questão que Collinge, ao estudar o desenvolvimento de cada ode, nomeia o processo como “estrutura do pensamento” (thought-structure), porque a unidade métrica em Horácio não abarca o sentido, muito menos a estrofe, então se torna necessário utilizar outro padrão que responda à complexidade de organização de cada poema (1961, pp. 60-1). Nesse ponto, o argumento de Collinge é primoroso; no entanto, sua visão estrutural e categorizante acaba por apresentar a seguinte divisão para os modos de desenvolvimento das Odes:

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 109

1 – Modos simples:

a) sem resposta – (i) estático (ii) progressivo

(i) estático – I. 6, 8, 11, 16, 20, 23, 24, 26, 30, 34 (talvez progressivo); II. 20; III. 10, 12, 15, 17, 20, 22, 23, 25, 26; IV. 8, 10, 13.

(ii) progressivo – I. 10, 29, 31; II. 2 (com estrutural em anel); III, 19, 30 (talvez 3 estases e uma coda).

b) com resposta – (i) estrófico (ii) (iii) (iv)

(i) estrófico – I. 2, 12, 13, 18, 38; II. 2, 13, 18, 21, 28; IV. 12; e Carmen saeculare

(ii) padronizado – I. 1, 15, 21; III. 1, 16; IV. 5, 7.

(iii) simétrico – I. 22, 32, 33; II, 10; III, 9 (talvez distrófico), 29; IV, 1, 15.

(iv) entrelaçado – I. 14; III, 24.

2 – Modos complexos (quando uma mesma estrofe usa mais de um modo simples):

a) sem resposta – I. 3, 25, 28, 35, 36, 37; II. 11, 13, 15, 18; III. 7, 8; IV. 3, 6, 11, 14.

b) estática e progressiva – I. 5, 7, 17, 17, 18, 27; II. 1, 3, 4, 5, 9; III. 5, 14, 27; IV, 4.

c) sem resposta e com resposta – I. 4, 9; II. 7, 12, 14; III. 11; IV. 2, 9.

d) com resposta – II. 17; III. 3, 6.

Essa apresentação resumida e sistematizada é por minha conta, mas é possível conferir os comentários de Collinge caso a caso (1961, pp. 102-127), e assim constatar que pouquíssimas odes não se enquadrariam no esquema proposto. Gordon Williams, por exemplo, resume a estrutura das odes em 4 tipos: composição em anel, odes com número ímpar de estrofes (com uma estrofe central operando uma mudança), epigramática e por agrupamento estrófico (1969, pp. 22-23). Os modos de análise de tipos de ode podem variar imensamente, na medida em que inserimos mais detalhes como critério de estabelecimento, e está longe da pretensão deste trabalho delimitar uma análise de modo fixo, como a de Collinge ou Williams; porque, como venho demonstrando, prefiro tratar o efeito, que por sua vez depende da intervenção do leitor, que pode estabelecer análises diversas. Além disso, tenho duas ressalvas

110 | COLEÇÃO CLÁSSICA

ao método apresentado por Collinge: em primeiro lugar, sua análise e categorização conseguem apenas pensar a estrutura total do poema, e não seus constituintes; portanto não é capaz de analisar um problema de series e iunctura como o que propus na abertura de 2.10; Collinge, por estar mais preocupado em delimitar os modos de desenvolvimento estrutural do poema, muitas vezes acaba por deixar de lado aquelas pequenas transições que tanto espantavam Hegel. Em segundo lugar, Collinge se restringe à análise formal sem ensaiar uma possibilidade interpretativa decorrente da divisão; ele não pensa em como o desenvolvimento de um determinado poema permite leituras específicas para o poema em questão. Nesse aspecto, a proposta do monumental trabalho de Philippe Zimmermann é mais convincente: para ele, o importante é “compreender como as estratégias retóricas tomam lugar no interior do quadro métrico da ode” (2009, p. 10); isso porque, por um lado, a métrica é um ritmo musical fechado, dado à repetição e ao retorno, enquanto o ritmo discursivo de uma ode, ou sua thought-structure, produz uma progressão do sentido; portanto, quando houver um desencontro entre metro e oração, um efeito também comparece.

Num trecho bastante conhecido da Arte poética (vv. 40-45), Horácio atenta para as sutilezas da composição do poema pelo seu arranjo em desenvolvimento:

Cui lecta potenter erit res, nec facundia deseret hunc nec lucidus ordo. Ordinis haec uirtus erit et uenus, aut ego fallor, ut iam nunc dicat iam nunc debentia dici, pleraque differat et praesens in tempus omittat, hoc amet, hoc spernat promissi carminis auctor.

Se é controlado na escolha, nunca lhe falta fluência, nunca a lúcida ordem . Toda o vigor e a Vênus da ordem, ou muito me engano, são que agora diga o que agora deve ser dito, mas adie o resto e omita no dado momento, que ame isso, odeie aquilo o autor que promete. (grifos meus).42

42 “O que escolher proporcionado assumpto/Elegancia terá, clareza, e ordem.//D’esta ordem, se bem penso, a graça, a força,/Consiste em ir dizendo a tempo as cousas;/Umas

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 111

Charles Brink (ad loc.) afirma que ordo é uma palavra da retórica com sentido similar a dispositio (ou τάξις grega),43 porém menos pesada em sua tecnicidade (less heavily technical); enquanto lucidus evocaria os termos retóricos dilucidum/planum/apertum/perspicuum, considerados normalmente uma virtude do discurso. Os pontos levantados pelo comentador são muito convincentes; resta então avaliar o que decorre de lucidus ordo na poesia, a partir do trecho em questão, porque, como bem assume Brink: “Na crítica literária o papel de ordo é muito menos claro do que na retórica” (p. 128). É curioso, portanto, que os comentadores em geral (Porfirião, Wilkins, Brink, Dotti, Rudd) não expliquem como uma ordem lúcida surge tanto do dizer como do adiar ou mesmo omitir, que é o ponto desenvolvido nos versos subsequentes. Todos eles seguem a lição de Pseudo-Acrão, tomando por óbvio que se trata simplesmente de dizer tudo na hora certa e de adiar com prudência o que será dito depois com mais propriedade.44 Porém Cândido Lusitano

já, outras logo, e outras mais tarde;/Em discernir com dedicado tacto,/O que empregar reléva, ou pôr de parte” (trad. de Seabra). “Se escolherdes assim, em vossos versos/ Sempre vereis luzir facundia, e ordem.//Da ordem toda a graça (ou eu me engano)/Não somente consiste em dizer cousas,/Que não soffrem demora em referir-se./Mas tambem em deixar para outro tempo/Outras mais, que igual pressa estão pedindo.//Este incidente escolha, deixe aquelle,/Quem Poemas ha muito nos promete” (trad. de Lusitano). “A quem pondera o assunto/nem a eloquência falhará nem a ordem clara. Da ordem a virtude e, se não minto, o charme/é dizer já o que se deve já ser dito,/e adiar, e omitir o demais por agora,/que o autor do carme em germe ame isto, exclua aquilo” (Vieira, 2015). Nos dois casos, os tradutores em língua portuguesa vão adiante do que temos pelos comentadores mais recentes: na tradução, eles reforçam a ideia do adiamento como importantíssima para a lucidez da ordem. Já Rosado Fernandes dá um pouco menos de atenção à questão: “A quem escolher assunto de acordo com as suas possibilidades nunca faltará eloquência nem tão-pouco ordem luzida. A virtude e a beleza da ordem consistirão – ou eu me engano – em que se diga imediatamente o que tem de ser dito, pondo muitos pormenores de lado e omitindo-os de momento: que o autor do poema prometido, ora escolha este aspecto, ora despreze aquele”.

43 Cf. Retórica a Herênio 1.3 [Pseudo-Cícero]: “dispositio est ordo et distributio rerum, quae demonstrat quid quibus locis sit collocandum”. Cp. Cícero Da invenção 1.9 e Do orador 2.179.

44 Vt quae debent dici, sine dilatione dicantur; quae non debet dicere pro tempore differat (Pseudo-Acrão, ad loc.). Cp. Tringali (1995, p. 75): “A ordem é a disposição das partes no todo. É a organização. A ordem supõe escolha. Toma-se o material e descarta-se o que não interessa, verificando-se o lugar que convém a cada coisa”.

112 | COLEÇÃO CLÁSSICA

aborda esse trecho de modo um pouco diverso e mais interessante; para ele, debentia dici é um objeto tanto do verbo dicat como de differat, de forma que, por contraposição ao gênero da história, o poeta “deixa para tempo opportuno, pleraque differat, cousas que, segundo a ordem, histórica, devia dizer logo no princípio, jam nunc debentia dici” (1778, ad loc.). Nessa leitura, ele é seguido por Costa e Sá; mas ambos estão mais interessados nesse efeito para a construção da épica (a teoria do in medias res), ou da apresentação da comédia, deixando de lado suas implicações gerais quanto à poética de outros gêneros, como a lírica. Mesmo assim, no seu comentário ao verso 43, Costa e Sá chega ao ponto que mais nos interessa; para ele, assim devemos entender a passagem: “Engane o leitor com huma certa expectação, ou como vulgarmente dizemos, tantalizet, faça-lhe crescer hum grande desejo de saber o que se lhe occulta, e calla” (1794, ad loc., grifos meus). Nessa formulação, o que estaria em jogo seria uma lógica de adiamentos, ocultamentos e revelações, que manipulariam o leitor por meio de logros – ou falsos logros – que então instigariam sua participação (ativa, eu acrescentaria), ação derivada da consciência de que algo está oculto ou calado, mas que faz parte do seu processo de leitura. Nesse caso, não se trata apenas da técnica homérica de in medias res, ou de assuntos de conhecimento geral, como os mitos, que complementariam a leitura; mas também da própria construção de um poema, que cria seus suspenses não apenas pelo adiamento de fatos de uma narrativa, como também de um eixo de informações que não nos é dado, afinal muitas vezes mais vale o não dito do que o dito. Cito como exemplos (sem partir para a análise detalhada), as odes 1.27 e 1.28. Nos dois casos, só nos damos conta de que o poema se desenvolve em tempo real quando chegamos ao meio da leitura, porque alguns dados do contexto ficcional são finalmente revelados e impelem o leitor a retornar ao começo do texto, para rever sua leitura a partir dessas informações. Quando isso acontece, a primeira impressão desaparece do significado do poema (espera-se, portanto, uma segunda leitura), mas permanece como aparato da sua construção; sua ambiguidade sentida na primeira leitura continua ecoando nas leituras posteriores, embora agora já solucionada por uma escolha interpretativa do leitor. Com isso em mente, 1.28 recebe uma curiosa análise, ainda que brevíssima, da parte de Netz (2009, pp. 198-199). Para ele,

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 113

o adiamento da temática do naufrágio remeteria – tal como a abertura sobre a contagem de grãos de areia – ao trabalho de Arquimedes, e não ao de Arquitas, que é a figura nomeada. Esse efeito de negação do nome certo, ou rasura por outro nome, seria então mais um caso de mosaico poético; além de uma prova de que, na Antiguidade, os discursos poético e científico se encontravam. O ponto a que quero chegar se assemelha muito ao que R. W. Carrubba (1967) demonstra, numa análise do epodo 4: ele mostra como podemos determinar uma estrutura dupla do poema (em macro e microescala), que é determinada tanto pelo aspecto lexical como pelo desenvolvimento da ordenação do poema como um todo; como resultado, convivem duas estruturas simultâneas, sem que uma anule a outra. Essa mesma lógica pode certamente ser aplicada às Odes, como ela mesma demonstra na última página do artigo. Disso, podemos concluir que a lucidez da ordem, ou lucidus ordo, resulta não apenas de uma seleção (hoc amet, hoc spernat), mas também de uma ordenação que omite e adia; daí, sua luz provém também da escuridão do não dito, daquilo que não está explicitado no texto; mas insinuado pelo sentimento de uma ausência, de uma necessidade de se completar um vazio no texto.

Diante desses cortes e retomadas, dos contrastes e movimentos abruptos, Elizabeth Jones (2009) propôs uma leitura mais radical, ao comparar a técnica poética horaciana com a técnica de montagem cinematográfica, partindo de uma análise da ode 3.19. A comparação um tanto quanto inusitada da estudiosa pode até ser controversa por seu anacronismo premeditado; o que não se pode negar, entretanto, é que o poema seja construído também de modo a anunciar e retomar, com suas variações, ideias que possam lançar luz umas sobre as outras, construindo um mosaico que ganha imagem apenas na medida em que somos forçados a retornar para repensar o texto de cada ode como um todo, incorporando à leitura aquelas transições bruscas (bem como as retomadas) como parte integrante do sentido. É nesse ponto que faremos mais uma última ampliação fractal da questão até agora desenvolvida, se nos perguntarmos como esse jogo de ditos e não ditos, como essas relações de iunctura, series e ordo podem implicar na leitura do livro, ou dos livros, a partir da sua disposição impressa.

114 | COLEÇÃO CLÁSSICA

2.4. Dispositio dos livros (c)

Quando se discute a disposição dos poemas no livro, não é incomum a pergunta sobre como Horácio escreveu as Odes (cf. Santirocco, 1986, p. 185, n. 58; e Dettmer, 1983, pp. 476-477, para ficarmos em apenas dois nomes), ou seja: os poemas foram escritos com a estrutura do livro preestabelecida, tal como dizia João Cabral de Melo Neto sobre seu método de escrita, ou seria a organização posterior à composição individual dos poemas? Por mais instigante que possa ser imaginar a mente do autor, do ponto de vista da crítica, essa pergunta é de todo irrelevante. Se o método de composição do homem Horácio não se apresenta como parte da leitura por meio, por exemplo, de um metatexto como as entrevistas de Cabral, ou de uma poética horaciana que tratasse esse aspecto da obra; se não se desvela em algum ponto como ele próprio parte do texto poético, é porque temos de lidar com uma forma que não se entrega, que se esquiva e produz sentido na sua forma material dada, sem metafísica da origem. Não quero com isso dizer que dá no mesmo compor assim ou assado, mas que simplesmente está fora do nosso saber; tal pergunta resulta em especulação inócua e sem resposta. Não quero, no entanto, cair num ceticismo como o de Gordon Williams:

No mais, as variações e similaridades temáticas ou métricas ditaram a ordem dos poemas e, ao passo que algumas razões plausíveis para colocações particulares podem ser imaginadas, é uma perda de tempo especular sobre um assunto do qual o próprio poeta provavelmente não tinha a menor ideia e que, de qualquer modo, tem uma ínfima relevância literária (1969, p. 23).

Descrente das possibilidades de interpretação derivadas da complexidade do livro como um todo, Williams cai na falácia autoral, para afirmar que não há nada ali, porque provavelmente o autor não teria plena consciência; como conclusão, afirma que a disposição das odes no livro – ele está interessado no livro 3 – é regida apenas por um sentido vago de variedade métrica e temática, para assim defender que estudos que procurem mais do que isso têm uma mínima relevância poética. Com isso, Williams deixa de relacionar o modelo de composição das Odes com o de outros livros contemporâneos de poesia e assim deixa também de perceber a profunda importância poética da composição do livro, para

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 115

além de um ajuntado de poemas, pelo menos na poética romana do século I a.C. Por um lado, a procura por uma estrutura inequívoca enrijece a leitura e se funda na intenção autoral; por outro, o ceticismo, em geral também embasado na intenção do autor, vê na disposição do livro uma mera ποικιλία sem valor e com isso perde a multiplicidade de relações gerada pelo livro como um todo. Seria possível pensar que a ausência de uma tradução polimétrica portuguesa, que recrie o sistema de diferenças usado por Horácio, acaba por explicitar esse tipo de leitura que vê na variedade de metros apenas um recurso formal desprovido de sentido e valor para além da variedade em si. Mais instigante, por exemplo, é notar que um princípio de organização do livro, a partir da dispositio dos poemas para formar um certo desenho, estava em voga na Roma de Horácio. Temos estudos detalhados sobre como poderiam ser lidos os arranjos dos livros de Tibulo (Bright, 1978), das Bucólicas de Virgílio (Mendes, 1985), Propércio (Janan, 2001, sobre o livro 4), Amores de Ovídio (Souza, 2012), sobre o próprio Horácio em suas obras anteriores, como as Sátiras (Rudd, 2010; Oberhelman; Armstrong, 1995, p. 237) e os Epodos (Hasegawa, 2010), etc.; além disso, temos ainda estudos sobre estruturas que ultrapassam o uolumen para dar conta da obra como um todo, como é o caso da Eneida de Virgílio (Pereira, 2002). Enfim, a lista de estudos e interpretações seria enorme, mas não tenho qualquer intuito de exaustão, e os estudos indicados estão escolhidos mais por sua disponibilidade, ou pelo critério preferencial de estarem em português. No entanto, a ποικιλία métrica e temática em um mesmo livro, tal como aparece em Horácio, é de uma complexidade muito maior do que as formações monométricas e monotemáticas dos livros anteriores da poesia romana, com exceção do Livro de Catulo e dos Epodos do próprio Horácio que, como defende Hasegawa (2010), além de apresentarem variedade métrica, podem ser divididos entre jambos e epodos. A elegia (de Tibulo, Propércio e Ovídio) se centra no tema amoroso, escrita sempre em dísticos elegíacos; as Bucólicas, escritas em hexâmetros, permanecem em ambientes e temas pastoris; e a Eneida é uma épica heroica hexamétrica. Não que o princípio de variação e de cruzamento de gêneros não esteja presente nessas obras, muito pelo contrário; mas, se as compararmos ao feito horaciano dos três primeiros livros de Odes, vemos que sua empreitada aprofunda o processo comum de seus contemporâneos, numa ποικιλία

116 | COLEÇÃO CLÁSSICA

impressionante em que a variedade de temas se multiplica pela variedade de metros, além das elocuções diversas que possam dar conta das várias situações apresentadas a cada poema. Vejamos como o próprio poeta relacionava metros e temas, na Arte poética, vv. 73-87:

Res gestae regumque ducumque et tristia bella quo scribi possent numero, monstrauit Homerus; uersibus inpariter iunctis querimonia primum, post etiam inclusa est uoti sententia compos; quis tamen exiguos elegos emiserit auctor, grammatici certant et adhuc sub iudice lis est; Archilochum proprio rabies armauit iambo; hunc socci cepere pedem grandesque cothurni, alternis aptum sermonibus et popularis uincentem strepitus et natum rebus agendis; Musa dedit fidibus diuos puerosque deorum et pugilem uictorem et equum certamine primum et iuuenum curas et libera uina referre: descriptas seruare uices operumque colores cur ego si nequeo ignoroque poeta salutor? Feitos de reis e seus generais e tristes batalhas com seu metro certo de escrita mostrou-nos Homero; numa junção de versos diversos começa o lamento, logo depois incluiu-se o discurso por voto cumprido; quem porém seria o autor da curta elegia, isso os gramáticos sempre discutem, sub judice ainda; foi a raiva que armara Arquíloco dando-lho o iambo; e este pé os tamancos e grandes coturnos tomaram, certo pra toda conversa alternada, pois que derrota toda balbúrdia do povo, metro nascido pro drama; Musa deu às cordas os deuses e filhos de deuses, deu vencedores na luta, o primeiro cavalo em chegada, as aflições dos jovens e cantos de vinhos libertos: se conservar os modos prescritos e as cores das obras eu não posso nem sei, como é que me chamam poeta?

Estão claras nessa passagem as relações genéricas entre metro e tema (cf. Pseudo-Acrão, ad loc.): para Horácio, os feitos bélicos, sejam eles míticos de reis ou históricos de generais, devem ser cantados no hexâmetro datílico; com o dístico elegíaco, serão cantados o lamento da elegia e o cumprimento de votos do epigrama; a poesia invectiva utilizará

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 117

o pé jambo; a tragédia e a comédia também usam versos jâmbicos próximos à fala; mas a lírica é mais complexa, por ser variada em seus temas. Como observa Oliva Neto (2013, p. 50):

Horácio em três versos descreve com aquela torturante brevidade cinco espécies líricas:

→ lírica hínica no cantar deuses (referre diuos, v. 83) mediante hinos;

→ lírica laudatória ou encomiástica no cantar filhos de deuses, isto é, reis, príncipes ou heróis (referre pueros deorum , v. 83) mediante encômios;

→ epinícia no cantar os vencedores ( pugilem uictorem et equom certamine primum , v. 84), isto é, mediante epinícios;

→ lírica erótica no cantar os cuidados de amor juvenil (iuuenum curas, v. 85), mediante odes;

→ lírica convivial ou simpótica no cantar o prazer dos banquetes e o refrigério de males que é o vinho (libera uina , v. 85) mediante escólios.

A leitura acima proposta tem respaldo da maioria dos críticos: K-H (ad loc.), já havia feito uma divisão em cinco partes como a de Oliva Neto; Rosado Fernandes (Horácio, 2012, p. 117, n. 83) também faz divisão muito similar, porém une encômios e epinícios, o que resulta numa quadripartição, no que segue a leitura de Brink; convém ainda notar, com Brink (ad loc.), que “palavras como hinos e encômios são evitadas, bem como a maior parte da terminologia, na Ars”, o que resulta numa explanação que evita o modo de um tratado.

Na passagem horaciana, em comparação com a épica, a elegia, o epigrama, o jambo e o drama, a lírica apresenta mais temas imediatamente acessíveis; mas essa não é a única questão em jogo, porque mais importante é notar que Horácio nem menciona os metros específicos do gênero lírico, por serem muitos. Ele talvez assuma de seu leitor ao menos a experiência prévia do próprio poeta nas Odes, em que apareceram 13 sistemas diferentes que desenvolvem temas também variados numa complexidade única na Antiguidade, pelo que podemos confirmar dos exemplares que nos chegaram. A complexidade que se exigiria para comentar a lírica do mesmo modo que os outros gêneros impediria a brevidade, “torturante” ou não, necessária ao trecho; o que explica por que o poeta não passa a relacionar cada metro a um tema de forma explícita. Mas esse vazio descritivo de Horácio, somado aos dois versos finais

118 | COLEÇÃO CLÁSSICA

que definem a configuração de um poeta (v. 87, cur [...] poeta salutor?), indicam uma profunda consciência do problema, para talvez chamar a atenção do leitor para as Odes segundo essas categorizações, num esforço de controle autoral sobre a dispersão incontornável das interpretações dos leitores. Nesse momento, poderíamos imaginar que a ποικιλία que aqui aparece como inerente ao gênero lírico, uma vez ampliada pelo gosto helenístico do cruzamento de gêneros, teria sido radicalizada no experimento específico das Odes. A passagem da Arte poética é similar ao que veremos séculos depois, quando Proclo, em sua Crestomatia, chama atenção para a poesia mélica como a mais rica em subcategorias: Περὶ

– “Sobre a poesia mélica, diz que é a mais diversificada e comporta diferentes divisões” (trad. de Ícaro Francesconi Gatti, 2012, p. 115), o que explicaria seus diversos usos religiosos, seculares e mistos. Se confiarmos que o texto de Proclo, provavelmente do séc. II a.C., seria derivado da obra de Dídimo Calcêntero (séc. I a.C.), teremos um sistema coetâneo para essa interpretação antiga da lírica, o que se reforça pela similaridade estrutural em comparação com Horácio, como pensa Gatti, ao afirmar que “semelhantemente ao critério da Crestomatia, Horácio vai do sacro ao profano ou secular, aludindo a exemplos semelhantes ao que, no texto de Proclo, serão três dos grandes grupos em que a poesia mélica aparecerá agrupada” (2012, p. 96). Na verdade, como observa Rossi em dois momentos diferentes (1971, p. 78 e 2000, p. 78), seria possível supor uma decadência da lírica nos períodos clássico e helenístico, dada a dificuldade dos metros, que já não eram praticados na vida social como no período arcaico; se confiarmos nessa possibilidade, poderíamos ver uma radicalidade ainda maior no experimento horaciano, que sistematizava uma gama de metros que mesmo os leitores mais eruditos teriam dificuldade de entender, por meio de uma variedade que soava já muito estranha. Francisco Achcar (1994, p. 32) já nos lembrava da costumeira relação entre a lírica e o pavão descrito por Tertuliano em De Pallio 3.1: multicolor et discolor et uersicolor, numquam ipsa, semper alia, etsi semper ipsa quando alia, totiens denique mutanda quotiens mouenda. multicolor e discolor e versicolor, nunca a mesma, sempre outra, e mesmo sempre a mesma ainda outra, pois cada vez que se move ela se muda.

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 119
δὲ μελικῆς ποιήσεώς φησιν ὡς πολυμερεστάτη τε καὶ διαφόρους ἔχει
τομάς

Diante dessa variedade inerente do gênero, não é de espantar que nos falte uma teoria da lírica mais completa entre os antigos: “nada encontramos que nos sugira a existência de uma teoria da lírica na Antiguidade” (Achcar, 1994, p. 32). Daí nosso problema maior: é preciso analisar em Horácio uma radicalização daquilo que nem foi teorizado pelos antigos e, portanto, cabe a nós elaborar. Face à extrema variação organizacional das odes, sinto-me convencido de que os procedimentos utilizados para analisar as estruturas dos outros livros contemporâneos das Odes não pode ser a mesma para analisar essa poética de mosaicos de que venho tratando. Essa é, por exemplo, a proposta de Helena Dettmer (1983), que chega a formular um sistema completamente simétrico para a estrutura dos três livros das Odes em suas dezenas de poemas (cf. o padrão estrutural, p. 526); Dettmer afirma ainda que “Horácio leva a estrutura ao limite do possível” (p. 473), de modo similar a alguns estudos mais rígidos apresentados por João Pedro Mendes (1985) a respeito das Bucólicas. Apesar do impressionante trabalho de leitura contrastiva e das diversas propostas muito interessantes de interpretação, eu poderia indicar este trabalho sobre composição como o contrário do que pretendo em meu estudo; mas como possibilidade assumida pelos pressupostos teóricos que apresento. É claro que Horácio não criou ex nihilo uma forma completamente nova de poesia, ou mais especificamente de livro de poesia, na Antiguidade; até porque, como se sabe, a organização sistemática de livros em variedades misturadas de metros e temas é certamente de origem alexandrina, ou pelo menos foram usadas e apreciadas com mais intensidade a partir desse período. Isso talvez tenha se dado pelas edições alexandrinas dos poetas gregos arcaicos: como bem lembra Pighi (1958, p. 38), no caso de Safo, tudo nos leva a crer que cada um dos livros de μέλη (cantos, lírica) comportaria apenas um sistema métrico (o livro 1, por exemplo, apresentava apenas estrofes sáficas), enquanto nos μέλη de Alceu haveria uma maior mistura métrica (havia sáficos em livros diversos, e a abertura do livro 1 seria com respectivamente um poema em estrofe alcaica seguido por outro em estrofe sáfica). Mas, nesses casos, estamos diante de edições muito posteriores aos autores e que, portanto, obedeciam a um projeto e a um gosto helenístico; por isso talvez seja melhor buscar influências nas criações do período. Além disso, como observa Santirocco (1986, p. 11), temos nos fragmentos dos Jambos de Calímaco um exemplar no

120 | COLEÇÃO CLÁSSICA

mínimo interessante sobre a composição do livro helenístico, que deve ter servido de modelo para a criação de Horácio nos Epodos e Odes, pois ali vemos uma composição de metros e temas variados, uma dispositio no livro que nos leva a considerar que ela também é dotada de sentido. Dee L. Clayman (1980, p. 48), por exemplo, vê na variedade calimaqueana um “efeito de taxis ataktos, uma variedade ou poikilia sempre interessante e de aparência casual controlada pelo artista para criar um todo esteticamente agradável”. O mesmo pensa Barchiesi (2007, p. 149); no entanto, há problemas para interpretar seu sentido possível nos Jambos de Calímaco por dois motivos: o estado fragmentário em que nos chegou, e também uma construção com 13 ou 17 poemas (quatro μέλη que talvez não façam parte do livro), o que interfere bastante nas nossas possibilidades interpretativas. Seja como for, é provável que outros livros do período helenístico tivessem um mesmo tipo de construção, como a Guirlanda de Meléagro; mas em todos os casos temos apenas fragmentos que nos vetam qualquer interpretação que não seja muito conjetural.45 Em Roma, poderíamos nos perguntar sobre como se organizariam alguns livros anteriores a Horácio, como as Sátiras de Ênio, ou de Lucílio, ou mesmo a obra do predecessor lírico de Horácio, as Erotopaegniae de Lévio; mas novamente lidamos apenas com fragmentos. As obras supérstites mais próximas da variedade apresentada nas Odes seriam O livro de Catulo e a Priapeia (ambos estudados e traduzidos por Oliva Neto, 1996, 2006), mas nos dois casos temos problemas quanto à interpretação da unidade do livro tal como nos chegou. No caso de Catulo, há um longo debate sobre a organização do livro ser ou não póstuma: cf. um sumário em Thomson, 1998, pp. 6-11, que aponta para a possibilidade de três livros catulianos, bem como Oliva Neto, no prelo, e Skinner, 2003 e 2007). Na Priapeia latina nem sequer temos a garantia de um autor único. Não obstante, nada impediria que encontrássemos padrões de arranjo nos dois livros, seja por um editor posterior das obras, seja por nossa capacidade

45 Sobre a caracterização de romano vs. grego e suas possíveis implicações na literatura, as palavras de West resolvem o problema: “Rome in the age of Horace was a Hellenistic city, interpenetrated by all forms of Greek culture. To ask whether a poem or part of a poem is Hellenistic or Augustan is a waste of time. The Augustan includes the Hellenistic” (1995, p. 39).

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 121

humana de perceber padrões praticamente em tudo; ou seja, a intenção do autor não precisa estar em jogo. De qualquer modo:

As Odes de Horácio superam os poemas líricos de Catulo pelo seu uso persistente dos complexos metros líricos eólicos que foram apenas ocasionalmente realizados por seu predecessor: quando Horácio afirma ser o primeiro a produzir lírica lésbia em latim, o que ele indica é que foi o primeiro a fazê-lo de modo consistente numa coleção inteira (Harrison, 2007b, p. 267) [embora sempre devamos lembrar da tópica do primus entre os romanos]

No entanto, é preciso insistir no fato de que, tal como parecem ter sido uma empreitada radical de Horácio na história da poesia romana anterior a ele, as Odes permaneceram um caso único por séculos, porque, pelo que podemos saber, nenhum escritor latino da Antiguidade compôs um livro de lírica comparável às Odes (Tarrant, 2007, p. 279).

Na proposta de leitura que venho desenvolvendo, o conceito de estrutura fechada, ou de uma leitura da dispositio do livro que nos leve a um significado unívoco encerraria o processo proposto. Antes pretendo demonstrar como a organização do(s) livro(s) das Odes tende para a organização de temas e metros recorrentes, que vão estabelecendo diálogos possíveis por correlação; porém, como os níveis ficam muito complexos (temas, metros, fraseologias,46 contextos, reminiscências de outras obras, etc.), uma vez iniciada a máquina intertextual interna do livro, seu potencial é praticamente ilimitado, e, como já disse, a leitura total dessas séries heterogêneas resultaria em puro ruído ou puro silêncio. Não quero, entretanto, propor um “vale-tudo” de leitura paras as Odes, e o que tentarei delimitar a seguir são alguns dos efeitos identificáveis, para apresentar modos como podem ser lidos: não há esgotamento na proposta, mas apenas indicação de modos de abertura. Penso, portanto, num crescimento de níveis que mantém parte do modo de funcionamento, tal como Santirocco (1986, p. 175):

De certo modo, o que críticos tão diversos quanto Nietzsche e Petrônio julgaram admirável na ode individual aplica-se convenientemente tam-

46 Um exemplo claro está na repetição integral do verso Mater saeua Cupidinum, de 1.19.1, em 4.1.5; que produz um jogo que, inclusive, extrapola o limite mais básico dos 3 primeiros livros, para interligar o livro 4 ao conjunto anterior de odes.

122 | COLEÇÃO CLÁSSICA

bém à coleção mais ampla, sua semelhança com um mosaico intricado e sua incomparável curiosa felicitas.

Assim, se voltarmos aos conceitos de iunctura e series para determinarmos como funciona a dispositio dos livros, poderíamos apresentar uma resposta rápida, sobretudo para series. Por dedução, a series é a sequência de poemas tal como nos é apresentada no decorrer dos livros; enquanto a iunctura são as possibilidades sintáticas de relacionamento entre poemas. Essas possibilidades sintáticas são várias e muito mais abertas do que no caso da frase, em que a morfologia reduz as possibilidades de leitura; aqui elas se complementam por meio do olhar do leitor que, tal como num mosaico, pode ver em peças distantes a realização de um desenho maior. O que apresento a seguir é como esse movimento complexo se dá em sua duplicidade: por um lado, forma iunctura por agrupamentos de odes, ou relações a longa distância, ao mesmo tempo que também sugere contrastes nas odes mais próximas dentro da series; por outro torna muito vago o limite de interpretação sobre como acontecem essas relações.

2.4.1. Metro

Nenhum dos estudiosos das Odes parece discordar de que os poemas ofereciam em sua variedade métrica um notável tour de force inaudito para o público romano. É o que o próprio Horácio defende na epístola 19.32-3:

Hunc quoque, non alio dictum prius ore, Latinus uulgaui fidicen. Iuuat immemorata ferentem ingenuis oculisque legi manibusque teneri. Esse [Alceu], que nunca uma boca cantara, na lira latina eu divulguei. Adoro mostrar um imemorável , pego nas mãos e lido nos olhos dos livres (grifos meus).

A imitação de Alceu e da estrofe alcaica, para Horácio, é um ponto para a inovação sem modéstia, não apenas por ser o primeiro a buscar poesia nessa fonte; há algo de inaudito nas Odes, o que se reforça ainda mais pelo possível neologismo de immemorata a partir do grego ἀμνημόνευτος (cf. Mayer, 2012, ad loc.). Mas sabemos que ele imitou muitos poetas mais, nos temas e nos metros; nem é por acaso que Ovídio o descreve

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 123

como numerosus Horatius (Tristia 4.10.49; a respeito da influência de Horácio sobre Ovídio, cf. Tarrant, 2007). Podemos apontar como um dos efeitos mais óbvios dessa variedade o encontro de similaridades, como no caso já muitíssimo comentado de que 1.1, o primeiríssimo, e 3.30, o último dos três primeiros livros, tenham um profundo diálogo. O primeiro argumento, e o mais óbvio, é que essas são as únicas odes escritas no metro asclepiadeu 1, ou menor, no corpus das Odes 1-3; com isso, as Odes realizam ritmicamente (ao modo de uma sinfonia) uma retomada que apresenta o encerramento – é no longuíssimo adiamento da recorrência do primeiro metro (portanto numa espécie de hipérbato descomunal) que se estrutura um efeito de composição em anel para os 3 livros: a Ringkomposition que costumeiramente se aplica à construção interna de poemas funciona aqui como modo de composição não de um livro, mas de livros. A completa inexistência de outro poema no mesmo metro ao longo de todo um corpus de 88 odes só aumenta a sensação inesperada de equilíbrio composicional. Nos Epodos, nós já poderíamos ver um cuidado na escolha da palavra de abertura do livro (ibid., “irás” 1.1) e na palavra de encerramento (exitus, “saído”, 17.81), que amarram a construção geral com ideias de movimento. Procedimento similar ao das Odes acontece também em Propércio, já que o último poema do livro 3 claramente evoca os temas e fraseados do primeiro do livro 1. No entanto, como já observei, não há tanta variedade métrica e temática nas Elegias que possa criar esse efeito que aqui chamei hipérbato. Se pensarmos na tradição, Hasegawa (2010, cap. 1) apresenta diversos casos gregos (Calímaco em Jambos e Epigramas; a Guirlanda de Meléagro e de Filodemo, etc.) e latinos (Virgílio, Catulo, Propércio, Lucrécio) de amarração entre o primeiro e o último poema de um corpus; o caso mais notável é a relação entre a presença de sombras (umbra) na abertura e encerramento das Bucólicas (1.4 e 10.75-6), mas que também aparecem no encerramento da Eneida, dando uma unidade a todo o corpus hexamétrico de Virgílio, para além da unidade de cada obra; o mesmo acontece ainda com a retomada de Títiro em Bucólicas 1.1 e Geórgicas 4.566, já bem próximo ao encerramento.

Porém, nas Odes, a junção é feita pela identidade métrica, e não só pela retomada temática ou fraseológica; isso se torna ainda mais claro quando percebemos que os temas também são similares, pois ambos

124 | COLEÇÃO CLÁSSICA

tratam da imortalidade do poeta. Comparemos o encerramento dos dois poemas:

Quod si me lyricis uatibus inseres, sublimi feriam sidera uertice.

(1.1.35-6)

Se me deixas viver vate entre os líricos 35 com a fronte sublime astros irei ferir.

Sume superbiam quaesitam meritis et mihi Delphica lauro cinge uolens, Melpomene, comam.

(3.30.15-16)

Toma-te o mérito da soberba que dou e orna me o délfico louro às têmporas, vem, doce Melpômene.

Eles não se repetem, mas se complementam a partir de sua posição na organização geral dos três primeiros livros das Odes, dando uma formação circular e um sentido de todo ao grupo publicado provavelmente em 23 a.C. G. O. Hutchinson (2002) apresenta a proposta de que os três primeiros livros teriam sido escritos e publicados separadamente (sugere as datas de 26, 24 e 23 a.C.). Com isso, ele busca determinar certa individualidade dos livros, mas acaba por concluir pela sua unidade construída ao longo das publicações, como no caso dos livros 1-3 das Elegias de Propércio, ou na própria construção dos quatro livros de Aetia de Calímaco. Para a análise que faço, essa questão é de pouca relevância, pois tento demonstrar as possibilidades de construção tanto de cada livro separadamente como dos livros como um todo; nesse sentido, sua ordem de publicação não importa tanto quanto sua unidade formal, tal como a identifica Hutchinson. O que, afinal, vemos é que a ode 1.1, depois de apresentar um priamel sobre as variedades de interesses e labores humanos, termina com a imagem do poeta pedindo ao humano Mecenas a possibilidade de se inserir entre os vates líricos, para poder alcançar a imortalidade; está, pois, ainda no campo do pedido, da tentativa de realização do trabalho por fazer, ou, mais precisamente, por ser lido pelo leitor; já em 3.30, o poeta começa em elocução elevada, declarando que

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 125

sua realização alcança e supera o poder de um monumento físico, para declarar – e não mais pedir – a imortalidade de sua obra, de modo que, nas últimas palavras o poeta exige sua coroa de louros, com o imperativo cinge, diretamente à deusa Melpômene, enquanto assume a soberba, agora merecida, porque o trabalho está terminado, ou melhor, a leitura do livro está terminada. Com isso, a datação dos poemas também se torna pouco relevante para nós, pois importa muito menos quando foram escritos –por exemplo, a suposição de que 1.1 seja o último do corpus –, do que como se relacionam depois de inseridos no livro. O mesmo se pode dizer sobre seu contexto original: uma vez no livro, o texto se destina a todos, funciona independente da origem específica e ganha um novo contexto diferente que implica novas interpretações.

O que acontece nesse caso é que a identidade métrica convida o leitor a buscar similaridade temática entre os poemas para fazer um todo; o procedimento do poeta, neste caso, é uma callidissima iunctura, para o encerramento do livro. Metro e tema convergem de modo complementar, a composição em anel retoma o início da obra, ao mesmo tempo que aponta para o futuro histórico, suas relações de continuidade com a língua latina e com o império romano, e convida o leitor a corroborar a imortalização do poeta. Mas mesmo que encontremos uma maior unidade nos três primeiros livros das Odes, podemos ler o quarto livro como uma releitura que ao mesmo tempo ressignifica a obra anterior, mesmo nos seus metros. Se em Odes 1-3 o asclepiadeu menor só aparecia em 1.1 e 3.30 criando o hipérbato que comentei, outro efeito notável é o de 4.8, que retoma o asclepiadeu menor e o tema da perenidade da poesia; porém opera um falso fim, que é reforçado pelo encerramento lexical em exitus (4.8.34 idêntico ao dos Epodos). Aqui o efeito é o de sugestão que não se concretiza: na verdade, estamos no centro exato do quarto livro, e não nas margens, como nos casos anteriores.

Entretanto, as relações métricas não precisam ser sempre apenas de identidade, mas também por uma recorrência numérica somada de contraste: há um detalhe talvez fundamental na organização do livro 1 já observado por Riese (1866): todas as odes de unidade 2 (1.2, 1.12, 1.22 e 1.32), bem como todas de unidade 0 (1.10, 1.20 e 1.30), são sáficas; além disso, o asclepiadeu 2 aparece a cada 9 odes (1.6, 1.15, 1.24 e 1.33), sendo sempre precedido por um asclepiadeu 3 (1.5, 1.14, 1.23),

126 | COLEÇÃO CLÁSSICA

com a exceção de 1.32, que está ocupado pela estrofe sáfica. Essa série de recorrências numéricas apresentam novos pontos de relação para além do metro e da temática puras, pois insere também recorrência de posições e retomadas que configuram uma espécie de ritmo do livro.

Um efeito também pode surgir pela diferenciação métrica radical; é o caso, por exemplo, de outra série de poemas muito estudada, a série chamada comumente de Paradeoden, o desfile ou parada de odes. Santirocco (1986, pp. 14-41) apresenta uma interpretação a partir da sua diferença de metros; Dettmer (1983, pp. 140-167) ainda por cima as analisa em contraposição aos poemas 3.25-3.30; e Minarini (1989), que resenha diversas leituras já feitas sobre a abertura e a estrutura dos livros 1-3, mas tende a pensar em termos de “vontade ordenadora ab initio” (p. 19), portanto de interpretação das intenções do autor. Mas vejamos em que consistiria esse desfile do ponto de vista métrico e temático:

1.1. asclepiadeu 1: invocação ao patrono Mecenas, desejo de imortalidade;

1.2. estrofe sáfica: caos natural, guerra civil, Augusto como ultor da pátria;

1.3. asclepiadeu 4: propemptikon, imprecação contra a impiedade da navegação;

1.4. arquiloqueu 4: natureza circular x inexorabilidade da vida, carpe diem;

1.5. asclepiadeu 3: a tempestade do amor, o poeta praeceptor amoris por experiência;

1.6. asclepiadeu 2: recusatio de guerras em favor de banquetes, poética calimaquiana;

1.7. alcmânio: recusatio de temas gregos pelos romanos e consolação no vinho;

1.8. sáfico maior: os riscos da sedução, o otium amoroso como problema cívico;

1.9. estrofe alcaica: carpe diem, os temas da natureza, do amor e do banquete.

A série inicial de variação temática e rítmica é um tour de force que explicita o programa das Odes nos campos poético e ético: no desfile de odes

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 127

vemos uma prévia dos principais temas e metros que serão retomados e desenvolvidos ao longo do(s) livro(s). Por si só, o contraste métrico dos poemas apresenta um sentido para além da semântica específica de cada um, e é no mosaico deles, por diferenças e repetições, que percebemos uma imagem maior surgir pela correlação. Vemos um processo similar na abertura do livro 2, em que temos uma altercação, durante 11 odes, entre estrofe sáfica e alcaica, novamente numa relação contrastiva, porém neste caso ela é binária. E mais, a partir do que venho mostrando, as interpretações de função de uma ode não se restringem a apenas um enquadramento. A ode 1.1, por exemplo, passa a ter pelo menos dois diálogos simultâneos: um com a estrutura geral dos três livros e outro com a apresentação do primeiro livro. Na verdade, poderíamos, se houvesse espaço para tanto, imaginar suas relações no sistema asclepiadeu como um todo, que envolve quatro tipos diferentes; já que para Karl Numberger (1959), o sistema asclepiadeu seria capaz de reger os livros 1 e 3 criando uma série de simetrias (cf. o resumo em Minarini, 1989, pp. 51-56). As relações podem ficar extremamente complexas.

Mas voltemos apenas às odes iniciais em desfile: muito embora essa disposição de 9 poemas seja a mais comum entre os estudiosos, ela não é a única. Alexandre Hasegawa (2010, p. 52), por exemplo, entende que 1.10 entra no desfile, para encerrá-lo por meio da primeira repetição da estrofe sáfica, com o hino a Mercúrio (cf. minhas notas a 1.10). Assim, se retirarmos 1.1 como poema de abertura e 1.2 e 1.10 como uma espécie de moldura do desfile, a série apresentaria ainda uma simetria no número de versos de cada ode, formando o seguinte esquema:

1.3 (40 vv.) + 1.5 (16 vv.) = 56 vv.

1.7 (32 vv.) + 1.9 (24 vv.) = 56 vv.

1.4 (20 vv.) + 1.6 (20 vv.) + 1.8 (16 vv.) = 56 vv.

Assim, as duas primeiras odes ímpares (1.3 e 1.5) seriam simetricamente opostas às duas últimas ímpares (1.7 e 1.9), enquanto a sequência e intercalada de odes pares (1.4, 1.6 e 1.8) medeia o processo, sendo que, em cada um dos casos, a soma do número total de versos em cada grupo resulta no número 56. Tiro livremente o esquema de Hasegawa 2010 (cf. Apêndice), que também apresenta outro para as Odes 3.1-6, com a mesma lógica de soma de versos, onde teríamos a seguinte estrutura:

128 | COLEÇÃO CLÁSSICA

3.1 + 3.4 = 3.2 + 3.6 = 3.3 + 3.5 = 128 versos. Com isso ainda teríamos outra similaridade de que 3.2 + 3.3 = 3.5 + 3.6 = 104 versos. Se levarmos em consideração que essas leituras também integram à sua interpretação o número de versos de cada poema, para sustentar numa tradução a possibilidade de leitura baseada em números, é necessária a manutenção do mesmo número de versos, o que faz parte do meu projeto tradutório. No entanto, não precisamos ver a estrutura das Paradeoden apenas nas primeiras 9 ou 10 odes, porque 1.11, como apresenta um novo metro – o asclepiadeu 5, ou maior – e formata o conceito de carpe diem, poderia indicar a variedade do início, com sua breve repetição em 1.10 e nova variedade em 1.11. Uma leitura curiosíssima de Helmut Rahn (1970) reforçaria a interpretação do desfile para as 11 primeiras odes. Para ele, o livro 1 é construído com 38 poemas em imitação à estrofe sáfica, por sua vez composta de 38 sílabas (com três hendecassílabos e um pentassílabo adônio); assim o livro seria dividido em 3 peças de 11 poemas (1.1-11, 1.12-22 e 1.23.33) e uma de 5 (1.34-38); como se pode ver, a primeira peça seria coincidente com as Paradeoden, terminadas em 1.11. Percebese, a leitura de Rahn é arriscada, mas propõe uma resposta engenhosa ao problema do número de 38 poemas. Nesse caso, a manutenção de sílabas das estrofes também seria fundamental para novas leituras, outro ponto que mantenho em minha tradução. Mas sabemos que, mesmo chegando a 1.11, a variedade métrica horaciana ainda não está completa; na verdade, dois metros ainda estão por aparecer no corpus: o hiponacteu, em 2.18, e o jônico menor, em 3.12; além do arquiloqueu 1, que só aparece em 4.7. Certamente há cartas na manga do poeta. Minarini (1989, pp. 25-26) faz excelente resumo das muitíssimas leituras para as Paradeoden e demonstra como mesmo as questões menos dissensuais recebem leituras muito variantes. Diante disso, não poderíamos, por fim, radicalizar a leitura e fazer o desfile durar até 1.12? Nessa ode, temos uma nova repetição da estrofe sáfica,47 indicando que a série de grandes variações está, de fato, terminada, ao mesmo tempo que –por iunctura de identidade métrica – a ode retoma 1.2 e 1.10, formando

47 Na verdade, há uma diferença nesta estrofe sáfica, com relação à estrofe da ode 1.2; aqui as cesuras incidem depois da sexta sílaba, o que poderia, talvez, configurar um novo sistema métrico.

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 129

uma espécie de harpejo conceitual sobre as guerras civis, a importância de Augusto para a retomada dos mores maiorum (costumes dos antepassados) e a salvação da pátria, e uma sugestão para a figura de Mercúrio (cf. minhas notas a 1.12). Há ainda a possibilidade de retirarmos 1.1 da série se a considerarmos como poema introdutório, anterior ao desfile. Mas, afinal, o que essa profusão de indeterminações sobre a delimitação das Paradeoden nos indica? O que temos aqui é o princípio de mosaico já em ação: delimitar a iunctura e o sentido dessa iunctura será sempre ato de leitura, porque não há na materialidade do texto uma indicação sobre começo ou fim das Paradeoden: “Horácio borrou intencionalmente os limites do desfile” (Santirocco, 1986, p. 42). Talvez tenha sido diante de uma leitura similar que Kajetan Gantar (1984) propôs a divisão simétrica do livro 1 em 5 partes: 1.1-5 (5 odes), 1.6-15 (10 odes), 1.16-23 (8 odes), 1.24-33 (10 odes) e 1.34-8 (5 odes), mas, com isso, acabou com a possibilidade de ler as Paradeoden com no mínimo 8 poemas. Com todos esses problemas, não se trata mais de avaliar qual foi a intenção do poeta na disposição das odes iniciais, mas apenas de constatar que Horácio, seguindo as regras romanas de editoração em voga no seu tempo, não separou seu livro em seções claras como em livros modernos (e.g. Waste Land de T. S. Eliot); e as identidades ou diferenças métricas apenas sugerem, mas não impõem uma leitura; de modo que fica a cargo do leitor estabelecer se tal ou tal correlação procede, ou seja, se ela forma uma imagem no seu mosaico. Por delimitação de espaço, nem sequer trato da questão de que um poema como 1.1 funciona simultaneamente na iunctura com 3.30 e na series das Paradeoden, além de poder ser estudado por posição (questão que levantarei mais adiante) com os outros poemas de abertura, 2.1 e 3.1, e com os temas da imortalidade, como no caso de 2.20. É por causa dessa diversidade de entrecruzamentos possíveis que sugeri anteriormente, ainda que en passant, o conceito deleuzeano de rizoma.

Neste momento, julgo necessária uma pequena digressão sobre a forma do livro em Roma. É de conhecimento geral que a escrita romana (como a grega) não necessariamente separava as palavras por espaço ou ponto, não continha muitos sinais de pontuação como os utilizados atualmente, não quebrava os versos ou estrofes em linhas e que – o mais importante para o nosso caso – não separava os poemas de modo inequívoco.

130 | COLEÇÃO CLÁSSICA

Em resumo, o uolumen podia ser uma parede de letras, mesmo no caso da poesia, o que é comumente designado como scriptio continua. Sobre a escrita e o livro em Roma, é fundamental o trabalho Françoise Desbordes (1995), sobretudo o cap. 16, em que ela se detém sobre as dificuldades de leitura e argumenta que a scriptio continua não era a única regra em Roma, mas que, em todo caso, os processos de leitura contavam com pouquíssimos sinais e separações. Para ela, “as insuficiências da escrita são um obstáculo a uma realização oral correta e completa. Mas, sobretudo, e é o que mais chamou a atenção dos antigos, são uma fonte de ambiguidade” (p. 208, grifos meus). Como mero exemplo, transcrevo abaixo o modo como provavelmente se poderia encontrar escrito num uolumen os primeiros seis versos do livro 1 das Odes:

MAECENASATAVISEDITEREGIBVSOETPRAESIDIVMETDVLCEDECVSMEVMSVNTQVOSCVRRICVLOPVLVEREMOLYMPICVMCOLLEGISSEIVVATMETAQVEFERVIDISEVITATAROTISPALMAQVENOBILISTERRARVMDOMINOSEVEHITADDEOS

Ou talvez com discreto interpunctum entre as palavras:

MAECENAS·ATAVIS·EDITE·REGIBVS·O·ET·PRAESIDIVM·ET·DVLCE·DECVS·MEVM·SVNT·QVOS·CVRRICVLO·PVLVEREM·OLYMPICVM·COLLEGISSE·IVVAT·METAQVE·FERVIDIS·EVITATA·ROTIS·PALMAQVE·NOBILIS·TERRARVM·DOMINOS·EVEHIT·AD·DEOS·

E caberia ao leitor, por seu conhecimento dos códigos de escrita e de metrificação, deduzir não apenas qual era o sentido do texto, mas também qual era o metro e, portanto, a apresentação poética. Nesse sentido, o texto é muito menos óbvio do que para um leitor contemporâneo que se debruça diante da seguinte edição de Shackleton Bailey para o mesmo texto:

Maecenas, atauis edite regibus, o et praesidium et dulce decus meum: sunt quos curriculo puluerem Olympicum collegisse iuuat, metaque feruidis euitata rotis palmaque nobilis terrarum dominos euehit ad deos;

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 131

em que um código editorial muito mais complexo tenta evitar uma série de ambiguidades possíveis na leitura do texto, por meio de pontos, vírgulas, separação clara entre palavras, uso de letras maiúsculas e minúsculas, quebra do verso, etc. Se levarmos isso em consideração, é preciso formularmos pelo menos dois corolários para o livro de poesia antigo: em primeiro lugar, a própria divisão dos poemas era uma atividade do leitor e, portanto, não necessariamente coincidente entre dois leitores, em outras palavras, a unidade do poema escrito em um uolumen antigo era instável, por causa do modo de escrita; em segundo lugar, esse fator deve ser levado em conta como parte da obra numa crítica sobre poesia antiga, ou seja, a inevitável instabilidade das edições antigas (um efeito de leitura de que hoje não dispomos porque editamos os textos de poesia sob o critério visual herdado de tradições muito posteriores) condicionava não apenas os modos de leitura, mas muito provavelmente os modos de escrita. Fica claro que a indeterminação sobre os limites do poema era um fator importantíssimo do livro antigo, que é ainda pouco considerado nos trabalhos de crítica; mesmo que saibamos, pelas discussões de McLuhan (cf. 1977; e McLuhan & Fiore, 1969), entre outros, como os meios interferem na realidade mental dos seres humanos. Nesse universo, que nas Paradeoden é o leitor que delimitará, por um critério métrico e não apenas temático, onde os poemas começam e terminam. Em livros monométricos isso pode ser muito difícil: no caso de Propércio, por exemplo – sobretudo no livro 2 –, as discussões sobre onde começam e onde terminam os poemas são intermináveis (cf. Fedeli, 2005; e Heyworth, 2009), em grande parte porque não se pode aplicar o critério de diferenciação métrica.

Aqui chegamos a um problema em geral também pouco comentado. Há poucos momentos em que a tradição nos lega duas ou mais odes horacianas com o mesmo metro em sequência: 1.16 e 1.17; 1.26 e 1.27; 1.34 e 1.35; 2.13, 2.14 e 2.15; 2.19 e 2.20; 3.1 até 3.6; e 4.14 e 4.15 (em estrofe alcaica) e 3.24 e 3.25 (em asclepiadeu 3).48 Nesses casos, o padrão sugerido pelas Paradeoden se torna instável: o leitor pode ou não

48 Cf. minhas notas aos poemas mencionados. Há ainda os dez poemas iniciais nos Epodos, que adotam o mesmo metro, além dos epodos 14 e 15, também de metro idêntico e sequenciais.

132 | COLEÇÃO CLÁSSICA

dividir o poema, agora segundo critério temático; e mais, o ponto de divisão também não é necessariamente inequívoco, embora na maioria dos casos haja concordância entre os leitores. Vejamos, por exemplo, o caso das famosas “Odes Romanas”, também conhecidas como carmina de moribus, normalmente editadas como 3.1 a 3.6. Muito embora nós as editemos como seis poemas diversos, sabemos que Porfirião (que as chama ode multiplex, ad loc.) e Diomedes (GL: 525, 1-3 Keil) já viam na identidade métrica e temática a continuidade de apenas um poema.49 Aqui a questão deixa de ser se a série de versos constitui ou não uma só ode: na proposta que venho levantando, essa questão não procede, porque deriva do próprio modo de escrita e divulgação do livro (se eu tratasse os poemas segundo a intenção do autor, poderia dizer que tal ambiguidade fosse intencional da parte de Horácio). Portanto, em certo sentido, os versos que constituem as Odes Romanas são e não são um só poema: depende do mosaico e de como o leitor depreende a identidade métrica em relação com os temas desenvolvidos. Com isso, o número de poemas por livro (e com isso, toda a possibilidade de estrutura fixa) se torna instável numa análise da dispositio das Odes: O livro 1, por exemplo, pode ter de 35 a 38 poemas; o livro 2, de 17 a 20 poemas; o livro 3, de 24 a 30; o livro 4, 14 ou 15.

Um último caso importante a ser julgado – e que torna as relações ainda mais complexas – é a questão do ethos de um determinado metro

49 Como ponto de vista oposto, K-H identificam na semelhança métrica uma unidade, que não deve levar à conclusão de que se trate de um só poema; é interessante ainda o estudo de Syndikus (3-6), em que tenta demonstrar como a composição das odes foi feita em períodos distintos e que as três primeiras guardam maior unidade. Hasegawa (2010, p. 51), seguindo a cuidadosa estrutura de análise proposta por Paul Maury (1945), fica com a tradicional leitura em 6 odes diferentes, apurada por uma leitura bastante simétrica com bases numéricas (que em parte também se aproxima das análises em anel de Port, 1926, Wili, 1948, Perret, 1959, Oppermann, 1959, Salat, 1976; e Duckworth, 1956, embora este último opte por ver uma dupla estrutura sobreposta); enquanto Griffiths (2002, pp. 73-79) apresenta uma instigante visão das odes como um só poema, finamente estruturado, com base no estudo de Klingner (1952). Também, se confrontarmos as três séries de aberturas dos três primeiros livros, vemos uma tendência que aponta para a unidade métrica de 3.1-6: no livro 1, temos uma sequência inicial de 9 ou mais metros diversos; no livro 2, temos 11 poemas que alternam entre estrofes alcaicas e sáficas (2.1-11) e no livro 3 uma abertura monométrica (3.1-6).

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 133

e do seu uso nas Odes, isto é, da relação intertextual que mantém com a tradição poética anterior: Penna (2007, pp. 97-100) apresenta uma série de tabelas, nas quais expõe os metros horacianos e suas relações temáticas, de modo que propõe algumas iuncturae a partir desses dois critérios, além de sugerir, no capítulo seguinte, uma análise do ethos decorrente das relações entre temas e metros (cf. ainda a análise dos metros proposta por Zimmermann, 2009, pp. 55-65). Um exemplo digno de nota, dentre muitos, é o uso do hexâmetro datílico em 1.7 para cantar o mito de Teucro, logo depois de 1.6, que fazia uma recusatio de temas épicos; a proximidade entre temas, com a adição do metro típico da épica heroica, sugere uma leitura irônica do poema como um todo (Commager, 1962, p. 115).

Assim, as inúmeras possibilidades combinatórias ficam a cargo do leitor.

2.4.2. Posição

Duas ou mais odes também podem ser contrastadas por sua posição no livro. Por exemplo, é possível traçar diálogos entre as três odes de abertura dos livros (1.1, 2.1, 3.1 – ou 3.1-6, se considerarmos que se trata de um só poema), todas com caráter programático, porém muitíssimo diversas. Poderíamos considerá-las uma callida iunctura da arquitetura geral dos três livros, tal como a que apontei entre 1.1 e 3.30? Qualquer análise teria que levar em conta que, se por um lado a posição indica uma convergência, de outro, os programas explicitados não são idênticos, nem os metros. Ou então poderíamos fazer, como Fraenkel (1957, pp. 297-307), uma análise das três odes de encerramento (1.38, 2.20 e 3.30) para notarmos como há elevação na elocução do seguinte modo: 1.38, em estrofe sáfica, termina o livro 1 em chave menor, com um poema curto e de singeleza, talvez amorosa, talvez meramente simpótica; em 2.20, em estrofe alcaica, o poeta alça voo, em metamorfose que anuncia a possibilidade de imortalidade transfigurada pela obra; para em 3.30, como já comentei, assumir sua soberba e confiar plenamente na imortalidade da obra e do nome. Mesmo que o livro 4 das Odes esteja fora da mais intrínseca unidade dos três primeiros livros, ainda poderíamos nos perguntar sobre as relações de 4.1 com as outras aberturas, bem como a de 4.15 com os outros encerramentos, o que mostra como o quarto livro, mesmo sendo muito posterior, pode apresentar um processo de releitura e recontextualização da obra anterior.

134 | COLEÇÃO CLÁSSICA

Outro modo mais complexo de leitura seria divisar uma composição em anel para a obra como um todo, como Helena Dettmer (1983, pp. 140-167), que analisa as simetrias invertidas de 1.1/3.30, 1.2/3.29, 1.3/3.27 (e não 3.28), 1.4/3.28 (e não 3.27), 1.5/3.26 e 1.6/3.25. Nesse caso, Dettmer busca identificar sintagmas combinados, para promover uma iunctura mais complexa que se dá tanto entre pares de poemas, como pelas duas séries de poemas, que, por sua vez, realizam um novo par composto invertido (1.1-5 e 3.30-25). Por fim, ainda poderíamos pensar em poemas centrais (1.19 no livro 1; 2.10 e 2.11 no livro 2; 3.15 e 3.16 no livro 3; e 4.850 no livro 4), nas relações entre fim e começo de livros em sequência (1.38 e 2.1; ou 2.20 e 3.1), ou nas oposições entre séries de abertura e séries de encerramento de cada livro, como propusera Fritz-Heiner Mutschler (1974) uma construção em anel entre 1.1-3 e 1.38-36, do seguinte modo:

1.1 – 1.38 = ócio do poeta

1.2 – 1.37 = Otaviano Augusto vencedor

1.3 – 1.36 = partida e retorno de um amigo

Essa comparação ainda retinha similaridades métricas que reforçavam a relação entre as odes; 1.2 e 1.37 são escritas em metros eólicos (respectivamente, estrofes sáficas e estrofes alcaicas); enquanto 1.3 e 1.36 estão escritas em asclepiadeu 2. O próprio Mutschler ainda aventou uma segunda possibilidade, com maior similaridade métrica, do seguinte modo:

1.1 – 3.30 = metapoesia (asclepiadeu 1)

1.20 – 1.38 = banquete e poesia (estrofe sáfica)

1.2 – 1.37 = Otaviano Augusto vencedor (metros eólicos)

1.3 – 1.36 = partida e retorno de um amigo (asclepiadeu 2)

Podemos concluir que, em cada passo, as possibilidades se multiplicam, e vários desses poemas podem funcionar em várias relações ao mesmo tempo, recebendo sentidos diversos em cada uma das junções

50 A centralidade muda, é claro, se mudarmos o número de poemas, como já atentei em uma nota anterior. Acontece, ainda, um processo interessante no centro do livro 4: as odes 4.8 e 4.9 apresentam a poesia imortal, enquanto 4.7 e 4.10 apresentam a mortalidade humana, numa construção em quiasmo.

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 135

possíveis, a depender das amarrações interpretativas dadas pelo leitor. A própria separação de modos acaba por ser mais didática do que efetiva, porque vemos como metro e posição podem coincidir com temas.

2.4.3.

Temas

A similaridade temática de dois poemas distanciados pela series também pode ser compreendida como uma iunctura capaz inclusive de lançar luz sobre eles: podemos aproximar essa técnica do Leitmotiv (cf. Minarini, 1989, p. 206 e ss.). De modo oposto, a divergência abrupta de dois poemas em conjunto também pode criar um efeito de contraste na series. Alguns exemplos anteriores já apresentavam iunctura que envolvia também a temática; tratarei aqui de outros casos, e apenas da similaridade, mas indico, como exemplo de divergência dotada de muito sentido, a sequência de 1.37, com a grandiosa ode alcaica sobre Cleópatra, e 1.38, com o encerramento sáfico em chave menor, em que elocução, tema e metro criam um intenso contraste entre duas odes próximas na series. No caso das similaridades, considero que iunctura e series podem interferir bastante sobre as possibilidades de leitura. Se consideramos a recorrência temática um eixo importante, é possível ler as odes 2.4, 2.5, 2.8 e 2.9 como um ciclo sobre o tema amoroso, tal como defende Friedrich Eisenberger (1980, pp. 262-274). No desenvolvimento do seu artigo, Eisenberger propõe que esse ciclo temático ainda auxilia na leitura de 2.1-12 como um ciclo maior que incorpora diversos temas em disposição quiástica que dá centralidade a 2.6 e 2.7 com sua temática amorosa; assim posição e tema criam uma série de iuncturae que contribuem para uma análise do livro 2 como um todo. Se, por outro lado, escolhermos, por exemplo, um destinatário como ponto temático de estudo, poderíamos analisar as odes dedicadas a Mecenas (1.1, 1.20, 2.12, 2.17, 2.20, 3.8, 3.16 e 3.29), em cada livro ou em todos, para avaliar como elas relacionam poeta e patrono, ou para pensar algumas formulações de amicitia. Para Matthew Santirocco (1986, pp. 153-158), por exemplo, há um desenvolvimento do poeta em relação ao patrono: em 1.1, Horácio apresenta um respeito afastado diante de Mecenas; já em 1.20, a atmosfera é de amizade e intimidade; assim o poeta cresce, até uma proclamação de superioridade em 2.20, com sua imortalidade; de modo que, no livro 3, sobretudo em 3.29, podemos ver quase uma

136 | COLEÇÃO CLÁSSICA

inversão da humildade inicial de 1.1, que prepara o leitor para o encerramento grandiloquente em 3.30. O mesmo poderia ser feito com figuras ficcionais, como a persona de Lídia (1.8, 1.13 e 1.25), para criar o efeito de um ciclo num contexto (contra Santirocco, cf. Minarini, 1989, pp. 113-114), pois podemos ver uma espécie de historieta se construindo na ordem em que seus poemas aparecem. Não se trata, obviamente, de assumir que se trata sempre da mesma persona em cada um dos poemas, mas apenas de observar como uma determinada recorrência lexical do nome permite o entrecruzamento dos poemas numa leitura mais ampla. Por fim, também poderíamos estender esse tipo de análise às similaridades de construção, tais como: 1.27 e 1.28, que têm o mesmo modo de apresentação em “tempo real”; ou a figuração de um mesmo deus, como no jogo em anel de 4.1.1 e 4.15.32, que apresentam a presença fundamental de Vênus; etc.

Gostaria de tratar também, ainda que brevemente, da ode 1.15, cuja construção um tanto estranha apresenta a previsão de Nereu a Páris, enquanto este leva Helena para Troia. Temos um poema de matéria exclusivamente mítica, incomum nas Odes, que assim parece deslocado e de sentido muito vago: a primeira estrofe funciona como um enquadramento para a fala profética de Nereu, enquanto Páris nem é nomeado, mas indicado apenas como pastor perfidus. Depois temos: (5-8) o resumo da história da guerra de Troia; (9-12) a apresentação da guerra, com Atena apoiando os gregos; (13-20) a fidelidade de Páris a Vênus, deusa do amor, e sua falta de capacidade para a guerra; (21-28) a apresentação de alguns heróis gregos; (29-32) um símile de caráter homérico, em que Páris aparece como um cervo amedrontado; e (33-36) o encerramento da matéria iliádica, ou seja, a ira de Aquiles adia a ruína de Troia, mas não a impede; assim o poema se encerra com a imagem do incêndio final da cidadela. A ode, em si, não apresenta maior complexidade de leitura do sentido imediato; porém sua estranheza no corpus nos leva ao questionamento sobre as possibilidades de sentido que ela pode ganhar na series ou a partir de uma iunctura. Joseph Currie (s/d, ad loc.), por exemplo, considera que “a ode é gratuitamente interpretada por alguns como escrita na iminência da última guerra civil entre Otaviano e Antônio”; disso, Currie implica que interpretações para além da superfície imediata sejam descartáveis e talvez por isso mesmo seja incapaz de relacionar esta

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 137

ode com as outras ao seu redor. No entanto, se compararmos esta ode com outras, vemos que ela pode, sim, ganhar e lançar muito sentido. Primeiro com a series, podemos contrastar com a ode precedente: 1.14 trata de uma barca desgovernada, usualmente lida como a alegoria da barca do Estado ou como alegoria erótica, mantendo assim similaridade com o tema náutico que inicia 1.15 e sugerindo a importância alegórica do poema como possível tema político e sexual. Na sequência, 1.16, temos uma palinódia de tema amoroso, e em 1.17 um poema pastoril, portanto retomando o pastor Páris, de 1.15, e uma Tindáride, que é o patronímico de Helena, filha de Tíndaro (cf. minhas notas aos poemas).

Porém essas poucas similaridades mais permitem aprofundamento sobre as leituras das odes 1.14, 1.16 e 1.17 em sua atmosfera geral e particular, cujas análises demandariam um espaço excessivo que cairia numa longa digressão;51 portanto, talvez melhor seja buscar uma ode distante que esclareça alguns pontos temáticos importantes de 1.15, tais como: problemas políticos, crítica moral, a paixão amorosa como ruína para todo um povo e o significado que podemos atribuir ao povo troiano.

Uma boa passagem de contraste poderia ser a ode 1.37, em que Cleópatra e Marco Antônio aparecem como uma dupla pérfida, que também nunca é nomeada, tal como Páris em 1.15; nesse sentido, a posição moral de Páris e Helena, com a ruína de Troia, seria espelhada na figura de Marco Antônio e Cleópatra como possível ruína de Roma; porém em 1.15 teríamos mais ênfase sobre a culpa de Páris/Marco Antônio, enquanto em 1.37 a ênfase estaria em Helena/Cleópatra. De algum modo, a previsão de Nereu para Páris se completa duplamente com a derrota de Cleópatra na batalha do Ácio –uma batalha naval que retoma os temas náuticos de 1.14 e 1.15 e amplia suas relações –, o que permitiria, em seguida, a tranquilidade do poeta em 1.38, no mundo da pax Augusta. Outra possibilidade de iunctura que desenvolveria os ecos troianos na ética e na política romana seria a longa fala de Juno nas Odes Romanas (3.3.18-68): por similaridade temática, entendo que temos aqui também

51 Como apenas um exemplo de interpretação possível, Santirocco (1986, pp. 46-49) defende uma abertura das leituras alegóricas (revaluation of C. 1.14 as an open allegory) de 1.14 e de suas relações – também alegóricas – com 1.15; assim, cada modo de ver 1.14 (como símbolo do estado em crise, dos vícios, ou da vida erótica) altera o modo de entendermos 1.15.

138 | COLEÇÃO CLÁSSICA

a figura de uma divindade (Nereu/Juno) realizando uma crítica moral (para Páris/para a assembleia dos deuses), sobre como a insanidade das paixões arruinarão todo o povo troiano. Porém a fala de Juno acrescenta um dado importantíssimo, a saber, o mito de que Roma foi fundada por troianos, o mito de Eneias, mote da Eneida virgiliana; desse modo, Roma e Troia estão comparadas, são a reencenação do mito na história, e é seguindo essa ideia que Juno adverte (3.3.57-64):

Sed bellicosis fata Quiritibus hac lege, ne impium pii rebusque fidentes auitae tecta uelint reparare Troiae.

Troiae renascens alite lugubri fortuna tristi clade iterabitur, ducente uictrices cateruas coniuge me Iouis et sorore.

Mas para os belicosos quirites eu por lei profiro o fado pra que jamais por piedade e confiança restabeleçam a antiga Troia. 60

Se Troia volta, em lúgubre augúrio sua fortuna em triste carnagem cai: levando os bandos vencedores eis-me a esposa e irmã de Jove.

Se considerarmos que há na semelhança temática uma possível iunctura, a aparente obscuridade do sentido de 1.15 agora nos convida à interpretação por contraste: a crítica moral de Nereu a Páris, sua ameaça de ruína é a mesma que se faz aos romanos, que, se retomarem os tetos de Troia (isto é, se tentarem fazer de Roma uma nova Troia em todos os sentidos – e daí podemos implicar os costumes troianos), também Roma será arrasada, como Troia fora antes arruinada pelos gregos. O ciclo da história se apresenta em Horácio condicionado pelo livre-arbítrio: os romanos podem escolher entre manter totalmente suas origens troicas, ou aperfeiçoar sua moral para serem os imperadores e civilizadores do mundo bárbaro. Assim, as origens rústicas de Roma podem ser vistas como um eco da criação de Páris como pastor junto ao monte Ida; porém,

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 139

uma vez feita essa relação, é importante que o romano, pastor de origem, não se torne igualmente perfidus. Diante dessa guinada na interpretação de 1.15, podemos pensar que ela também tem a estrutura de uma callida iunctura com hipérbato – é como se víssemos primeiro um adjetivo que por certo tempo permanece na series sem o substantivo que ele deve alterar. O sentido permanece vago até que algo o complementa muito adiante, fazendo uma espécie de acorde que pode envolver 1.14, 1.15, 1.37 e 3.3; com esse complemento, podemos ver que o poema agora dialoga com um dos temas centrais das Odes, que é a ruína e as guerras civis decorrentes da impiedade do povo, já anunciado desde 1.2. Dessa forma, uma vez feita a distante iunctura entre 1.15 e 3.3, a ode se ressignifica profundamente; então nós poderíamos mais uma vez analisá-la em relação a outras odes, pelo mesmo viés da temática. Também, agora que vemos que ela trata simultaneamente da política romana e do cuidado das paixões, poderíamos nos perguntar como ela se relaciona com 1.14 (a alegoria se altera pela leitura política e/ou amorosa?), com 1.16/1.17 (o que se implica na palinódia amorosa? O que fazemos com o espaço da Sabina, diante dos riscos da paixão amorosa, qual a moral aqui implícita?), etc. As possibilidades de leitura podem se ampliar junto com os entrecruzamentos que vão surgindo; e as alterações sobre as outras odes anunciam novos diálogos e releituras potencialmente inesgotáveis.

2.4.4. Subgênero poético

Muito próximo ao critério de iunctura por similaridade temática é também por similaridade genérica, ou seja, quando duas ou mais odes funcionam num mesmo subgênero, tal como hino, propemptikon, paraklausithyron, etc.; o que significa que é possível fazer a junção por critérios formais (os aspectos típicos, lexicais, organizacionais), ou temáticos (topoi variados, ao modo dos estudos de Francis Cairns sobre gêneros poéticos). A partir de uma análise das posições dos hinos no livro 1, Alessandra Minarini (1989, pp. 204-214) interpreta a disposição do livro como um todo: para ela, os hinos centrais são 1.2, 1.12, 1.21 e 1.30, todos a uma distância aproximada de 10 odes; assim, tomando os hinos como um eixo divisor, ela exclui 1.1 das Paradeoden para resumi-las aos poemas que vão de 1.2 a 1.11, que apresentam certa inquietude quanto ao futuro; assim, o segundo hino com louvor a Augusto dá início a um

140 | COLEÇÃO CLÁSSICA

segundo momento do livro, com o convite ao banquete; na terceira parte, teríamos novamente o medo da morte; e na quarta a reafirmação da eternidade mediante a poesia. Poderíamos dividir as simetrias propostas por Minarini da seguinte forma:

1.1 Proêmio

1.2-11 Paradeoden, hino a Augusto vingador e medo do amanhã (negativo)

1.12-20 Hino a Augusto, com convites ao banquete (positivo)

1.21-29 Hino a Diana e Apolo, medo da morte (negativo)

1.30-38 Hino a Vênus, eternidade da poesia (positivo)

Assim, para Minarini a série de hinos, ou seja, sua relação subgenérica, cria quatro ciclos, que por sua vez se amarrariam pela similaridade temática numa continuidade, que é o que podemos ver no próximo tópico, da atmosfera.

Em conclusão: a quadripartição do I livro dada pelos hinos é funcional com a articulação temática. Em cada uma das quatro seções, encontramos, particularmente marcado, um dos grandes temas da lírica de Horácio: carpe diem , banquete, morte, poesia. [...] No nível sintagmático também a dispositio contribui para uma leitura assim orientada, e a sucessão dos temas nas várias odes projeta em grandes dimensões o movimento da ode individual (Minarini, 1989, p. 213).

Os quatro ciclos, por sua vez, se organizariam mediante uma bipartição em dois macrociclos dúplices, com estrutura de pergunta (negativa, temerosa) e resposta (positiva, afirmativa), com a hesitação diante do medo da morte e a reafirmação da poesia como escapatória para a imortalidade.52

Há que se notar, no entanto, que Minarini deixa de lado o importantíssimo hino a Mercúrio, de 1.10, o que compromete bastante sua proposta, já que tenta forçar uma regularidade quase numérica e, com isso, apaga um ponto fundamental do livro, ainda por cima incluso na categoria genérica que ela mesma havia eleito como enquadramento básico.

52 Alexandre Hasegawa, num artigo recente (2012b), propõe uma análise similar para o livro 4 das Odes a partir do aparecimento das figuras divinas de Vênus, Melpômene, Apolo e Augusto.

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 141

Porém o estudo dos subgêneros não é tão simples, pois, como observam N-H (1970, p. xix), muitas odes horacianas não se enquadram numa subcategoria preexistente de poesia antiga; e mais, como insiste Philippe Zimmermann (2009, p. 17), Horácio realiza um jogo de hibridização genérica que realiza um efeito de polifonia complexa no todo do livro. Como resultado inevitável da dificuldade de caracterização e do constante cruzamento de gêneros (Kreuzung der Gattungen), um mesmo poema pode ser inserido em mais de um subgênero e, portanto, estabelecer elos diferentes com outros poemas dos livros, criando novas teias interpretativas. Mais uma vez, a abertura se mostra maior do que imaginaríamos à primeira vista.

2.4.5. Fraseologia e léxico

Serei breve neste exemplo, por ser talvez dos mais óbvios. É de conhecimento geral dos estudiosos (e.g.: N-H a respeito de 1.19, ou Thomas, 2011, ad loc.) de Horácio a retomada ipsis litteris que acontece em 4.1.5, Mater saeua Cupidinum, que era o verso de abertura de 1.19, ode escrita no mesmo metro asclepiadeu 4, Mater saeua Cupidinum. Sem sequer me deter sobre as possíveis intertextualidades com Píndaro (frag. 122.4: ματέρ᾽ ᾽Ερώτων / ... ᾽Αφροδίταν, “Afrodite... mães dos Amores”), Baquílides (9.73: μα]τ[έρ᾽ἀκ]νάμ[π]των Ἐρώτων, “mãe de destroçantes Amores”) e Filodemo (Anth. Pal. 10.21.2: Κύπρι Πόθων

ἀελλοπόδων, “Cípria mãe dos Desejos de pé-tormenta”), é possível perceber nessa retomada bastante óbvia um procedimento de amarrar o distante quarto livro à coleção anterior dos três primeiros livros de Odes pelo tema do retorno relutante ao amor. Assim, o retorno ao gênero lírico é também um retorno à tópica simpótica e amorosa que faz parte desse mesmo gênero; mas aqui o retorno poético é relutante tal como fora relutante o retorno amoroso de 1.19: da hesitação específica do tema amoroso, Horácio amplia a questão para o próprio fazer poético. E mais, o jogo poético não se resume à mera repetição, pois, se em 1.19 o verso abria o poema, em 4.1 ele está em pleno desenvolvimento, de modo que logo percebemos que já há uma palavra anterior que atenua toda a questão, dulcium, pois o trecho como um todo se lê dulcium / Mater saeua Cupidinum; o que, por sua vez, cria um oximoro entre a doçura (dulcium) dos Cupidos e a crueldade (saeua) da mãe, ao mesmo tempo que forma uma estrutura simétrica em que mater saeua

142 | COLEÇÃO CLÁSSICA
μῆτηρ

fica completamente cercada por seus filhos, dulcium... Cupidinum, o que poderia levar o leitor a pensar na tópica do amor grego como γλυκυπικρός, “agridoce”, (Safo, frag. 40), segundo Romano, 1991, ad loc. Além disso, as similaridades trazem à tona a questão sobre quem seria Cínara em 4.1.3-4, que logo parece ser amor antigo do poeta (cf. minhas notas ao poema). Ora, esse nome não aparece nos livros 1-3, o que levou alguns comentadores, como K-H (ad loc.), a cogitar a hipótese de que fosse a mesma figura poética de Glícera, que aparece em 1.19, sobretudo porque os nomes têm a mesma forma de anapesto, tal como aparecem em cada poema, além de estarem ambos no caso genitivo: Glycerae (1.19.5) e Cinarae (4.1.4). Se fosse esse o caso, seria também possível ligar a este diálogo o poema 1.30, o hino a Vênus que também menciona Glícera? Nesse caso, teríamos dois pontos: a invocação a Vênus e a menção da amada. Ou deveríamos apontar para a ode 4.13.21 e ss., onde Cínara aparece como morta? Ou mesmo nas Epístolas, em que o mesmo nome aparece duas vezes: 1.7.28 e 1.14.33? Mas nesse caso já sairíamos das nossas possibilidades. De qualquer modo, nas Odes as reminiscências não param aí: a construção dos vv. 4.1.21-4 recorda os 3.19.18-20:

Illic plurima naribus

Duces tura lyra que et Berecyntia

Delectabere tibia

Mixtis carminibus non sine fistula (4.1.21-4, grifos meus).

Lá perfumes de bálsamos sentirás ao ouvir liras a ressoar, berecíntias tíbias e enlaçando à canção timbres de fístula ;

Insanire iuuat: cur Berecyntiae

Cessant flamina tibiae ?

Cur pendet tacita fistula cum lyra ? (3.19.18-20, grifos meus).

Doce é enlouquecer: por que calaram-se berecíntias tíbias ?

Por que tácitas são liras e fístulas ?

Pela segunda vez, estamos diante de poemas com o mesmo metro asclepiadeu 4 e com repetições bastante óbvias: a expressão Berecyntia

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 143

tibia só aparece nesses dois trechos das Odes e na exata mesma posição; de modo também importante, outras palavras se repetem, tais como lyra e fistula, além do possível eco (uma rima à distância?) entre naribus de 4.1 e sororibus de 3.19, na mesma posição no verso. Qual não é a nossa surpresa ao ler no último verso de um poema tão metapoético como 3.19 o nome de Glícera? Obviamente a mera sobreposição entre Cínara e Glícera não funciona, como bem defendem Thomas e Romano; mas o que fazer com o resto das inter-relações? Horácio joga com as possibilidades, e o mesmo poema 4.1, ao retomar poemas diversos do corpus anterior de odes, encena a inserção do livro quarto, criando a possibilidade de um corpus maior, criado a posteriori. Com isso, não quero defender que o quarto livro de Odes seja intrinsecamente relacionado aos primeiros três, esquecendo-me de que foi escrito anos depois da tríade; mas que o modo como ele se abre reconfigura a unidade de Odes 1-3 para dar espaço a uma nova coleção de poemas que, apesar de estar cronologicamente separada, estará genericamente incluída nas possibilidades de conexão e nas ampliações das leituras.

De modo mais sutil, talvez, há outras reminiscências que se tornam mais fortes por sua proximidade. Darei dois exemplos muito importantes para a conexão da series do livro 1. Os primeiros dois versos de 1.31 são: Quid dedicatum poscit Apollinem / uates? (“Ao consagrar a Apolo, o que rogará / o vate?”). Enquanto a primeiríssima palavra do poema seguinte (1.32) é Poscimur53 (“Rogam-me”). É inevitável perceber a complementaridade não só entre os poemas, como também na função do vate, que ora pede, ora é pedido, ora requisita ao deus, ora é requisitado pelo mundo humano; não à toa Apolo aparece na primeira estrofe de 1.31 e na última de 1.32, criando uma espécie de composição em anel que atravessa dois poemas e que é anunciada pelo verso inicial de cada um, que apresenta o mesmo verbo na sua forma ativa e em seguida na passiva: neste caso, a aproximação lexical revela uma leitura forte que une os dois poemas.

53 Há discordância entre editores e comentadores sobre essa variante: outra alternativa editorial seria poscimus (o mesmo verbo na forma ativa); o que mudaria drasticamente meu argumento, mas em nada alteraria a profunda relação entre as duas odes, garantida pela presença do mesmo verbo com a mudança de pessoa da terceira do singular para a primeira do plural, ou seja, a tomada de voz do poeta, que chama para si o dever de ser um uates.

144 | COLEÇÃO CLÁSSICA

Um último exemplo, com interpretação própria, para encerrarmos esta subseção com a abertura de 1.25 e 1.26:

Parcius iunctas quatiunt fenestras iactibus crebris iuuenes proterui (1.25.1-2, grifos meus).

Pouco atacam contra as janelas juntas impudicos jovens com tantos baques Musis amicus tristitiam et metus tradam proteruis in mare Creticum portare uentis (1.26.1-3, grifos meus).

As Musas me amam! Medo, tristeza e dor no mar de Creta entrego pro despudor do vento:

Aqui a repetição do adjetivo proteruus pode parecer gratuita, já que nenhum dos comentadores a que tive acesso menciona a coincidência; porém, se nos atentarmos, as relações não serão tão vazias de sentido. No primeiro caso, os jovens são protervos porque atacavam, bêbados, as portas da mulher, seguindo o costume do κῶμος grego, quando os homens saíam bêbados batendo nas portas das mulheres da cidade; enquanto, no segundo caso, os ventos do mar Crético recebem tal adjetivo: qual a relação? Uma possibilidade é cruzar trechos ao modo de um ideograma poético poundiano e perceber nas duas construções horacianas um padrão de comparações, ou uma espécie de metáfora implícita à distância: se a = b = c, pela lógica, podemos deduzir que a = c. Ora, se iuuenes = proterui = uenti; logo iuuenes = uenti, ou seja, os ventos indicam metaforicamente os jovens. O que está em jogo nos dois casos é a troca possível de similaridades: os jovens, tal com os ventos violentos, batem às janelas da casa até quase quebrá-las; e, de modo similar, os ventos do mar de Creta se movem incessantemente como os jovens lascivos atrás de uma cortesã. Curioso é notar como, em contraposição à violência e lascívia desenfreada dos jovens de 1.25 e dos ventos de 1.26, o poeta se apresenta estavelmente determinado a cantar uma guirlanda para seu Lâmias em 1.26.6-8 e tranquilamente distante de Lídia e dos jovens em 1.25, já que não se revela ao longo de toda a ode. O que se percebe nos três casos mencionados é que uma similaridade fraseológica ou apenas

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 145

lexical entre duas odes pode dar abertura suficiente para que se inicie uma nova interpretação de ambas, que, por sua vez, pode convidar a entrar no jogo novos poemas que não estariam previamente imaginados, tal como no caso de se relacionar 1.30 com 4.1 a partir das conexões mais óbvias com 1.19 e 3.19. Nesse caso, como se determinaria com clareza o ponto em que se deve parar ou iniciar a interpretação? Minha sugestão para relacionar 1.25 e 1.26, bem como 1.31 e 1.32, numa iunctura de origem fraseológica ou lexical indica que as possibilidades de leitura ainda são várias, algumas pouco ou nada discutidas, mas que podem ser recriadas numa tradução poética atenta a esse tipo de problema.

2.4.6. Atmosfera

Como último ponto a ser tratado aqui – e sem achar que com isso esgoto as possibilidades de combinação54 –, gostaria de comentar um efeito aparentemente mais vago, ou subjetivo, que é a “atmosfera”, um conceito utilizado por Collinge. Segundo Collinge, ela é criada quando parte da series de poemas também coincide com uma constância temática, fazendo com que o leitor as possa agrupar na sua interpretação; portanto, podemos ler essa atmosfera como uma complexificação na series do que analisamos na subseção anterior. Com isso em mente, ao analisar os efeitos decorrentes da ordem das odes, Collinge nota que, numa série como 3.9-12, Horácio é capaz de sustentar um mesmo assunto ao longo de odes muito diferentes quanto a gênero, elocução, léxico, metro, etc.

Não se trata de modo algum de monotonia:

Decerto elas têm os seus toques individuais. A primeira [3.9] tem um final esperançoso; a quarta [3.12] é escrita do ponto de vista de uma

54 Harry Strickhausen (1985) propõe uma organização que foge a todas essas apresentadas até o momento: para ele, o jogo principal da estruturação das Odes está na oposição entre poemas com números pares de estrofes, e poemas com números ímpares. Ao fazer um levantamento, ele chega a uma conclusão no mínimo curiosa: no livro 1, são 19 poemas pares e 19 ímpares (uma razão de 1 para 1); no livro 2 são 15 pares e 5 ímpares (razão de 3 para 1); e, no livro 3, 20 pares e 10 ímpares (razão de 2 para 1). Embora a constatação material demonstre médias incrivelmente divisíveis, as conclusões sobre esses contrastes são pouco produtivas, tais como a de que poemas pares seriam “sérios” e poemas ímpares mais “leves”, ou que seriam respectivamente otimistas e pessimistas.

146 | COLEÇÃO CLÁSSICA

jovem dama; e enquanto a heroína de 10 é saevo nupta viro, a de 11 (ou seja, o personagem protático, Lide: vamos por ora ignorar o episódio de Hipermestra) é nuptiarum expers et adhuc protervo cruda marito. Embora a tópica seja a mesma ao longo das odes, para demonstrar suas facetas variadas (1961, p. 48).

Com isso, cria-se um efeito de continuidade e de variação em plena continuidade. A questão da atmosfera, apesar de muito importante, no entanto é vista por Collinge como inerente aos poemas, e não como reflexo da leitura; penso, por outro lado, que seria mais instigante pensar o conceito atmosfera em todo o seu potencial de subjetividade, como efeito previsível, mas não completamente, já que o leitor pode alterar as atmosferas de acordo com seu processo de leitura. O interessante nesse conceito é que nele o leitor vê a series de odes com metros diversos coincidir com a iunctura temática; porém, se ela se prolonga, como no caso de 3.9 a 3.12, o leitor pode tentar depreender subsintagmas entre as odes, para realizar iuncturae menores. A variação de registro na mesma atmosfera produz uma série de pontos de vista ligeiramente diversos que podem se complementar criando uma imagem maior e mais completa. No caso, vemos Horácio tratar o amor de diversos pontos de vista: em 3.9 ele e Lídia dialogam sobre o amor na perspectiva do tempo passado, presente e futuro, com um completo desapego que reforça a ideia de carpe diem – ambos estão satisfeitos com amores do presente, sem precisar crer na imortalidade deles; no devir das paixões, o desapego torna a vida mais tranquila, e o que temos é uma mediocritas situada entre o turbilhão elegíaco e a resignação estoica. Em 3.10, o poeta faz um paraklausithyron diante da porta de Lice, mulher casada, mas termina com a imprecação de que seu sentimento não durará muito, e que ela não terá mais quem a ame (ameaça típica da poesia amorosa e elegíaca), de modo que o poeta apaixonado não se entrega completamente, como Propércio e Tibulo, que muitas vezes se imaginam morrendo de amor. Em 3.11, o poeta evoca com sobriedade o deus Mercúrio para conseguir seduzir a tímida jovem Lide, e narra o mito da fidelidade conjugal de Hipermestra, a única Danaide que não matou o marido. Por fim, em 3.12, Neobule parece assumir a voz do poema e lamenta não poder gozar de seus amores. Rapidamente percebemos como cada poema, além de ter uma elocução e matéria próprias, também cria uma, por assim dizer,

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 147

macroelocução capaz de abordar a temática amorosa por pontos de vista diversos: 3.9 trata do amor desapegado, livre do casamento; 3.10 trata de adultério, num registro próximo, mas não idêntico, ao gênero elegíaco; 3.11 toca no tema do noivado e do casamento, com a imagem da virgem a ser seduzida (Lide) e a virgem fiel ao marido (Hipermestra); e por fim 3.12 trata da mulher que não consegue ter amores, por proibição do tio. A atmosfera dessa passagem de odes não se resume, portanto, à univocidade fácil, embora em leitura possamos extrair uma moral do carpe diem amoroso em todas elas, ligada a um conceito pouco ortodoxo de fidelidade amorosa. Esse ponto poderia ainda gerar um novo contraste: por um lado, diversas odes apresentam uma conformidade em relação à política augustana; por outro, uma parte da ética amorosa horaciana vai de encontro à política marital proposta por Augusto. Esse embate pode ainda nos dar uma imagem mais complexa das relações entre o poeta e o império. Ainda outra hipótese para o grupo é aventada por Viktor Pöschl (1981), que acrescenta os poemas 3.7 e 3.8 ao grupo, de modo que acaba por encadear toda essa atmosfera de 3.7-12 no final das Odes Romanas, o que demonstra como a ideia de agrupamento, ainda que baseada em retomadas temáticas ou formais, implica uma atividade do leitor crítico que realiza o enquadramento e a seleção do que pode ser analisado.

Um caso ainda mais complexo é o que Michèle Lowrie (1995), num artigo, intitulou como parade of lyric predecessors, um desfile de predecessores líricos, que iria de 1.12 a 1.18, imitando os estilos de Píndaro (1.12 imita a ode olímpica 2.1), Safo (1.13 imita o frag. 31, Voigt), Alceu (1.14 imita a tópica da nau do estado), Baquílides (1.15 imitaria alguns ditirambos de Baquílides, segundo Fraenkel, 1957, p. 59), Estesícoro (1.16 imita a palinódia do frag. 192 PMG), Anacreonte (1.17 faz referência explícita à lira de Teos) e novamente Alceu (1.18 imita metro e tema do frag. 342 L-P), para encerrar a série; nesse caso, é a própria variedade que chama atenção para um tipo diverso de continuidade, como no desfile métrico das odes, antes apresentado. E mais, se considerarmos a possibilidade de encerrarmos o primeiro desfile métrico em 1.12, com a repetição da estrofe sáfica, ele coincidiria com o segundo desfile, agora de estilos líricos gregos, que por sua vez só terminaria com uma nova repetição, do estilo de Alceu.

148 | COLEÇÃO CLÁSSICA

Como espero ter demonstrado, o importante no conceito de atmosfera é não pensar que seja apenas atribuição impressionista ao texto, mesmo que ele implique toda a subjetividade do leitor. Trata-se de momentos em que a temática recorre em maior ou menor grau ao longo de uma série e, portanto, convocam uma posição crítica que identifique, delimite e interprete as possíveis iuncturae. O mesmo efeito analisado por Collinge sob essa nomenclatura já havia sido analisado também por Richard Heinze, num artigo de 1923, a respeito de alguns grupos de tríades de odes, tais como 1.36-8, que ele nomeou Trinklieder, cantos sobre bebida, e 3.9-11, que deu origem à leitura de Collinge, após este inserir 3.12 ao grupo, ou seja, intervindo como leitor; outros casos dignos de nota são 3.17-19 e 3.26-28, ou mesmo as Odes Romanas (3.1-6), se considerarmos que, apenas nesse caso em todo o corpus, haverá uma grande coincidência prolongada de metro, elocução e tema, o que gera, por isso mesmo, um efeito inesperado.55

2.5. Abre-se a obra?

A complexidade que emerge dessa variedade de entrecruzamentos está agora clara. Se um mesmo processo – por si só bastante variável na prática e nos efeitos – de relacionamento entre series e iunctura pode ser aplicado em três níveis diferentes, ao modo de um mosaico fractal, para convidar a interferência ativa do leitor, que poderá depreender sentidos que ultrapassam o significado do texto, então o corolário inevitável dessa hipótese teórica é uma aproximação com a ideia de obra aberta, ou,

55 Como última análise de rodapé, gostaria de mencionar o trabalho de David Porter (apud Minarini, 1989, pp. 92-100). O estudioso propõe uma leitura simétrica do livro 1 em quatro partes (1.1-12, 1.13-19, 1.20-26 e 1.27-38) a partir de uma análise de metros e destinatários. Assim dois critérios já se fundem na delimitação (metro e tema), mas ele acaba por criar outro critério, pois cada uma das partes passa a funcionar como uma espécie de atmosfera com simetrias particulares; além disso, a posição das odes também chama a atenção (com a divisão simétrica, isso ganha relevo ainda para as odes centrais), e cada parte, por sua vez, passa a funcionar como um subsintagma em que metros, temas, etc., passam a ter ainda outra função. Porém, como observa Minarini (1989, p. 97), apesar do esforço para dar uma ordem bastante fixa ao livro mais difícil, as estruturas concêntricas de cada parte são resultado de uma análise bastante frágil e tendenciosa.

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 149

ainda mais, de obra em movimento, tal como propunha Umberto Eco no livro Obra aberta, originalmente publicado 1962. Como já insisti na introdução deste estudo, não pretendo aplicar uma teoria contemporânea a uma obra antiga, como se fosse apenas uma ferramenta: toda a análise serviu para demonstrar uma hipótese de leitura que se concretizará criticamente na tradução poética e nos comentários. No entanto, julgo que, para encerrar as possibilidades de leitura anunciadas, pode ser muito útil aproximar um pouco o que desenvolvi nas Odes do trabalho de teoria literária proposto por Eco, apenas como método ilustrativo derivado das aproximações entre minha prática crítico-tradutória e o desenvolvimento teórico já bem desenvolvido pelo autor italiano. Noutras palavras: embora a formulação de Eco sobre obra aberta seja em parte anacrônica, ela auxilia muito na compreensão dessa abertura em vários níveis que venho propondo para a leitura das Odes. Um ponto fundamental para entender a Obra aberta é ver que não se trata de uma categoria crítica; portanto, como nota Eco no prefácio da segunda edição italiana (2010a, p. 25), “o espírito destes ensaios não é [...] dividir as obras de arte em obras válidas (‘abertas’) e obras não válidas (‘fechadas’)”. O que a obra aberta indica é a hipótese de leitura fundada na ideia de que toda obra de arte é aberta e, portanto, dotada de uma pluralidade potencial de leituras. Com isso, Eco fez inserir a presença do leitor, espectador ou consumidor de qualquer tipo de obra, para ver que essa figura contesta a ideia de um significado último da obra; esta teria, assim, sempre realização múltipla, passível de inúmeras interpretações e fruições diversas, que seriam dificilmente delimitadas. Não é à toa que ele afirme, de modo à primeira vista contraditório, que “o modelo de obra aberta assim obtido é um modelo absolutamente teórico e independente da existência factual de obras definíveis como ‘abertas’” (2010a, p. 30). Isso poderia ser lido como um tiro no próprio pé; pois qual seria o fundamento de formular uma teoria que independe da existência factual daquilo que se estuda? Eco decerto radicaliza a ideia nesse prefácio; mas o que passa a ficar claro é como a hipótese da obra aberta, mais que determinar uma categoria, possibilita um modo de leitura multiplicada de toda obra artística e permite a convivência de diversas interpretações, até mesmo as contraditórias, como pressuposto da máquina: com isso, o intérprete não precisa se ver forçado a determinar a melhor leitura,

150 | COLEÇÃO CLÁSSICA

mesmo que algumas leituras tenham melhor funcionamento de acordo com textos e contextos diferentes.

O ponto que se poderia questionar na abordagem até agora é o seguinte: se toda obra de arte é aberta, qual a diferença de se tratar as Odes nesses termos? De que vale tanta discussão, se os resultados servem para todas as obras poéticas, aliás, para toda e qualquer obra? É nesse ponto que podemos nos aprofundar um pouco mais na pesquisa de Eco, porque assim se faz uma alavanca analítica. De fato, o conceito de obra aberta não delimita nada para categorizarmos obras, nem é esse meu intuito; porém, logo no primeiro ensaio da edição brasileira, Eco se mostra interessado em demonstrar o que o motivou ao conceito de obra aberta: sua gênese está num diálogo com os processos compositivos contemporâneos, que ele designou como “obra em movimento”; assim, ele analisa sobretudo obras musicais de Stockhausen, Berio, Pousseur e Boulez, em que uma maior ou menor autonomia é dada ao intérprete, para que nunca haja duas performances idênticas da mesma obra. Nesse caso, com o fato de duas apresentações sempre serem significativamente diversas, já que os procedimentos variam, seja por permutabilidade da ordem de apresentação, liberdade quanto à duração dos sons, escolha e reordenação de partes, ou liberdade de improvisação, isso por certo leva o conceito de obra aberta a ser revisto e ampliado; porque, nesses casos, a abertura é ainda maior, já que a obra não tem nem na sua materialidade um formato unívoco. Para Eco, essas obras:

não consistem numa mensagem acabada e definida, numa forma univocamente organizada, mas sim numa possiblidade de várias organizações confiadas à iniciativa do intérprete, apresentando-se, portanto, não como obras concluídas, que pedem para ser revividas e compreendidas numa direção estrutural dada, mas como obras “abertas” que serão finalizadas pelo intérprete no momento em que as fruir esteticamente (2010a, p. 39).

De modo similar, na literatura modernista nós teríamos um grande exemplo no Finnegans Wake de James Joyce, de 1939, no qual o recurso sistemático à fusão morfológica – os portmanteau words – resulta em palavras com no mínimo dois sentidos concomitantes, em orações que começam a receber tantas simultaneidades de sentido que é impossível determinar qualquer significado unívoco para qualquer passagem do livro. Outro livro notável é Composition No. 1, de Marc Saporta, publicado

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 151

em 1962: um romance feito de 150 folhas soltas, que podem ser lidas em qualquer ordem escolhida pelo leitor, o que sempre altera a própria matéria do poema. Nesses casos, o que acontece, para Eco, é que os artistas do século XX começaram a tomar consciência crítica de que, uma vez que toda obra só se dá a partir da liberdade interpretativa do receptor, esse processo poderia vir a se tornar parte do modo de composição: o autor, “em lugar de sujeitar-se à ‘abertura’ como fator inevitável, erige-a em programa produtivo e até propõe a obra de modo a promover a maior abertura possível” (2010a, p. 42). Para demonstrar que esse processo aprofundado na arte contemporânea, de certo modo, já aparecia no pensamento ocidental, Eco lembra passagens do Sofista de Platão e das obras de Vitrúvio, em que vemos essa preocupação com as variedades de recepção de uma mesma obra, mas com o intuito mais geral de produzir obras que conseguissem guiar o olhar do leitor e, portanto, evitar a multiplicação interpretativa. Já na Idade Média, temos, graças ao Banquete de Dante, conhecimento da teoria de quatro níveis de interpretação para a Bíblia, mas, consequentemente, para todas as obras: as interpretações seriam quadripartidas em literal, alegórica, moral e anagógica. 56 Mas mesmo essas quatro leituras, ainda que simultâneas, não implicavam a liberdade interpretativa tal como a entendemos hoje, fato que se pode ver no conceito de alegoria como “verdade escondida debaixo de uma bela mentira” (verità ascosa sotto bella menzogna ). Dessa forma, para Dante, como bom tomista, cada um dos quatro níveis interpretativos teria um sentido unívoco que deveria ser lido corretamente. Na sequência histórica delineada por Eco, no Barroco houve maior aprofundamento desse processo, com o interesse, na pintura, por obras que poderiam gerar efeito diverso dependendo do ponto de vista do espectador; uma mudança que, para Eco, demonstra “o advento de uma nova consciência científica” (p. 51): uma forma literária pouco conhecida do Barroco, e

56 “Letterale, e questo è quello che non si distende più altre che la lettera propria [...] L’altro se chiama allegorico, e questo è quello che si nasconde sotto il manto di queste favole, ed è una verità ascosa sotto bella menzogna [...] Il terzo si chiama morale; e questo è quello che li lettori devono intentamente andare appostando per le scritture, a utilità di loro e di loro discenti [...] Lo quarto senso si chiama anagogico, cioè sovra senso: e quest’ è, quando spiritualmente si spone una scrittura, la quale, ancora nel senso letterale, eziandio per le cose significate significa delle superne cose eternale gloria” (Alighieri, 1958, v. 8, II, 1).

152 | COLEÇÃO CLÁSSICA

que não é mencionada por Eco, mas ilustra bem esse tipo de poética, é o Labirinto, um gênero de poesia que permitia dois tipos de leitura simultâneas, uma horizontal e outra vertical. Com o passar do tempo, com o advento do Romantismo e uma maior focalização no indivíduo, o processo toma mais corpo, que ganha radicalidade com o apagamento elocutório do sujeito proposto por Mallarmé, até desaguar no século XX. Desse brevíssimo resumo, podemos depreender que a consciência da abertura da obra, por mais que radicalizada apenas nos últimos cem anos, não é uma categoria inaplicável a obras de outros tempos, sob a pena irrefutável de anacronismo. É fato que não houve uma teorização antiga sobre seus problemas e implicações, mas isso não demonstra que não houvesse abertura, bem como certa consciência dela. Como exemplo básico, poderíamos citar a prática da ironia socrática: no fim das contas, a maiêutica consegue, mais do que dar um sentido unívoco ao assunto, provocar uma fissura na confiança sobre as opiniões estabelecidas, de modo a provocar um amor pelo saber (φιλοσοφία), que se realiza não em deter o saber, mas em buscá-lo, portanto numa ausência. Outro exemplo interessante de abertura pode ser encontrado no Banquete de Platão, no qual lemos não uma visão única sobre o amor, mas uma série de explicações irreconciliáveis que se encerram com a história de Sócrates, que supostamente detém a primazia. Porém, toda a diegese e seus sentidos se tornam mais complexos se levarmos em consideração que Platão enquadra o texto num diálogo entre dois personagens em que uma das partes narra o que lembra ter ouvido muitos anos antes. Então a fala de Sócrates, que por sua vez diz o que ouviu de Diotima, é, ainda por cima, narrada pelo diálogo que é escrito por Platão: um mise en abîme que engole toda a obra e ameaça arruinar a univocidade do sentido. Ora, é impossível não levantar alguma desconfiança sobre a narrativa que se dá desse modo; e, nessa desconfiança, obviamente, a obra se abre ainda mais aos olhos do leitor, que precisa tomar uma decisão interpretativa e assumir seus riscos; nesse caso, apostar na fala de Sócrates é apenas a forma mais típica de resposta ao longo dos séculos. O ponto é que a Antiguidade fazia uso de muitas ambiguidades e ironias que ampliavam suas leituras; mas um tal estudo tomaria todo um livro, que pretendo desenvolver no futuro. É óbvio que com essa discussão não pretendo dizer que as Odes sejam um tipo de obra similar ao Finnegans Wake; portanto, a mera

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 153

aplicação de algum conceito de “abertura ampliada” por similaridade logo se arruinaria. Por isso, quero apresentar dois exemplos vindos do próprio Eco (2010a, pp. 89-92), por meio da comparação entre a definição da Trindade em Dante (Paradiso XXXIII, vv. 124-126), e uma cena do Finnegans Wake em que se encontra no lixo uma carta que seria ela própria um microcosmo do livro como um todo. Como bem observa Eco, Dante realiza uma formulação teórica em verso, derivada da Escolástica medieval e, como tal, unívoca em suas intenções:

O luce eterna che sola in te sidi,

Sola t’intendi, e da te intelletta

E intendente te ami e arridi!

Isso, no entanto, não impedirá que sua fruição e interpretação estética seja aberta; o que é fácil demonstrar pela pluralidade de traduções que temos na língua portuguesa, então cito três versões mais conhecidas, em verso:

Lume eterno, que a sede em ti só tendo,

Só te entendes, de ti sendo entendido,

E te amas e sorris só te entendendo!

(1956, trad. José Pedro Xavier Pinheiro)

Refulge, ó Luz Eterna, de esplendor

Na vívida mansão que é tua somente,

Onde entendes o eterno teu valor

(2010, trad. João Trentino Ziller).

Luz eterna que só tens sede em ti,

E a ti entendes, e por ti intelecta

E entendente, te amas, ris assi! (2005, trad. Vasco Graça Moura).

A realização de traduções diversas, com projetos de leitura variados, por si só demonstra que, para além da univocidade da definição teológica dantesca, as possibilidades de leitura estética são inúmeras, porque o texto poético não se resume ao significado; assim, cada tradução entra num “processo de semiose ilimitada (mediante o qual os interpretantes se sucedem ao infinito, traduzindo-se um pelo outro)” (Eco 2010b, p. 25), que permite por sua vez novas interpretações, recriações, retraduções, etc. Já no caso de Joyce, a radicalização do processo é tão grande que basta citar a passagem (2001, p. 38), mesmo sem traduções:

154 | COLEÇÃO CLÁSSICA

From quiqui to michemiche chelet and a jambebatiste to a brulo brulo! It is told in sounds in utter that, in signs so adds to, in universal, in polygluttural, in each auxiliary neutral idiom, sordomutics, florilingua, shetafocal, flayflutter, a con’s cubane, a pro’s tutute, strassarab, ereperse and anythongue athall .

O texto é plurívoco desde sua formulação. Nem sequer podemos resumi-lo a um significado que se diferencia da pluralidade de interpretações estéticas. Em outras palavras, neste livro de Joyce a abertura da obra está exposta e explícita para o leitor, que não será capaz de ler o livro, a não ser que tome consciência dessa abertura e faça dela seu modo de leitura. Em vez de comentar algumas sugestões interpretativas que este trecho poderia instigar no leitor (aqui sim, um processo inexaurível), apresento a versão brasileira feita por Donaldo Schüler:

De quiqui quinet a michemiche chelet e um jambebatista a um brunobrilho! Dizemo-lo em sons de funeralidade, em sinais de adição, em universal, em poliglotal, em todo idioma auxiliar neutro, em surdomudês, em florilinguês, em sheltofocal, em critiquês, em xotacubano, em pro’s titutês, em a-rabo-freguês, em arreraquiano, na língua que for.

Depois desse contraste, se voltarmos às Odes, podemos ver como a audácia de Horácio (mais uma vez, uerbis felicissime audax), tanto na sintaxe truncada como no desenvolvimento de transições bruscas e inesperadas que dão forma aos poemas, bem como na construção de livro(s) ainda mais complexo(s) por causa das variedades temáticas e métricas, pode ser encarada como uma criadora de um certo grau de consciência da abertura interpretativa; ou pelo menos mais explícita do que a que viria a ser estruturada para a Divina Commedia, ainda que muito menor do que a do Finnegans Wake. No caso das odes, estamos perto de uma espécie de nebulosa de constelações, tal como Lévi-Strauss imaginava o complexo dos mitos ameríndios no início das suas Mitológicas: nesse caso, pela própria organização da obra, não há ponto central, e cada construção se conecta com as outras a depender da leitura.

À medida que a nebulosa se expande, portanto, o seu núcleo se condensa e se organiza. Filamentos esparsos se soldam, lacunas se preenchem, conexões se estabelecem, algo que se assemelha a uma ordem transparece sobre o caos. Como numa molécula germinal, sequências onde

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 155

ondas em grupos de transformações vêm agregar-se ao grupo inicial, reproduzindo-lhe a estrutura e as determinações. Nasce um corpo multidimensional, cuja organização é revelada nas partes centrais, enquanto em sua periferia reinam ainda a incerteza e a confusão (2004, p. 21).

De modo similar, podemos começar uma leitura crítica de todas as odes a partir de qualquer uma delas, que vai puxando um fio atrás do outro, poema por poema, construções, metros, ritmos, temas, tudo vai se relacionando; mas é claro que não vai se resumir numa estrutura unificada e simples. Viveiros de Castro, ao sugerir que a obra lévi-straussiana começa a ser pós-estruturalista a partir das Mitológicas, encontra em sua formulação um “estruturalismo sem estrutura” (2009, p. 178); para ele, “as estruturas se fecham, mas o número de estruturas, e de vias pelas quais é possível fechá-las, está aberto” (p. 182), de modo que não temos mais uma “estrutura das estruturas”. Isso está muito próximo do que também propunha Umberto Eco, de maneira mais geral, em A estrutura ausente (2012b). Nas obras de Viveiros de Castro e de Eco, vemos não uma recusa total à estrutura, mas apenas uma recusa à estrutura totalizante; nesses casos, a estrutura deixa de ter valor ôntico indiscutível para servir ao pensamento, como recorte das complexidades; são estruturas que se abrem e demandam explicitamente a intervenção ativa do leitor, tal como nas Mitológicas Lévi-Strauss precisa escolher um mito bororo como ponto de partida, e mais, um modo de leitura para começar a fazer suas relações com a culinária e suas relações com os polos da natureza e da cultura no mito ameríndio. As Odes, pela peculiaridade de sua construção, convidam a intervenção ativa do leitor na formulação dos sentidos poéticos gerais da obra, e assim engendram uma consciência crítica dessa abertura. Como já se disse, isso acontecia em outros livros de poesia do seu tempo, mas o processo horaciano é bastante singular nas possibilidades de entrecruzamento de níveis e planos heterogêneos. Posso tentar resumir seu efeito, uma última vez, nas palavras de Pousseur interpretadas por meus colchetes, quando ele trata da sua própria obra, porque creio ser aplicável ao que desenvolvi até o momento sobre as Odes:

Já que os fenômenos não mais estão concatenados uns aos outros segundo um determinismo consequente [entendo aqui uma callida iunctura em vários níveis], cabe ao ouvinte [no caso, o leitor] colocar-se voluntariamente no centro de uma rede de relações inexauríveis, escolhendo, por

156 | COLEÇÃO CLÁSSICA

assim dizer, ele próprio (embora ciente de que sua escolha é condicionada pelo objeto visado), seus graus de aproximação, seus pontos de encontro, sua escala de referências; é ele, agora, que se dispõe a utilizar simultaneamente a maior quantidade de graduações e de dimensões possíveis, a dinamizar, multiplicar, a estender ao máximo seus instrumentos de assimilação (apud Eco, 2010a, p. 49, grifos meus).

É precisamente isso que tentarei realizar por meio da tradução: promover leituras a partir de uma rede de relações inexauríveis, utilizar simultaneamente a maior quantidade de graduações e dimensões possíveis, tentar demonstrar, como pretende Harold Bloom, que um poema só pode ser “um outro poema, um poema diverso de si” (1973, p. 95), para firmar esta hipótese de leitura com um exemplo radicalizado numa tradução que se pretenda poética e crítica. Em outras palavras, traduzir a abertura.

2. UMA POÉTICA DE MOSAICOS | 157

3. Da tradução em sua crítica

Passar da leitura à crítica é mudar de desejo, é desejar não mais a obra, mas sua própria linguagem. (Roland Barthes)

Uma tribo privada de seus tambores perde a confiança em si mesma e desmorona. (Paul Zumthor)

Eu apontei anteriormente para a diversidade de traduções poéticas de um texto pretensamente unívoco de Dante como corolário inevitável da abertura de toda obra: se, por um lado, a teologia cristã pretende explicitar a verdade única de Deus, por outro, o recurso à linguagem implica a leitura e a interpretação; disso resulta que mesmo da intenção mais unívoca surgem incontáveis leituras diferentes, ainda mais quando consideramos a forma poética do original como parte integrante e fundamental na constituição múltiplos sentidos. Pretendo explicitar duas questões centrais que envolvem esse corolário: em primeiro lugar, o fato de que a diversidade de traduções implica o aniquilamento da melancolia metafísica da tradução derivada da ideia de “perda” ou “deformação” do sentido do original, comumente associadas ao processo tradutório; e, em segundo lugar, a implicação ética de que toda tradução poética é também um ato crítico.

3.1. Adeus melancolia, ou transluciferação e política

A tradução não tem um começo na história do homem. Ela surge com a linguagem, de modo que, se operássemos uma redução total do

159

conceito, arriscaríamos dizer que todo ato comunicativo é também um ato tradutório, já que implica uma interpretação ativa por parte do receptor, que então dá sentido à mensagem a partir do seu próprio universo linguístico e conceitual; é o que afirma George Steiner:

A “tradução”, propriamente entendida, é um caso especial do arco da comunicação que todo ato de fala bem-sucedido encerra dentro de uma determinada língua [...] Resumindo: intra ou entre línguas, a comunicação humana se iguala à tradução. Um estudo sobre tradução é um estudo sobre linguagem (1975, p. 47, tradução minha).

Isso se dá porque, embora usemos as mesmas palavras numa dada língua, seus sentidos não estão estanques, muito menos seus usos, e assim cada indivíduo opera na língua um pequeno desvio do que seria seu suposto padrão. Assim, o dicionário não resolve a língua, já que não é capaz de prever usos, mas apenas atesta os usos mais correntes de cada termo no passado: “O dicionário é, no máximo, um ponto de partida” (Eco, 2007, p. 425). No entanto, apesar de tal fato ser de conhecimento geral, suas implicações nem sempre são levadas ao limite. Não precisamos dizer peremptoriamente que todo ato comunicativo é ato tradutório, ao menos não no sentido de tradução que pretendo desenvolver aqui, mas ao menos implicar que, como pressuposto da linguagem, não podemos aceitar uma estabilidade dos conceitos e dos sentidos como num sistema estanque da língua, e sim uma constante atualização que se dá nas relações humanas, que são sempre criativas e performativas, mesmo nos momentos banais da vida cotidiana. Longe das minhas intenções seria fazer um estudo geral sobre linguagem e tradução como pretendia Steiner; de modo que pretendo tratar de um assunto muito mais específico, a tradução entre línguas, mais especificamente a tradução poética.

Podemos por ora voltar à acepção mais corrente de tradução. É um desafio comum ao estudante de qualquer língua, como o latim, a ideia de como verter corretamente um texto; ou, ainda mais singelamente, como fazer uma versão adequada para transpor um texto de determinada língua para a sua própria. No entanto, se considerarmos a instabilidade de toda linguagem, está claro que não existe um modo adequado de tradução, pois as traduções, como qualquer empenho de leitura crítica, entram num gênero discursivo próprio, que depende de várias teorias e métodos que

160 | COLEÇÃO CLÁSSICA

as possam embasar, para que aí se prestem a uma possível discussão sobre pertinência. La Combe & Wismann fazem uma observação acurada sobre a questão:

“Tradução” não equivale a “versão”. As duas palavras não são sinônimas. O exercício escolar da versão repousa sobre a ideia , ilusória , de que de uma língua à outra os conteúdos por transpor não variam , e que se trata de encontrar os termos adequados para garantir a passagem, como se o que foi dito numa língua estrangeira pudesse sê-lo também na língua da versão. Com a tradução, não se crê em passar de um código a outro, mas, uma vez que sempre se traduzem discursos, textos particulares, e não línguas, são as relações com a língua, em cada caso diferentes, tanto do texto traduzido quanto do tradutor, que são evidenciadas e interrogadas (2004, p. 76, grifos meus).

Isso não implica uma inutilidade dos exercícios escolares e universitários, dado que uma certa ilusão de que os conteúdos por se transpor não variam é necessária para o estabelecimento de um conhecimento linguístico básico: na verdade, é essa ilusão que permite a baliza inicial de conhecimento. Por isso, o ponto fundamental levantado por La Combe & Wismann é outro, menos técnico e mais teórico: o de que a tradução, para além do exercício escolar, é um ato cultural que envolve muito mais do que a transposição entre duas línguas, porque, na prática, o que se traduz são textos particulares; e os textos são acontecimentos da língua que não coincidem plenamente com o sistema, eles são feitos de “relações com a língua, em cada caso diferentes, tanto do texto traduzido como do tradutor”; por esse motivo é que elas sempre são postas em xeque e devem ser interrogadas pelo tradutor e por seu futuro leitor. Com isso, uma dada tradução nunca pode ter o escopo de transpor um texto em sua completude, ou seja, nenhuma tradução compreende em si uma leitura total do texto original. Ela será sempre diversa. Não é à toa, afinal, que comumente vemos afirmações sobre a intraduzibilidade da poesia, já que é sobretudo nela que vemos um alto grau de trabalho formal que não pode ser inteiramente repetido na cadeia fônica de outra língua. Diante dessa derrota inicial da tradução, alguns pensadores afirmaram ideias similares à que Dante Alighieri havia apresentado em seu Convivio e que hoje servem de base para uma argumentação pela intraduzibilidade da poesia:

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 161

Mas saibam todos que nada harmonizado em música pode se transmutar de sua língua a outra sem que se rompa toda sua doçura e harmonia. E é por essa razão que Homero não se mudou do grego ao latim tal como os outros escritos que nós temos (1.7.14-15).

Essa afirmação dantesca está embasada no fato de que cada língua tem uma musicalidade específica, que não é traduzível como o significado do texto. A Odusia de Lívio Andronico, tradução da Odisseia de Homero para o latim feita em versos saturninos, não é, de fato, uma transposição de Homero, porque o texto grego permanece com sua própria harmonia e musicalidade característicos (sua poética), enquanto o texto de Andronico estabelece outra música, outra harmonia, mesmo que apresente o mesmo significado geral que aparece no texto homérico, ou seja, tudo que é da ordem da invenção, no sentido antigo.57 E mais, a afirmação de Dante nos leva a crer que um determinado jogo sonoro não se reproduz, porque sua sonoridade, ao fim e ao cabo, interfere no sentido do texto. É o que podemos deduzir também da seguinte conversa com Jorge Luis Borges relatada por Augusto de Campos, acerca do dia em que os dois poetas se encontraram em Buenos Aires, em 1984:

Depois, [Borges] cita a passagem final do capítulo das lavadeiras [do Finnegans Wake de James Joyce]: “Beside the rivering water, of, hitherandthithering waters of. Night!” E indaga: “Como traduzir isso? E night ? Noche, noite, não é a mesma coisa.” Conto-lhe que venho de traduzir os “poemas de Bizâncio” de Yeats, e que encontrei uma solução curiosa para as duas últimas linhas: “Ou cantarei aos nobres de Bizâncio e às damas, / pousado em ramo de ouro, como um pássaro, / o que passou

57 Os romanos também não consideravam que Andronico havia traduzido Homero, tal como nós costumamos avaliar os nossos tradutores. Para Mariotti (1986, p. 14), “nessun poeta latino si preoccupò di diffondere la cultura letteraria in quanto tale fra i meno colti o gli incolti. Del resto l’antica Odyssea latina è sempre stata considerata opera di Andronico, non di Omero, e nessuno che volesse citare Omero pensò di riportare passi dell’opera liviana”. Em outras palavras, a tradução de Andronico foi feita já para leitores do grego; ela se pretendia algo diverso da comunicação do texto grego para aqueles que desconheciam seu sentido. “Già altamente originale è il fatto di aver dato, per la prima volta nella storia, inizio c o s c i e n t e ad una nuova letteratura in una nuova lingua” (p. 19). E isso se dava numa tradução que primava pela escolha lexical e sintática muitas vezes bastante próxima do original (cf. Verrusio, 1977, pp. 70-72, sobre a fedeltà verbale, para depois concluir que “Andronico umanizza. E romanizza”, p. 76).

162 | COLEÇÃO CLÁSSICA

e passará e sempre passa”.58 Ele pede que eu repita, fitando-me com os olhos abstratos, atento às palavras, e diz: “Está bien. La tradución deve ser inventiva” (Campos, 2013, pp. 77-78).

Nesse pequeno trecho narrativo da conversa entre os dois poetas, encontramos o cerne da poética da tradução. Borges cita um trecho do Wake de Joyce, para então se espantar num detalhe minucioso: o termo inglês night não soa como noche em espanhol ou noite em português; por isso, verter uma palavra pelo seu correspondente semântico em outra língua não seria o bastante, porque o que estava “harmonizado em música” não seria mais o mesmo na nova versão – night tem um som aberto, que poderíamos por sinestesia associar ao luminoso dos astros, ao contrário do sombrio e escuro som de noche e noite; então o mesmo conceito produz ecos diferentes com outras palavras da oração, tais como beside e waters em inglês, além de realizar uma assonância com o neologismo de hitherandthithering. Nesse ponto, poderíamos chegar à aporia tradutória: se nem mesmo uma única palavra será traduzível – uma palavra banal, como night, e não um conceito específico da cultura – como traduzir a oração? Ou pior, como traduzir um texto inteiro? Borges cai no ceticismo. Eppur si muove: a resposta de Augusto de Campos, que à primeira vista parece mudar ligeiramente de assunto, contradiz a aporia já não com uma nova afirmação categórica, mas com um exemplo prático a partir de suas traduções poéticas da obra de William Butler Yeats; o que se depreende do exemplo é que, para Augusto, não se trata de um problema de intraduzibilidade, mas de criar outro efeito na língua de chegada, ou seja, de analogia e paralelismo, ou de diálogo poético. Dessa forma, diante da evidência prática, o mestre Borges acaba por anuir: “a tradução deve ser inventiva”.

As falas dessas duas figuras importantíssimas acabam por ocupar dois pontos contrastivos da teoria da tradução, mesmo que a narrativa de Augusto de Campos possa alterar o acontecimento factual daquele encontro para que ele próprio se mostre a superar o mestre; aqui lemos o texto, não sua relação com o acontecimento. Desse modo, a fala de Borges ecoa o adágio anônimo, hoje comumente atribuído a Robert

58 São os versos finais de “Sailing to Byzantium”: “Or set upon a golden bough to sing/ To lords and ladies of Byzantium/Of what is past, or passing or to come”.

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 163

Frost, de que “poesia é o que se perde na tradução” (poetry is what gets lost in translation), que recai numa espécie de melancolia do tradutor, diante das perdas inerentes ao seu ofício, como fizera Dante. Já Augusto de Campos insinua por uma resposta prática àquilo que em português já foi bem explicitado por alguns teóricos como Paulo Rónai: “o objetivo de toda arte não é algo impossível? O poeta exprime (ou quer exprimir) o inexprimível, o pintor reproduz o irreproduzível, o estatuário fixa o infixável. Não é surpreendente, pois, que o tradutor se empenhe em traduzir o intraduzível” (1952, p. 3). A declaração de Rónai parte de um estatuto da arte de todo questionável, porém há na sua afirmação um vigor concentrado numa formulação em si mesmo poética, de inegável importância. Nessa nova via afirmativa do ato tradutório, o próprio termo “tradução” fracassa em sua etimologia. Como é de conhecimento geral, “traduzir” vem do latim traducere, que, no Novissimo diccionario latino-portuguez de Saraiva (1924), recebe as seguintes acepções:

(de trans duco) 1º Conduzir além, conduzir d’um logar para outro, transferir, transportar, traspassar; 2º Fig. Transferir, passar d’uma ordem a outra; elevar (a dignidade); virar, voltar para, levar a; 3º Expor ao riso, ao despreso, menoscabar, deshonrar, mostrar, dar a saber, publicar, divulgar; 4º Passar (o tempo), cumprir, exercer; 5º Traduzir, verter; tirar, derivar (palavras).

Na verdade, a 5a acepção não consta no latim clássico, que usa o termo transfero no sentido exclusivo de “traduzir” (cf. contra a análise que McElduff, 2013, pp. 103-104, faz de Cícero, Tusculanas 2.5-6, em que aparecem transferant, transtulerunt e traducta erunt – em todos os casos, penso que estejamos diante do sentido literal de “trasladar” objetos, e não de tradução). O termo traducere só aparecerá muito mais tarde com Leonardo Bruni, numa carta de circa 1400, talvez por um erro de tradução sobre uma passagem de Aulo Gélio (cf. Bettini, 2012, pp. vii-ix). Como exemplo básico de outros modos de pensar a tradução, no ocidente, penso em dois termos alemães que comportam acepções bastante diversas: Nachdichtung, que significaria algo como um “poema depois de um poema”, ou “pós-poema”; e Umdichtung, um “poema transformado”, ou “transpoema”. De qualquer modo, dessa entrada de dicionário podemos depreender pelo menos duas coisas. Em primeiro lugar, que nosso termo bastante específico para um ato na linguagem é

164 | COLEÇÃO CLÁSSICA

derivado de um uso mais tardio do termo latino, que em primeiro lugar tinha uma acepção ligada a movimento e condução: traduzir, portanto, seria transportar um texto de um lugar para outro. Em segundo lugar, que esse conceito metafórico implica a imagem melancólica da perda, já que se trata de “levar algo” para que chegue incólume. Ora, como já foi dito pouco acima, esse algo nunca chega ao outro lado, ou pelo menos não em sua completude.

Barqueiro é uma metáfora agradável. O que importa não é fazer passar. Mas em que estado chega o que se transportou para o outro lado. Na outra língua. Caronte também é um barqueiro. Mas ele faz atravessar os mortos. Aqueles que perderam a memória. É isto que acontece a muitos tradutores (Meschonnic, 2010, p. xxv).

Assim, a tradução, tal como o termo indica na origem etimológica, estaria de fato fadada ao fracasso, já que sempre entrega do outro lado da margem um texto diferente do original. O termo na origem latina, somado à metafísica ocidental cristã – que em geral pensava na tradução da Escritura, em sua verdade unívoca, etc. –, contribui para um pensamento melancólico derivado da perda; mas que, no mundo contemporâneo, se quisermos pensar em traduções poéticas, podemos dar-lhe uma acepção nova que incorpore seu aspecto criativo. Na verdade, como bem demonstra Maurizio Bettini, em Vertere:

O fato é que os povos e as culturas, quando querem definir o ato de traduzir de uma língua para outra, pensam isso de modos bastante diversos entre si: e sobretudo formulam essa noção segundo paradigmas linguísticos e culturais extremamente específicos, ligados à cultura que os produz. Exatamente por isso, limitar-se a traduzir as palavras para “traduzir” por “traduzir” – o trocadilho é inevitável – leva não apenas a falsear o sentido dessas palavras específicas, mas, pior ainda, a mistificar o contexto cultural onde elas foram geradas (2012, p. ix).

A metáfora de “levar”, ou “transportar” é apenas um modo de pensar esse ato. Não foi à toa, afinal, que Haroldo de Campos passou a utilizar o termo transcriação para os seus trabalhos tradutórios, para evitar cair na lógica tradicional vinculada às imagens de levar e trazer um texto original ou seu leitor. Esse problema já aparece em germe na seguinte afirmação do importantíssimo artigo “Da tradução como criação e como crítica”, de 1962 (2004, p. 35):

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 165

Tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela, autônoma, porém recíproca. Quando mais inçado de dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto possibilidade aberta à recriação. Numa tradução dessa natureza, não se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma (propriedades sonoras, de imagética visual [...]).

O que Haroldo de Campos realiza nesse trecho curto é uma virada da argumentação tradicional do pensamento cristão ocidental sobre tradução. O texto mais difícil – em muitos casos, aquele “harmonizado em música”, se retomarmos as palavras de Dante – não é de modo algum intraduzível. Muito pelo contrário, esse texto é “mais recriável”, porque no trabalho poético a abertura inevitável da obra seduz o tradutor a mais variedades de tradução criativa, já que o texto não cobra apenas sua transferência semântica, mas uma recriação da sua inteireza, da sua unidade entre forma e significado, ou seja, da sua materialidade mesma. Esse pensamento não é de todo novo, claro: já estava profundamente calcado na linguística de Roman Jakobson e na estética de Max Bense; deste, Haroldo concluía sobre a complexidade e fragilidade da informação estética, porém discordava quando Bense afirmava, “pelo menos em princípio, sua intraduzibilidade” (apud Campos, 2004, p. 33), e preferia a possibilidade jakobsoniana da recriação paralela como um corolário da abertura estética (Jakobson, 1966, ainda não aparece citado neste artigo de Haroldo de Campos, mas sua influência sobre o poeta paulista será crescente). Para isso, apoiava-se na prática tradutória do poeta norte-americano Ezra Pound, com a proposta do make it new. 59

É verdade que, muitas vezes, Pound trai a letra do original (para prestarmos tributo ao brocardo traduttori traditori); mas, ainda quando o faz, e ainda quando o faz não por opção voluntária mas por equívoco flagrante, consegue quase sempre – por uma espécie de milagrosa intuição ou talvez de solidariedade maior com a dicção, com a Gestalt final da obra à qual adequou tecnicamente seu instrumento – ser fiel ao “espírito”, ao “clima” particular da peça traduzida; acrescenta-lhe, como numa contínua sedimentação de estratos criativos, efeitos novos ou variantes, que o original autoriza em sua linha de invenção (2004, p. 37).

59 Para um estudo mais detido sobre a tradução em Ezra Pound, cf. Pound, 1963 (a introdução de Hugh Kenner) e Milton, 1998, cap. 4.

166 | COLEÇÃO CLÁSSICA

Para Haroldo de Campos, no lugar da tradicional fidelidade semântica, melhor seria erigir uma fidelidade ao “espírito” ou ao “clima” do texto original, sobretudo se embasado no que ele chama “linha de invenção”, que permite alterações e inserções na tradução, desde que condizentes com o modo de escrita do autor traduzido. O principal problema argumentativo desse artigo está no fato de que Campos troca a visão tradicionalista do texto original – a semântica, por um lado, ou a intraduzibilidade da cadeia fônica, por outro – por outra imagem do texto original que, de certo modo, é ainda mais vaga, talvez derivada da tradição romântica: o “espírito” ou o “clima”. Nesse ponto do seu pensamento, Haroldo praticamente se restringe a trocar a ênfase do semântico para o estético; o que é um passo importante, mas ainda incipiente. É só quando passa à análise das traduções de Odorico Mendes que Haroldo demonstra melhor uma noção de projeto tradutório, de forma que esse texto sobre teoria da tradução acabou também servindo para dar início a um processo importantíssimo de releitura daquelas traduções do poeta maranhense, que hoje têm lugar de destaque, com estudos e edições importantes levados a cabo por Paulo Sérgio de Vasconcellos e pelo grupo ao seu redor. A tradução que Odorico fez da poesia homérica tem valor, para Haroldo, não porque reproduzia fielmente um “clima” homérico nem porque alcançava uma fidelidade poética mais acurada, mas sobretudo por “desenvolver um sistema de tradução coerente e consistente, em que seus vícios (numerosos, sem dúvida) são justamente os vícios de suas qualidades, quando não de sua época” (2004, p. 38). Desse modo, ao tradutor criativo não caberia uma perfeição ou fidelidade inquestionável, e sim a criação de um projeto de leitura e a realização que, por sua coerência e consistência, apresente uma crítica do texto original ao mesmo tempo que se insira no tempo, na sua própria época.

A tradução de poesia [...] é antes de tudo uma vivência interior do mundo e da técnica do traduzido. Como que se desmonta e se remonta a máquina da criação, aquela fragílima beleza aparentemente inatingível que nos oferece o produto acabado numa língua estranha. E que, no entanto, se revela suscetível de uma vivissecção implacável, que lhe revolve as entranhas, para trazê-la novamente à luz num corpo linguístico diverso. Por isso mesmo a tradução é crítica (2004, pp. 43-44).

É nesses termos que Haroldo pensa uma crítica via tradução (criticism via translation ), porque o texto original se presta à análise

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 167

meticulosa do seu maquinário (portanto, já crítica e distante da metafísica do “gênio incomparável do poeta”), para que o tradutor o possa recriar, por meio do labor poético, em outra língua. No entanto, para que o processo crítico se realize, o tradutor precisa atuar em pelo menos duas frentes: por um lado, na escolha de poetas que precisem ser traduzidos ou retraduzidos em determinada língua, vale dizer, uma crítica da tradição poética diacrônica e do presente em sua sincronia; e, por outro, num projeto tradutório que apresente em seu próprio corpo essa avaliação crítica do texto original.60 Nesse momento, o poeta paulista cita as diversas empreitadas do grupo concreto na tradução de autores como Ezra Pound, e. e. cummings, James Joyce, Dante, trovadores provençais, vanguardistas alemães, haicaístas japoneses, metafísicos ingleses, etc., em geral, obras que passaram a funcionar, ou funcionar diferentemente, no caso das retraduções, na literatura brasileira, graças ao resultado da crítica via tradução. Esses resultados são, de certo modo, similares aos que decorrem das revisões críticas mais tradicionais que os concretos operaram com relação às obras de Odorico Mendes como tradutor, de Pedro Kilkerry e Joaquim de Sousândrade, que haviam escrito suas obras na língua portuguesa e não careciam de uma crítica via tradução. Daí que, neste artigo, nasça uma espécie de pedagogia “não morta e obsoleta, em pose de contrição e defunção, mas fecunda e estimulante, em ação” (2004, p. 44): a tradução, sem a mística da intraduzibilidade, ganha a possibilidade crítica, e mais, a possibilidade de ser uma categoria do saber, com análises e decomposições pedagógicas para que o processo possa ser ensinado aos interessados.

60 Se voltássemos à questão da Odusia de Andronico, por exemplo, poderíamos ver como a seleção do texto homérico e sua realização poética no verso saturnino, ao mesmo tempo que promoviam uma “latinização, com quase completa ausência de grecismos no léxico e a adoção sistemática da onomástica latina” (Enrico Flores, 2011, p. xvi), formataram criticamente um meio técnico para o surgimento da poesia romana. Esse meio técnico acabou perdendo lugar para a outra empreitada de releitura homérica realizada por Ênio em seus Annales: a realização de uma épica de tema histórico romano, porém com o metro derivado do grego. Flores ainda marca a historicidade dessas questões, quando comenta Andronico: “non credo affatto che il pubblico latino dell’epoca avesse molta coscienza dei limiti fra traduzione e personale rielaborazione, e quanto agli autori latini non credo che se ne preoccupassero più di tanto. Il copyright non era stato ancora inventato” (2011, p. xvii).

168 | COLEÇÃO CLÁSSICA

O pensamento iniciado naquele artigo foi aprofundado e radicalizado nas décadas seguintes. Em 1976, quando publica suas primeiras traduções de seis cantos do Paradiso de Dante, Haroldo de Campos cunha o termo transcriação, para evitar qualquer confusão com as ideias mais tradicionais sobre tradução e fidelidade semântica. A ideia de trans+criar já indica que não se trata mais de conduzir (“-duzir”, do latim ducere) para algum lugar, pois agora se trata de criar algo em outro ponto, num processo de profundo diálogo poético e crítico. Trata-se, afinal, “de um modo de traduzir que se preocupa eminentemente com a reconstituição da informação estética do original em português, não lhe sendo, portanto, pertinente o simples escopo didático de servir de auxiliar à leitura desse original” (1976, p. 7). Neste ponto, está claro que o texto da tradução poética pretendida por Haroldo de Campos não serve para apenas apontar o original, já que passa a ocupar o lugar de novo texto em nova língua: a melancolia tradutória pode ser, dessa forma, aniquilada. Isso não implica, no entanto, que o texto nunca possa servir de acesso à leitura do original, é só que esse acesso da transcriação é uma lente crítica e criativa sobre o original, com inclusão de sua nova “informação estética” (um termo ainda derivado de Bense). Sua crítica continua então a operar abertamente naquelas duas fronteiras: a crítica do texto original e a crítica do contexto de chegada. Alguns anos depois, ele fará uma formulação inda mais precisa: “a escolha do modelo a transcriar não é ingênua, nem deve ser inócua. Trata-se fundamentalmente de uma operação crítica” (1981b). Mais tarde, ele dirá que o objetivo é produzir um texto comparativa e coextensivamente forte, enquanto poesia em português, a ser cotejado com as versões convencionais como um virtual exemplo contrastivo do que há por fazer, nessa matéria, em nosso idioma (1993, p. 11).

Assim, em vez de uma pretensa fidelidade, a tradução “guarda, com o texto de partida, uma relação formal e semântica de ‘reimaginação’, para além tanto do rudimentarismo literal, como da banalidade explicativa” (1994a, p. 17). Dessa maneira, a tradução crítica e poética não pode se resumir àquela ingenuidade das versões escolares, com a pretensão de transposição correta do original, nem a uma paráfrase explicativa do texto. Nesse sentido, a crítica via tradução é um processo conciso, no

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 169

qual o tradutor precisa explicitar sua leitura a partir de soluções poéticas, e não de um alongamento explicativo sobre os problemas do texto. Essa ideia aparece resumida numa entrevista em que Campos defende que “a tradução poética é uma prática teórica, em que o poeta tem a mesma natureza” (Campos; Nóbrega 2005, p. 354). A afirmação tem seu exagero retórico, já que certamente o ato de traduzir não é idêntico ao de compor uma nova obra, mas procede, se considerarmos que se trata da natureza do artífice, do artesanato linguístico que dá forma à poesia, de modo que os limites entre criação autoral e tradução permanecem borrados (cf. Hardwick, 2000, onde exemplos de recriações, imitações, traduções e obras novas traçam diálogo com textos clássicos). De qualquer modo, numa afirmação como essa vemos a crescente radicalização das propostas de Haroldo de Campos.

O pensamento tradutório de Haroldo de Campos atinge o ápice da sua radicalidade em “Transluciferação mefistofáustica”, um post-scriptum a Deus e o diabo no Fausto de Goethe, de 1981. Nele, Haroldo apresenta uma leitura inventiva do clássico texto de Walter Benjamin, “Die Aufgabe des Übersetzers”, originalmente escrito no início da década de 1920,61 para afirmar que o teórico alemão:

por mais um rasgo paradoxal de sua teoria do traduzir (que eu já procurei definir algures como uma metafísica, antes do que uma física da tradução) W.B. inverte a relação de servitude que, via de regra, afeta as concepções ingênuas da tradução como tributo de fidelidade [...], concepções segundo as quais a tradução está ancilarmente encadeada à transmissão do conteúdo do original (1981a, p. 179).

Assim, Haroldo lê, ou deslê, a passagem benjaminiana que caracteriza as traduções convencionais como “transmissão inexata de um conteúdo inessencial (eine ungenaue Uebermittlung eines unwesentlichen Inhalts)” (1981a, p. 179), tomando-a como uma defesa para sua proposta de transcriação. Para tanto, sua leitura acaba por “equacionar a teoria da tradução do linguista Roman Jakobson com a do filósofo Walter Benjamin [...]. A primeira estaria para a segunda como uma física da tradução para a sua metafísica” (apud Lages, 2002, p. 187). Cláudia Santana Martins,

61 Haroldo chegou a verter a primeira parte do ensaio para o português, que está hoje disponível em Campos 2013, pp. 211-3.

170 | COLEÇÃO CLÁSSICA

ao comentar a apropriação de Benjamin por Haroldo de Campos, afirma que “Haroldo despe a ‘roupagem rabínica’ da teoria de Benjamin, considerando a ‘língua pura’ não como a língua adâmica, primeva, mas como o ‘lugar semiótico da operação tradutora’[...]” (2011, pp. 148-149).

Talvez a equação mais notável seja aproximar a negação da comunicação nas obras literárias (Benjamin) a ideias que o próprio Haroldo já vinha defendendo havia quase vinte anos, como a fragilidade da informação estética (Bense) e a função poética da linguagem (Jakobson). Sobretudo devido ao refinado aparato linguístico derivado de Jakobson, Haroldo de Campos faz algumas críticas aos textos sobre linguagem adâmica escritos por Benjamin em 1916, que viriam a embasar o pensamento do autor alemão no seu texto tradutório. Num artigo de 1992, intitulado “O que é mais importante: a escrita ou o escrito?” (2013, pp. 141-154), Haroldo de Campos atacaria com mais minúcia ainda outro problema da teoria benjaminiana: a intraduzibilidade das traduções. Na verdade, esse problema já tinha sido posto em xeque num artigo de 1969, “A palavra vermelha de Hoelderlin” (em Campos, 1972), em que Campos traduz um trecho da tradução que Hölderlin havia feito da Antígone de Sófocles; o assunto é ainda ampliado em outro artigo de 1996, “A clausura metafísica da teoria da tradução de Walter Benjamin, explicada através da Antígone de Hölderlin” (em Campos, 2013); em todos os casos, Haroldo rompe com a ideia de que uma tradução não deveria ser traduzida; afinal, se tradução é um novo texto, ela renova o empenho dos tradutores: uma versão como a de Hölderlin convida o tradutor poético a experimentá-la em português, por exemplo.

A tese benjaminiana da estrangeirização é retomada por Campos pelo seu viés poético e político: “ao invés de aportuguesar o alemão, germanizo o português, deliberadamente, para o fim de alargar-lhe as virtualidades criativas” (1981a, p. 194). Portanto, a estrangeirização está aqui longe de toda a questão messiânica presente em Benjamin (cf. Lages, 2002) para se dar numa política material das línguas; com isso, Campos também se afasta de uma corrente que Inês Oseki-Dépré identifica na França, onde “a literalidade [...] é o caminho que permite criar ou recriar a obra original num élan hiperliteral ou extraliterário (Pierre Klossowski, Michel Deguy, André Chouraqui)” (2005, pp. 213-214), uma tradição que também teria o nome de Antoine Berman (2007). Assim, Haroldo

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 171

busca operar uma espécie de refisicalização da metafísica de Benjamin. É o modo como ele mesmo explicita seu pensamento em dois artigos posteriores (Haroldo escreve o exato mesmo parágrafo, 2013, pp. 55-56 e 100):

Tenho para mim que o jogo conceitual benjaminiano é um jogo irônico [...] Sob a roupagem rabínica de sua “metafísica” do traduzir pode-se depreender nitidamente uma “física”, uma pragmática da tradução. Essa “física” pode, hoje, ser reencontrada in nuce nos concisos teoremas jakobsonianos sobre a tradução [...], aos quais, por seu turno, os relampagueantes filosofemas benjaminianos darão uma perspectiva de vertigem.

Então, para o brasileiro, por um lado Jakobson dá a fundamentação física e linguística para uma poética do traduzir, por outro, Benjamin dá ao aparato lógico uma potencialidade filosófica que o prepara para a transluciferação, o grande salto no pensamento tradutório de Haroldo de Campos. Ao longo desse processo, Haroldo também faz uso do pensamento desconstrutivo de Jacques Derrida (num trecho como “tradução enquanto inscrição da diferença no mesmo”) para liberar da “clausura metafísica” o pensamento benjaminiano e fazer propostas radicais como a de que o texto tradutório deve ser luciferino, ou seja, derivar de sua função angélica (de grego ἀγγέλος, “mensageiro”, que levaria a mensagem, seu conteúdo sem a forma) a faceta demoníaca de usurpação do lugar do original, uma recriação formal ao modo de um ágon com o texto de partida; “assim, nada mais estranho à tarefa do traduzir, considerado como uma forma [...], do que a humildade” (1981a, p. 180). Pelo contrário, como nota Lucia Santaella, “a empresa é luciferina porque chega a sugerir uma superação do texto original” (2005, p. 229). Essa aspiração usurpadora está baseada numa nova dupla crítica que o tradutor deve realizar: por um lado, contra as traduções mediadoras “que não visam senão à útil tarefa de auxiliar a leitura do original”, e, por outro, contra as traduções medianas, “que procuram intermediar de maneira média” (1981a, p. 184), sem oferecer um resultado de fato poético. O risco menos óbvio está sobretudo no segundo grupo, porque

o empenho estético mediano, morigerado, apesar de suas inegáveis boas intenções, redunda em Kitsch involuntário, seja pela imperita seleção dos paradigmas lexicais, seja pela trivialidade das rimas (obtidas, frequentemente, pelo pinçamento de palavras em “estado de dicionário”,

172 | COLEÇÃO CLÁSSICA

ou por um dificultoso contorcionismo sintático que acusa o “versejador de domingo”). De qualquer modo, se o poeta-tradutor, em seu estoque mobilizável de formas significantes, não estiver ao nível curricular da melhor e mais avançada poesia do seu tempo, não poderá reconfigurar, síncrono-diacronicamente,62 a melhor poesia do passado (1981a, pp. 184-185).

Desse modo, a tradução, como a poesia, tem pouco espaço para o trabalho mediano e requer mais ousadia luciferina da parte de um tradutor que, para além de ler a poesia do passado e dominar algumas regras de métrica e rima, deve também estar familiarizado com a melhor poesia de seu próprio tempo. Assim, “o transcriador não pode contentar-se com o jogo parco das rimas terminais e a compulsão métrica” (1981a, p.189); do mesmo modo como, para Henri Meschonnic, que tratarei com vagar mais adiante, “a armadilha da teoria tradicional é identificar esta poética do texto com o literalismo, assim como ela confunde a poesia com a versificação” (2010, p. 5). Nesse sentido, a ideia de que o projeto tradutório importa (e muito) se torna ainda mais complexa, porque cada projeto pode e deve ser julgado segundo sua pertinência poética e política, ou seja, pela sua visão crítica sobre a obra do passado e pela sua realização prática como obra do presente numa tradição de traduções. Por isso, na entrevista já citada, ele afirma: “a tradução como crítica tem como corolário uma crítica da tradução” (2005, p. 357); e em outro artigo posterior ele traduz o famoso adágio italiano traduttore/traditore com uma mistranslation intencional: “TRADUTOR:TRADITOR, pensando na tradução como tradição do passado no presente” (2013, pp. 94-95). A tradução envolve uma revisão participativa da tradição, porque os textos do passado só vivem no presente mediante leitores que os interpretem ativamente. Isso acontece no pensamento tradutório de Haroldo de Campos, porque, como ele mesmo afirma em outra entrevista:

Uma semiótica da recepção deve, fundamentalmente, tratar o receptor como um interpretante. O receptor não é somente alguém que recebe algo, nem está somente em estado passivo; em termos ótimos, ele deveria ser um co-autor da informação. Haveria assim toda uma

62 Sobre esse ponto complexo do texto, ver o tratamento sincrônico dado às obras do passado feito pelo próprio Haroldo de Campos na seção “Poética sincrônica” de A arte no horizonte do provável (1972).

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 173

margem pra que esse receptor, instigado pela criatividade do produtor (caso se tratasse de um produtor criativo), desse uma resposta criativa à mensagem, fizesse a crítica dessa mensagem (2002, p. 83).

Assim, a tradução da tradição pode ser “vista como ‘estranhamento’ ou como maiêutica poética” (2013, p. 115) em que o poeta extrai a diferença por meio do procedimento mimético da tradução. Ou, se apenas transferirmos essas ideias semióticas para a ideia de tradução luciferina, “toda tradução criativa é já também um caso deliberado de mistranslation usurpadora” (1981a, p. 208). Para Haroldo, o leitor criativo é aquele que interpreta ativamente determinada obra, não para chegar a uma verdade unívoca do texto, mas para criar outro texto mediante uma leitura ligada a aspectos que ele considera importantes do original: a tradução é o caso mais óbvio dessa intervenção criativa e crítica do receptor/leitor, já que nela o resultado é uma obra fisicamente diversa do original, que ao mesmo tempo trava um diálogo intenso com ele.

Flamejada pelo rastro coruscante de seu Anjo instigador, a tradução criativa, possuída de demonismo, não é piedosa nem memorial: ela intenta, no limite, a rasura da origem: a obliteração do original. A essa desmemória parricida chamarei “transluciferação” (1981a, p. 209).63

E isso só pode ocorrer no momento em que um leitor assume conscientemente seu papel na realização de uma obra, para em seguida tomar em mãos a escrita de uma nova obra, a tradução. Neste ponto nós chegamos a um nó-chave da teoria de Haroldo de Campos, que foi pouco explicitado na sua própria escrita, mas que, se contrastado às

63 Haroldo de Campos faz um interessante resumo dos termos que usou até transluciferação (2013, pp. 78-79): “Desde a ideia inicial de recriação, até a cunhagem de termos como transcriação, reimaginação (caso da poesia chinesa), transtextualização ou – já com timbre metaforicamente provocativo – transparadisação (transluminação) e transluciferação, para dar conta, respectivamente, das operações praticadas com Seis Cantos do Paraíso de Dante (Fontana, 1976) e com as duas cenas finais do ‘Segundo Fausto’ (Deus e o Diabo no Fausto de Goethe, Perspectiva, 1981). Essa cadeia de neologismos exprimia, desde logo, uma insatisfação com a ideia ‘naturalizada’ de tradução, ligada aos pressupostos ideológicos de restituição da verdade (fidelidade) e literalidade (subserviência da tradução a um presumido ‘significado transcendental’ do original) – ideia que subjaz a definições usuais, mais ‘neutras’ (tradução ‘literal’), ou mais pejorativas (tradução ‘servil’), da operação tradutória”.

174 | COLEÇÃO CLÁSSICA

teorias de outro teórico, pode ser mais bem depreendido. A questão, no momento, é que toda tradução criativa e crítica será, por conseguinte, um ato político. Há uma afirmação de Celso Lafer na orelha do livro Éden (Campos, 2004b), uma publicação póstuma de Haroldo, que poderia resumir a questão política ali implicada:

Das concepções de Haroldo me vali, como ministro das Relações Externas, para explicar que a política externa como tradução de necessidades internas em possibilidades externas não é uma tradução literal, mas criativa.

Talvez aqui fique claro que não usarei o termo “política” apenas no lato sensu, como tanto aparece na filosofia. Esse ponto é bastante marcado no pensamento do poeta, tradutor e ensaísta francês Henri Meschonnic, em que podemos encontrar formulações pungentes como “Há uma política do traduzir. E é a poética” (2010, p. 15), que revelam com mais clareza algumas implicações de uma poética da tradução que estariam implicadas no que vimos até agora das teorias de Haroldo de Campos. No seu hoje já clássico Pour la poétique II, de 1973, Meschonnic postulava uma união entre teoria e prática muito similar às relações entre tradução e teoria em Haroldo de Campos:

1. Uma teoria da tradução dos textos é necessária, não como atividade especulativa, mas como prática teórica para o conhecimento histórico do processo social de textualização, como uma translinguística. [...] uma teoria da tradução dos textos está inclusa na poética, que é a teoria do valor e da significação dos textos (1973, pp. 305-306).

Noutro momento, ele ainda reforçaria: “A teoria, a crítica, a prática são aqui inseparáveis” (1981, p. 39), e isso se dava precisamente porque seu pensamento teórico desde o início esteve atrelado às traduções poéticas de textos bíblicos, como Les cinq rouleaux, de 1970, uma união que se manteve até, por exemplo, as traduções dos Salmos, intituladas Gloires, de 2001. O resultado inevitável desse entrelaçamento entre teoria, prática e crítica é que a tradução, como acontecimento empírico, não se submete a qualquer tipo de metodologia preestabelecida, ou à mera aplicação teórica anterior à prática; do mesmo modo que a prática não pode existir sem uma formulação teórica. Haroldo compreendera Meschonnic perfeitamente, num texto de 1985 intitulado “Da transcriação: poética e semiótica da

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 175

operação tradutória”; nele, Campos promove uma crítica à crítica que Meschonnic fizera a Jakobson; mas esse embate de Haroldo não afasta o pensamento dos dois: pelo contrário, o poeta brasileiro se esforça por demonstrar como o francês não compreendera bem as teorias tradutórias de Jakobson: o resultado disso é que as teorias de Haroldo de Campos, Meschonnic e Jakobson acabam sendo ainda mais aproximadas.

Que a ideia de “prática teórica” se afasta da de simples empiria no caso da tradução, não há dúvida, pois um dos fatores constitutivos da operação tradutora é, exatamente, seu caráter crítico (aquilo que Meschonnic prefere denominar o “trabalho ideológico concreto” implícito à relação texto/tradução, envolvendo “descentramento”, “dessacralização”, “anti-ilusionismo”) (2013, p. 91).

O que acontece com o tradutor é que teoria e prática se misturam criando uma cadeia mútua de influências calcadas no experimentalismo que contém em si o germe da crítica. Voltemos a uma citação de Meschonnic:

3. [...] A poética da tradução, como prática teórica, é uma poética experimental.

4. Sua importância epistemológica consiste na contribuição à teorização de uma prática social ainda não teorizada, à crítica dos elementos ideológicos da linguística, à crítica da teoria da literatura e da sociologia na literatura (1973, p. 306).

Portanto, como ato contínuo de prática e teoria, a tradução não apenas escapa a uma metodologia predefinida, como ainda poderá servir de base epistemológica para uma crítica ideológica do aparato intelectual do ocidente, suas ideologias espalhadas nos diversos níveis sociais. Isso acontece porque, na tradução, linguagens e pensamentos diferentes entram em contato, gerando – se livre da coação prescritiva ideológica – um novo texto capaz de apresentar constantes idiossincrasias para a teorização já estabelecida e, em decorrência disso, uma crítica à epistemologia que havia formado aquela teorização prescritiva. Isso implica, afinal, que a tradução, em sua poética, não pode se resumir à mediação com o texto original, sob a pretensa categoria de imparcialidade, nem pode subsistir na figura do tradutor invisível, que entrega uma tradução transparente ao seu leitor. Ao contrário:

176 | COLEÇÃO CLÁSSICA

10. Se a tradução de um texto é estruturada-recebida como um texto, ele funciona textoI, ela é a escritura de uma leitura-escritura, aventura histórica de um sujeito. Ela não é uma transparência em relação ao original (1973, p. 307).

Cada indivíduo-tradutor, sujeito que é, num dado momento histórico, opera sua leitura, que então se torna nova escritura, novo texto que por sua vez busca novos leitores, em outros contextos, para que o interpretem. Se considerarmos esse dado empírico da tradução como intervenção criativa de um leitor que interpreta criticamente determinado texto e lhe dá nova forma, claro está que não existe transparência com relação ao original, porque a tradução é ela própria texto, passível de nova interpretação e reescritura diferentes daquelas do texto original. Assim, Meschonnic propõe a tradução como “reenunciação específica de um sujeito histórico, interação entre duas poéticas, descentramento” (1973, pp. 307-308), isto é, como um choque dissonante entre pontos de vista diferentes, seja pela língua, pela pátria, pela cultura, etc.; o que resulta num descentramento epistemológico, já que oferece ao tradutor e aos seus leitores uma visão mais complexa da existência humana em suas variedades. Esse descentramento deve acontecer, portanto, por meio do apagamento da ilusão de naturalidade na tradução; o que ela deve deixar transparecer é seu próprio estatuto ambíguo de tradução e de texto. Para o teórico francês, a típica ilusão da transparência tradutória pertence ao sistema ideológico, que se constitui pelas noções ligadas de heterogeneidade entre pensamento e linguagem, “noções fundadas sobre uma linguística da palavra, e não do sistema” (p. 308), que acabam por promover a sacralização da literatura e a idealização do texto original e do seu sentido. É desse modo que chegaríamos “à noção metafísica, não historicizada, do intraduzível” (p. 309), que por sua vez antepõe sempre o original à tradução, na medida mesmo em que nega à tradução seu estatuto de texto. Ou, como ele mesmo diz em outro livro: “O intraduzível não é um dado empírico, é um efeito da teoria” (2010, p. 21). Dessa forma, está embutida na teoria da tradução de Meschonnic, como na de Haroldo de Campos, também uma teoria da leitura que dá mais espaço ao trabalho do leitor, como demonstrei na primeira parte deste estudo. Com isso em mente, se tentarmos aplicar uma mera oposição entre forma e conteúdo à leitura de um determinado texto, corremos o

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 177

risco de reduzi-lo da polissemia à univocidade, ou “da cultura à língua” (1973, p. 312). Isso acontece porque o texto não é estanque, nem apresenta um sentido apenas, que deva ser traduzido de modo correto. A forma se imbrica no sentido tanto quanto o conteúdo, e desconsiderar qualquer um dos dois seria um ato ideológico de dominância contra aquilo que o original, por meio de uma tradução descentralizante, poderia pôr em xeque na ideologia estabelecida do presente. Nesse aspecto, a poética da tradução de Meschonnic, assim como a de Haroldo de Campos, é uma poética transgressora, porque pensa nas possibilidades de uma crítica sincrônica engajada a partir das contradições atualizadas no choque com o texto diacrônico do passado ou de uma cultura diversa. É por esse motivo que não podemos pensar que se traduz de uma língua para outra, como é costume dizer, mas que se traduz de um texto para outro. O fato é que os textos estão escritos em línguas diversas, porém nunca é a língua que se traduz – sistema fechado –, e sim um acontecimento na língua. Se traduzimos a língua, acabamos por traduzir para a nossa língua, ou seja, para um sistema fechado, sem dar ao texto aquilo que o caracteriza – seus desvios e idiossincrasias, sua existência singular no sistema da língua – para então criarmos um texto “natural” e transparente; por isso, por essa necessidade da relação entre textos, a tradução se torna um evento translinguístico e transnarcísico (1973, p. 313), uma ação de alteridade. Assim, não é por acaso que:

30. A tradução não é mais definida como transporte do texto de partida para a literatura de chegada, ou inversamente como transporte do leitor de chegada ao texto de partida (duplo movimento que repousa sobre o dualismo do sentido e da forma, que caracteriza empiricamente a maior parte das traduções), mas como trabalho na língua, descentramento, relação interpoética entre valor e significação, estruturação de um sujeito e história (que os postulados formais haviam separado), e não mais sentido (1973, p. 313-314).

Com isso, a tradução pode romper as dicotomias tradicionais para implicar uma leitura crítica capaz de promover um ato político contra a ideologia estabelecida. Para Meschonnic, é preciso combater uma dominância da tradutória estetizante, “que se marca por uma prática subjetiva de supressões (das repetições, por exemplo), acréscimos, deslocamentos, transformações, em função de uma ideia preconcebida sobre língua e

178 | COLEÇÃO CLÁSSICA

literatura” (1973, p. 315). Essas palavras, que à primeira vista poderiam depor contra o pensamento tradutório de Haroldo de Campos, já que este se propunha uma recriação estética do original calcada numa poética sincrônica, são, na verdade, muito próximas. Quando Meschonnic fala de dominação estetizante, não critica a tradução poética que leva em consideração os aspectos estéticos do texto de partida, mas aquelas traduções que lançam sobre o texto de partida uma poética preconcebida e assim obliteram o original não por um ágon luciferino, e sim por apagamento político do ato de leitura, em geral em nome de ideias vagas como “bom gosto” e “espírito da língua”. Para ele, a poetização, ou literariação tradutória, é uma “escolha de elementos decorativos segundo a escritura coletiva de uma dada sociedade num dado momento” (1973, p. 315). O exemplo principal dado pelo autor é a tradução da Bíblia – que, no Velho Testamento, é constituída por um aglomerado de textos hebreus de tradição oral – segundo um critério de literatura como escrita.

A estrutura paratática, coordenada do hebraico bíblico é inseparável daquilo que é uma literatura oral . Não é apenas a estrutura linguística que se apaga ao traduzirmos a Bíblia na língua de Bossuet, ou no estilo dito escrito, como se o semítico fosse pensado em francês – é também essa literatura oral que se apagará (1973, pp. 345-346).

Dessa forma, a poetização escrita beletrista é tão inócua para a tradução poética quanto a tradução palavra a palavra, feita pelo indivíduo que apenas conhece a língua, mas pouco intervém como leitor de um texto. Para Meschonnic, isso é muito mais do que um problema de estilo e de fidelidade: trata-se de um problema de ética64 e de política. Apesar de ética e política serem costumeiramente planos complementares (a ética está para a vida privada como a política para a vida social), o tradutor

64 Assim Meschonnic (2007, pp. 19-20) define ética vs. moral: “L’éthique, question de comportement. Avec soi et avec les autres. L’éthique, c’est ce qu’on fait de soi, et des autres. C’est un agir, et c’est faire de la valeur. Et la valeur ne peut être que le sujet, ce qui immédiatement ne peut avoir qu’un sens double, faire de soi un sujet, faire que les autres soient des sujets, reconnaître les autres comme des sujets. Et il n’y a de sujet que si le sujet est la valeur de la vie. En dégageant de l’individu tous les sujets qu’il porte en lui. Une douzaine, et davantage. C’est autre chose que la morale, théologisée ou non, comme codification sociale des commandements et des interdits, du bien et du mal”.

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 179

francês expressa como se dá o movimento entre um e outro plano na linguagem, pela poética:

Não defino a ética como uma responsabilidade social, mas como a procura de um sujeito que se esforça para se constituir como sujeito pela sua atividade, mas uma atividade tal, que será sujeito aquele por quem um outro é sujeito. E, nesse sentido, como ser de linguagem, esse sujeito é inseparavelmente ético e poético. É na medida dessa solidariedade que a ética da linguagem concerne a todos os seres de linguagem, cidadãos da humanidade, e é nisso que a ética é política (2007, p. 8).

Se voltarmos à questão do hebraico, veremos que, ao apagar o caráter oral da cultura semítica, não apenas fazemos um texto milenar de uma cultura distante soar como intrinsecamente nosso e apagamos suas diferenças estéticas; na verdade, apagamos a própria literatura, e com ela a cultura oral que foi capaz de produzir aquele pensamento, apagamos toda a alteridade do texto e, com isso, as possibilidades de que ele também realize uma crítica à nossa cultura. De um lado, caímos no beletrismo das belles infidèles francesas; do outro, na subserviência da muleta de leitura. É numa espécie de meio-termo com posição política demarcada, abolindo dicotomias e erigindo o leitor-tradutor ao estatuto de escritor, que Meschonnic pretende eliminar a ingenuidade da leitura do texto tal qual ele é, ou transparente: “a poética é a ética do poema” (2007, p. 27). Uma intervenção crítica do tradutor que leve em consideração essa ética opera, em última análise, uma transformação poética e cultural (1973, p. 319); por isso ele vê na obra de Ezra Pound como tradutor a figura de um precursor, ainda inexplorado (pp. 322-323). Isso ganha ainda mais força, no pensamento do teórico e tradutor francês, se levarmos em conta sua insistência sobre a tradução como acontecimento de um discurso para outro discurso, não de uma língua para outra. Para Meschonnic a língua, a langue de Saussure, é uma abstração como um todo; na prática o que temos é sempre parole, a fala; que no caso da poesia assume a força discursiva específica. Traduzir, portanto, não é enfrentar uma língua, mas seu acontecimento como discurso; porque na verdade a literatura apenas demonstra com mais especificidade que não existe concretamente a língua: apenas discursos (1982, p. 85). Sem a metafísica da língua, o texto nos chega dessacralizado, passível da crítica do sujeito que o interpreta e traduz.

180 | COLEÇÃO CLÁSSICA

Com essa dessacralização do sentido unívoco do texto original, Meschonnic ainda insiste num ponto fundamental: “Não, a poesia não é um caso especial na língua” (1973, p. 332); afirmação que se desdobra em dois aspectos: por um lado, arruína o estatuto sacralizado da poesia como palavra intocável, intraduzível, como metafísica e originada do gênio, etc.; por outro, determina que qualquer pensamento sobre a linguagem deve incluir a poética, já que a poesia não é antagônica aos outros usos da língua, tal como a oralidade não se opõe à escrita (sobre a falsa oposição entre oral e escrito, cf. Finnegan, 1977, passim, e 1982, intro.).

É bem o que determina Pier-Pascale Boulanger, tradutor de Meschonnic para o inglês, no glossário de termos técnicos preparado para sua edição:

Oralidade: Um modo de significação caracterizado por ritmo consonantal e vocálico (prosódia), bem como pelo ritmo acentual. Não deve ser confundido com som, a oralidade aparece tanto no discurso escrito como no falado (em Meschonnic, 2011, p. 179).

Na tradução, essa união é explicitada, de modo que “dois modos de transformação, na política e no pensamento, agem sobre a tradução. Sua atividade é a oralidade. A literatura é sua realização máxima” (2010, p. xxi). Isso implica, como venho dizendo, uma historicidade do ato tradutório. É então o centramento no leitor crítico que determina a tradução, ou melhor, o traduzir, porque então Meschonnic radicaliza ainda mais o caráter experimental do seu pensamento:

Digo poética do traduzir, mais do que “poética da tradução”, para marcar que se trata da atividade, por meio de seus produtos. Como a linguagem, a literatura, a poesia são atividades antes de gerar produtos. Olhar o produto primeiro é, segundo o provérbio, olhar o dedo, quando o sábio mostra a lua.

Antes, quase, poética do retraduzir. É sobre os grandes textos antigos que se acumulam as traduções. É aí que se pode confrontar uma invariante, e suas variações. Seus por que, seus como. O único terreno de experimentação da linguagem: onde podem indefinidamente recomeçar experiências. Aí, traduzir é uma poética experimental (2010, p. xix).

Daí que todo traduzir seja em grande parte retraduzir, uma inserção também na história das traduções do texto; mas inserção que contém o germe do imprevisto, já que sempre experimental. Por isso, podemos dizer que é na proposta de atualização inventiva e crítica dos textos

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 181

traduzidos que se unem essas duas poéticas de Haroldo de Campos e Henri Meschonnic. Talvez mais uma citação de Meschonnic demonstre a afinidade de embasamento entre os dois: “Mas Walter Benjamin o havia notado, Ezra Pound o mostrou” (1973, p. 410).

Até o momento, venho lendo Meschonnic à luz de Haroldo de Campos, para fazer daí emergir um diálogo intenso. É claro que os dois teóricos e tradutores divergem em alguns pontos, como, por exemplo, o tratamento do léxico (que não tratarei aqui), mas, como tento demonstrar, há uma profunda ligação entre seus trabalhos que extrapola o número de umas poucas coincidências e nos oferece um pensamento poderoso sobre poética da tradução. Mas também poderia fazer o movimento inverso, encontrar mais facilmente em Haroldo referências ao poeta, tradutor e teórico francês, sobretudo nos trabalhos com poesia bíblica (1993, 2004a e 2004b), em trechos como:

Uma das maiores contribuições do [...] francês Henri Meschonnic à poética da tradução bíblica está, a meu ver, na ênfase por ele dada ao aspecto ritmopéico, rítmico-prosódico, do original hebraico [...]. Julgando não-pertinente quanto aos textos bíblicos a distinção convencional entre poesia e prosa [...] segundo opina, a estrutura rítmica já é portadora de sentido (2004a, p. 26).

Então os dois pensam que a forma é muito mais do que um fetiche da obra poética; a forma é condição do conteúdo, inseparável deste. Assim como no famoso adágio de Maiakóvski, não haveria arte revolucionária sem forma revolucionária, poderíamos pensar que não existe tradução política sem uma forma política de tradução, sem um olhar para as formas políticas dos textos alheios: explicitar a alteridade, nesse caso, é promover uma crítica intensa do contexto presente ao mesmo tempo que se critica o texto original. Podemos, com isso, retornar a um texto de Haroldo, para explicitar a política implícita na sua teoria, agora à luz da política e da ética explícitas no pensamento de Meschonnic:

Ao converter a função poética em função metalinguística, o tradutor de poesia opera, transgressivamente (em diversos graus), uma nova seleção e uma nova combinação dos elementos extra-e-intratextuais do original; ao significar-se como operação transgressora , a tradução põe desde logo entre parênteses a intangibilidade do original, desnudando-o como ficção e exibindo sua própria ficcionalidade de segundo grau na

182 | COLEÇÃO CLÁSSICA

provisoriedade do como se. No mesmo passo, reconfigura, numa outra concretização imaginária, o imaginário do original, reimaginando-o por assim dizer (1989, p. 94).

Nos dois casos, a intervenção política e a transcriação existem num ambiente sem a melancolia por uma perda irreparável no texto de partida, porque ambas as teorias repousam na ideia de que o texto original não é igual a si mesmo (diria Meschonnic, que “um texto é sempre poesia de sua gramática”, 1973, p. 345); ele é uma ficção do mundo e de si, que, por isso mesmo se transforma diante das várias leituras que lhe são impostas e pode talvez performar com isso um efeito-mundo, tal como o pensa Barbara Cassin, para quem “o ser é um efeito do dizer” (2005, p. 31). Assumir essa implicação política da linguagem na configuração de mundo, muito além de mera ornamentação textual, exige que o tradutor seja, no fim das contas, também um escritor, alguém que renuncie e re-enuncie o original por meio de uma nova escrita interpretativa e crítica, ciente de sua dissemelhança em relação ao original. “A tradução é sempre re-enunciação. O tradutor que acreditava não interpretar estava, graças ao mesmíssimo prisma ideológico, cego de si mesmo” (1973, pp. 359-360), diz Meschonnic. “O tradutor é um leitor-autor”, complementa Haroldo de Campos (1989, p. 89), e mais: “só me proponho a traduzir aquilo que para mim releva em termos de um projeto de militância cultural” (2013, p. 136); e num artigo de 1997 intitulado “Tradição, transcriação, transculturação” ele chega a afirmar que a tradução é uma forma de pedagogia (2013, p. 204). Embora não caiba a mim avaliar aqui sobre a pertinência e a especificidade do que Haroldo entendia por “projeto de militância cultural”, por certo, posso afirmar que cada tradutor terá um programa, ou um projeto de militância cultural, próprio, vinculado aos seus interesses como leitor e talvez até como autor e, por isso, capaz de influir sobre o mundo, ou “lançar mundos no mundo”, como na canção de Caetano Veloso. Esse questionamento profundo que leva à intervenção política e poética acaba por exigir muito do tradutor, para que essa tradução, uma vez feita, também passe a existir:

Certas obras de uma língua conheceram uma tradução, e outras, no sentido forte, não teriam sido jamais traduzidas. A Bíblia foi traduzida em inglês, em alemão. A Bíblia nunca foi traduzida em francês. É o desafio do traduzir (Meschonnic, 2010, p. xxvii).

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 183

Com isso, Meschonnic define que as traduções da Bíblia feitas para o francês nunca alcançaram o mesmo estatuto de texto que as traduções inglesa de King James e alemã de Lutero e que, por isso, não tiveram uma existência literária e cultural da mesma importância que as outras; isso acontece porque nenhuma tradução francesa conseguiu se impor como novo texto, marcado por seu tempo. Como no caso das críticas promovidas por Haroldo de Campos, não há espaço para a humildade, ou para a tradução mediana: ela será tradução, ou simplesmente não será (Meschonnic, 2010., p. lxi). “A boa tradução deve fazer. E não somente dizer” (p. xxix), como atividade interventora e crítica. A conclusão disso tudo é que “quanto mais o tradutor se inscreve como sujeito na tradução, mais, paradoxalmente, traduzir pode continuar o texto. Quer dizer, em um outro tempo e uma outra língua, dele fazer um texto. Poética pela poética” (p. xxxiv). O processo crítico que propõe um novo texto no lugar do original – arriscando obliterá-lo luciferinamente – não será, ao fim e ao cabo, uma resolução final; pelo contrário, ele entra na história e convive intertextualmente com o texto original, sem se prestar ao serviço de muleta de leitura. É arriscando o apagamento pelo ágon que a tradução, no fim, dá continuidade ao original. Para Slavoj Žižek, uma questão similar aponta não apenas para o ato poético ou tradutório, mas também para todo ato interpretativo; é o que ele argumenta ao comentar o que pode acontecer na leitura das obras filosóficas de Kant:

É precisamente quando se permanece fiel ao significado literal dos escritos de Kant que realmente se trai o cerne de seu pensamento, o impulso criativo subjacente. Deve-se levar esse paradoxo à sua conclusão. Não é apenas que para permanecer realmente fiel a um autor há que traí-lo (o significado literal atual de seu pensamento), em um nível mais radical, a afirmação contrária tem ainda maior validade, mais especificamente, trai-se verdadeiramente um autor apenas ao repeti-lo, ao se permanecer fiel ao cerne de seu pensamento (2008, pp. 30-31).

Do mesmo modo, sem facilitar qualquer ideia de fidelidade, “uma grande tradução é uma contradição que se mantém, no sentido contrário da concepção corrente que tende a resolvê-la numa ou em outra direção, entre os dois termos da dualidade do signo” (Meschonnic, 2010, p. lxii).

Tanto no ágon como na contradição, o texto da tradução ocupa um lugar, ele não será mais transporte, nem transparência do original. Por certo isso

184 | COLEÇÃO CLÁSSICA

pode envolver a questão dos equívocos do processo tradutório, mas gostaria de ressaltar, como Viveiros de Castro (2004 e 2009), que um equívoco não se iguala a outras perdas tradutórias, porque não se trata de uma falha (como uma falta) de interpretação, pelo contrário – é um excesso interpretativo. Tal como a antropologia, também a tradução poética se interessa pelo equívoco possível, entendido como “o fundamento mesmo da relação que o implica e que é sempre uma relação com a exterioridade” (2009, p. 58, tradução minha), porque o equívoco pressupõe a heterogeneidade das premissas em jogo; no nosso caso, ele funda uma relação que se desenvolve poeticamente. Isso significa que, à diferença do texto argumentativo/interpretativo, que se baseia numa coerência argumentativa, e da tradução semântica, que tende a confiar num sentido estável do texto original, a tradução poética recria o original pela formulação ativa de um novo texto poético, portanto, passível de inúmeras leituras como fora o original (é o que farei, por exemplo, mais adiante, ao comentar as traduções de Horácio); a tradução poética, em vez de resolver os pontos de abertura pela interpretação mais correta, pode preferir mantê-los ou recriá-los, enquanto performa sua tarefa crítica. E isso só pode acontecer quando o tradutor é um leitor ativo envolvido tanto com o passado do texto original quanto com o presente/futuro de sua própria cultura.

Posso agora explicitar o ponto com um breve comentário a respeito de uma passagem famosa na história da teoria da tradução. Na introdução às traduções que fez de Ésquines e Demóstenes, em torno de 46 a.C., “Do melhor gênero de oradores” (De optimo genere oratorum, 14-15), Marco Túlio Cícero faz o maior e mais completo comentário sobre tradução que nos chegou da Antiguidade. Depois dele, haverá os comentários de São Jerônimo, sobre a tradução da Bíblia, que irão propor um pensamento completamente diverso acerca dos objetivos da tradução, já que nesse ponto estaremos diante de um texto sagrado. Em Cícero, estamos numa outra tradição de pensamento, e assim ele apresenta seu projeto de tradução:

Conuerti enim ex Atticis duorum eloquentissimorum nobilissimas orationes inter seque contrarias, Aeschinis et Demosthenis; nec conuerti ut interpres, sed ut orator, sententiis isdem et earum formis tamquam figuris, uerbis ad nostram consuetudinem aptis. In quibus non uerbum pro uerbo necesse habui reddere, sed genus omne uerborum uimque

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 185

seruaui. Non enim ea me adnumerare lectori putaui oportere, sed tamquam appendere. Hic labor meus hoc assequetur, ut nostri homines quid ab illis exigant, qui se Atticos uolunt, et ad quam eos quasi formulam dicendi reuocent intellegant.

Converti as duas mais nobres orações dos dois oradores áticos mais eloquentes, e contrárias entre si, de Ésquines e de Demóstenes; converti não como interpres , mas como orador, com as mesmas ideias e suas formas e figuras, com palavras adaptadas ao nosso costume. Nelas, não julguei necessário devolver palavra por palavra , mas conservei todo o gênero e a força das palavras. Não considerei oportuno enumerá-las para o leitor, mas pesá-las. Meu labor terá por resultado que nossos homens entendam o que exigir dos que pretendem ser áticos e em qual fórmula do dizer enquadrá-los (grifos meus).

Cícero não promove aqui uma teoria geral da tradução, mas explicita um projeto muito bem determinado, a saber: o de traduzir duas orações áticas consideradas exemplares, para que os romanos tenham em sua própria língua um parâmetro de avaliação para composição e crítica; ou seja, Cícero busca recriar dois parâmetros de excelência oratória ainda inexistentes em latim, e não tornar um texto grego legível para o leitor romano. A mera ideia de que um orador romano bem-formado não fosse capaz de compreender o grego já seria ingênua da nossa parte, uma sobreposição dos motivos mais comuns da tradução em nossa época para outra cultura, como a romana, que era bilíngue de formação, o que tornava a tradução vulgarizadora praticamente inútil, a não ser que tivesse fins didáticos mais voltados para jovens; isso já havia aparecido explicitamente em outra obra ciceroniana, Dos fins, 1.10, na qual afirmava que oferecia textos “para servir àqueles que queiram ler nas duas línguas ou para os que, mesmo tendo suas obras, não se importam de ler em outra” (iis seruire qui uel utrisque litteris uti uelint uel, si suas habent, ilhas non magnopere desiderent). Cícero não pretendia, portanto, apresentar as orações gregas para leitores que não as conheciam, a fim de divulgá-las; o plano era verter esses textos num latim exemplar que poderia entrar nos debates de seu tempo sobre o aticismo oratório (sobre as disputas em jogo, cf. McElduff, 2013, pp. 96-121): toda a ênfase está no texto de chegada, em como as orações vertidas passarão a funcionar como recriações de Ésquines e Demóstenes na voz de Cícero, como dois padrões para uma prosa ática romana contrária a um aticismo mais ortodoxo que via em Cícero influências de asianismo oratório; por

186 | COLEÇÃO CLÁSSICA

isso Mauri Furlan (2011, p. 87) diz que “nesse tratado, Cícero esclarece seu procedimento em relação ao texto original, mas não estabelece regras para a tradução”. Por isso mesmo, Cícero afirma que irá verter não como um interpres, mas tal qual um orador, ou seja, realizando uma recriação do texto grego que não seja simples transposição da sua semântica em termos comerciais, a tradução palavra a palavra (uerbum pro uerbo): interessa aqui uma captura do impacto causado pelas duas orações por meio de uma busca pela equivalência no seu peso oratório; e mais, Cícero se afasta de um interpres porque também marca sua posição social como membro do senado romano, como homem que participa de uma elite econômica, política e literária. Ele próprio explica o que seria a ação de interpretari, em Das leis, 2.17:

Nam sententias interpretari perfacile est, quod quidem ego facerem, nisi plane esse uellem meus. Quid enim negotii est eadem prope uerbis isdem conversa dicere?

Pois interpretar ideias é muito fácil, e eu poderia fazer isso, se não quisesse ser apenas eu mesmo. E que trabalho haveria em dizer as mesmas coisas convertidas em quase as mesmas palavras? (grifos meus).

Pelo contrário, tudo indica que o trabalho tradutório de poesia e oratória, para Cícero, implicava uma expressão explícita da diferença entre os textos, uma apresentação deliberada da voz do tradutor, que a seu modo rasura a origem ao mesmo tempo que a evoca. Mas, é claro, de que adiantaria ser tão próximo ao original se o público possível em geral saberia ler bem esse mesmo original? É a diversidade que mais importa. Siobhán McElduff (2013, p. 11) resume bem o contexto tradutório do tempo de Cícero:

Os romanos manipulavam os textos de partida de tal modo, em parte, porque podiam: as elites costumavam traduzir para elites que podiam ler o original em grego, se assim quisessem. Na verdade, parte do prazer de ler uma tradução era ver que mudanças foram feitas e com que habilidade foram realizadas. A tradução também servia para conectar a elite, tornando-se parte de uma troca de dons aristocrática (as traduções de Safo e Calímaco por Catulo eram presentes para nobres), bem como um modo de mostrar que se gastara tempo de maneira produtiva num retiro temporário (Plínio, Epístolas, 7.9). Alguns pensavam que só se poderia de fato traduzir para aqueles que já sabiam grego (cf. comentários de Varrão e Cícero, Academica 1.4-5, e Aulo Gélio, Noites áticas 11.16).

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 187

Assim, a tradução envolve uma cultura maior (o que demanda um estudo antropológico de suas práticas) e também relações políticas, stricto e lato sensu, o que extrapola, e muito, as típicas discussões de fidelidade textual; porque em tal contexto um romano poderia desmembrar o original enquanto o traduzia, sem gerar grande choque em seu público – basta pensar em como, na obra fundadora da literatura romana, Lívio Andronico traduziu os 24 cantos da Odisseia homérica em apenas um volume romano, num processo de tradução e epítome simultâneas. No entanto, McElduff trata nessa passagem tudo como tradução, unificadamente; e, para compreendermos melhor o que está em jogo, precisamos também rever o sentido das palavras específicas romanas, tais como uertere e interpres/interpretari, quando tratavam da prática tradutória. Nesse caso, nossa única solução, como atenta McElduff (2013, p. 15) é “traduzir para os nossos termos aquelas práticas e conceitos de ‘tradução’”.

Quando apresenta sua questão, Cícero está se opondo a um gênero de trabalho tradutório romano, o do interpres, para valorizar o trabalho de uertere, por perceber diferenças sensíveis entre os dois trabalhos. Por isso, mantive os termos “verti” e “interpres” na tradução do trecho em questão. Vejamos agora a distinção entre os termos; segundo Maurizio Bettini (2012, p. 97):

O interpres, em geral, é aquele que, ao entrar no meio de duas partes, contribui para estabelecer o preço, o valor em torno do qual possam chegar a um acordo. Por conseguinte, a intermediação política, ou linguística parecem constituir manifestações ulteriores, ou derivadas desse sentido primário.

Isso se confirma, por exemplo, por uma etimologia de interpres derivada de inter-pretium, “aquele que entra no meio dos preços”, uma ideia que parece surgir nas Verrinas de Cícero (2.2.54 e 2.3.84), ou antes em Plauto, O soldado fanfarrão, v. 798 e 910; nesses casos, o interpres seria um mediador confiável para as duas partes de um acordo, contrato ou diálogo (McElduff, 2013, p. 26-27). O trabalho do intérprete romano, portanto, não se resume a uma prática tradutória qualquer, mas a uma relação de câmbio, que está, por derivação e metáfora, ligada à prática linguística. O intérprete não tem qualquer dever de recriação da força (uis) das palavras; ele deve ser apenas acurado e confiável em seu trabalho de

188 | COLEÇÃO CLÁSSICA

mediação entre as partes, muito embora possa servir para manter status, criar distanciamento, ou indicar um ponto político (2013, p. 30). Assim, o uso de interpres é bem diverso do que dizemos hoje por “intérprete”, tal como o intérprete de uma obra ou de uma canção; em Roma, o interpres evitava aparecer na sua formulação tradutória, enquanto nosso intérprete moderno é precisamente aquele que intervém ao dar sua voz, ou dar à sua voz um texto alheio.

Por outro lado, uertere, pelo menos desde as comédias de Plauto e Terêncio, já assume um sentido de transformação do texto original: palavras como uerto e exprimo, duas palavras comuns para designar tradução, não tratam apenas de virar alguma coisa, mas de transformá-la; tal como “uerto num contexto agricultor, onde virar ou arar o chão não apenas move a terra, mas permite que algo novo cresça ali” (2013, p. 42); uertere implica portanto uma criação, a capacidade de converter o original grego em coisa nova (p. 73), mas não como resposta a uma expectativa de fidelidade ao sentido. Nesse sentido, uma afirmação como “Cícero argumenta em favor de uma tradução ‘livre’”, de Weissbort & Eysteinsson (2006, p. 21) está historicamente equivocada por ver em Cícero questões de fidelidade e liberdade típicas do pensamento tradutório moderno e aparentemente ausentes do pensamento romano; Furlan (2011), quando afirma que Cícero determina dois tipos opostos de tradução (um literal e outro literário), incorre no mesmo erro; pois, como estamos vendo, tanto em um como em outro caso a ideia moderna de fidelidade tradutória está fora das intenções:

Aquele que uertit em latim um texto composto em outra língua – por exemplo, Plauto que uertit uma comédia de Filêmon – opera aí um tipo de metamorfose. Muda radicalmente a forma, faz algo que, na aparência, resulta totalmente “outro” em comparação ao que era antes (Bettini, 2012, p. 39).

Daí que Cícero use como contraponto as metáforas de “enumerar” e “pesar”, com a preferência pelo peso. Cícero mantém um vocabulário comercial ligado ao trabalho do interpres, mas dá nova ênfase: em lugar de uma troca por igual quantidade (enumerare), ele pretende trocar em peso (appendere), tal como nos valores das moedas romanas, que não tinham uma definição de valor predeterminada como as nossas, mas valiam conforme seu peso em bronze (Bettini, 2012, p. 103). Esse processo de

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 189

equivalência em peso é o ideal para o seu projeto de produção de textos exemplares em latim a partir de textos exemplares gregos. Por isso mesmo ele compara seu projeto com os realizados pelos dramaturgos romanos (De opt. gen. or. 18):

Huic labori nostro duo genera reprehensionum opponuntur. Vnum hoc: “Verum melius Graeci.” A quo quaeratur ecquid possint ipsi melius Latine? Alterum: “Quid istas potius legam quam Graecas?” Idem Andriam et Synephebos nec minus Andromacham aut Antiopam aut Epigonos Latinos recipiunt. Quod igitur est eorum in orationibus e Graeco conuersis fastidium, nullum cum sit in uersibus? Dois tipos de repreensão se opõem a este meu trabalho: Uma é: “É melhor em grego”. A que se pode perguntar quem o faria melhor em latim? A outra: “Por que eu leria essas em vez das gregas?” Mas ao mesmo tempo eles acolhem, Andria , Synephebi, e também Andromacha , ou Antiopa , ou Epigoni latinos. Por que motivo haveria aversão contra orações vertidas do grego, se não há nenhuma contra os versos?

Cícero, consciente do seu trabalho de uertere as orações, como modo de defesa prévia, já se apresenta sob a proteção das traduções de peças de teatro latinas: Andria de Terêncio, Synephebi de Cecílio, Andromacha de Ênio, Antiopa de Pacúvio e Epigoni de Ácio. É uma lista de obras que implica uma lista de autores romanos que produziram obras por meio da tradução de textos gregos, o que é explicitado pelo jogo etimológico entre conuersis (vertidas) e uersibus (versos). O que estaria implicado nessa argumentação dupla é que ninguém lerá essas orações por serem traduções, ou seja, por vulgarizarem um conhecimento para aqueles que desconhecem o grego; elas terão de ser lidas por interessados em textos latinos, tal como os romanos do tempo e Cícero liam peças então famosas, ou assistiam a elas, sem maior preocupação com seu grau de fidelidade ao texto grego. E isso fica ainda mais patente quando Cícero explicita que não se trata de um caso com interesse jurídico para um romano (20):

Causa ipsa abhorret illa quidem a formula consuetudinis nostrae, sed est magna. Habet enim et legum interpretationem satis acutam in utramque partem et meritorum in rem publicam contentionem sane grauem. Esta causa é avessa à fórmula do nosso costume, porém é grandiosa. Apresenta uma interpretação bastante aguda das leis por ambas as partes e uma disputa seríssima sobre os deveres para a coisa pública.

190 | COLEÇÃO CLÁSSICA

A explicação do significado do original grego, ou uma tradução escolar que pretendesse unicamente esclarecer o texto grego seria inútil neste caso. O intuito de traduzi-la é para demonstrar sua grandiosidade na formulação oratória de uma disputa legal. Ao contrário de seguir o asianismo, como alguns o acusaram, “Cícero está sendo estritamente profissional. Está interessado em promover o aticismo contra o asianismo, e seu louvor aos oradores áticos está portanto livre das reservas romanas” (Guite, 1962, p. 153). Com isso, Cícero se mostra em plena consciência crítica do seu projeto e por isso critica nos dois planos que venho mencionando: por um lado, apresenta uma leitura formal do que considera ser o gênero ático aplicando uma recriação de duas orações na língua latina – ou seja, uma crítica via tradução, tanto na escolha dos dois textos exemplares65 quanto na recriação específica em cada um desses textos –; por outro, numa crítica ao seu presente, com a explicitação concreta de um modelo oratório para seus contemporâneos que se dá no texto da tradução, e não no texto original acompanhado de tradução, o texto de Cícero performa o que ele diz (23):

Quorum ego orationes si, ut spero, ita expressero virtutibus utens illorum omnibus, id est sententiis et earum figuris et rerum ordine, uerba persequens eatenus, ut ea non abhorreant a more nostro – quae si e Graecis omnia conuersa non erunt, tamen ut generis eiusdem sint, elaborauimus –, erit regula, ad quam eorum dirigantur orationes qui Attice uolent dicere. Se, como espero, eu conseguir expressar suas orações de tal modo, usando de todas as suas virtudes, ou seja, as ideias e suas figuras, segundo a ordem dos temas, e seguindo suas palavras, desde que não fujam da nossa língua – se nem todas foram vertidas do grego, ao menos trabalhei para que mantivessem seu gênero –; haverá uma régua para alinhar as orações daqueles que desejam falar de modo ático (grifos meus).

Nesse aspecto, seu trabalho tradutório é muito similar ao da escrita de tratados próprios de filosofia a partir das obras gregas, como podemos ver em sua argumentação em Dos deveres 1.6:

65 A sua escolha implica, por exemplo, a exclusão de Tucídides, uma exclusão que o próprio Cícero justifica sob as categorias das necessidades específicas do fórum (cf. 15-16): Necesse est tamen oratori quem quaerimus controvuersias explicare forensis dicendi genere apto ad docendum, ad delectandum ad permouendum. Cícero ainda justifica a exclusão de Isócrates (cf. 17).

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 191

Sequemur igitur hoc quidem tempore et hac in quaestione potissimum Stoicos, non ut interpretes, sed, ut solemus, e fontibus eorum iudicio arbitrioque nostro quantum quoque modo videbitur, hauriemus.

Neste momento e nesta questão, portanto, sigo os estoicos não como interpres ; mas, como de praxe, sorverei das fontes deles segundo minha crítica e juízo, como me parecer melhor.

Sua apresentação, afinal, não se restringe a uma discussão entre a tradução literal e a tradução literária, ela diz respeito às funções da tradução em sua discussão inevitável; ela explicita um olhar crítico do passado e do presente; ela performa uma intervenção poética e política na língua.

3.2. Horácio – Horácios

Como já se disse, traduzir é, em geral, retraduzir: as grandes obras exigem uma retradução constante que acompanhe as constantes reinterpretações críticas, porque elas não permanecem idênticas no tempo, mas se tornam outras diante da leitura e da política de cada contexto; a tradução poética tem, por isso, o dever de renovar a sensibilidade do leitor. Vejamos uma passagem de Umberto Eco sobre o resultado da fruição de uma obra ao longo do tempo, que pode ilustrar o início do problema por um viés estético:

É o que acontece quando nos tornamos conscientes de estar, há muitos anos, ouvindo e apreciando uma peça musical; chega o momento em que a peça ainda nos parece bela, mas exclusivamente por nos termos habituado a considerá-la como tal, e, na realidade, o que desfrutamos agora, ao ouvi-la, é a lembrança das emoções que experimentamos outrora; de fato, não mais sentimos emoção alguma e nossa sensibilidade, não mais estimulada, deixa de arrastar nossa imaginação e nossa inteligência a novas aventuras interpretativas. A forma para nós, e por certo período, desgastou-se. Frequentemente, cumpre revirginar a sensibilidade, impondo-lhe uma longa quarentena (Eco, 2010a, pp. 86-87, grifos meus).

O comentário de Eco é muito útil para tentar descrever o conhecimento típico do especialista e sua fruição. O estudioso, por conhecer demais a obra, em geral perde a sensação de desfrutar do efeito da obra que ele mesmo estuda, para ficar com uma sombra do efeito das primeiras impressões. Segundo Eco, ele continua habituado a considerá-la bela, tem

192 | COLEÇÃO CLÁSSICA

até mais argumentos para justificar sua sensação, mas perde o estímulo a novas aventuras interpretativas, porque para ele a forma da obra está desgastada. Como remédio, Eco sugere a quarentena, que permita uma nova experiência de impacto diante da obra, depois de algum tempo sem contato. Melhor que a quarentena, é o contato com uma nova visada crítica sobre obra; no caso da poesia, a revisão tradutória, crítica e poética, dessa mesma obra – ou, ao menos, no caso da literatura, já que Eco está mais detido na especificidade da peça musical; porém poderíamos pensar em como novas interpretações são capazes de nos ressensibilizar. Nesse caso, usando as palavras de Haroldo de Campos, a tradução poderia ser “uma ficção heurística, que ajuda a crítica a iluminar-se e a iluminar seu objeto” (2013, p. 107). A tradução poética que proponho é, portanto, uma tentativa de revirginar a sensibilidade, não pela distância, mas pela divergência.

Explico-me. A tradução poética realiza aquilo que em minha dissertação de mestrado (Flores, 2008 e 2014) chamei diversão. Por diversão eu entendia, naquele momento, o duplo sentido possível para o termo, que tem a acepção mais comum de “entretenimento com brincadeiras”, ou “alegria”; mas que assume também o sentido etimológico derivado de diuertere, que em latim significa “afastar-se” e “divergir”. Com isso, eu defendia que, se pensarmos na tradução como ato criativo humano, em vez do sentimento de perda e melancolia comumente associado ao tradutor, teríamos divergência e divertimento como resultados materiais; ou melhor, a conclusão de que a tarefa da tradução poética é precisamente produzir diversão: um desvio tanto do original como das outras traduções, que permita ao leitor e ao tradutor algum senso estético revigorado enquanto diverso, portanto de prazer e divertimento.66 Nesse ponto de vista, posso fazer minhas as palavras de Jorge Luis Borges: “O conceito de texto definitivo corresponde apenas à religião ou ao cansaço” (1987, p. 95), daí a importância da variedade de traduções. O corolário disso é que, como já demonstrei, passa a interessar à crítica tradutória não só

66 De certo modo, ela se associaria à ideia derivada do termo indiano rupantar, utilizado para designar o ato tradutório. Segundo Maurizio Bettini (2012, p. x): “rup significa ‘forma’, rupantar indica un ‘cambiamento di forma’. Salvo però che rup significa anche ‘bellezza’, per cui la traduzione come rupantar implica un cambiamento di forma che, nello stesso tempo, produce bellezza, ovvero mantiene la bellezza dell’originale”.

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 193

contrastar original e tradução, para apontar os eventuais erros e acertos do tradutor, mas também compreender o projeto tradutório, para avaliar como ele apresenta uma diversão. É bem o que explicita Eco em outro momento:

Quando compro ou procuro em uma biblioteca a tradução que um grande poeta fez de outro grande poeta, não espero encontrar algo de profundamente semelhante ao original; pelo contrário, em geral leio a tradução porque já conheço o original e quero ver como o artista tradutor confrontou-se (seja em termos de desafio, seja em termos de homenagem) com o artista traduzido (2007, p. 22).

Donde podemos concluir que, sobretudo no caso da tradução poética, não estamos apenas na ideia de vulgarizar, ou de passar um texto para um leitor incapaz de ler o original. Assim, esse processo de diversão – algo como a iterabilidade em Derrida (1991, pp. 76-77) – é potencialmente infinito, se considerarmos que as leituras de um mesmo texto podem variar imensamente nas macroquestões e ainda mais nas minúcias técnicas, tal como interpretação e escolha do metro (ou ausência de metro fixo), de léxico, de sintaxe, de elocução, etc.: a tradução não está marcada pelo signo da falta, mas pelo do excesso, e o drama do tradutor não é a perda do original, mas a necessidade da escolha de apenas uma solução para cada ponto de abertura que encontra no texto original. É basicamente esse ponto que tentei demonstrar pelo viés da prática num artigo intitulado “Tradutibilidades em Tibulo” (2011), em que retraduzo o mesmo poema dez vezes, com metros diferentes. É também o que se pode concluir depois de ler um livro como L’égal des Dieux: cent versions d’un poème de Sappho (1998), no qual, como já afirma o título, Philippe Brunet recolhe cem traduções francesas diferentes para o mesmo poema de Safo (fragmento 31 Voigt); ou então com O soneto de Arvers, de Mello Nóbrega (1980), em que encontramos compiladas mais de cem versões do mesmo soneto em língua portuguesa; ou, por fim, com o trabalho que Décio Pignatari fez de “tridução” do poema L’après midi d’un faune, de Mallarmé (2002, pp. 81-114); ou com a bitradução de Mauricio Mendonça Cardozo para novela Der Schimmelreiter, de Theodor Storm (2006). No entanto, voltando à questão de Eco, quero dizer que uma tradução poética, na medida mesmo em que diverge das leituras e interpretações mais correntes do texto – ou, ainda mais, na

194 | COLEÇÃO CLÁSSICA

medida em que diverge formalmente dos comentários e estudos sobre determinado texto –, é capaz de revirginar a sensibilidade até mesmo do leitor especialista, além de criar uma leitura crítica da obra original para o leitor leigo: poeticamente, eu diria que ela cria o autor na nova língua, insere-o na corrente viva da poesia. Isso só pode ocorrer porque, na crítica via tradução, em vez de dizer o que o texto original faz, o tradutor precisa fazer poeticamente algo que implique sua visão crítica. Essa função crítica do ato tradutório exige uma ética, que, nas palavras de Mauricio Mendonça Cardozo, parece demandar um reequacionamento dos valores da relação instituída a partir de todo ato tradutório, na medida em que surge a necessidade de se operar no espaço de uma ética que admita ao mesmo tempo relações de identidade e de diferença. Abre-se assim o espaço para um discurso fundado numa ética da relação, que abrigaria a identidade e a diferença não mais como ideais fundadores da relação, mas como atributos, valores possíveis do gesto relacional. Abre-se assim um espaço para uma ética promovida por um esforço de abertura ao outro enquanto outro, cujo primeiro movimento consistiria justamente no reconhecimento da condição de inalcançabilidade do outro e da consequente liminaridade de toda relação (2008, p. 189; cf. também Cardozo, 2009).

O corolário dessa questão é a necessidade de uma tomada de partido do tradutor; no seu reconhecimento da alteridade do outro traduzido e também na afirmação inevitável do mesmo, sem uma dicotomia rígida dessa distinção, porém sem cair num suposto não lugar tradutório isento de responsabilidade. Como não se trata de trasladar o texto, simplesmente, o tradutor precisa criar um novo texto que dialogue e se relacione com seu original, sobretudo nos efeitos, e o processo dos efeitos é a sua interpretação crítica do original. Em Qohélet, de 1990, Haroldo de Campos aproximava sua tradução do ensaio, nos dois sentidos do termo:

As traduções aqui coligidas são ensaios. Não têm, de modo algum, a desmesurada ambição de restituir uma suposta “autenticidade” da língua original, nem do ponto de vista filológico, nem do ponto de vista hermenêutico. Não aspiram a repristinar nenhuma “verdade” textual. Não se nutrem de nenhuma ilusão “purista” (2004a, p. 11).

Isso se dava exatamente porque Haroldo não buscava uma “verdade textual” e dava mais espaço à inventividade do leitor. O excerto

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 195

acima não realiza uma simples captatio belevolentiae por assumir falta de conhecimento filológico sobre o hebraico bíblico necessário para traduzir o Eclesiastes. Muito mais que isso, Haroldo expõe que, para realizar uma tradução poética, outro modo de abordagem é necessário, não menos reflexivo, mas de todo diferente do ponto de vista apenas filológico. Aqui a tradução, se for realmente poética na sua crítica e na sua criatividade, também torna se tese. Ela não entra como trunfo da virtuose técnica do estudioso que se pretende capaz de sustentar um discurso com metro e/ou rima ao longo de um determinado número de linhas. O próprio Horácio já nos dizia que concluir um verso não inclui ninguém na arte da poesia (Sátiras 1.4.40-1, neque enim concludere uersum / dixeris esse satis).67 Uma tradução que se queira poética deve, portanto, ser o complemento crítico da interpretação; deve ser, na feitura, ou na poética (do grego poiesis), a explicitação do que se apresenta na teoria e no comentário; por isso não pode se resumir ao enquadramento métrico de uma transposição semântica. Neste caso, a tradução poética se pretende o complemento fundamental da parte teórica, e os dois lados do trabalho passam a estar profundamente entrelaçados, sem hierarquia. Nesta tradução poética se explicita formalmente, num novo texto e objeto interpretativo, a interpretação crítica que posso realizar como leitor da inteireza das Odes de Horácio. Por isso, embora as teorias tradutórias de Haroldo de Campos sejam de imensa importância para a realização poética deste trabalho, é importante ressalvar um detalhe que até o momento deixei de lado. Sua proposta de transcriação, na maior parte das vezes, se propunha ao trabalho com o fragmento, isto é, com uma seleção de trechos de obras, e raro com uma obra integral, a não ser nos casos em que fosse suficientemente curta, como a peça teatral Hagoromo, de Zeami. Com isso, Haroldo trata seu trabalho como tradução icônica, ou seja, como um ícone da gramática poética do original que indique sua visada crítica para o resto da obra que não foi traduzida, porque, na escolha do frag-

67 Sobre a passagem, Gowers (2012, ad loc.) afirma: “Horace disingenuously disclaims never-satisfied literary perfection, again highlighting the etymology of satura from satur ‘full’. The idea that poetry is more than metrical composition goes back at least to Aristotle [...]”. Se atentarmos, portanto para o jogo etimológico sutil e para a formulação da frase, ainda que de certo modo prosaica (sermo), vemos como existe um cuidado imenso mesmo no verso prosaico das Sátiras.

196 | COLEÇÃO CLÁSSICA

mento, o tradutor pode escolher os trechos mais importantes e se deter com mais afinco para uma transcriação intensiva. Num artigo para O Estado de S. Paulo, ele afirma que a tradução icônica

é necessariamente intensiva e não extensiva; trabalha em concentração e não em expansão. Seu campo experimental é, de preferência, o fragmento, o excerto. [...] É um modelo em miniatura, que lança sobre o original uma luz transparente, capaz de revelar as virtualidades do todo numa exponenciação da parte (1981b).

Porém é claro que alguns enfoques críticos, se contam com crítica via tradução, não podem se contentar com o trabalho de apenas alguns excertos, na esperança de que de eles revelem “as virtualidades do todo numa exponenciação da parte”: não podemos nos contentar indefinidamente com exemplares da parte pelo todo. No caso deste projeto sobre as Odes de Horácio, é claro que a tradução de uma antologia de odes isoladas, ou de uma determinada sequência que não seja pelo menos um livro inteiro, seria de todo infrutífera, se não como realização poética esparsa, ao menos como leitura crítica mais ampla; nesse ponto a maior parte da prática de Haroldo de Campos não pode dar conta do projeto, senão como incentivo ao rigor poético e tradutório. Não quero com isso deixar de lado o trabalho de Haroldo de Campos na tradução integral da Ilíada, mas o problema é que o tradutor em geral falou pouco desse seu trabalho enquanto tradução integral e sobre quais seriam as diferenças de abordagem em relação ao seu método mais explicitado. De qualquer modo, como afirma Marcelo Tápia (2013, p. xiii) acerca da prática tradutória de Haroldo: “não se encontrarão, no entanto, regras precisas ou absolutas”. Meu objetivo é, portanto, uma recriação poética extensiva, que sustente o vigor intensivo e não absoluto tal como proposto por Haroldo e que produza para o leitor brasileiro alguns efeitos análogos aos que se depreendem da leitura que propus para o texto original. Para tanto, o conceito de ritmo proposto por Meschonnic é de grande importância:

No ritmo, no sentido em que o digo, não se ouve o som, mas o assunto. Não uma forma distinta do sentido [...] Porque o modo de significar, muito mais que o sentido das palavras, está no ritmo, como a linguagem está no corpo, o que a escrita inverte, colocando o corpo na linguagem (2010, p. xxxii).

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 197

Para Meschonnic, assumidamente a partir das obras de um Saussure “fora das grades do estruturalismo” e de Benveniste, com “união entre filosofia e linguística” (1982, p. 45), o ritmo não é a apenas a cadência do texto, ou sua escolha métrica (não que isso não faça também parte do texto e do seu ritmo), mas também suas repetições, sua elocução, seu modo, suas idiossincrasias em relação a outras obras de seu tempo, etc. O teórico francês argumenta que, embora o conceito de ritmo em poesia, portanto ritmo no discurso, venha da música e da ideia de poesia cantada, o ritmo do discurso da poesia não é idêntico ao seu ritmo musical, porque não se resume a ele (1982, p. 121); por isso, embora aproximado da métrica, já que esta é uma uniformização rítmica da cadência, o ritmo do discurso poético também se dissocia dela (p. 110). Émile Benveniste teria dado mote para o conceito de ritmo de Meschonnic no artigo “A noção de ‘ritmo’ na sua expressão linguística”, publicado em 1951. Ali, o linguista e filólogo francês expõe a etimologia tradicional de “ritmo”, comumente associada a repetições:

Não há dificuldade morfológica em ligar ῥυθμός a ῥέω, por meio de uma derivação cujos pormenores devemos considerar. Entretanto, a ligação semântica que se estabelece entre “ritmo” e “fluir” por meio de um “movimento regular das ondas” se revela como impossível ao primeiro exame. É suficiente observar que réw e todos os seus derivados ( ῥεῦμα , ῥοή, ῥόος, ῥυτός , etc.) indicam exclusivamente a noção de “fluir” mas que o mar não “flui”. Jamais se diz ῥεῖν a respeito do mar, aliás jamais se emprega ῥυθμός para o movimento das ondas. [...] Inversamente o que “flui” ( ῥεῖ ) é o rio, o riacho; ora, uma corrente d’água não tem “ritmo” (1988, p. 362).

Assim, para Benveniste o ritmo não se relaciona à repetição das ondas, mas à corrente incessante do rio que segue seu curso. Para demonstrar seu ponto, ele analisa uma série de passagens da poesia e da prosa antiga, nas quais o termo assumiria mais precisamente o sentido de “forma”, não de “ritmo” tal como geralmente usamos, e muito menos de “repetição”. No entanto, muito além de forma fixa, imóvel, trata-se de um movimento, ou uma forma que vai se fazendo.

Ao contrário ῥυθμός , segundo os contextos onde aparece, designa a forma no instante em que é assumida por aquilo que é movediço, móvel, fluido, a forma daquilo que não tem consistência orgânica: convém ao

198 | COLEÇÃO CLÁSSICA

pattern de um elemento fluido [...]. É a forma improvisada, momentânea, modificável (1988, p. 367-368).

Daí que Meschonnic interprete o ritmo para além do metro e das repetições e afirme que “por isto, traduzir passa por uma escuta do contínuo” (2010, p. xxxii), por uma leitura crítica do todo na sua construção rítmica. O ritmo, então, é uma presença fundamental na linguagem, não um recurso formal ou ornamental do texto; ele não se funda numa separação entre som e sentido. No seu glossário dos termos de Meschonnic, Boulanger assim explicita o conceito de ritmo:

O modo como as unidades do discurso se organizam sintagmática e paradigmaticamente, tanto na prosa como na poesia, para produzirem sentido e poder de expressão. O ritmo também se refere à notação dos elementos discursivos, tais como a prosódia, o acento, padrões e ênfases consonantais ou vocálicas, estrutura métrica, estrutura sintática, ordem das palavras, duração e pausas da oração (Meschonnic, 2011, p. 179).

Portanto, o ritmo não se restringe nem à forma, nem ao conteúdo de um discurso: ele é a organização do sentido no discurso; não se trata de um nível justaposto ao significado (1982, p. 70), ele é o próprio funcionamento do discurso, aquilo que lhe dá sentido para além dos significados das palavras.

Eu não considero mais o ritmo uma alternância formal do mesmo e do diferente, dos tempos fortes e dos tempos fracos. [...] entendo o ritmo como a organização e a própria operação do sentido no discurso. A organização (da prosódia à entonação) da subjetividade e da especificidade de um discurso: sua historicidade. Não mais um oposto do sentido, mas a significação generalizada de um discurso (1982, p. 43, grifos meus).

Isso só pode ser concebido numa leitura crítica. Tal como Meschonnic o teoriza, o ritmo não é um dado inequívoco, já que a historicidade de um texto não é propriamente um fato, mas sim uma relação, e uma relação que se dá em outro momento histórico que interpreta criticamente o passado, por isso ele inclui o ser humano: “Ao falar de ritmo, é de vocês que falo, são vocês que falam, os problemas do ritmo são de vocês. A crítica do ritmo não tem conclusão” (1982, p. 715). Do mesmo modo, a subjetividade de um dado discurso se dá quando um leitor apresenta, por meio da sua própria subjetividade, uma visão

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 199

crítica sobre a subjetividade do outro. Esse ritmo que é “a organização e a própria operação do sentido no discurso” é, portanto, a crítica do texto original, que não esgota esse original, mas o reformula, infinitamente, já que “não há conclusão”, há apenas historicidade: a poética do discurso permanece inacabada, porque está diante da poesia empírica (1982, pp. 33 e 51). Isso se dá porque o ritmo se funda numa imensa variedade: É ritmo como organização do movimento de um discurso (e não mais sua definição clássica, que é aquela do signo, como alternância binária do mesmo e do diferente) no contínuo ritmo-sintaxe-prosódia, no encadeamento de todos os ritmos, ritmo de ataque, ritmo dos finais, ritmo de posição, ritmo de repetição, ritmo prosódico, ritmo sintático (2007, p. 33).

Com isso, o ritmo muda o próprio modo de significar de um determinado texto; “o que é dito muda completamente, conforme levamos em conta este ritmo ou não, a significância ou não” (2010, p. 46); isso que é alterado pelo ritmo não se restringe à semântica do texto – i. e., aos significados de cada palavra –, mas àquilo que chamei anteriormente sentido, como algo que por não caber na análise linguística, convoca a poética: “O ritmo em um discurso pode ter mais sentido que o sentido das palavras, ou um outro sentido” (1982, p. 70); ou ainda “o ritmo é o significante maior” (p. 72). Por isso, ele escapa às totalidades e se forma como uma “antiunidade” do texto (p. 84).

No caso desta tradução, como pretendo traduzir também o ritmo musical da sua performance junto com o jogo do ritmo discursivo dos livros, é preciso levar em consideração a imensa variedade métrica das Odes como um dos constituintes do ritmo poético, que pretendo recriar em português, sem apelar para repetição isomórfica do metro, já que o sistema de longas e breves latino é simplesmente diverso da constituição da língua portuguesa; assim, proponho uma recriação isomórfica das relações rítmicas entre os versos, com sua sintaxe, sílabas, palavras, paralelismos, repetições, etc., tal como analisei anteriormente. Com a ênfase na tradução, espero que fique clara a consciência de que não pretendo uma recriação fidedigna da performance antiga; pretendo encená-la tradutoriamente no presente, aos vivos. Como afirma Charles Rosen (apud Martindale, 1993, p. 9): “Toda performance hoje é uma tradução: uma reconstrução do som original é a tradução mais enganadora porque finge ser o original enquanto a

200 | COLEÇÃO CLÁSSICA

significação dos velhos sons mudou irrevogavelmente”. Por isso, como venho afirmando, a tradução é poética e crítica; depende, portanto, de uma visada engajada sobre o original. Nas Odes, Horácio fez uso de 13 esquemas métricos diferentes: 37 odes em estrofe alcaica; 25 em estrofe sáfica (se contabilizarmos o Carmen saeculare); 12 em asclepiadeu 4; 9 em asclepiadeu 2; 7 em asclepiadeu 3; 3 em asclepiadeu 1, ou menor; 3 em asclepiadeu 5, ou maior; 2 em alcmânio; 1 em sáfico maior; 1 em arquiloqueu 1; 1 em arquiloqueu 4; 1 em hiponacteu; e 1 em jônico menor (cf. a Lista de Metros das Odes, no volume da tradução). A mera relação serve apenas para apontar a ποικιλία do feito horaciano; mas sabemos que, para os antigos, os metros apresentavam também um éthos de preferência, ou seja, algumas temáticas tradicionalmente vinculadas ao metro, e que parte da poética estava em conseguir produzir uma relação de conveniência (decorum) entre o éthos do metro geral e sua realização específica na escrita de um novo poema. Heloísa Penna faz um pequeno resumo desses usos nas Odes; a citação é longa, porém serve para explicitar meu ponto do modo mais conciso possível:

Horácio os empregou preferencialmente tentando associar a vocação musical ao tema desenvolvido nas odes. Assim, em estrofes alcaicas, compôs a maioria de suas odes cívicas e morais, aproveitando-se da estrutura dinâ mica e movimentada do metro, que é formado de trê s tipos de versos diferentes, misturando ritmos ascendentes e descendentes, com cadências bem definidas pelas cesuras forç adas dos hendecassílabos alcaicos. À s estrofes sá ficas, de formação monótona e desfecho rápido (trê s versos de onze sí labas e um de cinco), ajustaram-se bem os hinos religiosos e os doces poemas de amor; em d ísticos compostos de glic ônicos e asclepiadeus menores, com maioria de pé s d átilos e espondeus, o poeta compôs, dentre outras, odes de tema amoroso e metapoético; em estrofes asclepiadéias A compôs as famosas recusationes da poesia épica e, nos poemas compostos em estrofes asclepiadéias B, voltou-se, predominantemente, para o tema amoroso. Os versos asclepiadeus menores e maiores foram empregados κατὰ στίχον por trê s vezes cada um: no primeiro, odes em louvor à poesia e ao poeta; no segundo, odes de cunho exortativo. Nos d ísticos de base dat í lica (alcmâ nico e 1º arquiloqueu), Horácio compôs odes sobre a brevidade da vida e a vizinhanç a da morte; mesmo tema empregado na ode composta de d ísticos logaédicos-jâ mbicos. No sistema jâ mbico-trocaico, que lembra o dos epodos, o d ístico hiponacteu é representado por uma ode em que prevalece a censura pelo inútil acú mulo de bens; nos d ísticos de base

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 201

sá fica, uma ú nica ode de tema ímpar: reprovação ao comportamento de uma moç a ciumenta. Por fim há uma ode de uma virgem suspirante que desabafa sua infelicidade numa monótona e exaustiva cadência métrica, em que o jônico menor se repete por quarenta vezes, sem cesura ou variação quantitativa (2007, p. 3, cp. Zimmermann, 2009, pp. 55-65).

A própria Penna reconhece o convite horaciano à interpretação do sentido dos metros: “Horácio desperta, em seus comentadores, devido ao grande número de esquemas métricos existentes no livro das Odes, principalmente, a necessidade de tentar explicar as motivações de suas escolhas métricas” (2007, p. 127). Obviamente, pensar em termos de “motivações” vai de encontro ao meu projeto, porém parte do fraseado de Penna sugere que se trata muito mais de efeito do que de intenção (“Horácio... desperta... a necessidade de tentar explicar”): esse despertar da leitura é o maquinário aberto em ação. No entanto, se Penna realiza aqui um esforço sintético de explicitar o conceito final das iuncturae temáticas possíveis em termos métricos, certamente, para fazer isso, ela teve de minimizar algumas odes que não se enquadram perfeitamente no esquema proposto, ou mesmo considerar os sentidos do metro pelas porcentagens de aparecimento que tornasse possível perceber um determinado uso recorrente, que liga o metro ao tema. Isso se dá no texto latino, porque, como já disse, os antigos, e sobretudo os helenísticos, concebiam os metros em sua relação com os temas mais convenientes. O que muitas vezes é deixado de lado é a questão sobre o que nos dizem as odes em que metro e matéria não coincidem; afinal, o que a divergência cria no todo das Odes? Aceitar uma coerência parece ser muito mais forçar uma coerência. Assim, para que esse detalhe interfira na leitura, é preciso permanecer aberto ao inesperado e às leituras que ele pode gerar. No entanto, por mais importante que seja, essa questão se torna, em grande parte, inútil para o leitor brasileiro contemporâneo que desconhece o idioma latino, já que as possibilidades métricas tradicionais da língua portuguesa não comportam um éthos específico, nem restrição temática. O verso decassílabo camoniano, por exemplo, não tem uso restrito à poesia elevada, mas já foi igualmente usado para poemas invectivos, como no caso das obras de Gregório de Matos ou de Bocage. De modo inverso, a redondilha maior também não se restringe à poesia popular e oralizante, mas já recebeu tratamento mais frio e erudito, como no caso da poesia

202 | COLEÇÃO CLÁSSICA

de João Cabral, ou mesmo em alguns poemas líricos de Camões. Diante desse fato, a tradução em língua portuguesa não traduz/conduz o éthos do verso, em nenhum projeto que seja: mesmo no isomorfismo métrico, os resultados são estranhos ao leitor de língua portuguesa, já que sem uso prévio. No entanto é possível afirmar uma transcriação paródica, uma criação paralela, do sistema resultante do uso métrico. Para tanto, é necessário criar um sistema funcional em português que, ao mesmo tempo, possa explicitar as relações rítmicas entre os metros latinos, mais do que simplesmente decalcar o padrão de cada metro na suposição de que uma língua encontre seu substituto perfeito em outra. Desse modo, o leitor pode retraçar as conexões entre poemas distantes na series de cada livro, graças a uma nova identidade métrica decorrente da tradução, para assim formular uma rítmica das Odes. Neste ponto, minha tradução se insere na história das traduções das Odes de Horácio, já que é a primeira a tentar realizar uma recriação paralela total do sistema métrico; o éthos, as relações intertextuais com poemas gregos e o resto do aparato contextual da poética horaciana – e romana – entrarão nas notas, como um complemento aos níveis de leitura. Isso não implica que a “nota de rodapé é a vergonha do tradutor”, como pretendia Dominique Aury em seu prefácio ao hoje clássico livro de Mounin (1986, pp. x-xi). Pelo contrário, a nota do tradutor pode servir como explicitação do seu embasamento crítico, como desmascaramento da suposta transparência do texto “trazido” e como ponte para aquilo que poderíamos chamar transculturação paralela à tradução e às suas variedades métricas: “Trata-se, antes de mais nada, da exposição de um ‘canteiro’ de trabalho” (Campos, 2004a, p. 12). A nota de rodapé, longe de ser fracasso ou vergonha do tradutor, é o espaço para uma alteridade cultural que impede o novo texto poético de soar como mero produto exótico nos pontos em que se torna obscuro para o leitor contemporâneo; a nota de rodapé, ao seu modo, recria um contexto no qual a tradução passa a existir.

Nas demais traduções (quase) completas das Odes essa polimetria sistemática e paralela ainda não havia ocorrido, porque nossos tradutores – Macedo, Duriense e Cabral de Melo – optaram por maior monotonia rítmica e acomodação aos metros tradicionais do português, com predominância de versos decassílabos e hexassílabos, sem nenhuma pretensão

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 203

de recriar o sistema de metros, de modo que em suas traduções o que encontramos é outra polimetria, menos variada que a do texto original e que para o leitor resulta em outra possibilidade de encontro entre odes, ou simplesmente na crença de que se trata de um texto com vários metros desprovidos de iunctura (cf. Apêndice deste ensaio sobre os tradutores), sob o risco de interpretarmos a uariatio horaciana como mero ornamento contra o tédio. É contra esse risco que proponho criticamente uma retomada do sistema de metros. De modo similar, também pretendo manter resquícios da fraseologia, das repetições lexicais, etc., que comentei anteriormente, não pela pureza do texto e de cada palavra – não existe aqui a crença de que cada palavra tenha de receber na tradução uma única acepção –, mas por este processo crítico da minha leitura encontrar em tais recorrências uma produção: de ritmo, nos termos de Meschonnic; ou de possibilidades de iunctura, se nos mantivermos aos termos usados ao longo da seção teórica deste trabalho. Também, nas traduções anteriores que apresentaram maior fôlego, esse aspecto estava em parte comprometido por basicamente dois motivos: por um lado, Elpino Duriense expurgou 13 poemas dos 4 livros de Odes, em geral por motivos morais, o que elimina qualquer possibilidade de leitura como um todo das odes horacianas, ainda que permita a leitura como um todo das odes durienses; por outro, Macedo e Cabral de Melo, muito embora tenham traduzido todos os poemas, realizaram moralizações cristãs, sobretudo nos poemas eróticos (e ainda mais nos homoeróticos), de modo a manter a imagem de um Horácio moral pertinente à juventude cristã do início do século XIX, como demonstrarei mais adiante.

Não poderei fazer uma análise detida desses problemas, mas, diante dessas questões, poderíamos questionar: no que resultam suas morais sobre a sexualidade? Afirmar que diferem da horaciana é mero truísmo. Inferir sua nova condição cristã é ainda muito raso. Nesse caso complexo de tradução, a leitura ainda está por fazer; o que demonstra como nosso campo de estudos da tradução, sobretudo de história da tradução em língua portuguesa, por mais que venha crescendo nos últimos anos, ainda é muito incipiente. As teorias de reescrita e traduções propostas por André Lefevere (2007) são de imensa ajuda para uma análise mais cuidada desses problemas. Há também dois trabalhos importantes sobre a história da

204 | COLEÇÃO CLÁSSICA

tradução no Brasil: o artigo “A tradução literária no Brasil”, de José Paulo Paes (1990), originalmente publicado em 1983, no “Folhetim” da Folha de S.Paulo; e “Tradução de poesia”, de Alexei Bueno, o capítulo final de Uma história da poesia brasileira (2007), um texto mais curto e mais repleto de opiniões controversas. Sobre as traduções recentes de poesia clássica em específico, cf. o belo panorama apresentado por Gonçalves (2014). De qualquer modo, neste momento da crítica das traduções anteriores, talvez caiba mais uma vez reiterar: não se trata de aplicação metodológica, ou de uma defesa de uma teoria da tradução acima das outras. Nas palavras de Brunno Vieira:

Está fora de questão a imposição de um modo ‘certo’ de traduzir. Ao contrário, o que está em jogo é um exercício de conhecimento das diferentes modulações que um texto pode alcançar, quando trabalhado por tradutores de diferentes épocas, estilos e concepções translatícias (2010, p. 79).

O que só se pode alcançar pelo contraste. Por outro lado, não redunda na mera descrição de critérios e projetos diferentes, porque avaliar as traduções anteriores é parte fundamental do processo para a criação de uma nova tradução. “Julgar os outros é se situar na teoria. É preciso necessariamente teorizar a prática pela qual avançamos” (Meschonnic, 1973, p. 451). É bem isso que havia feito Haroldo de Campos em Mênis (1994b) e Os nomes e os navios (1999), onde apareceram suas primeiras versões em livro respectivamente para os Cantos I e II da Ilíada, com comentários que retomavam as traduções poéticas anteriores de Odorico Mendes e Carlos Alberto Nunes. É também o que realizou Raimundo Carvalho acerca das Bucólicas de Virgílio (2005); o que vem realizando João Angelo Oliva Neto sobre Catulo (1996, com 2a edição no prelo); bem como Brunno Vieira, numa série de trabalhos sobre tradutores, como José Feliciano de Castilho. No caso das traduções horacianas, é o que fez recentemente Alexandre Hasegawa (2012a) acerca de duas traduções dos Epodos. Não pretendo aqui me deter numa análise minuciosa dos projetos e poéticas anteriores; no entanto, não posso deixar de apresentar ao menos um breve comentário sobre suas realizações, se pretendo inserir este novo projeto na história das traduções das Odes, ou seja, avaliar criticamente a história de como um determinado autor e sua obra são

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 205

relidos e reescritos na história da língua portuguesa. Ideal seria realizar um estudo completo sobre as relações dessas traduções com as leituras de Horácio feitas nos séculos anteriores; porém isso demandaria outro ensaio. Diante disso, espero que os pontos selecionados sirvam para uma base de contraste com meu projeto tradutório, isto é, que sirvam de baliza para demarcar pontos de convergência e sobretudo de divergência que confirmem a posição desta tradução na história das traduções horacianas em português.

Até o momento, comentei sobretudo o que se refere ao nível (c), a series do livro e suas iuncturae derivadas das identidades métricas, com ou sem o complemento da identidade temática.68 O nível (b), a construção do poema, em geral é pouco afetado numa tradução, exceto no caso de trechos expurgados e de alterações maiores; isso acaba acontecendo também nas traduções, como demonstrarei en passant nas análises. Por fim, o nível (a), a series frasal e suas complexidades derivadas da iunctura, é o mais complexo, onde é inevitável encontrarmos o maior número de diferenças e, portanto, de diversões, no caso de qualquer tradução; no nosso caso, ele pode ser brevemente analisado a partir de um exemplo que demonstre os modelos de construção de outros tradutores, por amostragem. Novamente, friso que um estudo detido sobre o assunto precisaria ser feito com mais vagar; talvez num trabalho futuro, centrado sobre esse aspecto, para demonstrar qual era a forma da linguagem horaciana nessas traduções, bem como suas implicações literárias e políticas.

Vejamos o que aparece ao contrastarmos algumas traduções da ode 2.1, para investigarmos como tal aspecto da poesia horaciana foi recriado em português. Eis a abertura no original (vv. 1-8):

Motum ex Metello consule ciuicum bellique causas et uitia et modos ludumque Fortunae grauisque principum amicitias et arma

68 Um ponto que não tratarei aqui é o problema do gênero, levantado por Hasegawa (2012a, pp. 140-143). Enquanto, por um lado, Macedo distingue ode de epodo já pelo título de sua tradução e pelo recurso a tipos diversos de estrofe para um e outro (“embora não siga de perto a variação horaciana”, p. 142), Elpino Duriense e Cabral de Melo nem sequer distinguem e acabam por tratar odes e epodos como um mesmo gênero poético.

206 | COLEÇÃO CLÁSSICA

nondum expiatis uncta cruoribus, periculosae plenum opus aleae, tractas et incedis per ignis suppositos cineri doloso.

Já podemos notar, no primeiro verso, uma construção cara aos poetas latinos em geral, em que o sintagma motum... ciuicum (acusativo) cerca outro, ex Metello consule (ablativo), ou no v. 6 periculosae... aleae (genitivo), que cerca plenum opus; no entanto, podemos dizer que essas duas torções sintáticas têm pouca interferência no sentido do poema e que contribuem mais para a continuidade melopaica e rítmica da estrofe, segundo um estilo recorrente na poesia do período. Para além disso, nós teríamos certo adiamento do adjetivo de arma (v. 4), até a estrofe seguinte (v. 5) para sabermos que elas estão uncta; esse adiamento sintático, aliado ao fato de o adjetivo aparecer cercado pelo ablativo expiatis... cruoribus, já é pleno de sentido, porque aumenta a tensão do texto e representa “as armas ungidas de sangue inexpiado” numa configuração que por si só é ilustrativa do que se expressa semanticamente: aqui o poeta tira proveito maior da língua, mas ainda num processo típico da poética augustana. O que mais surpreende no posicionamento sintático é o longuíssimo adiamento do verbo principal, tractas, que só aparece no sétimo verso, um adiamento do sentido perfeito para exemplificar aquilo que Sêneca descrevera na epístola 114.11 (já citada) como um alongamento em demasia. Com essa escolha, Horácio abre os primeiros seis versos numa série de acusativos, uma série de objetos a serem cantados, entretanto ainda sem sujeito e sem verbo. Com esse adiamento, o leitor, na abertura do livro, é levado a crer que esses seriam temas do livro horaciano, já que o recurso foi comum na poesia de Virgílio (Arma uirumque cano, da abertura da Eneida) ou de Propércio (Cynthia prima, no Monobiblos); Horácio, no entanto, abre com o que não vai cantar, mas não informa o leitor disso; ele engana e adia, o que reforça ainda mais a recusatio programática do livro 2. Assim, o mosaico de palavras horaciano funciona como estética, mas também como manipulação da leitura da obra, conferindo sentido ao poema, mesmo que isso não lhe altere a semântica. Vejamos de que modo alguns tradutores de língua portuguesa resolveram esse problema; mas antes de partir para as traduções poéticas, vale a pena tentar demonstrar como acontece uma tradução prosaica e explicativa

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 207

do texto horaciano. Antonio Augusto Velloso (1935, p. 47), em sua tradução interlinear literal das Odes, realinha a sintaxe do poema latino, que passa a abrir com Tractas; o resultado é o completo apagamento do mosaico, mas podemos compreender essa escolha se lembrarmos o seu objetivo pedagógico, nas palavras do autor, “para servir-lhes de algum auxílio no estudo”. Vemos, então, que sua proposta, em 1876, é apenas auxiliar à compreensão imediata da semântica de cada ode, e não lhes extrair o sentido expresso também pela poética do autor.

Passo agora às traduções poéticas, por ordem de publicação. Como me restrinjo aos projetos de tradução integral, ou bastante vultosa, deixo de lado as 33 versões de André Falcão Resende (séc. XVI), bem como as de Filinto Elísio (séc. XVII) e Franco Barreto (séc. XVII) – o leitor mais interessado pode consultar os comentários de Francisco Achcar (1994, pp. 102-109) sobre as traduções dessas figuras importantíssimas na história de Horácio em português. Outro autor importante do séc. XVI também comentado por Achcar é Antônio Ferreira, que, embora não traduza, imita Horácio de perto em muitos trechos, tal como no poema “A uma Nau d’Armada, em que ia seu irmão”, muito próxima de Odes 1.3. Em todo caso, eu ouso sugerir que essas figuras luminares inauguraram uma tradição métrica para Horácio de se centrar em versos decassílabos ou hexassílabos para verter a polimetria horaciana. Por fim, também não me detenho na tradução portuguesa recente de Pedro Braga Falcão (2008), por se tratar de uma tradução prosaica, ainda que visualmente apresentada como verso. Começo, portanto, no séc. XIX, quando aparece a primeira versão integral das Odes, com a tradução do padre José Agostinho de Macedo (1761-1831), publicada em 1806. Em primeiro lugar, cabe ressaltar que Macedo valoriza a tradução poética “não só porque he impossivel fazer conhecer o Espirito de hum Poeta em huma Traducção em Prosa, porque a Prosa nunca foi a lingoagem da Poesia” (1806, p. xi). Diante disso, eis sua versão para o trecho: Ardua empreza, e fatal! Das duras armas Escreves, Pollião, das turbulentas, E Civis Dissençoens, quando Metéllo Nas mãos as Faxas Consulares tinha [...].

Detenho-me por aqui, que basta para o ponto que quero provar: de pronto, vemos que o tractas latino sobe para o segundo verso como

208 | COLEÇÃO CLÁSSICA

“escreves”; e Pollio, que só aparece em latim no v. 14, também é apresentado ao lado do verbo como “Pollião”. O processo tradutório está mais próximo de uma paráfrase poética, em que as arma uncta se tornam “duras armas”, e Metello consule é expandido para o longo “quando Metéllo / Nas mãos as Faxas Consulares tinha”. Aquela concisão horaciana entremeada de variedade rítmica também se perde na sequência monométrica de decassílabos heroicos, que deixa o tradutor afrouxar a seleção vocabular e trocá-la muitas vezes por frases explicativas do texto. Não se trata aqui de fazer severa crítica tradutória; longe disso, o que me interessa é perceber como um aspecto fundamental da poesia horaciana é tratado num trabalho crítico como o da tradução. Para tanto, podemos contrastar com o que ele próprio afirma ser seu projeto, na “Prefação” (1806, p. xx):

Tem com tudo esta Traducção duas difficuldades da parte do mesmo Original para que sáia literal, e exactamente fiel: a primeira he a exotica Sintaxe de que o poeta usa: tem formulas particulares, e Helenismos, que se apartão muito do mechanismo ordinario da Lingoa Latina; porém como eu não intento dar ao meu nome a dezinencia em us, degole-se quem quizer por hum Archaismo, ou por hum Solecismo, porque eu estou persuadido, que as Traducções, devem-se dar por pezo, e não por medida, e quando he impossivel achar o identico, basta que se encontre o equivalente: e quando absolutamente não se póde verter a fraze latina na fraze correspondente Portugueza, he licito dar em outra fraze diversa o mesmo sentido do Auctor.

Como se vê, Macedo se propõe, em grande parte, à recriação pela equivalência e à naturalidade do texto em português, muito embora perceba nos poemas horacianos formulações que não soariam naturais em latim. Ele está interessado numa modernização de Horácio, que deve passar pela diferença das línguas latina e portuguesa; desse modo, sem o recurso a um estrutura morfológica de casos, o português deveria abandonar as posições lexicais do texto latino, para evitar obscuridade e a afetação. O resultado é, portanto, um pensamento tradutório que se aproxima da paráfrase (“dar em outra fraze diversa o mesmo sentido do Auctor”), que por fim cai muitas vezes no alongamento. Outro ponto é a moral de alguns poemas:

A extrema delicadeza com que devem ser tratadas materias que offendem a decencia e honestidade, e o perigo a que os costumes se expõe de

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 209

corromper, quando debuxão os prazeres sensuaes com aquellas cores, que a Poesia empresta ás Paixoens, formão um grande embaraço em huma completa, e literal Traducção de algumas Obras de Horacio. Os Romanos eram menos delicados sobre certos termos obscenos, que a Religião prescreve (1806, p. xxii).

Para resolver o problema da diferença cultural e seus perigos, eis o que se propõe:

[...] percão-se embora quantas Odes ha no mundo, e quantas Satiras, e Epistolas até agora se hão composto, e não se offenda a modestia com huma só expressão menos casta. Eis aqui porque sem respeito nenhum a Horacio ommitimos huma inteira composição que ele não devia ter feito, vem a ser o Epodo 12o. (1806, p. xxii).

O corte de expurgo e a paráfrase amenizante buscam, de modo consciente, uma adaptação de Horácio à moral contemporânea. Como observa Achcar (1994, p. 111), “O tradutor é bem consciente de sua operação moralizante”, como se poderia esperar de um padre; o mote então passa a ser “dar nobreza a composiçoens, que muitas vezes em Portuguez traduzidas literalmente ficarão intoleráveis” (1806, p. xxiv).

Com essa filtragem deliberada do estilo e da moral horacianas, a tradução de Macedo resulta numa empreitada crítica que busca demonstrar criticamente, como ele mesmo afirma, que Horácio [...] he um Filosofo agradavel, que sem a enfadonha austeridade dos Declamadores, conduz o Homem do meio dos divertimentos ao amor da virtude, e entre os mesmos prazeres lhe faz conhecer a rapidez do tempo, a brevidade da vida, e a inevitavel necessidade de morrer. He o amigo dos Homens [...] amavel a todos os Homens (1806, pp. xvii-xviii).

Trata-se de um Horácio amigo dos homens, amável a todos, que prima pela clareza e pelo direcionamento à virtude, por contraponto aos divertimentos humanos. Macedo encontra no poeta romano uma fórmula da virtude atemporal, mas, para fazer isso, como ele mesmo assume, é preciso adequá-lo à língua e à moral de seu próprio tempo. Nesse caso, faz-se uma cirurgia estética e moral, para encontrar um poeta atemporal. Vejamos agora a tradução de Elpino Duriense, nome arcádico-literário do bibliotecário Antônio Ribeiro dos Santos (1745-1818), publicada em 1807, apenas um ano após a de Macedo:

210 | COLEÇÃO CLÁSSICA

Desde o Consul Metello a civil guerra, E as causas, e as desordens, e as maneiras, E o jogo da Fortuna, e as graves ligas De Príncipes, e as armas

Em sangue inda até aqui não expiado Banhadas contas, arriscada empreza; E caminhas por fogos encubertos Sob a dolosa cinza.

(1807, p. 147)

Aqui temos uma tradução que mantém não só o adiamento do verbo, “contas”, para o sétimo verso, como também a recriação da sintaxe das “armas banhadas”, aqui invertida, porque são as armas que cercam, sintaticamente, o “sangue não expiado”. Embora o texto seja ligeiramente mais frouxo (“inda até aqui” v. 5), há muito mais concisão e tensão no mosaico, de modo que podemos dizer que, mesmo sem manter a exata mesma variedade sintática do latim, a tradução de Elpino é capaz de mantê-la nos momentos em que se revela mais crucial para uma crítica do sentido poético da ode, que se liga aos cavalgamentos (vv. 3-4, 4-5, 5-6 e 7-8). O tradutor, como Macedo, também crê que a tradução poética tem mais impacto, porque “a Prosa, por mais que a queiraes sobrelevar, nunca he o idioma da Tripode de Delphos, nem a sublime linguagem dos Deoses; e que os Poetas ou se não traduzem, ou só podem traduzir-se em verso” (1807, p. ix). Consoante defesa da poesia pela poesia, no entanto, ainda há muitas diferenças, e o mero contraste com a versão de Macedo já instiga alguma teorização, uma vez que o texto de Elpino explicita concisão e latinização do português. Essa latinização aparece como programática desde a curta “Prefação”:

A Traducção he literal, indo, quanto nos foi possivel, palavra por palavra após Horacio, repondo sem diminuição nem accrescimo as suas mesmas imagens, tropos e figuras; as suas formulas e transições; o seu estilo conciso e apanhado; a maneira poetica das suas frases e das transposições na dicção e até huma parte das posições e remates terminantes de seus versos e estrofes, persuadidos que o verdadeiro Traductor não he Imitador, nem Paraphrasta, senão fiel Copiador e Retratista: Fidus interpres (1807, pp. viii-ix).

Desse modo, num projeto muito diverso do de Macedo, Elpino busca a literalidade do mosaico “palavra por palavra”, no limite das possibilidades do português, segundo uma leitura poética que julga importante

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 211

a concisão horaciana; por isso, Achcar (1994, p. 113) afirma que esta tradução “representa orientação oposta à de seu concorrente”, ou seja, à de Macedo, e que “laconismo e secura não faltam a este tradutor” (p. 114).

À luz dessa orientação, Elpino aproxima tradutor e copiador, conforme as palavras do próprio Horácio na Arte poética (fidus interpres); e esse caráter é ainda mais reforçado na edição bilíngue, que é endereçada à mocidade portuguesa, para que assim eles pudessem “mais facilmente entender a letra, e o espirito do Texto pela Traducção do Portuguez” (1807, p. viii).

Mas isso também leva o tradutor ao problema da moralidade:

[...] deixamos algumas Odes, e supprimimos alguns lugares de outras, em que a licença Pagãa, e a imitação ou traducção dos Gregos fez demasiar o Poeta, ou no assumpto, ou na doutrina, ou na maneira: imitando nesta parte o louvavel exemplo de alguns de seus Editores, e comprindo com a honestidade de Christão, e respeito devido aos Leitores, maiormente aos moços (1807, p. viii).

Assim, o tradutor só deve ser fiel copiador e retratista até o ponto em que pode ferir sua honestidade de cristão. Para além desse ponto, o editor, comentador ou tradutor deveria usar de seu discernimento crítico e moral para não propagar os exageros do poeta romano, por meio de cortes de passagens ou poemas inteiros. Cabe ainda ressaltar que Elpino atribui as “imoralidades” de Horácio aos originais gregos, talvez para também manter uma imagem do venusino como poeta de importância moral para o cristianismo, mesmo que essa importância seja bastante adaptada em seu recorte. Elpino, em resumo, buscar recriar uma poética mais similar à do texto latino, porém resiste, como Macedo, no que isso possa implicar sobre a ética e ofender seus contemporâneos. Com isso, até podemos concordar com a conclusão de Achcar de que Elpino “supera em muito o resultado obtido por José Agostinho de Macedo” (1994, p. 115), pelo menos na sua reformulação poética da escrita horaciana; porém, do ponto de vista do problema moral, a tradução de Elpino opera até mais cortes do que a de Macedo. Alexandre Hasegawa (2012a) sugere uma conclusão similar, ainda que pouco explícita, ao analisar as traduções dos Epodos feitas pelos mesmos tradutores, quando nota que “ambos para dar aos leitores portugueses um Horácio moralizado omitem poemas e excertos de poemas em suas edições” (p. 133); para tanto, analisa o epodo 8, que não foi traduzido por Elpino e saiu bastante amenizado por Macedo.

212 | COLEÇÃO CLÁSSICA

Por fim José Augusto Cabral de Melo (1793-1871) lançou sua tradução em 1853, quase meio século depois:

As discordias civis que agitaram

Desde o consul Metello,

As origens da guerra, os vicios, modos,

O jogo da fortuna, as perniciosas

Allianças dos principes, as armas

Banhadas em sangue

Inda não expiado;

Essa tarefa de perigos cheia

Emprendes, Pollião, e assim caminhas

Por brasas que se occultam

Sob enganosa cinza.

(1853, p. 77)

Ao modo de Elpino Duriense, Cabral de Melo mantém parte do aspecto sintático, sobretudo no adiamento do verbo “emprendes”, mas perde em grande parte a concisão horaciana, vertendo os 8 versos da ode latina para 11 em português, ao mesmo tempo que aumenta o número de cavalgamentos, se comparado a Elpino (vv. 4-5, 5-6, 6-7, 8-9, 9-10 e 10-11). Para o tradutor “a prosa pode expressar o sentido verdadeiro, mas não os ornamentos e as graças” (1853, p. 8), também valorizando a tradução poética, mas, neste caso, a partir da separação entre forma e conteúdo que parece não existir nos tradutores precedentes; a tradução em verso busca, para Cabral de Melo, resgatar esses ornamentos e graças que não podem ser recriados pela prosa, embora esta já seja capaz de reconstituir o “sentido verdadeiro” do texto original. Ele também comenta as duas traduções poéticas anteriores do seguinte modo:

As segundas [por contraponto às primeiras, traduções em prosa], que são pelos intelligentes consideradas defeituosas, uma por demasiadamente afastada do texto, desprezando as excellencias que o ornam e até muitas vêzes o seu verdadeiro e obvio sentido, outra por demasiadamente litteral cingindo-se strictamente ás palavras, com a mesma inversão, hypérbatos e figuras, sem atender á índole diversa das duas linguas e á doçura e harmonia que deve ter a versificação (1853, p. 9).

Embora o tradutor evite nomear seus concorrentes, está claro que se refere a Macedo (“demasiadamente afastada do texto”) e a Elpino (“demasiadamente litteral”); o que sugere, pela contraposição entre seus

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 213

dois antecessores, que ele busca um ponto central, uma mediania. No entanto, essa mesma mediania supostamente horaciana, se pensarmos em aurea mediocritas, é a que se revela mais infeliz no ato tradutório; o que leva Francisco Achcar a lhe reservar apenas uma nota de rodapé em que afirma que “as primeiras estrofes de ad Pyrrham dão ideia da sua mediocridade” (1994, p. 197, n. 29). A mediania alcançada por Cabral de Melo está, no fim das contas, equacionada com a figura do tradutor médio criticada por Haroldo de Campos, por não oferecer uma leitura crítica provida da radicalidade necessária. Incapaz de arriscar a modernização de Macedo e a literalidade literária de Elpino, Cabral de Melo cai numa versão alongada de poética diluída. Isso se alia ao mesmo problema da questão moral que aparece nos outros tradutores. Eis o que ele afirma na “Observação do Tradutor”, após as traduções:

Supprimi algumas palavras e alguns versos na traducção das Odes de Horacio por serem a expressão de idéas ou sentimentos, não só depressores da gravidade e illustração de tão insigne poeta, mas extremamente repugnantes aos povos modernos, cujos habitos modestos e delicados, devidos ás doutrinas salutares do christianismo e proprios de um civilisação mais digna da especie humana, não sofrem grosserias, licenciosidades e impurezas (1853, p. 233).

É preciso manter a “gravidade e ilustração de tão insigne poeta”, mesmo que isso implique cortes drásticos, ou uma mudança sensível na elocução e no léxico do poema. Para Cabral de Melo, haveria um bom Horácio e um mau Horácio: deste aparecem odes e versos “que exprimem sentimentos ou envolvem idéas desconformes com os sólidos principios moraes proprios do autor” (1853, p. 8); então passa a ser tarefa crítica do tradutor selecionar e expurgar pela recriação esses trechos. Porém, ainda neste aspecto, o tradutor busca se diferenciar de seus antecessores:

A maior parte dos traductores, em razão d’essas palavras ou versos da moral e decencia publica, omittiram inteiramente muitas Odes de Horacio: – eu porém traduzi todas, com a indicada suppressão, considerando que assim podiam ser lidas sem desagrado pelas pessôas graves e modestas, e sem inconveniente pela mocidade innocente e estudiosa (1853, p. 234).

Assim, a supressão também ocorre aqui, mas é sempre indicada pelo tradutor, para que o leitor tenha alguma dimensão do texto original,

214 | COLEÇÃO CLÁSSICA

que será moralizado e cristianizado pelo tradutor. É o que acontece, por exemplo, em 4.1, em que Cabral de Melo, apesar de verter o poema inteiro e manter a ordem de desenvolvimento, opta por apagar o nome de Ligurino, que então é suprido por um travessão (1853, p. 167):

Cuido, em sonhos noturnos, Já ver-te; – já seguir do campo marcio

Pela relva teu vôo, Já, ó cruel, pelas instaveis ondas.

E desse modo o tradutor heterossexualiza a ode, ou ao menos evita seus problemas, seguindo um procedimento coerente com o que ele mesmo havia determinado e condizente com quem se apresenta como “cavaleiro professo na ordem de Cristo”, no frontispício da tradução. Em resumo, sua tradução pouco oferece como uma recriação da poética horaciana e pouco inova na interpretação elevada e cristã que já vinham dando às Odes.

O que se pode concluir disso é que, embora os resultados poéticos até variem bastante, as propostas morais variam menos. É muito próximo disso que vemos outra tradução de Horácio, dessa vez as Sátiras e Epístolas, vertidas por Antônio Luís de Seabra, em 1846, que faz a seguinte afirmação: “Emquanto aos logares licensiosos, que poderião escandalisar a honestidade, forçoso era lançar-lhe por cima certo manto de decencia” (1846, p. xiii). Estamos diante, portanto, de uma prática tradutória marcada por seu tempo, por suas concepções de beleza, decência, ética, poética, etc., que muito diferem dos projetos contemporâneos de tradução. Uma prática histórica derivada dos séculos anteriores, como observa Francisco Achcar (1994, p. 106), a partir de Costa Ramalho, que havia uma “tendência, nos poetas quinhentistas [...] – Camões, Ferreira, André Falcão de Resende –, de cristianizar o texto horaciano, ‘moralizá-lo’”. E uma prática que não era exclusiva ao sistemas literários de língua portuguesa, como se pode depreender, por exemplo, das análises feitas por Stephen Harrison (2007c, pp. 334-338) acerca das traduções e apropriações de Horácio no período vitoriano. E mais, esse processo de moralização não se dava, nesse período, apenas na tradução de obras, mas também na edição e publicação, como se pode depreender dos comentários de estudiosos de Gregório de Matos,

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 215

ainda no séc. XIX (apud Hansen, 2004, pp. 35-37). Em 1841, dizia o cônego Januário da Cunha Barbosa que “tal é a sua desenvoltura, que não convém dar-se à luz pública”. Ainda no mesmo ano, Joaquim Norberto de Souza Silva afirmava que “ao cabo rara deixou que digna seja de ler-se: obscenidades [...]”. Em 1850 Francisco Adolfo de Varnhagen diria que “de nenhum autor brasileiro possuímos pois mais poesias que deste: e entretanto será talvez dele que maior porção teremos que rejeitar; não tantas por insulsas, como quase todas por menos decorosas”. Por fim, em 1883 o cônego doutor Joaquim Caetano Fernandes Pinto terminaria afirmando que “muito lucraria a nossa literatura com a publicação das obras poéticas de Gregório de Matos incumbindo-se um diligente editor de expurgá-las das obscenidades que as deturpam” (grifos meus). Em resumo, nenhum dos comentadores apresentava críticas a respeito da poesia ou da técnica poética do corpus atribuído a Gregório de Matos; porém todos julgavam por bem ocultar o que feria a moral pública. Se comparamos esses comentários com as prefações dos tradutores de Horácio, logo percebemos que estamos diante de um processo histórico de leitura e de censura recorrentes; portanto, não podemos apenas criticar essas traduções por aquilo que historicamente elas não fariam, para então exigir algo que não faria sentido. Como defende André Lefevere, não se trata de má-fé dos tradutores:

A maior parte dos reescritores de literatura é normalmente meticulosa, trabalhadora, bem-lida e tão honesta quanto é humanamente possível. Eles vêem o que estão fazendo como o correto, como a única forma possível, mesmo que essa forma tenha mudado ao longo dos séculos (2007, pp. 31-32).

Os comentadores, críticos, editores e tradutores vivem em um determinado período, são marcados pela ideologia de seu tempo e, por isso, por mais que apostem na honestidade de seu trabalho, é inevitável que permaneçam em seu próprio tempo e que lancem parte das suas preconcepções morais e estéticas sobre as obras de que tratam: nós não seremos muito diferentes, mesmo que possamos ter maior versatilidade moral e estética. No caso da tradução, isso se torna ainda mais claro, porque interfere diretamente no modo como um determinado texto é entregue a outro povo:

216 | COLEÇÃO CLÁSSICA

Dois fatores determinam basicamente a imagem de uma obra literária tal como ela é projetada por uma tradução. Esses dois fatores são, na ordem de importância, a ideologia do tradutor (aceita livremente ou imposta como uma restrição por alguma forma de mecenato) e a poética dominante na literatura recebedora no momento em que a tradução é feita (Lefevere, 2007, p. 73).

A esses dois fatores eu ainda acrescentaria um terceiro: o modo como determinada obra vem sendo lida como parte do novo sistema literário e poético, ou seja, a história de como um determinado autor e sua obra são relidos e reescritos na história de outro povo; por exemplo: como Horácio veio a ocupar a imagem de moralista protocristão? Quais foram os processos, ao longo da Antiguidade Tardia, da Idade Média e do Renascimento, que enquadraram a obra pagã de Horácio num elenco canônico de leituras aconselháveis para um público cristão? Diante desses problemas históricos, só nos resta concluir que o processo de tradução e de edição acaba por produzir, conscientemente ou não, novas obras em diálogo com seu próprio tempo, que por sua vez se abrem a novas interpretações. Assim o ideal para a crítica de história da tradução das Odes seria realizar um estudo mais completo sobre suas relações com as leituras de Horácio feitas nos séculos anteriores, para estabelecermos uma longa tradição de leitura, com suas continuidades e rupturas. Na impossibilidade de fazer esse estudo meticuloso, espero que os pontos apresentados sirvam para uma base de contraste com o projeto que pretendo apresentar.

Disso, podemos chegar a uma proposição breve. O tradutor que mais me incita, por similaridade de projeto, e com quem mais dialogo em minha própria tradução é Elpino Duriense, por encontrar no seu trabalho a concisão (ieiunitas) e grande parte do efeito de mosaico sintático recriado na formulação em português. Não seria exagero afirmar que “em seus melhores momentos, Antônio Ribeiro dos Santos [Elpino] foi, para a lírica horaciana, o que viria a ser depois Odorico Mendes para a épica homérica e virgiliana” (Achcar, 1994, p. 115). No entanto, em relação a ele é preciso marcar no mínimo três grandes diferenças de projeto: em primeiro lugar, não pretendo operar uma moralização cristã das Odes horacianas, o que já é bastante esperado para uma tradução do séc. XXI preocupada, como o nosso tempo, também em realçar a alteridade

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 217

do texto antigo, e não apenas as suas similaridades com o nosso tempo. Em segundo, como já foi dito, busco recriar um sistema métrico que dialogue intensamente com o sistema horaciano e, para tanto, terei de sair da quase exclusividade dos decassílabos e hexassílabos utilizada por Elpino. Por fim, pretendo recuperar aquilo que entendo por oralidade do texto horaciano a partir de uma motivação de oralidade no contemporâneo, que é inevitavelmente bastante diversa do projeto neoclássico e arcádico de Elpino. Como bem observa Marcelo Tápia (2013, p. xix) acerca das teorias tradutórias de Haroldo de Campos: “será possível a um criador ou tradutor optar por outros parâmetros formais que considere adequados (com base em seus próprios conceitos estéticos) à produção do poema em seu novo contexto”; em outras palavras, a operação de recriar a oralidade é um resultado de crítica do tradutor tanto da obra original quanto de seu próprio tempo; será uma visada diferente até do que se pode considerar como oralidade na poesia. Por isso, é importante marcar que, quando penso em oralidade, quero me referir ao conceito, já brevemente mencionado, de Henri Meschonnic:

Não há, pois, mais o modelo binário do signo, o oral e o escrito, no padrão da voz e na escritura. Mas um modelo triplo, o falado, o escrito e o oral. O oral é compreendido como um primado do ritmo e da prosódia na enunciação [...] O oral é então uma propriedade tanto do escrito como do falado [...] A poética anula essa falsa oposição: na sua longa frase, Proust tem sua própria oralidade, que é a subjetividade de seu ritmo. [...] a literatura é a realização máxima da oralidade (2010, pp. 62-63).

Talvez um bom exemplo para isso sejam as próprias poesias helenística e romana, ambas feitas na minúcia do texto escrito com o objetivo de permitir também uma realização vocal, por meio de declamações ou mesmo leituras em voz alta. Ou mesmo a poesia grega clássica, ou arcaica, como afirmava Havelock (1996, p. 56), “quando redige para um público que ele sabe que não lerá o que está escrevendo, mas, sim, ouvirá”. É essa oralidade, sem oposição à escrita, como “realização máxima” pela poesia que pretendo recriar. Isso implica, quanto ao ritmo, aquela audácia proposta por Haroldo de Campos, que evita os traquejos do “versejador de domingo”, para assim recriar um efeito difícil da poesia horaciana ligado ao deslocamento constante da naturalidade do texto numa sintaxe

218 | COLEÇÃO CLÁSSICA

distante do falado cotidianamente, mas que se acomoda no oral. Há aqui uma pretensão assumida de produzir pela tradução uma poética também sincrônica, o que me parece fundamental para uma poética da tradução de textos clássicos. Vejamos um comentário preciso de Haroldo de Campos no artigo intitulado “Texto literário e tradução”:

Não serão as versões de poetas gregos ou latinos com sabor de exercícios escolares, feitas no cândido desconhecimento da “gramática da modernidade” por filólogos ou eruditos que não se embaraçam em aplicar sua competência linguística a canhestras incursões poéticas – não serão esses produtos da “consciência ilustrada” ingênua (sem paradoxo) que irão conquistar um público maduro ou amadurar um público novo para a fruição da tradução como arte (2013, p. 24).

A crítica do poeta às traduções acadêmicas de sua época (o texto é originalmente de 1967) serve ainda como advertência para os trabalhos do presente, quase 50 anos depois, mesmo que uma série de estudiosos e tradutores já tenha incorporado o conselho de aprender a gramática da modernidade, para efetivar uma poética sincrônica ao mesmo tempo que se revê criticamente um texto do passado distante. A oralidade será, portanto, fundada numa leitura do texto latino do séc. I a.C., no seu acontecimento como discurso específico da poesia romana, mas com uma gramática também voltada para o presente, que precisa se pensar como acontecimento histórico da língua, evitando um suposto estilo atemporal dos clássicos. É assim que apresento aqui o mesmo trecho inicial de 2.1:

Desde Metelo cônsul, tremor civil, a guerra, as causas, vícios e práticas, o jogo da Fortuna, os duros laços de dois generais, as armas por sob o sangue, imersas, sem punição e o perigoso lance de dados, sim, tu cantas e andas sobre um fogo já soterrado por falsas cinzas.

Mantive cavalgamentos constantes (vv. 3-4, 4-5, 7-8), inclusive entre as duas primeiras estrofes, para dar maior velocidade à série de temas bélicos; ao mesmo tempo, sustentei o adiamento do tractas até o v. 7, com o termo “cantas”. Ainda como ponto novo, o leitor pode perceber que a estrutura métrica da estrofe é completamente inédita – ao

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 219

que me consta – na poética de língua portuguesa, por tentar emular o caráter estrangeiro da empreitada horaciana de incorporar 13 metros gregos diferentes numa só obra romana (cf. a Lista de Metros das Odes, no volume da tradução); o que nos leva à discussão sobre a polimetria na tradução e suas possibilidades performáticas.

3.3. Para uma polimetria brasileira

nas Odes de Horácio

As duas últimas subseções apontaram para o papel do leitor/intérprete/tradutor como uma função ativa da existência das obras literárias. Essas intervenções estabelecem, portanto, não apenas a tradição – como uma fôrma engessada – mas também novas tradições, ou seja, uma cadeia viva. No caso dos ritmos vocais, não é diferente. Como afirma Paul Zumthor:

A componente fundamental da “recepção” é assim a ação do ouvinte, recriando, de acordo com seu próprio uso e suas próprias configurações interiores, o universo significante que lhe é transmitido. As marcas que esta re-criação imprime nele pertencem a sua vida íntima e não se exteriorizam necessária e imediatamente. Mas pode ocorrer que elas se exteriorizem em nova performance: o ouvinte torna-se por seu turno intérprete, e, em sua boca, em seu gesto, o poema se modifica de forma, quem sabe, radical. É assim, em parte, que se enriquecem e se transformam as tradições (2010, p. 258).

Zumthor explica com esse trecho como o ouvinte de uma performance oral tradicional (ao ouvir um xamã, um cantador, um poeta grego arcaico, ou uma recitatio romana) passa a entrar ativamente nessa tradição ao se tornar ele próprio um poeta que repete e altera o corpus que lhe é anterior, ou mesmo ao reagir diante da performance da obra. A imagem, contudo, é perfeita para explicar a atuação do tradutor, como o ouvinte que, ao fim, decide ele próprio tomar a voz e, inevitavelmente, altera o passado e a tradição presente num só gesto, que paradoxalmente é o único capaz de dar vida à tradição: “é preciso não apenas descrever o passado: deve-se fazê-lo reviver” (Zumthor, 2005, p. 113). Portanto, a tradução da performance será ela própria uma nova performance, o momento em que o ouvinte assume a voz, ou, melhor dizendo, o momento em que o

220 | COLEÇÃO CLÁSSICA

tradutor dá a voz ao texto e dá à voz o texto, o que só pode se dar num movimento de forma sempre inacabada.

A palavra performance contém forma com um prefixo indicando o acabamento e um sufixo de valor dinâmico: remete, pois, à criação de uma forma que é aquilo que Max Lüthi, em seu livro sobre os contos, chama em alemão Zielform , forma final , no sentido em que esse adjetivo indica um fim, uma forma desejável, por assim dizer (Zumthor, 2005, p. 56).

Portanto, a performance, enquanto inacabamento e movimento que é forma, é uma realização poética plena (2005, p. 87). Como se poderá observar, a partir deste momento, eu trato da oralidade num sentido mais estrito e mais próximo ao senso comum do que na acepção mais abstrata proposta por Meschonnic. Na prática, as duas podem conviver, mas é preciso – na especificidade da cultura romana do séc. I a.C. – tentar compreender como funcionava a oralidade da literatura stricto sensu, ou seja, a sua vocalidade, como noção antropológica (cf. 2005, pp. 116-117 e 141).

Com essa breve reflexão inicial, gostaria de apresentar ainda algumas questões técnicas importantes desta tradução, porque creio que elas comportem uma dimensão política e poética importante. Diante da variedade horaciana, foi fundamental para a tradução poética recriar, junto com os efeitos de abertura derivados da iunctura e series, acima comentados, também os sistemas polimétricos dos Carmina em português, por considerar esses dois eixos importantíssimos para uma abertura poética das odes. Assim, ao levar em consideração o caráter inovador da variedade métrica empregada por Horácio na poesia romana, julguei que poderia obter efeitos similares a partir de certo estranhamento métrico ao leitor brasileiro, um estranhamento programático que produzisse efeito similar a ler um livro fora dos padrões mais bem recebidos na Roma do séc. I a.C. Isso pode ser importante se levarmos em conta duas marcas da inovação horaciana e do caráter estranho ao mundo romano: em primeiro lugar, sabemos que nem mesmo os gregos do período helenístico usaram tanto e tão variadamente os metros líricos arcaicos, porque para eles tais metros já eram artificiais e de difícil compreensão; em segundo lugar, Horácio teve poucos imitadores (Pighi, 1958, p. 143), se comparado aos elegíacos, a Virgílio, ou mesmo a Catulo (basta considerarmos a Priapeia e Marcial, por exemplo), o que indica que, mesmo poucas

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 221

décadas após a publicação das Odes, o tratamento que Horácio deu aos metros era difícil para os romanos: seria possível até considerarmos se Horácio não teria inventado um sistema, já que não nos chegou nenhum exemplar grego para o asclepiadeu 3. Com isso em mente, ao traduzir os poemas horacianos, em vez de selecionar estrofes ou metros tradicionais da língua portuguesa, preferi criar estrofes e metros novos a partir daqueles utilizados por Horácio, o que resultou num duplo trabalho. Em primeiro lugar, reformular as relações entre poemas do mesmo metro fazendo com que também partilhassem o mesmo ritmo em português; em segundo lugar, discutir como realizar essa renovação.

O que nos leva ao ponto crucial. Como as Odes foram escritas em metros antes de tudo cantáveis (quer elas tenham sido ou não de fato cantadas por Horácio) e secularmente inseridos na tradição já secular da lírica grega arcaica,69 optei por uma tradução que emulasse o ritmo específico desses metros, ou seja, por uma emulação em português da base rítmica que possibilitaria o canto no mesmo padrão rítmico do original, ao modo de um contrafactum, para sugerir a possibilidade de quebrarmos “o círculo vicioso dos pontos de vista etnocêntricos e, no caso da poesia, grafocêntricos” (Zumthor, 2014, p. 15). O longo debate sobre a performance das Odes por Horácio provavelmente não terá fim, mas, para a visão aqui apresentada, pouco importa – no caso da tradução –se o poeta cantou ou não seus poemas (cf. Lyons, 2010, passim; West, 2002, p. 243 e 265; ou Pighi, 1958, p. 143; e contra Syndikus, 1973, pp. 244-249; e Landels, 1999, p. 195); o fato primordial é que ele fez uso de metros cantáveis, que eram cantados na Grécia arcaica e que poderiam, portanto, se encaixar perfeitamente na melodia grega; que posteriormente poderiam ser performados por um ator ou cantor, tal como sabemos que houve performances de pantomimas das Bucólicas de Virgílio (Suetônio, Vita Vergilii, 26 – o termo usado é cantores): cf.

69 Jean Perret (apud Zimmermann 2009, p. 43) defendia a simplicidade de que “Alcée et Sappho, avec tout leur génie, avaient été auteurs de chansons ”. O próprio Zimmermann logo abaixo conclui que “c’est donc naturellement dans la tradition de la chanson que s’ancrent les structures métriques horatiennes”. A questão sobre a regularização dos metros eólicos realizada por Horácio, infelizmente, não terá lugar aqui, mas é possível conferir os detalhes em Stampini (1933) e Pighi (1958). Brose (2014) faz uma longa análise da performance oral nos epinícios de Píndaro.

222 | COLEÇÃO CLÁSSICA

Panayotakis, 2008. Além disso, Horácio demonstra algum conhecimento sobre as mudanças estruturais da lira, bem como possíveis mudanças de modos, se acreditarmos no que diz na Arte poética, v. 216. De modo similar, não é obrigatório ao leitor cantar estas traduções, mas perceber que elas são escritas de modo a se encaixar no que poderia ter sido a melodia grega ou romana e assim se abrir para a possibilidade de pensar e incorporar a poesia antiga como acontecimento corpóreo, vocal. Assim como o original, elas estão abertas ao problema. Paul Zumthor (2010, p. 62) apresenta uma questão similar sobre a interpretação da Chanson de Roland, que originalmente talvez fosse cantada, o que leva a uma série de implicações históricas, antropológicas e poéticas.

Voltando ao ponto, temos então um problema entre as línguas: por certo não seria possível considerar sílabas como longas e breves no português, tal como seriam na língua grega antiga e no latim clássico; por isso foi necessário, em primeiro lugar, buscar outra abordagem que desse conta da questão sem cair no simplismo de que nossa língua, por ser filha do latim, ainda comportaria efeitos silábicos similares.70 No seu importantíssimo trabalho tradutório, Leonardo Antunes afirma que sua própria “[...] tradução foi feita em um padrão métrico que se assemelhasse em algo com o do original, seja pela extensão ou pela cadência” (2011, p. 41); e assim opta pela “possibilidade de correspondência entre as sílabas longas das línguas clássicas, como o Latim e o Grego, e as sílabas tônicas das línguas modernas, como o Português e o Inglês” (p. 42); uma lógica muito similar foi utilizada no seu trabalho de doutorado, recentemente defendido, sobre as odes de Píndaro (Antunes, 2013). Infelizmente, não poderei me deter na discussão minuciosa sobre como Antunes propõe sua recriação tradutória, mas convém lembrar, ao menos, que ele segue o modelo métrico mais rígido de Carlos Alberto Nunes para o hexâmetro datílico, e assim mantém todos os pés na forma datílica (sem a possibi-

70 Uma revisão sobre a história do hexâmetro datílico em língua portuguesa já foi feita por Oliva Neto & Nogueira (2013); e estudos sobre seus efeitos no teatro apareceram tanto na dissertação de mestrado de Leandro Dorval Cardoso (2012) como nas pesquisas mais recentes de Rodrigo Tadeu Goncalves (2009, 2001 e 2014), acerca do jambo, do troqueu e dos carmina cênicos. Sabemos também do trabalho de mestrado de Rafael Trindade dos Santos (2014), na Unesp de Araraquara, que busca analisar ainda outras recepções dos metros clássicos em nossa língua.

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 223

lidade de conversão para espondeus): “os hexâmetros do dístico elegíaco serão traduzidos por hexâmetros dactílicos em nossa língua” (2011, p. 47); e depois mantém o mesmo modelo de solução para a recriação dos tetrâmetros trocaicos, trímetros jâmbicos, etc. Nesse aspecto, minha tradução diverge claramente dos parâmetros de Antunes, exceto no caso da estrofe sáfica, que assentimos em quase tudo (cf. 2011, p. 95 e ss.). Talvez fossem assunto para uma discussão mais detalhada os resultados rítmicos do dímetro jônico por Antunes, um caso em que, por seu enrijecimento de padrão silábico, o tradutor acaba perdendo a rítmica grega que procurava (cf. 2011, p. 105 e ss.); da minha parte, em trabalho anterior, creio que realizei uma tradução de padrão similar na versão de um ditirambo de Baquílides (cf. Flores, 2006). De qualquer modo, é possível ver como Antunes tem alterado sua prática tradutória com a incorporação de performances gravadas em vídeo e disponibilizadas em seu canal no YouTube (https://bit.ly/49cdIqP); nessas versões vocalizadas, parte da rigidez que se encontrava na teorização de mestrado e doutorado tem cedido mais e mais espaço para as implicações da prática do canto na definição do metro.

Outra proposta recente e inovadora é a de Érico Nogueira, que já apresenta maior versatilidade de substituições de pés para a tradução dos hexâmetros datílicos de Teócrito:

Seguindo, pois, o exemplo de Nunes, o que fizemos foi basicamente variá-lo ainda mais, mantendo-nos com isso bastante mais fiéis à vivacidade do hexâmetro, cujas inúmeras possibilidades rítmico-melódicas o velho mestre elimina de vez que emprega apenas e tão somente o dactílico puro, com raríssimas exceções (2012, p. 131).

Essa solução já é muito mais próxima do que busco demonstrar adiante, já que prevê a possibilidade de substituição de pés quando isso ocorre na métrica antiga; no entanto Nogueira aqui se detinha apenas no hexâmetro datílico, sem se aproximar da poesia lírica propriamente dita. Seu trabalho mais recente e ainda inédito em versão impressa trata especificamente da poesia de Horácio (Nogueira, 2020), buscando formular uma polimetria bastante próxima dos jogos de longas e breves do original, uma ideia que muito se aproxima de meu trabalho, embora siga ainda a lógica tradicional de metrificação silábica em português (sobretudo a regra de final de versos contado até a última sílaba longa), para então sugerir

224 | COLEÇÃO CLÁSSICA

ritmos internos novos; enquanto, como tentarei demonstrar, minha prática passou a considerar a performance como determinante do metro. No geral, se fizermos apenas uma análise do metro desprovido de performance cantada, há muito mais proximidade entre as traduções que aqui apresento e as traduções do grego e do latim realizadas pelo alemão Johann Heinrich Voss no séc. XIX e pelo italiano Giovanni Pascoli no início do século passado, para citarmos dois dos nomes mais famosos nesse tipo de empreitada. Esta tradução passa por um processo muito similar, porém tenta levar em consideração, ainda, as possibilidades performáticas da tradução, isto é, considera o texto original também como um acontecimento oral e que pode ser traduzido como tal, para além da página e do texto escrito que caracterizam a poesia moderna. Por isso, depois de uma série de experimentos em português, cheguei à conclusão de que a melhor solução seria encarar os poemas escritos como artefatos cantáveis, ou seja, como uma espécie de partitura para o ritmo do canto, mesmo que tenham sido feitos com base na escrita. Isso me leva ao modo de funcionamento da canção popular, sobretudo a brasileira, para fazer o elo sinfônico com as possibilidades do canto; principalmente porque é possível encontrar alguns pontos de similaridade entre a oralidade romana e a oralidade que circula na canção. Assim como Ruth Finnegan (1977, pp. 16-24), Zumthor (2010) categoriza alguns graus de oralidade: a oralidade da poesia horaciana se enquadraria no que ele chama oralidade coexistente com a escrita segunda, quando podemos ver uma poesia oral profundamente marcada pela cultura escrita, enquanto ainda haveria uma oralidade mista, em que a influência da escrita é apenas parcial, além de outras, sem marcas da escrita (cf. também Zumthor, 1993, pp. 18-19).

Rosalind Thomas (1992, p. 159), embora não use a conceituação de Zumthor, aponta para uma visão similar de uma Roma de cultura oral cada vez mais dominada pela influência da escrita. Ricardo Azevedo, ao estudar as categorizações de Zumthor para pensar no samba, faz uma analogia com a música brasileira que pode ser bastante útil: poderíamos dizer que, em geral, as letras da moderna música popular brasileira, particularmente as do tropicalismo, tendem a ser discursos marcados pela oralidade coexistente com a escrita segunda , enquanto as letras de samba tendem ao discurso marcado pela oralidade coexistente com a escrita mista (2013, p. 216).

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 225

Não é esse o projeto de escrita para uma letra que já tem o padrão rítmico da canção pronto? Ou seja, não é a demanda de uma voz para uma melodia esse ponto em que o texto precisa se dar ao som? Se assim for, não estará recluso ao mundo da cultura popular (se ainda insistirmos numa divisão francamente caduca), mas em toda parte em que o canto convive com a escrita. É precisamente o que fez Ferreira Gullar (1991, p. 230), num trecho do Poema sujo, adaptado à melodia do “Trenzinho caipira” de Villa-Lobos (originalmente a tocata da Bachiana no. 2). Basta ver o poema para notarmos como Gullar distribui as tônicas no alongamento das notas melódicas que coincidem com tempos fortes, como já tentei demonstrar ser o procedimento mais comum na letra de canção:

Lá vai o trem com o meni no [com elisão de “com+o”]

Lá vai a vida a rodar

Lá vai ci randa e des ti no

Cida de noite a gi rar

Lá vai o trem sem des ti no

Pro di a novo encontrar

Cor rendo vai pela ter ra, vai pela ser ra, vai pelo ar

A versão da tocata com letra foi, pouco depois, gravada por Edu Lobo (1978), no formato canção. Nesse caso, a escrita passa por uma retomada do padrão preexistente da música; na tradução poética de um poema antigo, o padrão preexistente passa a ser a possibilidade de música, ou de ritmo performático, do texto original: o texto original funciona como contrafactum. É nesse sentido que Cole Porter afirma que “Escrever letras é como fazer palavras cruzadas” (apud Rennó, 1991, p. 75) – é preencher com matéria linguística um espaço musical predeterminado. É isso que busca Érico Nogueira na tradução de Teócrito, seguindo a tradição já incorporada na poesia alemã, porque o jogo de longas e breves da língua grega permite a troca de duas sílabas breves (v v) por uma sílaba longa (–); e, enquanto Nunes e Antunes preferiram encarar o macrossistema (ou seja, a tendência datílica), Nogueira optou por encarnar as possibilidades físicas resultantes das variações como marca da construção poética: para Nogueira, o hexâmetro datílico não se resume a seis dátilos, mas incorpora todas as variedades decorrentes das permutações; com isso, propõe o convívio entre ritmos datílicos (uma tônica seguida de duas átonas) e

226 | COLEÇÃO CLÁSSICA

trocaicos (uma tônica seguida de apenas uma átona), tal como o hexâmetro grego varia entre dátilos e espondeus, ao mesmo tempo que pode manter o ritmo quaternário da música. Há que se notar, no entanto, a consciência de Nogueira sobre os limites tradutórios das línguas, já que considera a incorporação de um troqueu silábico (– v), e não de um espondeu (– –), que seria prosodicamente difícil em português; consequência disso é que Nogueira permite o pensamento silábico da língua, sem pensar nas possibilidades performáticas; assim, sem o alongamento do canto, resta assumir que o português não produz naturalmente as duas sílabas tônicas seguidas que formariam um espondeu (– –): Nogueira opta pela variedade como marca do hexâmetro, e deixa de lado seu tempo musical. Por analisar o hexâmetro de modo similar, Marcelo Tápia propôs em sua tese a formulação de um metro constituído por cinco ou seis sílabas tônicas: “Mas terão cinco ou seis acentos, considerando a necessidade de marcação que reforce a expectativa constante, como marcação rítmica, ao longo dos sucessivos versos ‘narrativos’” (2012, p. 260). Fica claro que, para manter a variedade rítmica, Tápia opta por deixar de lado a obrigatoriedade de seis pés para o verso. Mas nós podemos deixar de analisar a poesia antiga segundo o critério tradicional de métrica neolatina, ou seja, silábica, para tentarmos entender como a performance da poesia grega seguiria ritmos musicais; assim, mesmo que um leitor contemporâneo não entenda o metro, ele é capaz de perceber o ritmo musical, tal como é capaz de ouvir música popular em ritmos menos ortodoxos: penso, por exemplo, no jazz de “Take Five” de Dave Brubeck (1959), ou no rock de “15 Step” do grupo Radiohead (2007), ambas em compasso 5/4, mas que foram capazes de atingir um sucesso notável apesar do ritmo menos comum. Assim, com um processo muito similar ao de Nogueira, porém ampliado a outra gama de metros passíveis de canto e com ênfase em suas possibilidades na performance, os pés da poesia antiga funcionariam como uma partitura desprovida de notas, como apenas uma sequência alternada, fundada na oposição entre sílabas longas e breves. Portanto a seguinte afirmação de Enzo Minarelli só é aplicável até certo ponto:

Compartilhamos da tese de que um texto escrito, concebido para uma leitura silenciosa na mente, fornece, todavia, indicativos sobre uma possível leitura, mas não necessariamente deve ser lido em voz alta,

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 227

uma vez que as indicações inerentes ao texto são tão genéricas que cada intérprete pode atendê-las discretamente, de acordo com sua própria sensibilidade (2010, p. 28).

Uma afirmação como essa vale apenas em parte para a poética romana, porque esta acontecia numa dupla função. Se, por um lado, recebemos um corpus de textos escritos que convidam à “leitura silenciosa na mente”, por ser essa a nossa prática moderna, por outro, não podemos deixar de lado a questão factual de que a poesia em Roma acontecia majoritariamente em ambientes orais, mesmo que projetada como escrita. Isso quer dizer que um livro como as Odes é simultaneamente um texto para leitura solitária e uma poesia de acontecimento oral, marcada por ritmos musicais de uma poética grega arcaica oral, feita para ser declamada ou cantada em ambientes coletivos e recebida também pelos ouvidos. Philippe Brunet (2014) demonstra vários casos em que o hexâmetro datílico francês de revela ritmicamente indeterminado na escrita, o que demanda do intérprete vocal uma decisão que aparece apenas na performance: escrita e oralidade não se opõem pura e simplesmente, mas formam uma rede intricada, já que o texto se dá tanto ao olho como ao ouvido. As vagas fronteiras entre oral e escrito não se restringem ao mundo greco-romano e são tema de Ruth Finnegan (1977, passim), além de bem expressas por Azevedo, apesar de este discordar de Finnegan em diversos aspectos: “os modelos de consciência da cultura escrita e da cultura oral são propostos, sinérgicos, interagem dialeticamente, sofrem influências recíprocas, dialogam e não são de nenhum modo excludentes” (2013, p. 264). O caso da poesia antiga clássica, helenística e romana, é exemplar para demonstrar essa porosidade. Se levarmos isso em consideração, podemos concluir que a realização de uma leitura em voz alta das Odes não é tão genérica que cada leitor pudesse emiti-la de qualquer modo, porque, como percebe Paul Zumthor (2014, pp. 55-57), mesmo na leitura solitária, o leitor passa por uma espécie de performance ausente: o metro, por exemplo, é uma exigência de identificação do subgênero lírico e formatação do ritmo da leitura, porque interfere sobre o corpo do leitor/ouvinte; a presença ou não do instrumento musical e do canto também poderia interferir profundamente sobre o resultado de uma performance, muito embora não tenhamos muitos dados que explicitem como seriam as leituras de poesia no período de Horácio. Assim, apesar de traduzir um texto escrito,

228 | COLEÇÃO CLÁSSICA

que nos chegou sem notação musical, pretendo levar em consideração a oralidade inerente à apresentação de um texto antigo. Nas palavras de Philippe Zimmermann:

A oralidade tem um lugar essencial na poesia latina, como em toda literatura antiga. Eis um ponto incontestável: seja qual for seu modo de execução, as Odes foram escritas para serem lidas em voz alta. A consequência é grande: entre a escrita da ode e sua recepção pelo ouvinte, há a mediação do oral (2009, p. 44).

Emanuelle Valette-Cagnac (1997) leva a questão adiante e problematiza a tendência a vermos na cultura romana apenas a leitura em voz alta, para então modular essas afirmações. Interessante também é conferir o vocabulário latino usado para leitura em diversos modos (1997, pp. 19-26 e 313): por um lado, legere e lectio (com uso mais neutro e amplo, servindo para a leitura em voz alta ou silenciosa, em geral na esfera privada), por outro, recitare e recitatio (mais especializado, com a união entre o trabalho do olho e da voz, em geral na esfera pública, com um destinatário em mente); enquanto a fala feita de memória usaria outros termos, como dicere, declamare, narrare, habere, pronuntiare, expoente ou agere. Em todo caso, temos uma gama de termos que implica a vocalização dos textos, o que demonstra a importância da incorporação do vocal desses textos como acontecimento da cultura. Ou, nas palavras acertadas de Giovanni Comotti (1991, p. 7):

A difusão e transmissão de textos acontecia por meio de audição e memorização. Mesmo quando os poetas já não mais improvisavam, mas escreviam suas composições, elas continuavam a ser conhecidas pela audiência por meio da performance oral.

Nesse sentido, os já famosos comentários de Gregory Nagy (1996, pp. 7-39) sobre as relações entre a poética homérica e a cansò dos trovadores provençais, em especial de Jaufré Rudel, poderiam ser ainda mais efetivos se fossem uma comparação entre os trovadores e a poesia helenística e romana, já que nesses dois casos há uma inter-relação complexa entre escrita e performance oral que não interviria na criação dos aedos homéricos antes da fixação escrita das epopeias. Com isso, uma relação dupla se estabelece entre o criador e o intérprete: no caso do período helenístico – grego e romano – podemos pensar em cantores e liricistas,

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 229

citaredos, ou pantomimos profissionais, bem como em cortesãs, ou até mesmo um escravo encarregado de leituras, supondo que tal escravo deveria marcar adequadamente as oposições de longas e breves num poema, mesmo que não cantasse; enquanto havia o jogral no período medieval, encarregado de performar as cantigas do trovador (cf. Zumthor, 1993, pp. 55-74). Nos dois casos, a importância da mídia oral na transmissão interfere no seu caráter escrito, mesmo que as variantes não tenham chegado até nós: “Nas tradições trovadorescas, o transmissor das canções torna-se um troubadour em potencial pelo fato de re-performar a canção” (Nagy, 1996, p. 20), mesmo que a cultura trovadoresca insista sem parar na divisão entre trovador e jogral: no momento em que o jogral performa ele assume a voz do trovador, de modo similar ao aedo que, quando narra a épica, se torna Homero (1996, p. 61). Então, o que se faz é uma dupla relação: por um lado, o primeiro veículo é a performance (declamações, recitações, cantos) do poema escrito, seja na própria voz do poeta ou de um profissional específico, e geralmente só depois este mesmo poema será publicado com o intuito de leitura; por outro, até que ocorra a publicação, certamente o poema é alterado pelas performances e pelas recepções do público e, portanto, tem uma vida de variante oral. Mas aqui entra um novo fator: o poema publicado para leitura inevitavelmente guarda sua oralidade e, por isso, é passível de novas performances nos seus leitores, quando estes se tornam performers. Uma série de exemplos da recepção moderna da poesia antiga em geral, com alguns exemplos mais centrados nos textos de Catulo e Horácio, é a coleção de partituras apresentada por Stuart Lyons (2010, pp. 132-176), com base em códices medievais que musicavam poemas antigos; ou a organizada por Giovanni Battista Pighi (1958, p. 145 e ss.) com partituras do séc. XVI ao séc. XX; ou Draheim & Wille (1985), num conjunto ainda maior dedicado apenas às partituras; nessas recolhas, é possível ver como os metros dos poemas antigos foram interpretados musicalmente até meados do séc. XX. Esse efeito de “re-performance” derivada da leitura pode ser ainda mais forte em nosso contexto se tentarmos recriar a oralidade dos textos originais em português, seja de uma cansò provençal ou de uma ode horaciana. Eu mesmo realizei traduções de Bertran de Born de modo a ser possível manter as supostas melodias no texto em português (Flores, 2014), bem como de cansas da Comtessa de Dia – recentemente criei uma conta no

230 | COLEÇÃO CLÁSSICA

site SoundCloud (https://soundcloud.com/guilherme-gontijo-flores), onde apresento performances gravadas de canções traduzidas de algumas línguas. É o que já havia feito Augusto de Campos (2003, p. 70) nas suas versões de Arnaut Daniel, como na “Chanson do·ill mot son plan e prim” (“Canção de amor cantar eu vim”), comentada por Carlos Rennó, que conclui que “os versos de Augusto são perfeitamente cantáveis sobre suas frases melódicas” (2003, p. 51). Na verdade, Augusto de Campos segue o mesmo projeto métrico que as versões de Ezra Pound (2003, p. 481) para o mesmo poema, “A song where words run gimp and straight”: no caso, trata-se de respeitar até o final do verso, manter rimas oxítonas ou paroxítonas, para preservar as possibilidades do canto. Augusto de Campos (1998, pp. 49-69) ainda verteu os poemas franceses do Pierrô Lunar de Albert Giraud, com o intuito de manter sua cantabilidade na composição homônima de Arnold Schönberg. O próprio Rennó (1991) já apresentou versões de Cole Porter, com o projeto de serem cantáveis segundo a mesma melodia: “Fui ortodoxo nesses aspectos, fazendo coincidir o mais rigidamente possível as sílabas fortes e fracas com os tempos fortes e fracos dos compassos” (1991, p. 42). A lista de traduções cantáveis cantadas poderia ir longe, mas podemos parar por aqui. Em todos esses casos, a tradução é o modo da performance oral, mesmo que escrita.

Voltemos à Antiguidade: como bem afirmou Rosalind Thomas, “por ideal, deveríamos ler toda a literatura antiga em voz alta – ou melhor, tentar recitá-la ou ‘performá-la’” (1992, p. 117). Thomas trata sobretudo da cultura grega, mas sabemos que, no caso de Roma, a consciência oral de um auditório teria sido imensa, se acreditarmos nas palavras de Cícero (De Oratore, 3.196):

Quotus enim quisque est qui teneat artem numerorum ac modorum? At in iis si paulum modo offensum est, ut aut contractione breuius fieret aut productione longius, theatra tota reclamant. Quid? Hoc non idem fit in uocibus, ut a multitudine et populo non modo cateruae atque concentus sed etiam ipsi sibi singuli discrepantes eiciantur? Pois quantos são os que compreendem a arte dos metros e dos ritmos? Mas se alguém por acaso comete apenas um pequeno deslize neles, seja uma abreviação por contração ou um alongamento por produção, todo o auditório reclama. Então? Não acontece a mesma coisa no que diz respeito às vozes, já que os grupos harmonizados e mesmo os cantores individuais são expulsos pela multidão popular, caso ocorra discrepância?

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 231

Uma passagem similar aparece no Orator 173: In uersu quidem theatra exclamant, si fuit una syllaba aut breuior aut longior (“por certo que no verso o auditório brada, se uma sílaba foi mais breve ou mais longa”). Plínio, o Jovem (Epístolas 5.3.7-11) comenta como ele próprio recitava em público e incorporava críticas que aconteciam nesses momentos. Valette-Cagnac (1997, pp. 111-169) analisa diversas passagens das cartas em que Plínio trata da recitatio romana, para concluir que esta “não é a exibição de uma obra pronta, mas um lugar de produção, onde se cria um monumento literário” (1997, p. 138), exatamente por meio das críticas incorporadas após a performance vocal de um leitor. Desse modo, transpondo as palavras de João Angelo Oliva Neto acerca dos estudos de poesia grega arcaica para os de poesia romana, eu diria que “de modo deveras curioso, assume-se a oralidade de bom grado e com justeza, mas não se assumem ulteriores implicações dela” (2013, p. 32). É certo que a oralidade que determina os textos romanos do Principado não é igual àquela que vemos na Grécia arcaica, mas é preciso insistir que, a seu modo, os estudiosos da poesia romana também tendem a centrar seus estudos na materialidade escrita dos textos e muitas vezes deixam de lado suas possibilidades de performance como um meio que altera os modos de produção e percepção dessas mesmas obras. Há certamente casos interessantíssimos de estudo sobre performance em Roma: Wiseman (1985) considera a possibilidade de Catulo 63 ter sido apresentado com um dançarino solo nos ludi Megalenses. Sargent (1996) sugere a hipótese de que as Heroides de Ovídio possam ser encaradas como libretos para pantomimos performarem; enquanto Ingleheart (2008) defende que as Metamorfoses teriam servido aos atores. Panayotakis (2008) indica que os textos virgilianos (das Bucólicas e dos livros 4, 6 e 10 da Eneida, ao menos) serviram de material para a adaptação de mimos e pantomimas, com base nos comentários de Sérvio às Eclogae 6.11 e de Suetônio (De poetis 103-4). Porém, como venho argumentando, isso não se restringe à Antiguidade; e, no convívio do presente, existe uma atenção cotidiana à oralidade, já que, de modo similar ao descrito por Cícero, o público do séc. XXI também pode explodir em vaias, caso o intérprete erre o tempo da música numa canção popular.

A importância rítmica do metro ficará mais clara com um exemplo, como a ode 1.11.1-3:

232 | COLEÇÃO CLÁSSICA

Tu ne quae sier is (sci re nef as) quem mihi, quem tibi Finem di dederint , Leucone, nec Baby lonios Temptaris numeros. Sed melius, quic quid erit pati, [negritos marcam as sílabas longas]

São apenas os três primeiros versos, mas com eles podemos ter uma sensação do que está em jogo. A ode é toda composta κατὰ στίχον (com o mesmo tipo de verso) e tem por base uma abertura de duas longas, seguida por uma sequência de três pés idênticos (longa, breve, breve, longa, ou – v v –) com um encerramento em duas sílabas (uma breve e a última opcional, como em toda metrificação). O esquema do asclepiadeu maior em Horácio pode ser representado do seguinte modo:

É a partir dessa fórmula rítmica, como unidade musicável, cantável e dançável (cf. Brunet, 2011), que eu trabalho. Com isso, quero dizer que, diante da fórmula rítmica, encarei o metro como uma possível apresentação em forma de canção, cuja tradução deveria tentar reproduzir um contrafactum, um texto novo que replica a melodia de um texto antecedente, um texto que funcionasse na mesma rítmica. Essa conclusão é similar à de Paul Zumthor, que, ao estudar a poética oral, afirmava que “todos os traços aqui evocados encontram-se nos textos de nossos cançonetistas: únicos ‘poetas orais’, até nova ordem, produzidos pela civilização industrial” (2010, p. 160). E, mais uma comparação, se recordarmos que as Odes chegam a nós como livro, apesar de seu fator oral: “Em nossos dias, e sem dúvida já há muito tempo, a canção se escreve. Não importa: a visada do discurso continua a ser, todavia, a única corporeidade da voz” (p. 161). Como já se pode imaginar a partir dessa comparação, não se trata, ao fim e ao cabo, de repetição dos parâmetros originais, mas sim de encontrar novos parâmetros que permitam uma visada rítmica do original em outra língua. Em primeiro lugar, como já se disse, seria linguisticamente quase impossível manter duas longas

71 Não poderei entrar nas mudanças entre o metro grego utilizado por Alceu e sua recriação horaciana, nem nas outras divisões possíveis para este verso; mas convém indicar que a abertura em duas longas não consta na metrificação grega, que aceita longas ou breves nas duas sílabas de abertura de cada verso (cf. De Gubernatis, 2001, pp. 119-120).

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 233
– – – v v – || – v v – || – v v – v v71

consecutivas em língua portuguesa; então seria impossível fazermos três longas como na abertura do verso latino, porque a prosódia aniquila esse tipo de construção, e acabamos por ter o enfraquecimento das sílabas tônicas por proximidade, como numa seguinte abertura:

Tu nem vás perguntar [...]

O leitor, ao pronunciar o texto sem melodia, seguindo métodos que mantêm a prosódia silábica tradicional, tais como os de Nunes, Antunes ou Nogueira, mesmo diante de três tônicas (“tu nem vás”), tenderia para uma escolha prosódica, que pode variar entre:

Tu nem vás perguntar [...]

Ou:

Tu nem vás perguntar [...]

Ou mesmo:

Tu nem vás perguntar [...]

Então, se pensamos na performance cantada, a questão precisa ser encarada de outro modo que não seja transplante de longas para tônicas, porque estamos sempre vendo canções que se utilizam de várias notas longas seguidas, sem que isso nos espante. Diante desse problema, a minha proposta é a escrita de um novo poema em português, caracterizado pelos nossos padrões silábicos tradicionais, porém construído de modo que esse padrão silábico possa incorporar o padrão rítmico e performático do original, como numa adaptação melódica de contrafactum que extrapola a prosódia natural da língua. No caso em questão, que servirá como um exemplo geral, optei pela seguinte construção: criei um verso de 16 sílabas,72 que por facilidade chamarei asclepiadeu maior; ele deverá ter sílabas tônicas obrigatórias na terceira, sexta, sétima, décima, décima primeira e décima quarta sílabas (observe-se que a décima sexta sílaba pode ser átona ou tônica), mantendo as cesuras do verso horaciano. Eis o resultado:

72 Para evitar ambiguidades, o número de sílabas que considerarei para os versos é o número final de sílabas, portanto sem parar a contagem na última sílaba tônica. Em termos de poética escrita pode não haver grande diferença, porém, quando se pensa em oralidade, a distinção é fundamental (entre finais agudos, graves ou esdrúxulos).

234 | COLEÇÃO CLÁSSICA

Tu, nem vás perguntar || (ímpio saber) || sobre o que a mim e a ti que fim Deu ses darão, || Leuconoé, || nem babilônios astros ou ses tentar. || Antes viver || o que vier, sem mais,

Ao contrastar esse resultado com o obtido por Johann Heinrich Voss, pude notar grande semelhança:

Nicht vor wit zig ge forscht , || ge gen Verbot , || was, o Leu konoe, Mir zum Lose, was dir, || Gött er bes timmt ; || noch baby lonische Wunder zah len ver sucht ! || Bess er für wahr || dulden wir, was auch kommt

O mesmo se dá com Giovanni Pascoli para o mesmo poema:

No cerca re così || – che non si può – || qua le a me, qua le a te sor te, o Candida, sia || data da Dio; || la scia di le ggere quelle ci fre Caldee. || Prenditi su || quel che vien viene, e via !

E com a tradução ao inglês de Guy Lee, de 1998:

You are not to inquire || (knowing’s taboo) || what limit Gods have set To my life and to yours, || Leuconoe, || No Baby lonian Nu merology! Far || bet ter endure || what ever comes to pass,

Efeitos similares aparecem também em traduções francesas mais recentes, como na polimetria tradutória de André Markowicz (1985) para o livro de Catulo e em traduções de Philippe Brunet (1997) para diversos poetas líricos gregos: no entanto, em francês, a solução do crético final se fecha no uso – comuníssimo na língua – de oxítonas em fim de verso, o que foge à nossa discussão. De qualquer modo, o leitor poderá argumentar contra mim: “este não é exatamente o padrão horaciano; talvez seja uma aproximação, mas não resulta numa rítmica idêntica, porque na prática há apenas uma substituição de longas por tônicas, o que não é certamente a mesma coisa”. Admito isso, e creio que uma pretensão de emulação total só poderia acontecer se desconsiderássemos o próprio funcionamento da nossa língua, que não diferencia longas e breves. Outra questão que surge são os encontros de tônicas nas sílabas 6 e 7, 10 e 11, porque, na prosódia natural do português, o encontro de tônicas tende a produzir um enfraquecimento natural de uma das duas sílabas, que acaba soando como átona. Como resposta a isso, convido o leitor a reler o trecho e notar como os encontros de tônicas obrigatórias coincidem com

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 235

os momentos em que há uma cesura obrigatória, de modo que o silêncio derivado da cesura permite mais facilmente a manutenção da tonicidade. Porém, como tenho comparado este trabalho tradutório ao do canto e da dança, gostaria de complementar meu argumento com alguns exemplos da canção popular brasileira das últimas décadas que podem esclarecer alguns aspectos importantes das possibilidades performáticas de uma tradução que se pretenda cantável. Exemplos poderiam ser tirados também de outras épocas, como as modinhas brasileiras do séc. XVII. A respeito delas, Edilson de Lima comenta: “a questão prosódica foi trabalhada algumas vezes com muito esmero e cuidado, enquanto em outras privilegiou-se o aspecto musical, deixando a questão da adequação entre métrica poética e musical em segundo plano” (2001, p. 42). Em alguns casos onde havia essa inadequação, o próprio Lima, ao atualizar as partituras, optou por corrigir o desencontro entre métrica poética e musical: “optamos por resolver a contradição entre acento ortográfico e musical na transcrição deslocando o texto sem alterar melodia” (p. 44). Essa escolha de Lima explicita como o processo mais comum é a coincidência entre métrica e melodia, com as tônicas caindo em tempos fortes e, em geral, recebendo alongamento e “adequando o acento do texto ao acento musical” (p. 17). No que tange à música medieval, marcada apenas com neumas (que não definiam tempo, compasso ou duração) acima da letra da canção, podemos perceber como as interpretações contemporâneas tendem a ver uma coincidência entre acento linguístico e acento musical: é o que acontece nas gravações das Cantigas de Santa Maria (Antequera & Zomer, 2003), nas Cantigas de Dom Dinis (Theatre of Voices & Hillier, 1995) e nas de Martín Codax (Newberry Consort, 1991), em língua galego-portuguesa que seguiam processos similares à da música provençal como a de Bernatz de Ventadorn (Camerata Mediterranea & Cohen, 1994). Mas também podemos perceber como o latim medieval, quando funciona por acento tônico, acaba sendo musicado também nesse padrão, como nos Carmina Burana acompanhados de neumas (Clemencic Consort & Clemencic, 1990) e nas canções de peregrinos (Ensemble Unicorn & Posch, 1996, com canções em outras línguas modernas). Com o desenvolvimento de uma música mais complexa, a letra vai ficando fora do padrão rítmico, como demonstra Moore (2012); porém, em trabalhos como o de John Dowland (estudado numa dissertação de Gomes, 2015) ou Henry Purcell

236 | COLEÇÃO CLÁSSICA

(2008), do séc. XVII, ainda vemos como, apesar de a letra não determinar o ritmo das canções, ela ainda cobra da melodia uma coincidência entre acentos, tal como podemos ver nas modinhas; por isso, Thomas Campion afirmaria em 1602 que “nada é mais ofensivo ao ouvido do que aplicar uma nota breve à sílaba longa; ou à sílaba breve uma nota longa” (1998, p. 1). Contudo, em trabalhos de retomada de um caráter popular da música, como nas Folk songs criadas em 1964 pelo compositor italiano de música erudita Luciano Berio (s/d), vemos como em grande parte o compositor, ao retomar letras e melodias tradicionais, musicou tentando se aproveitar do ritmo inerente ao texto. Talvez, como representantes de uma contraposição às tendências atualizantes dos neumas em partituras, poderíamos citar edições que mantêm o padrão medieval, tais como as das canções do provençal Bertran de Born (Paden Jr. et al., 1986) e da poeta monástica Hildegard von Bingen (Barth et al., 1969); mas nesses dois casos temos apenas transcrições, sem interpretações musicais. Então, deixo de lado o canto do passado para me deter no material mais próximo no espaço, no tempo e na língua. Isso será feito por um motivo bastante simples:

Uma vez que a oralidade passada foge à observação, nenhuma dessas marcas, qualquer que seja sua pertinência, pode ser apreciada ou explorada senão de modo aproximado e pela referência aos caracteres de oralidade no presente. O conhecimento ao qual elas introduzem é um conhecimento em segunda mão, inevitavelmente problemático (Zumthor, 2010, p. 65).

Um exemplo básico seria o de como cantavam os antigos. Para Moore (2012, pp. 84-85), o canto greco-romano era, muito provavelmente, mais nasal do que o nosso, pelo que se poderia depreender das posturas típicas em vasos e pinturas, em que os citaredos aparecem com o queixo voltado para cima, o que comprimiria a garganta e resultaria numa vocalização nasal. Nesse caso, o próprio modo do canto é diferente do nosso, portanto tem uma valoração muito diversa (p. 85) e só pode ser apreendido pela especulação teórica ou pelas propostas práticas de recriação. Então é com consciência do desconhecimento sobre as particularidades de uma performance oral na Roma do séc. I a.C. que trabalho de agora em diante, porque tento utilizar aquilo que nos resta como aparato de entendimento da oralidade do canto e da poesia (a saber, a

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 237

canção), para analisar alguns efeitos decorrentes das relações entre metro e melodia. Certamente, no formato da canção moderna, o metro não comanda o tempo da melodia, que ganha bastante independência, e mesmo preponderância sobre a organização do canto, mas ainda assim é possível observar algumas relações, tais como a incidência das tônicas prosódicas em notas longas ou tempos fortes de uma melodia; a partir de um estudo sobre essa incidência podemos formular uma poética recorrente, embora não obrigatória, para a disposição das tônicas numa melodia em língua portuguesa. Tentarei, assim, responder às duas principais questões que não iriam adiante se seguíssemos a métrica silábica tradicional, para então avançar um pouco a discussão que já tínhamos em Antunes e Nogueira: como produzir uma sequência de longas e como dar ênfase aos finais de verso? Em primeiro lugar, um exemplo que explica como podemos ter três sílabas longas seguidas, mesmo que não tenhamos três sílabas tônicas consecutivas, sem afetar a relação entre melodia e prosódia. Na prosódia da fala cotidiana, seria no mínimo improvável o aparecimento de três tônicas seguidas, já que a nossa pronúncia tende a enfraquecer uma tônica quando há um encontro (ex. “não dá” acaba soando como um pé jâmbico (v –), e não espondaico (– –), com o enfraquecimento do termo “não”): apenas com um esforço de marcação seria possível falar não dá com duas longas. Na música, esse impedimento não acontece, e podemos ver até o contrário: o alongamento de sílabas átonas, sem que isso gere um estranhamento para o ouvinte. Vejamos o refrão de “Sabiá”, parceria de Chico Buarque e Tom Jobim que venceu o Festival da Canção de 1968 (Buarque, 1993):

Vou voltar

Sei que a inda

Vou voltar [...]

A série de três sílabas (“vou voltar”) é igualmente alongada e ocupa os tempos fortes dos compassos, sem que com isso o ouvinte sinta interferência na prosódia mais comum da língua. Isso ocorre, basicamente, porque a terceira sílaba é tônica no português; e é ainda mais reforçado porque a primeira também é. Em contraposição, a melodia soaria menos “natural” com relação à prosódia da língua se a

238 | COLEÇÃO CLÁSSICA

tônica estivesse na segunda sílaba. Peço ao leitor que imagine a mesma melodia com a seguinte letra:

A gora

Sei que a inda

A gora [...]

Claro, a melodia ainda se encaixa, porque temos o mesmo número de sílabas para o mesmo número de notas; no entanto, o desencontro entre alongamentos e tônicas gera um pequeno desconforto, e a palavra “agora”, ouvida, poderia ser foneticamente confundida com “ágora”, que se enquadraria mais na melodia ao evitar a tônica na segunda posição (nesse caso, talvez fosse possível discernir as palavras pela diferença entre ô fechado em “ágora” e ó aberto em “agora”). A partir de uma lógica diversa, André Markowicz argumenta, num artigo recente (2014, p. 82), como chegou à mesma solução para as três sílabas longas que abrem o hendecassílabo falésio de Catulo na sua tradução para o francês (1985). Mas Markowicz trata de adaptação do ritmo de longas e breves do latim para uma lógica silábica de tônicas e átonas do francês, por isso precisamos aqui seguir adiante com o critério da adaptação pautada pelo canto. Cito, por isso, dois exemplos de música popular brasileira nos quais esse desencontro entre tônica e longa é patente; em primeiro lugar, a construção trocaica do texto da abertura de “Devolva-me”, de Renato Barros e Lilian Knapp, gravada por Leno e Lilian (1969) no auge da Jovem Guarda:

Rasgue as mi nhas car tas e não me procu re mais [...]

A primeira sílaba “ras-”, tônica e alongada, ocupa quase todo um compasso, até que cede espaço a “-gue as”, e o ritmo trocaico a partir daí é mais claro tanto no texto como na música, que realiza uma coincidência entre os acentos lexicais e os acentos melódicos. O que é estranho é apenas o alongamento em tempo forte de uma sílaba átona como “e” logo no primeiro verso da melodia, do mesmo modo que “me”, no segundo verso, acaba alongada para garantir a continuidade jâmbica, junto com o enfraquecimento/encurtamento de “não” em posição de anacruse. Na segunda estrofe da canção, a letra está mais interligada à melodia:

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 239

O re trato que eu te dei

Se a inda tens não sei

[...]

A mesma abertura alongada (“o”) seguida de “re-”, a mesma sequência trocaica, com uma melodia idêntica e coincidente com os acentos métricos. No entanto o resultado da união entre letra e melodia é mais uniforme. Um caso aparentemente exemplar na convergência entre discurso e melodia é “Garota de Ipanema” (Tom Jobim/Vinícius de Moraes), primeiramente gravada por Pery Ribeiro (1963), que é analisada por Luiz Tatit (1997, pp. 154-156):

Olha que coi sa mais linda mais chei a de gra ça

É ela meni na que vem e que pa ssa num doce ba lanço a ca min ho do mar

Nessa canção, o ritmo da melodia está quase espelhado no poema, como se sugerindo que “melodia e letra fossem produtos de uma única seleção prévia dos valores missivos pelo sujeito” (1997, pp. 158-159).

Fique claro que não se trata de fazer uma distinção entre boas e más letras de música: um autor contemporâneo pode muito bem tirar proveito dos desencontros entre a expectativa de prosódia e melodia, para criar estranhamentos, como acontece por vezes em composições de Caetano Veloso dos anos 1960 e 1970, contemporâneas da Jovem Guarda: um efeito notável de Caetano pode ser visto na canção “Não identificado” (1969), na rima rara entre “romântico” e “anticomputador”, dada pelo ritmo melódico, que faz uma quebra inesperada e produz sonoramente um artificalíssimo “um ântico-mputador”: isso acontece porque tanto a última sílaba de “romântico” quanto a terceira de “anticomputador” estão alongadas em tempo forte, apesar de serem átonas na métrica do texto; fica claro que num caso desses estamos diante de uma virtuosidade técnica em que o desencontro produz poética.

A questão em jogo aqui é apenas a possibilidade de extrairmos um padrão rítmico da letra que já anuncie uma melodia, isto é, supor o padrão rítmico da letra antes de receber a melodia e sua subsequente relação com melodias que condizem ou não com o ritmo prosódico

240 | COLEÇÃO CLÁSSICA

do texto. É certamente o que depreendemos da tradição do canto gregoriano, como afirma Luiz Piva (1990, p. 31) acerca dos ornamentos melismáticos, que caem sempre nas sílabas longas do latim. Luiz Tatit (1997, p. 117) defende que “produzir canções significa produzir compatibilidades entre letras e melodias”, o que acontece muitas vezes quando o compositor tenta estabilizar e precisar uma melodia “em função das acentuações fonológicas” (p. 118), o que ainda aparece em outro livro, quando Tatit afirma que “na criação de uma letra de canção já há um tratamento poético que contribui para a estabilização da matéria fônica” (2007, p. 257). Meu intuito é perceber como essa relação se dá na língua portuguesa, portanto, num viés histórico, e não numa universalização das relações entre poesia e canto.

Por isso, chego ao nosso penúltimo exemplo brasileiro, que é o refrão de “É preciso saber viver”, uma parceria de Roberto Carlos e Erasmo Carlos (Carlos, 1974), porque este demonstrará uma peculiaridade da nossa canção contemporânea. O ouvinte atento poderá reparar que o alongamento de sílabas breves acontece no início do refrão, sem causar estranhamento, mas depois há um choque, porque as posições se invertem, fazendo o seguinte movimento:

É preciso sa ber viver

Isso acontece, nessa canção, por dois motivos; quando chegamos na palavra “saber”, estamos no tempo forte do compasso, e a melodia acaba por se afastar da prosódia da língua, que faria um final jâmbico:

É preciso sa ber viver

Não é que os compositores tenham feito uma quebra inaudita dos padrões entre letra e melodia; pelo contrário, eu poderia citar inúmeros exemplos similares: trata-se de uma questão de efeito, ou seja, de percebermos que, nesses momentos de desencontro entre letra e melodia, a descontinuidade pode ser sentida como um ruído na poética mais tradicional do canto em língua portuguesa, sem, no entanto, chegar ao limite do incômodo: este só se daria de fato se tivéssemos uma sequência mais longa de desencontros sistemáticos. Daqui podemos tirar duas conclusões interessantes sobre a composição de um texto para ser cantado, quando isso acontece sem o projeto de causar grandes estranhamentos.

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 241

a) Em primeiro lugar, não há problema quando se alonga uma sílaba breve, como pudemos conferir no caso de “Sabiá” e “É preciso saber viver”, desde que não seja feito muitas vezes seguidas.

b) Em segundo lugar, cria-se um pequeno choque entre prosódia e melodia quando uma sílaba normalmente tônica é abreviada no canto, ao mesmo tempo que se alonga outra breve próxima, como vimos no caso de “Devolva-me” e de “É preciso saber viver”.

c) Um ponto fundamental da performance do canto brasileiro é também reforçar a tonicidade das palavras nos tempos fortes do compasso musical.

Disso, formulei algumas regras gerais de composição para as traduções das Odes:

1) Sempre que possível, tentarei manter tônicas onde em latim havia, originalmente, uma sílaba longa, mas porque o alongamento do canto soa mais fácil numa sílaba tônica em português;

2) Quando isso não for possível, não haverá problema de substituição por uma breve, desde que não haja muitas repetições desse procedimento;

3) Evitarei, tanto quanto possível, usar uma sílaba tônica num ponto onde originalmente havia uma sílaba breve, porque isso gera um choque mais perceptível entre prosódia e melodia.

E novamente seria questionável: “a canção de Roberto Carlos citada foi sucesso de público, logo não há propriamente um problema compositivo: as regras formuladas para a tradução permaneceriam, portanto, inanes”. Aqui entra a grande distinção entre canção moderna e poema antigo que terei de fazer, embora não seja muito profícua como distinção perfeita de gêneros: por um lado, a canção é veiculada quase que exclusivamente como um produto oral, em que os sons regem o processo, e o ouvinte depois percebe suas relações com a língua falada, ou a compara com o texto escrito. É o caso, por exemplo, deste blues de Skip James intitulado “Hard Time Killin’ Floor Blues”. Como bom caso de criação oral, esta canção apresenta diferenças bastante significativas em cada uma de suas gravações pela voz do autor, desde 1931 ao final dos anos 1960: o número de estrofes, bem como sua ordem, se altera

242 | COLEÇÃO CLÁSSICA

sempre; além disso, vários detalhes do texto podem ser percebidos. Aqui cito a minha transcrição do poema apresentado no disco Today! (1967):

Hard times is here and everywhere you go (10)

Times are harder than ever been before (10)

You know people they are all driftin’ from door to door (12)

But can’t find no heaven, I don’t care where they go (12)

People, if I ever can get up off this old hard killin’ floor (16)

Lord I’ll never get down this low no more (10)

When you hear me singin’ this song, lonesome song (11)

People, you’ll know these hard times can last us so long (12)

You know you say you had money, you better be sure (13)

‘Cause these hard times go killin’ you just dry long so (12)

Cada uma dessas estrofes obedece ao mesmo padrão melódico, mesmo que apresentem uma variação silábica significativa (de 10 a 16 sílabas no primeiro verso; de 10 a 13 no segundo); o modo como Skip James resolve o desencontro inevitável entre melodia e poesia é por um recurso simples: a melodia sofre alterações pequenas a cada estrofe, para que possa receber novos conteúdos, mantendo sua demarcação central no encerramento crético (– v –) a cada verso. Um exemplo como esse demonstra de que maneira, no gosto moderno e contemporâneo, é até mais comum vermos casos em que a melodia rege o texto, em vez de o texto formatar a melodia, como ao modo antigo, o que resulta no fato de que o ritmo da melodia não poderá mais ser ritmicamente depreendida pela leitura solitária do texto. Numa canção como “Numa esquina de Hanói”, de Djavan (1978), é possível até ver no desencontro entre melodia e variantes rítmicas da letra um efeito poético:

Um é par de dois (5)

Quer ver, verás (4)

Irei a ti pra viver depois morrer de paz (13)

Ou não (2)

Quem saberá (4)

Ficarei sabedor se você temperou no sal (14)

Ou se (2)

Salobro nós (4)

Me atiro cívico aos meus amigos-de-varar-a-noite (15)

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 243

Trazas- (2)

Nó-cego dirás (5)

E eu rirei pecador no que você corará mais (14)

E de cor (3)

Entregarás (4)

A minha alma viva e depenada para o satanás (15)

Que enfim (2)

Quiçá lhe trai (4)

Indiferente a mim o que não significa nada mais (16)

Do que (2)

Um lobo atroz (4)

Perdido numa esquina de Hanói (10)

Nessa canção, cada estrofe obedece a mesma melodia e progressão harmônica, porém soa muito diferente pela variação do número total de sílabas e pela diferença na distribuição das tônicas; o resultado é um ritmo sempre alterado sob a mesma melodia, exceto quando chegamos no último verso da letra inteira, que tem uma melodia diversa das outras e se repete, formando assim uma espécie de refrão. É possível interpretar nessa inconstância rítmica tensionada a indicação do relacionamento que tende a seus avessos (“verás/ou não”) e se desdobra entre a vida noturna (“meus amigos-de-varar-a-noite”), o pensamento religioso (“satanás”) e o deslocamento geográfico (“esquina de Hanói”). Portanto, a proposta de Tatit (1996, p. 12), do canto como “fala camuflada de tensões melódicas”, precisa ser visto como um acontecimento historicamente alterável, ou seja, os modos das tensões dessa fala na melodia mudam de cultura para cultura, porque não existe um só modelo de canção, como não existe um só modelo de oralidade. Já nos poemas que pretendo traduzir, a relação tende a ser inversa73: o leitor deverá depreender minimamente uma fór-

73 Os estudos de Reinach ([1923] 2011, passim), Comotti (1991, pp. 105-110) e Landels (1999, p. 17) deixam claro que, sobretudo do período helenístico em diante, a música passa a ganhar autonomia em relação ao texto pelo uso de melismas, podendo assumir um papel similar ao do nosso tempo. No entanto – e isso é o que conta aqui – os padrões rítmicos do texto permanecem fortes e determinantes, ou ao menos possibilitadores de uma determinação rítmica. Ou seja, a música ganha certa autonomia, porém o texto, na maioria dos casos, ainda rege o ritmo: “In the few surviving scores, almost all of which contain vocal music, the signs of the musical notation are written above the words of the text, usually without any rhythmic notation. From

244 | COLEÇÃO CLÁSSICA

mula rítmica oral a partir de uma leitura textual. Isso acontece por causa do meio escrito, que anuncia o som, mas não o realiza e, portanto, conta com o leitor como intérprete: se eu tomo muitas liberdades e inversões – sobretudo nos primeiros versos, como em “Devolva-me”, quando o leitor ainda não está familiarizado com o padrão métrico do poema –, o ritmo poderá ser aniquilado, porque não há uma melodia anterior que guie a leitura, como no caso das canções. Em outras palavras: embora o leitor destas traduções não precise cantá-las ou entoá-las, o ritmo deve estar em germe na leitura, tornando o canto e a dança duas possibilidades performáticas da tradução; um ponto que coincide com a poética musical antiga, segundo Timothy Moore (2012, p. 145):

O ritmo antigo era, portanto, primariamente aditivo, ao invés de divisivo. Ou seja, diferentemente do nosso ritmo, em que os compositores criam unidades rítmicas e depois ajustam as palavras para que se encaixem, na musica vocal antiga o arranjo das palavras criava por si mesmo as unidades rítmicas básicas. Com isso, nós encontramos um uso limitado de notação rítmica nas composições musicais de antes do período imperial que nos chegaram.

Mas, como os ouvidos de um brasileiro não estariam preparados para reconhecer os ritmos gregos e romanos imediatamente, além dos poemas traduzidos e do texto original, o volume da tradução apresenta uma Lista de Metros das Odes com todos os metros utilizados por Horácio seguidos de uma explanação sobre o metro que foi criado em português para tentar recriar aquele padrão rítmico. Certamente, não quero controlar a performance ligada às traduções: a afinação da escala (ἁρμονία no sentido musical grego), a apresentação da voz e do instrumento, a escolha da altura e da velocidade da interpretação, tudo isso

this it is clear that the words themselves embodied the length of the notes in the melody line” (Landels, 1999, p. 110). Reinach já nos indicava as limitações dessa liberdade helenística (2011, p. 114): “Frequentemente se fala, sem razão, das ‘liberdades’ que o compositor antigo tomava com o texto poético, posto em música por ele. Em primeiro lugar, músico e poeta eram, geralmente, um só; depois, essas liberdades, já se viu, limitavam-se a poucas coisas: a decomposição pelo canto em duas, três, quatro notas (de durações iguais ou desiguais), de uma sílaba longa de dois, três, quatro tempos. As verdadeiras liberdades são aquelas que o poeta-músico toma com a duração natural das sílabas longas”.

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 245

altera o sentido do texto em performance. Como afirma Eliete Negreiros, “Ninguém ouve duas vezes a mesma canção” (2001, p. 193), porque, cada vez que a performance se faz, o canto precisa ser recriado por inteiro, cada execução altera a canção; o que leva à conclusão de que, no fundo, ninguém canta duas vezes a mesma canção: eu já disse antes que a tradução é uma performance, mas é claro que a performance é uma tradução, mesmo que não haja uma mudança de língua. Luiz Tatit, ao comentar diversas versões de algumas canções brasileiras, tenta resumir algumas variantes nos seguintes termos: “Conteúdos em destaque na versão acelerada passam para segundo plano na versão desacelerada, enquanto que outros, apenas sugeridos na primeira versão, revelam-se dominantes na segunda. E vice-versa” (2007, p. 95). A mera mudança de velocidade performática já é um sinal de nova interpretação e de produção de sentidos: quando Caetano Veloso regrava “Debaixo dos caracóis dos teus cabelos”, de Roberto Carlos, sua versão é mais lenta e num tom mais baixo; essa mudança afeta significativamente o sentido da canção, não é apenas uma questão de ornamento. Tatit (1997, pp. 23-24) demonstra com clareza como a simples alteração na velocidade da performance já pode gerar efeitos diversos, o que o leva a uma pergunta fundamental para os estudos sobre performance: “onde ficam armazenados os recursos da canção antes de sua explicitação instrumental e cênica?” (1997, p. 131). Do mesmo modo, um leitor poderá se perguntar sobre “onde ficam armazenados os recursos da tradução antes de sua explicitação vocal”. A resposta estará na conjunção do ritmo do discurso com a organização do ritmo do metro.

Isso me leva à última questão que gostaria de abordar sobre problemas métricos. O leitor terá notado, no exemplo tradutório que eu citei para 1.11, que, embora eu afirme que o verso terá 16 sílabas, termino a contagem de tônicas obrigatórias na décima-quarta sílaba. Segundo a contagem tradicional da poesia lusófona posterior ao Tratado de metrificação portuguesa (1851), de Antônio Feliciano de Castilho, isso implicaria que se trata de um verso de 14 sílabas; porém não é o que acontece nestas traduções. Ao começar a recriação dos metros, percebi que a variedade significativa no encerramento dos versos horacianos faz muita diferença na sua performance: por um lado, há versos que terminam com uma construção cuja penúltima sílaba é longa (é o caso da estrofe sáfica, por

246 | COLEÇÃO CLÁSSICA

exemplo); por outro, há versos cuja penúltima sílaba é obrigatoriamente breve (como em todo o sistema asclepiadeu), o que faz com que o verso possa terminar com uma construção datílica (“– v v” quando a última sílaba é breve) ou crética (“– v –”, quando a última sílaba é longa). Na prática poética, não há diferença, porque a última sílaba não tem extensão fixa, ou seja, ela pode ser breve ou longa, porque, com o encerramento do verso, estamos diante de um pequeno silêncio que acaba por dar um espaço maior que o normal para a sílaba final. Com isso, optei por marcar a obrigatoriedade da antepenúltima sílaba longa, mas deixar uma abertura para a sílaba final, o que resulta em poemas que terminam com palavras proparoxítonas (verso esdrúxulo) ou oxítonas (verso agudo), porque melodicamente a diferença será pequena. Como eu disse, a lógica da métrica silábica não atenta para isso; e Antunes, por exemplo, ao verter a estrofe sáfica de Safo 31, Voigt, que tem o final – x, não se preocupa em terminar sempre com paroxítonas:

Ele me parece ser par dos deuses o homem que se senta perante a ti

E se inclina perto pra ouvir tua doce

Voz e teu riso

No segundo verso da estrofe, o final é oxítono, o que afeta o ritmo como um todo, já que toma o que seria uma sílaba longa inteira. No nosso ouvido treinado para a métrica silábica, não há problema, mas, quando se canta uma melodia, é possível ver como esse verso se destaca e o cantor será obrigado a duplicar a sílaba “ti” em “ti-i”. Já Nogueira (2020), no trecho que traduz em estrofes sáficas, mantém todos os sinais paroxítonos, como seria de se esperar; no entanto, no exemplo de estrofe alcaica de 1.9, que tem o final datílico (– v v) ou crético (– v –), ele deixa a questão de lado e segue a tradição da métrica silábica lusitana (2020, p. 119):

Não crei as, não, que a || voz a calar-se venha que eu, na do ao pé lá || do Áu fido sonoroso

Nos dois casos, temos paroxítonas em que o ritmo soaria como proparoxítonas ou exigiriam uma oxítona: no caso de uma performance vocal cantada, o ritmo imediatamente se mostraria problemático, forçando o cantor a fazer “branc-” e “fard-” para elidir a sílaba extra.

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 247

Tomei conhecimento de apenas dois casos na língua portuguesa com um projeto que se assemelha à rítmica de Horácio e que pensam nesse efeito de fim de verso. Em primeiro lugar, os poemas de Pedro Antônio Correia Garção (1724-1772), que me foram gentilmente apresentados pelo próprio Érico Nogueira: são duas odes alcaicas, em que o poeta imita o estilo e parte do ritmo da poesia horaciana, em publicação póstuma de 1778. Como os poemas têm pouca divulgação, apresento uma ode inteira em que aparecem estrofes alcaicas (que apresentam finais créticos nos dois primeiros versos de cada estrofe) de modo integral:

Ode Alcaica X (pp. 84-85)

A santo Ubaldo, protetor da cidade de Eugúbio, bispo e confessor.

Quando o terrível Deus dos exércitos nas leves asas de Aquilões túrbidos, sobre as altas cidades manda a procela horrífona: se vingadora solta a mão rúbida as estridentes acesas víboras, e se o fragor dos montes freme no fundo pélago:

Ubaldo santo, com rogos férvidos os eugubinos te invocam pávidos; cercando teus altares gemem, quais pombas tímidas:

A socorrê-los voas intrépido, e da virtude no pavês rígido rota a farta lança, foge co’ vento rápido.

Assim te chama protetor ínclito a lusa gente; correm as lágrimas, qual matutino orvalho banha os frondosos plátanos.

Vem socorrer-nos: no árido cárcere os trovões presos bramam indômitos, tornem dourados dias, movam-se nossas súplicas.

Como logo se pode depreender, não são traduções, mas poemas escritos à maneira de Horácio; o importante aqui é ver que Correia

248 | COLEÇÃO CLÁSSICA

Garção já via na variante de um final datílico ou crético a estrutura sonora que poderia ser vertida por uma proparoxítona; reparem como os dois primeiros versos de cada estrofe são sempre finalizados com proparoxítonas: exércitos, túrbidos, rúbida, víboras, férvidos, pávidos, intrépidos, rígido, ínclito, lágrimas, cárcere, indômito. Na sua outra estrofe alcaica, o poeta lusitano faz o mesmo padrão métrico; o que nos faz concluir que ele tinha uma intuição para os sistemas métricos horacianos e sua possibilidade de tradução como contrafactum para outros poemas. No entanto, a melodia não caberia nesses versos por outros motivos, já que Correia Garção, embora atente para o final dos versos, não se preocupa em manter o número idêntico de sílabas por verso: se, por um lado, ele atenta com uma perspicácia única para a variedade rítmica de final de verso e sua implicação para os poemas, por outro, Correia Garção parece desejar aplicar a regra apenas ao fim do verso, sem interesse de cantar melodias que houvesse nos originais horacianos; o que faz todo sentido, ainda mais quando se trata de poesia nova.

O segundo caso é o poema “Junto ao sepulcro de Percy Bysshe Shelley”, de Carlos Magalhães de Azeredo (1872-1963), originalmente publicado em Odes e elegias, livro de 1904. Vejamos as primeiras estrofes do poema:

Tu pela Morte com rito dúplice foste sagrado; no Oceano gélido, tiveste os salmos grandes da Agua; tiveste, na pira augusta, o preito fúlgido, o supremo ósculo do Fogo, onde ardem as cousas místicas... Ó Vate doloroso, na onda revôlta, na imensa flamma, tua alma, de outras procelas náufraga, de outros mais vastos incêndios víctima, com seráfico vôo palpitou válida e soberana!

Mas quer o Morto, depois de aspérrimas pugnas, revezes, triunfos ínclitos o inviolado repouso. Bello é teu leito, na bella terra de Roma. O Tempo, dos seus sarcófagos, varreu diuturno cinzas de Césares

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 249

e Scipiões. Tu, Poeta, tu seras hóspede eterno e grato em Roma. Quieto dormes, ó pállido Senhor do Ritmo, nesta suavíssima patria dos exilados? Sem sonhos dormes e sem desejos, por que órfão e êrmo deixando o fúnebre despojo, vôa teu claro Espírito, de pura luz formado, no largo imperio dos elementos e das idéas? rôtos os vínculos da carne, paira longe, onde os máximos cumes, brancos de nuvens e de perpétuas neves, não chegam [...]

Aqui vemos como Magalhães de Azeredo usa a mesma lógica que encontramos em Correia Garção para os dois primeiros versos, que têm nove sílabas poéticas, com um final obrigatoriamente proparoxítono. Na verdade, até o terceiro verso da estrofe é similar ao de Garção, que não caberia no metro horaciano, e apenas no quarto vemos uma inovação: aqui é possível praticamente emular o ritmo datílico que encerra estrofe greco-romana. Na verdade, Magalhães de Azeredo não dá indícios de ter conhecido a estrofe alcaica de Correia Garção, mas teria se embasado nos metri barbari propostos pelo italiano Giovanni Carducci. Infelizmente, apesar de ter uma obra poética relativamente extensa, Azeredo só fez experimentos do tipo neste livro, que permanece único na poesia brasileira e que demonstra que talvez precisemos compreender melhor o nosso parnasianismo em suas ousadias. Para nosso problema, o mais importante, no entanto, é notar como o poeta brasileiro, em sua introdução ao livro, comenta a fusão entre poética silábica e musicalidade cantada. Ao citar exemplos de poetas romanos, eis o que ele nos diz:

Leiam-se esses dísticos á maneira moderna: (da declamação antiga perdeu-se em segredo; acompanhavam-na geralmente os acordes da harpa, e ella devia assemelhar-se ao modo como como se cantam hoje as letras dos trechos musicaes, em que se dá ás síllabas a duração de um ou mais tempos, conforme as exigencias da música) (Magalhães Azeredo, 1904, p. v).

250 | COLEÇÃO CLÁSSICA

Portanto, foi com o desejo de estar nesse limiar entre a tradição do metro e a potência da vocalização cantada que ele escreveu seus poemas. Mais uma vez, não se trata de avaliar certo ou errado, mas de explicitar de que modo estes projetos tentam levar além nossa tradição de contagem silábica na tradução de poesia, para entendê-la na tradução de algo que se permite ao canto. É o que pretendo demonstrar agora com um último exemplo do cancioneiro brasileiro, que pode servir de ilustração para os efeitos melódicos em questão; trata-se de “Construção”, de Chico Buarque. Bastam seus primeiros versos:

Amou daquela vez como se fosse a última

Beijou sua mulher como se fosse a última

E cada filho seu como se fosse o ú nico

E atravessou a rua com seu passo tí mido [...]

A letra dessa canção, como já foi muito comentado, é toda composta por dodecassílabos terminados em proparoxítonas, o que gera um efeito muito particular que sugere o tropeço e queda final do personagem principal da narrativa poética. Mas o que nos interessa aqui é outro aspecto da letra: sua relação com a melodia. O ponto é que, apesar de a letra ser proparoxítona a cada fim de verso, a melodia não o é, porque a última sílaba sempre é alongada, de modo que poderíamos fazer a seguinte intervenção, alterando a letra:

Amou daquela vez como se fosse ação de a mar

Beijou sua mulher como se fosse um bem-te-vi E cada filho seu como se fosse um bom rapaz E atravessou a rua com seu passo lapidar

[...]

É claro que retirar as proparoxítonas da letra acarreta o aniquilamento do efeito poético na canção, o que exemplifica perfeitamente, nos termos de Meschonnic, o ritmo do discurso por contraposição ao ritmo da música; mas o objetivo aqui é demonstrar que, pela melodia, a canção, além dos finais datílicos da letra (“última”, “última”, “único”, “tímido”) também aceitaria sem esforço um encerramento crético (“-ção de amar”, “bem-te-vi”, “bom rapaz”, “lapidar”), e o ouvinte perceberia pouca diferença, porque, nos dois casos, as duas prosódias da língua convivem

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 251

harmonicamente com a melodia da canção: dáctilo e crético podem ocupar o mesmo lugar no fim de verso. Voltemos, portanto, à tradução já citada de 1.11:

Tu, nem vás perguntar || (ímpio saber) || sobre o que a mim e a ti que fim deu ses darão, || Leuconoé, || nem Babilônios astros ou ses tentar. || Antes viver || o que vier, sem mais,

O leitor agora pode perceber que, na prática silábica, temos dois versos de encerramento agudo/crético (o verso 1 “mim e a ti” e o verso 3 “-er sem mais”) e um verso de encerramento esdrúxulo/datílico (“-ônios”).

A variação entre esses dois finais de verso já aparece em Pascoli (reparem nos finais “quale a te”, “leggere”, “viene e via” anteriormente citados), com o intuito de recriar um encerramento crético; bem como na tradução supracitada de Voss. Da minha parte, acontece ainda um processo inédito em Pascoli e Voss e que tomei como regular nesses casos de fim de verso: por construção melódica, as palavras paroxítonas encerradas por ditongo átono, tais como “babilônios”, poderão consideradas na tradução como proparoxítonas (“babilô-ni-os”), sempre que aparecerem no final de verso de poemas asclepiadeus, ou na estrofe alcaica. O processo é muito semelhante ao realizado por Carlos Rennó na tradução de Cole Porter, como ele mesmo comenta:

Ainda no terreno prosódico, outro toque sutil de “inglezação” do português teve lugar em “Que De-Lindo” (“It’s De-Lovely”), onde “delírio” e “delíquio” apresentam-se para serem cantadas como proparoxítonas, “de-lí-ri-o” e “de-lí-qui-o” (correspondendo, no original a delirious e delectable : de-li-ri-ous e de-lec-ta-ble), da mesma forma que “êxtase”, como proparoxítona e oxítona, “êxtasí” (em correlação com ecstasy), rimando com “aqui”, em “Noite Sem Fim” (“All Through the Night”) (1991, p. 45).

O comentário de Rennó explicita na prática dois pontos que venho comentando: a variação de proparoxítona e oxítona em fim de verso e a transformação do ditongo em hiato no fim de verso; mas ele dá a entender que isso só acontece porque se trata de uma tradução (“inglezação”), e não é o caso sempre. A artificialidade, ao contrário do que se poderia pensar, não é um problema à oralidade apenas na tradução, mas parte de sua constituição em qualquer língua. Para Paul Zumthor (2010, p. 186):

252 | COLEÇÃO CLÁSSICA

Cada performance cria assim seu próprio sistema rítmico, ainda que as unidades utilizadas para constituí-lo permaneçam da mesma natureza em todos os casos. Ocorre que tais jogos se sobrepõem a um sistema de versificação regular: daí talvez os e finais não linguísticos (“le cheval-e du roi”), s ou t abusivos harmonizando ligações, que a performance introduz, em forma de variação, em muitas canções folclóricas francesas, bem como no Romancero espanhol e na poesia popular italiana.

Ou seja, as regras da pronúncia cotidiana não se aplicam perfeitamente ao ato da performance, que entrevejo como possibilidade para estas traduções, porque a performance obedece às regras próprias que podem contrariar a fala cotidiana. Um aumento artificial aparece no francês (le cheval é o termo correto, de modo que o e sugerido é um efeito do canto), bem como as sinalefas internas com ligações entre as palavras de modo pouco usual. Zimmermann (2009, pp. 46-47), ciente da importância da cadência métrica na poesia, entende a sinalefa como um recurso constante na prosódia poética das Odes horacianas, mesmo que isso possa atrapalhar a pontuação natural do discurso e acarretar certo obscurecimento do sentido. Zumthor (2010, p. 199) atribui esse processo de obscurecimento pelo canto a toda a poesia oral, e Brunet (2014, pp. 128-133), por exemplo, apresenta uma série de regras específicas para a escansão do hexâmetro datílico em francês, que marcam claramente sua distância da fala cotidiana mesmo no caso de uma tradução que se pretenda oral. Optei, afinal, por essa solução de hiato (e pelas sinalefas artificiais) também para poder dar um pouco menos de estranhamento a alguns poemas; já que, como já disse, todos os versos finais de todos os poemas do sistema asclepiadeu (o que envolveria 44 odes, que contabilizam mais de mil versos) teriam de ser encerrados exclusivamente por oxítonas ou proparoxítonas, o que poderia resultar em textos bastante canhestros do ponto de vista poético. Por outro lado, como o leitor logo poderá reparar, eu preferi contar as sílabas travadas, tais como “raptor”, como “ra-p(i)-tor”, ou “raptado” como “ra-p(i)-tado” (dois exemplos de 3.20). Com isso, consigo provocar certo estranhamento, sem chegar ao ponto de afetar uma possível poética do texto. Isso novamente vai ao encontro da problemática estudada por Zumthor (2010, p. 68):

Quando [...] a poesia oral vem de uma cultura alheia, é sentida pelo ouvinte (em graus diversos, segundo as circunstâncias e os indivíduos)

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 253

como exótica, minoritária, marginal – diferente por lhe faltar quem lhe responda de imediato. O prazer que ela causa não é aqui questionado e pode estar ligado justamente a essa diferença.

Noutras palavras: recriar ritmos greco-romanos certamente é um ato tradutório, em sua poética e política, que privilegia o lugar da diferença, mesmo com o risco de ser enquadrado como um trabalho exótico ou marginal: talvez na esperança de que dessa alteridade possa decorrer alguma experiência estética prazerosa, alguma diversão, ainda que derivada dessa própria diferença, na esperança política e poética de que “o que hoje sentimos como diferente será talvez assimilado ou reassimilado amanhã” (Zumthor, 2010, p. 68). Como crítica, a tradução também pode repropor padrões esquecidos, que assim voltam a soar como novos ou mesmo exóticos; porém dialogo aqui com tendências contemporâneas da poesia, que valorizam cada vez mais a performance, para além da mera escrita. Isso se dá há algumas décadas, sobretudo com as possibilidades de gravações, mas atualmente vemos uma geração de poetas que já nascem performáticos e levam em consideração também toda sua apresentação oral, em geral acompanhada de intervenções sonoras e visuais dos mais variados tipos: basta conferir os trabalhos de Ricardo Aleixo, Marcelo Sahea, Leo Gonçalves, Ricardo Domeneck ou cavaloDADA, para ficarmos em apenas cinco nomes brasileiros. Minarelli (2010) apresenta um amplo panorama dessas tendências nos últimos cinquenta anos.

Por fim, é necessário atentar que, confiando no ouvido e na oralidade dessas traduções, optei por manter um procedimento horaciano: a elisão entre palavras de versos diferentes. Vejamos o seguinte trecho em estrofe sáfica (1.2.19-20):

labitur ripa Ioue non probante uxorius amnis

O que acontece nesse momento é que a sílaba inicial de uxorius é elidida à sílaba final de probante, que está no verso anterior. Se não houvesse essa elisão, teríamos um verso hipermétrico em uxorius amnis. Na tradução desse trecho, realizei essa mesma elisão, mas, como ela ocorre em outros momentos da lírica horaciana (no último verso da estrofe sáfica), passei a considerá-la como mais um recurso à oralidade do texto, mais uma vez ligada ao cavalgamento constante, já que, na prática oral da ode

254 | COLEÇÃO CLÁSSICA

traduzida, a leitura impõe menor respiração entre versos e, portanto, essas elisões que acontecem na prosódia. A mesma coisa acontece na estrofe alcaica, como em 3.29.35-6:

cum pace delabentis Etruscum in mare, nunc lapides adesos [...]

Na passagem temos uma elisão entre Etrusc(um) in mare. Como resultado dessas observações, ampliei o recurso para outros metros, mesmo onde Horácio não elide versos. Outro detalhe poderá ser notado: embora eu tenha me esforçado tanto quanto possível por dar bastante rigidez às soluções métricas, a fim de possibilitar essa confluência rítmica entre original e tradução, tomei a liberdade de não seguir perfeitamente o esquema quando os resultados poéticos me pareciam canhestros, tal como antes já fizera Pascoli (1948). Na sua versão de 3.30.1-4, por exemplo, que deveria ser toda marcada por encerramentos créticos, ele faz alguns finais trocaicos:

Forte più che di bronzo il monu mento mio Alto più delle regie alte pi ra midi!

Non la pioggia che rode, il tramonta no ch’u rta, il succedersi d’anni, il fuggir via di tempo [negritos meus, para marcar o encerramento dos versos]

Como se pode conferir nos versos acima, Pascoli encerra os dois primeiros de maneira crética (no primeiro, com um oxítono, no segundo com um proparoxítono); mas depois encerra dois versos com ritmos trocaicos inerentes ao paroxítono final; muito embora seja possível ler aqui também uma elisão de versos entre urta e il (vv. 3-4). Nesses momentos de Pascoli – e que na minha tradução costumam aparecer no verso final de um poema, ou em pouquíssimos momentos no seu interior –, o que pode acontecer, muito raramente, é o acréscimo ou a subtração de uma sílaba final, o que pode ser musicalmente interpretado respectivamente como uma quiáltera ou como um alongamento da sílaba para duas notas musicais. Há ainda um último detalhe formal, que pode ser útil ao leitor. Como já foi dito, esta tradução se pauta pelo contraste entre o escrito e o falado;74 não no sentido de uma oposição entre os dois registros,

74 Cf. Derrida, em sua crítica ao logocentrismo: “metafísica da escritura fonética [...] que em seu fundo não foi mais – por razões enigmáticas mas essenciais e inacessíveis

3. DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA | 255

mas, como bem critica Meschonnic, numa relação de descontinuidade que caracteriza a linguagem. Por isso, preferi não marcar na escrita os momentos nos quais ocorrem as elisões, com o uso de aspas, que acontecem por exemplo quando usamos “‘spere” em vez de “espere”, “u’a” em vez de “uma”, “co’a” em vez de “com a”. Todos esses efeitos de escrita que buscam emular a fala foram muito bem utilizados no passado literário e, por isso mesmo, estão hoje bastante associados a uma escrita excessivamente formal que, para o leitor contemporâneo, muitas vezes se funde com a ideia de beletrismo arcaizante. Esta tradução, ao contrário, se quer moderna: até mesmo no uso esporádico de arcaísmos, ela se quer histórica, aqui, agora; ela se quer poética, aberta, crítica e política.

a um simples relativismo histórico – do que o etnocentrismo mais original e mais poderoso, que hoje está em vias de se impor ao planeta” (2008, pp. 3-4).

256 | COLEÇÃO CLÁSSICA

4. Envoi

Minha música não quer me pertencer não quer ser sucesso Não quer ser reflexo [...] Minha música não quer pouco (Adriana Calcanhotto)

Um trabalho de muitas frentes (teoria literária contemporânea, filologia tradicional, técnica dos mosaicos, poética antiga, teoria da tradução, história da tradução, teoria da canção, etc.), mas com uma pretensão concentrada: formular uma leitura crítica das Odes de Horácio que se desvele pela prática de uma tradução poética integral da obra. Nesse ponto, estudo e tradução se fundem, e o trabalho acadêmico de pesquisa, dissertação e notas colabora com o labor poético de reformular as Odes como poesia em português brasileiro do século XXI. Não há contradição entre as frentes, mas um pensamento transversal necessário para que se opere um ato crítico e poético sobre Horácio.

Esta tradução se quer moderna, até mesmo no uso esporádico de arcaísmos, porque seria inevitável reconhecer a diacronia entre o texto original e a tradução; porque uma avaliação crítica do passado precisa passar por uma assunção do presente; então, quando se trata de poesia, é preciso rever também as linguagens do presente para a leitura

257

das linguagens do passado. Quando se diz arcaísmo, diz-se do que nos é arcaico hoje, assim como Horácio podia tirar proveito do que lhe era arcaico em Roma do séc. I a.C. e com isso se colocar na história da poesia romana. Do mesmo modo, é preciso pensar como Horácio também era moderno no seu tempo: conciliar os dois pontos numa poética das Odes em português é, por si só, uma tarefa crítica. No entanto, assumir a diacronia inerente a qualquer leitura é também assumir nossa posição distante das obras do passado, deixar-se permear pelas questões pertinentes do presente (da política à poética), pelas obras recentes de literatura e crítica, porque uma das funções de estudar o passado não é entendê-lo tal qual, mas encontrar nele questões que dizem respeito ao presente.

Esta tradução se quer histórica, aqui, agora, porque não aceita a ideia de tradução definitiva; porque, além de estabelecer um diálogo diacrônico com as Odes, ela se estabelece como parte de uma tradição de traduções anteriores e busca coexistir com a história das leituras de Horácio na língua portuguesa. Mas sabemos que uma história das traduções, ou sua tradição, se forma muito mais pelas divergências, pelas diversões tradutórias, do que por uma linha contínua: Agostinho de Macedo, Elpino Duriense e Cabral de Melo projetaram Horácios bastante diversos, apesar das inúmeras coincidências que marcam essas traduções em seu tempo, em seu lugar – Portugal do século XIX. Retraduzir uma obra como as Odes não seria, portanto, superar as traduções do passado, obliterá-las em nome de um resultado melhor, pura e simplesmente: retraduzir é pôr-se ao lado delas para constituir uma constelação de leituras das Odes, mesmo com um projeto novo que tem por objetivo predeterminado divergir de seus antecessores. No que se marca a diferença, marca-se também o tempo, a história das novas traduções. Esta tradução se quer poética, aberta, crítica e política, porque, ao longo deste trabalho, de certo modo, essas palavras todas circularam em torno de uma mesma ideia tradutória. Quando me propus a abrir a leitura das Odes horacianas por meio de uma comparação com a técnica dos mosaicos romanos, tornou-se também necessário formular uma tradução poética que promovesse um tipo de mosaico linguístico em português; não um decalque do original, porque as diferenças das línguas implicam efeitos diversos em objetos muito similares (o efeito do hipérbato em latim e em português é muito diferente, a ordem sintática

258 | COLEÇÃO CLÁSSICA

mais comum já implica diferenciações irredutíveis), mas uma leitura que, por procedimentos diversos, procura produzir efeitos similares. Por isso, abrir a leitura e promover uma tradução é realizar uma crítica dessa obra, uma crítica pela prática de uma nova obra – a tradução poética –, que acaba por ser política porque apresenta novos pontos para a língua e para a literatura brasileira. Desse modo, importar as possibilidades de performance do metro, buscar efeitos de estranhamento linguístico com um pé na modernidade, reformular uma poética das odes em língua portuguesa, etc., não se restringe a uma estilística vazia, porque, como defendia Terry Eagleton, toda leitura contém o germe de uma política. Então uma leitura assumidamente poética e crítica deve, por fim, se expor às consequências – sempre imprevisíveis – de uma política, com perguntas que não podem ser respondidas aqui: qual é o lugar possível para a poesia romana e, especificamente, para a obra de Quinto Horácio Flaco no nosso presente? Como manter o rigor do estudo e, ao mesmo tempo, o rigor da poesia, ao traduzir Horácio em poesia? Qual é o lugar da performance de poesia antiga para a poesia brasileira? Como é que um poeta revive a cada geração, senão por meio de novos poemas, isto é, traduções? Esta tradução continuará para além do livro – em possibilidades para a performances que realizem as potencialidades dos metros, com instrumentos, canto e dança. Esta tradução não quer pouco.

4. ENVOI | 259

Bibliografia

Esta é a lista completa de obras que venho consultando desde 2010 para o estudo e tradução das obras completas de Quinto Horácio Flaco. Como toda empreitada sobre um autor clássico da Antiguidade, permanecerá inacabada, por mais extensa que seja.

1. Edições críticas, traduções, comentários e escólios de Horácio e gramáticos e metricistas antigos

ALMEIDA FERRAZ, Bento Prado de. Odes e Epodos. Tradução e notas de Bento Prado de Almeida Ferraz. Antonio Medina Rodrigues (intr.). Anna Lia Amaral de Almeida Prado (org.). São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BEKES, Alejandro. Horacio: Odas, edición bilingüe. Intro., trad. y notas de Alejandro Bekes. Buenos Aires: Losada, 2005.

BRINK, C. O. Horace on Poetry: Prolegomena to the literary Epistles. Cambridge: Cambridge University, 1963.

BRINK, C. O. Horace on Poetry II: The Ars poetica. Cambridge: Cambridge University, 1971.

BRINK, C. O. Horace on Poetry III: Epistles Book II, the letters to Augustus and Florus. Cambridge: Cambridge University, 1982.

BORGES, Joana Junqueira. Marquesa de Alorna, tradutora de Horácio: estudo e comentário da Arte poética. 2018. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Unesp, Araraquara, 2018.

CAMARA COUTINHO, D. Gastão Fausto da. Paraphrase da epistola aos Pisões, commumente denominada Arte poetica, de Quinto Horacio Flacco – com annotações sobre muitos lugares. Lisboa: Typographia de José Baptista Morando, 1853.

CETRANGOLO, Enzio. Quinto Orazio Flacco, Tutte le Opere. Verzione, introduzione e note di Enzio Cetrangolo, con un saggio di Antonio La Penna. 3. ed. Firenze: Sansoni, 1989.

CLANCY, Joseph P. The Odes and Epodes of Horace: a new translation by Joseph P. Clancy. Chicago: The University of Chicago, 1960.

261

CABRAL DE MELO, José Augusto. Odes de Q. Horacio Flacco traduzidas em verso na lingua portugueza. Angra do Heroismo: Typ. do Angrense, do Visconde de Bruges, 1853.

COSTA E SÁ, Joaquim José. Arte poética, ou epístola de Q. Horacio Flacco aos Pisões, vertida, e ornada no idioma vulgar com illustrações, e notas para uso e instrucção da mocidade portugueza por Joaquim José da Costa e Sá. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1794.

CURRIE, Joseph. Quinti Horati Flacci Carmina: The Works of Horace with English notes – Part I. Carmina. London: s/d.

DOTTI, Ugo. Orazio, Epistole e Ars poetica. Trad. e cura di Ugo Dotti. Milano: Feltrinelli, 2008.

DURIENSE, Elpino (Antonio Ribeiro dos Santos). A lyrica de Q. Horacio Flacco, poeta romano. Trasladada literalmente em verso portuguez. Tomo I. Lisboa: Imprensa Regia, 1807.

FALCÃO, Pedro Braga. Epístolas. Lisboa: Cotovia, 2017.

FALCÃO, Pedro Braga. HORÁCIO. Odes. Lisboa: Cotovia, 2008.

FEDELI, Paolo; CARENA, Carlo. Q. Orazio Flacco – Le opere II: Le Satire, L’Epistole e L’Arte Poetica. Testo critico di Paolo Fedeli. Trad. de Carlo Carena, 4 v. Roma: Libreria dello Stato, 1997.

GOWERS, Emily. Horace, Satires, Book I. Ed. by Emily Gowers. Cambridge: Cambridge University, 2012.

HORÁCIO. Arte poética: Sátira I, 4; Epístolas II, 1 a Augusto; II, 2, a Floro; Epístola aos Pisões, ou Arte Poética. Introdução, tradução e comentário de R. M. Rosado Fernandes. 4. ed. revista e aumentada. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2012.

HORÁCIO. Obras completas. Tradução de Elpino Duriense, José Agostinho de Macedo, Antônio Luiz Seabra e Francisco Antônio Picot. São Paulo: Cultura, 1941.

HORACIO. Odas, Canto secular, Epodos. Introducción general, traducción y notas de José Luis Moralejo. Madrid: Gredos, 2007.

HORACIO Sátiras, Epístolas, Arte poética. Introducciones, traducción y notas de José Luis Moralejo. Madrid: Gredos, 2008.

Q. HORATI FLACCI OPERA. H. W. Garrod (ed.). Oxford: Clarendon, 1901.

Q. HORATI FLACCI OPERA. F. Klingner (ed.). Leipzig: Teubner, 1959.

HORATIUS OPERA. 4 ed. D. R. Shackleton Bailey. Leipzig: Teubner, 2001.

KEIL, Heinrich. Grammatici Latini ex Recensione Henrici Keilii. Lepizig: Teubner, 1864.

KIESSLING, Adolf; HEINZE, Richard. Q. Horatius Flaccus, Oden und Epoden. 13. ed. Zürich: Weidmann, 1968.

KILPATRICK, Ross S. Q. Horatius Flaccus. Briefe. 9. ed. Zürich: Weidmann, 1970.

KILPATRICK, Ross S. The poetry of friendship: Horace, Epistles I. Edmonton: The University of Alberta, 1986.

262 | COLEÇÃO CLÁSSICA

KILPATRICK, Ross S. The poetry of criticism: Horace, Epistles II and Ars poetica. Edmonton: The University of Alberta, 1990.

LUSITANO, Cândido. Arte poetica de Q. Horacio Flacco, traduzida, e illustrada em Portuguez por Cândido Lusitano. 2. ed. Lisboa: Officina Rollandiana, 1778.

MACEDO, José Agostinho de. Obras de Horacio traduzidas em verso portuguez por José Agostinho de Macedo. Tomo I. Os quatro livros das Odes, e Epodos. Lisboa: Imprensa Regia, 1806.

MACIEL, Bruno Francisco dos Santos. O poeta ensina a ousar: ironia e didatismo nas Epístolas de Horácio. 2017. Dissertação (Mestrado em Literaturas Clássicas e Medievais) – UFMG, Belo Horizonte, 2017.

MACIEL, Bruno; MONTEIRO, Darla; AVELAR, Júlia; BIANCHET, Sandra (orgs.). Epistula ad Pisones. Ed. bilíngue. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2013.

MANDRUZZATO, Enzo. Orazio: Odi e Epodi. Introduzione di Alfonso Traina, traduzione e note di Enzo Madruzzato 2. ed. Milano: Rizzoli, 1988.

MAYER, Roland. Odes, Book I. Edited by Roland Mayer. Cambridge: Cambridge University, 2012.

MICHIE, James. The Odes of Horace. Translated with an introduction by James Michie. New York: Penguin, 1967.

NÓBREGA, Vandick Londres da. A commentary on Horace, Odes, Book 2. Oxford: Oxford University, 1991.

NÓBREGA, Vandick Londres da. A “Arte poética” de Horácio. São Paulo: s/e, 1942.

NOVAK, Maria da Gloria; NERI, Maria Luiza (orgs.). Poesia lírica latina. Introdução de Zelia Almeida Cardoso. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

NISBET, R. G. M.; HUBBARD, M A commentary on Horace, Odes, Book I. Oxford: Oxford University, 1970.

NISBET, R. G. M.; HUBBARD, M. A commentary on Horace, Odes, Book II. Oxford: Oxford University Press, 1978.

NISBET, R. G. M.; RUDD, Niall. A commentary on Horace, Odes, Book III. Oxford: Oxford University, 2004.

ORAZIO FLACCO, Quinto. Le Opere, a cura di Mario Ramous. Milano: Garzanti, 1988.

ORAZIO FLACCO, Quinto. Odi Scelte e Il Carme Secolare. Intr., cenni di metrica e commento di Alfredo Bartoli. Milano: Carlo Signorelli, s.d.

PLESSIS, F.; LEJAY, F. Horace: Oeuvres. Texte latin. Publiés par F. Plessis et F. Lejay. 5. éd. révue. Paris: Hachette, 1912.

ROMANO, Elisa. Q. Orazio Flacco – Le opere I: Le Odi, Il Carme Secolare, Gli Epodi. Tomo secondo, commento di Elisa Romano. Roma: Libreria dello Stato, 1991.

ROQUE, Maria Luiza. Horácio: O Carme Secular e os Jogos Seculares em Roma. Edição bilíngue. Brasília: Thesaurus, 2002.

BIBLIOGRAFIA | 263

ROSTAGNI, Alberto. Arte poetica. Introduzione e commento di A. Rostagni. Turim: s/e, 1930.

RUDD, Niall. Horace, Epistles, Book II and Epistle to the Pisones (‘Ars poetica’). Edited by Niall Rudd. Cambridge: Cambridge University, 1989.

RUDD, Niall. Odes and Epodes. Edited and translated by Niall Rudd. London: Harvard University, 2004. (LCL 33).

SCHRÖDER, Rudolf Alexander. Die Gedichte des Horaz. Deutsch von Rudolf Alexander Schröder. Wien: Phaidon, 1935.

SMITH, C. L. The Odes and Epodes. Ed. C. L. Smith. Boston: Ginn & Company, 1903.

SYNDIKUS, Hans Peter. Die Lyrik des Horaz: Eine Interpretation der Odes. Band I – Erstes und zweites Buch. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1972.

SYNDIKUS, Hans Peter. Die Lyrik des Horaz: Eine Interpretation der Odes. Band II – Drittes und viertes Buch. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1973.

THOMAS, Richard F. Horace, Odes. Book IV and Carmen saeculare. Cambridge: Cambridge University, 2011.

TRINGALI, Dante. A Arte poética de Horácio. São Paulo: Musa, 1993.

TRINGALI, Dante. Horácio, poeta da festa. Navegar não é preciso: 28 odes latim/ português. São Paulo: Musa, 1995.

VELLOSO, Antonio Augusto. Traducção litteral das Odes de Horacio por Antonio Augusto Velloso. Revista por Augusto Versiani Velloso. 2. ed. Bello Horizonte: Graphica Queiroz Breyner, 1935.

VILLENEUVE, P. Épitres. Texte établi et traduit par F. Villeneuve. Paris: Les Belles Lettres, 1955.

VILLENEUVE, P. Horace, tome 1: Odes et Épodes. Texte établi et traduit par F. Villeneuve. Paris: Les Belles Lettres, 1946.

VOSS, Johann Heinrich. Des Horazes Werke von Johann Heinrich Voss. 2 v. 3. ed. Braunschweig, Friedrich Vieweg, 1822.

WEST, David. Horace, Odes I: Carpe diem. Text, translation and commentary by David West. Oxford: Clarendon, 1995.

WEST, David. Horace, Odes II: Vatis amici. Text, translation and commentary by David West. Oxford: Clarendon, 1998.

WEST, David. Horace, Odes III: Dulce periculum. Text, translation and commentary by David West. Oxford: Clarendon, 2002.

WICKHAM, Edward C.; GARROD, H. W. Q. Horati Flacci Opera recognovit brevique adnotatione critica intruxit Eduardus C. Wickham. Editio altera curante H. G. Garrod. Oxford: Oxford University, 1901.

WICKHAM, E. C. The Works of Horace with a Commentary. 2 v. Oxford: Oxford University, 1891.

264 | COLEÇÃO CLÁSSICA

WILLIAMS, Gordon. The third book of Horace’s Odes. Edited with translation and running commentary by Gordon Williams. Oxford: Oxford University, 1969.

WILKINS, A. S. The Epistles of Horace. Edited with notes by Augustus S. Wilkins. London: Macmillan & Co. Ltd., 1955 [1885].

2. Estudos e outras obras literárias

ACHCAR, Francisco. Lírica e lugar comum: alguns temas de Horácio e sua presença em português. São Paulo: Edusp, 1994.

ADAMS, J. N. The Latin sexual vocabulary. Baltimore: The John Hopkins University, 1982.

AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

AGNOLON, Alexandre. O catálogo das mulheres: os epigramas misóginos de Marcial. São Paulo: Humanitas, 2010.

ALBERTE, Antonio. Coincidencias estético-literarias en la obra de Cicerón y Horacio. Emerita, v. 57, n. 1, 1989. pp. 37-88.

ALI, Said. Versificação portuguesa. Prefácio de Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp, 2006.

ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Tradução de Vasco Graça Moura. São Paulo: Landmark, 2005.

ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Tradução brasileira de José Pedro Xavier Pinheiro. Ilustrada com 136 gravuras de Gustavo Doré. Rio de Janeiro: Calçadense, 1956.

ALIGHIERI, Dante. Divina comédia. Desenhos de Sandro Botticelli. Tradução de José Trentino Ziller, apresentação de João Adolfo Hansen. Cotia: Ateliê, 2010.

ALIGHIERI, Dante. Obras completas. Contendo o texto original italiano e a tradução em prosa portuguêsa 10 v. São Paulo: Editora das Américas, 1958.

AMBROSE, J. W. The ironic meaning of the Lollius ode. Transactions of the American Philological Association, 96, 1965, pp. 1-10.

ANTUNES, C. Leonardo B. Metro e rítmica nas Odes Píticas de Píndaro. 2013. Tese (Doutorado em Letras Clássicas) – São Paulo: USP, 2013.

ANTUNES, C. Leonardo B. Ritmo e sonoridade na poesia grega antiga: uma tradução comentada de 23 poemas. São Paulo: Humanitas/Fapesp, 2011.

ARMSTRONG, David. Horace’s Epistles 1 and Philodemus. In: ARMSTRONG et alii (eds.). Vergil, Philodemus, and the Augustans. Austin: University of Texas Press, 2004. pp. 267-298.

ARMSTRONG, David. The impossibility of metathesis: Philodemus and Lucretius on form and content in poetry. In: OBBINK, Dirk (ed.) Philodemus and poetry: poetic theory and practice in Lucretius, Philodemus and Horace. Oxford: Oxford University, 1995. pp. 210-232.

BIBLIOGRAFIA | 265

ARMSTRONG et alii (eds.). Vergil, Philodemus, and the Augustans. Austin: University of Texas, 2004.

ASMIS, Elizabeth. Neoptolemus and the Classification of Poetry. Classical Philology, v. 87, n. 3, 1992. pp. 206-231.

ASPER, Markus. Mathematics and poetry in Hellenistic Alexandria. In: The Classical Review, n. 63, 2013. pp. 75-77.

AZEVEDO, Ricardo. Abençoado & danado do samba: um estudo sobre o discurso popular. São Paulo: Edusp, 2013.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BARCHIESI, Alessandro. Odes and Carmen Saeculare. In: HARRISON, Stephen (ed.). The Cambridge companion to Horace. Cambridge: Cambridge University, 2007. pp. 144-161.

BARTH, Pudentiana, RITSCHER, M. Immaculata; SCHMIDT-GÖRG, Joseph. (orgs.) Hildegard von Bingen – Lieder. Salzburg: Otto Müller, 1969.

BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2007.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. Tradução de J. Guinsburg. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.

BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mario Laranjeira. Prefácio de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Brasiliense, 1988.

BEARD, Mary; NORTH, John; PRICE, Simon. Religions of Rome: Volume 1 – A History. Cambridge: Cambridge University, 1998.

BEARD, Mary; NORTH, John; PRICE, Simon. Religions of Rome: Volume 2 – A Sourcebook. Cambridge: Cambridge University, 1998.

BENEDIKTSON, D. Thomas. Propertius, Modernist poet of Antiquity. Edwardsville: Southern Illinois University, 1989.

BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral I. Tradução de Maria da Glória Novak e Maria Luiza Neri. 2. ed. Campinas: Pontes/Unicamp, 1988.

BERMAN, Antoine. A tradução e a letra: ou o albergue do longínquo. Tradução de MarieHelène Catherine Torres, Mauri Furlan, Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.

BETTINI, Maurizio. Vertere: una antropologia della traduzione nella cultura antica. Torino: Einaudi, 2012.

BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BLONDELL, Ruby. Letting Plato speak for himself: character and method in the Republic. In: PRESS, Gerald A. Who speaks for Plato: studies in Platonic anonymity. Lanham: Rowman and Littlefield, 2000. pp. 127-146.

BLOOM, Harold. The anxiety of influence: a theory of poetry. London: Oxford University, 1973.

266 | COLEÇÃO CLÁSSICA

BONFANTE, Giuliano. La lingua parlata in Orazio. Prefazione di Nicholas Horsfall. Trad. dallo spagnolo di Manuel Vaquero Piñeiro. Venosa: Osanna Venosa, 1994 [1937].

BORGES, Jorge Luis. Las versiones homéricas. In: Ilha do desterro: translation/tradução, n. 17, 1o. semestre. Florianópolis: UFSC, 1987. pp. 93-99.

BORGES, Jorge Luis. Pierre Menard, autor del Quijote. In: Ficcionario: una antología de sus textos. Ed. intro. y notas de Emir Rodríguez Monegal. México: Fondo de Cultura Económica, 1992.

BRAUND, Susanna Morton. Latin literature. London: Routledge, 2002.

BRIGHT, David F. Haec mihi fingebam: Tibullus in his world. Leiden: E. J. Brill, 1978.

BROSE, Robert. Epikomios Hymnos: investigação sobre a performance dos epinícios pindáricos. 2014. Tese (Doutorado em Letras Clássicas) – USP, São Paulo, 2014.

BRUNET, Philippe. La naissance de la littérature dans la Grèce ancienne. Le livre de poche: Paris, 1997.

BRUNET, Philippe (éd.). L’égal des dieux Cent versions d’un poème recueillies par Philippe Brunet. Paris: Allia, 1998.

BRUNET, Philippe. Mètre et danse: pour une interprétation choréographique des mètre grecs. In: CASTALDO, D., GIANNACHI, F. G.; MANIERI, A. Poesia, musica e agoni nella Grecia antica: Atti del IV convegno internazionale de ΜΟΙΣΑ. Lecce: Congedo, 2011. II tomo. pp. 555-571.

BRUNET, Philippe (éd). Tradition du patrimoine antique – Homère en hexamètres: rencontre internationale de traducteurs, Paris, 26 mars. 2012. Anabases. Paris, 2014. pp. 69-290.

BRUNET, Philippe. Principes de scansion de l’hexamètre en français. Anabases. Paris, 2014. pp. 121-136.

BUENO, Alexei. Uma história da poesia brasileira. Rio de Janeiro: Ermakoff, 2007.

BÜCHNER, Karl. Das poetische in der Ars poeta des Horaz. Studien zur römischen Literatur, v. 10. Wiesbaden, 1979. pp. 131-147.

CAIRNS, Francis. Generic composition in Greek and Roman poetry. Edinburgh: Edinbugh University, 1972.

CAIRNS, Francis. Sextus Propertius: The Augustan Elegist. Cambridge: Cambridge University, 2006.

CAMPION, Thomas. Observations in the Art of English Poesie. Oregon: Renaissansse, 1998.

CAMPOS, Augusto de. Invenção: de Arnaut e Raimbaut a Dante e Cavalcanti. São Paulo: Arx, 2003.

CAMPOS, Augusto de. Música de invenção. São Paulo: Perspectiva, 1998.

CAMPOS, Augusto de. Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista . São Paulo: Terracota, 2013.

CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1972.

BIBLIOGRAFIA | 267

CAMPOS, Haroldo de. A obra de arte aberta. In: CAMPOS, Augusto de, CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos, 1950-1960. São Paulo: Brasiliense, 1987.

CAMPOS, Haroldo de. A transcriação do Fausto In: Suplemento de Cultura de O Estado de São Paulo, ano II, n. 62, 16-08-1981b. pp. 13-15.

CAMPOS, Haroldo de. Bere’shith: a cena da origem (e outros estudos e poética bíblica). São Paulo: Perspectiva, 1993.

CAMPOS, Haroldo de. Da tradução à transficcionalidade. In: 34 Letras. n. 3; março de 1989. pp. 82-101.

CAMPOS, Haroldo de. Da tradução como criação e como crítica. In: Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 2004.

CAMPOS, Haroldo de. Deus e o diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981a.

CAMPOS, Haroldo de. Éden: um tríptico bíblico. São Paulo: Perspectiva, 2004b.

CAMPOS, Haroldo de. Luz: a escrita paradisíaca. In: ALIGHIERI, Dante. Seis cantos do Paraíso. Recife: Gastão de Holanda, 1976.

CAMPOS, Haroldo de. Hagoromo de Zeami: o charme sutil. São Paulo: Liberdade, 1994a.

CAMPOS, Haroldo de. Haroldo de Campos – Transcriação. Marcelo Tápia; Thelma Médici Nóbrega (orgs.). São Paulo: Perspectiva, 2013.

CAMPOS, Haroldo de. Mênis: A ira de Aquiles (Canto I da Ilíada de Homero). São Paulo: Nova Alexandria, 1994b.

CAMPOS, Haroldo de. Os nomes e os navios, Homero (Canto II da Ilíada, acompanhada da tradução de Odorico Mendes). Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999.

CAMPOS, Haroldo de. Qohélet/O-que-sabe: Eclesiastes: poema sapiencial (com uma colaboração especial de J. Guinsburg). São Paulo: Perspectiva, 2004a [1990].

CAMPOS, Haroldo de. Semiótica como prática e não como escolástica (entrevista). In: Depoimentos de oficina. São Paulo: Unimarco, 2002.

CAMPOS, Haroldo de; NÓBREGA, Thelma Médici. Entrevista com Haroldo de Campos. In: MOTTA, Leda Tenorio da (Org.). Céu acima: para um “tombeau” de Haroldo de Campo. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 343–366

CARDOSO, Leandro Dorval. A vez do verso: estudo e tradução do Amphitruo de Plauto. 2012. Dissertação (Mestrado em Letras) – UFPR, Curitiba, 2012.

CARDOZO, Mauricio Mendonça. Tradução, apropriação e o desafio ético da relação. In: OLIVEIRA, Maria Clara Castellões de; LAGE, Verônica Lucy Coutinho (orgs.). Literatura, crítica, cultura I. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2008. pp. 179-190.

CARDOZO, Mauricio Mendonça. Tradução e o trabalho de relação: notas para uma poiética da tradução. In: PIETROLUNGO, Márcia Atálla (org.). O trabalho da tradução. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009. pp. 181-188.

268 | COLEÇÃO CLÁSSICA

CARRUBBA, R. W. The technique of double structure in Horace. Mnemosyne, 20. 1967. pp. 68-75.

CARVALHO, Amorim de. Tratado de versificação portuguesa. Lisboa: Edições 70, s/d.

CARVALHO, Raimundo. Virgílio: Bucólicas – edição bilíngüe. Belo Horizonte: Tessitura; Crisálida, 2005.

CASSIN, Barbara. O efeito sofístico: sofística, filosofia, retórica, literatura. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira, Maria Cristina Franco Ferras e Paulo Pinheiro. São Paulo: 34, 2005.

CAVALLO, Guglielmo; FEDELI, Paolo; GIARDINA, Andrea (orgs.). Espaço literário da Roma Antiga, v. I. Tradução de Daniel Peluci Carrara e Fernanda Messeder Moura. Belo Horizonte: Tessitura, 2010.

CESILA, Robson Tadeu. Intertextualidade e estudos clássicos. In: SILVA, Gilvan Ventura da; LEITE, Leni Ribeiro. As múltiplas faces do discurso em Roma: textos, inscrições, imagens. Vitória: Edufes, 2013. pp. 11-23.

CHOCYAI, Rogério. Teoria do verso. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1974.

CLAYMAN, Dee L. Callimachus’ Iambi. Leiden: E. J. Brill, 1980.

CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. José Reginaldo Santos Gonçalves (org.). Tradução de Patrícia Farias. 4. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2014.

COHN, Sergio (org.). Roberto Piva São Paulo: Azougue, 2010.

COLLINGE, N. E. The structure of Horace’s Odes. London: Oxford,1961.

COMMAGER, Steele. The Odes of Horace: a critical study. Norman; London: University of Oklahoma, 1962.

COMOTTI, Giovanni. Music in Greek and Roman culture. Transl. by Rosaria V. Munson. Baltimore: The John Hopkins University, 1991.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. 2. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.

CONTE, Gian Biagio. Generi e lettori: Lucrezio, l’elegia d’amore, l’enciclopedia di Plinio . Milano: Mondadori, 1991.

CONTE, Gian Biagio. The rhetoric of imitation: genre and poetic memory in Virgil and other Latin poets. Transl. by Charles Segal. Ithaca; London: Cornell University, 1986.

CONTE, Gian Biagio; BARCHIESI, Alessandro. Imitação e arte alusiva. Modos e funções da intertextualidade. In: CAVALLO, Guglielmo; FEDELI, Paolo; GIARDINA, Andrea (orgs.). Espaço literário da Roma Antiga, v. I. Tradução de Daniel Peluci Carrara e Fernanda Messeder Moura. Belo Horizonte: Tessitura, 2010. pp. 87-121.

CORRÊA et alii. Hyperboreans: Essays in Greek and Latin Poetry, Philosophy, Rhetoric and Linguistics. São Paulo: Humanitas; Capes, 2012.

CORREIA GARÇÃO, Pedro Antônio. Obras poeticas de Pedro Antonio Correa Garção, dedicadas ao illustrissimo, e excelentíssimo senhor D. Thomaz de Lima e Vasconcellos Brito

BIBLIOGRAFIA | 269

Nogueira Telles da Silva, Visconde de Villa Nova da Cerveira, Ministro e Secretario de Estado dos Negocios do Reino, etc., etc. etc. Lisboa: Regia Officina Typografia, 1778.

COSTA, C. D. N. (ed.). Horace. London; Boston: Routledge & Kegan Paul, 1973.

COSTA LIMA, Luiz. A ficção e o poema – Antonio Machado, W. H. Auden, P. Celan, Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Cia. das Letras, 2012.

COSTA LIMA, Luiz. (org.). Teorias da literatura em suas fontes. 2 v. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.

COWHERD, Carrie. Persius Saturae: Bryn Mawr Latin Commentaries. Indianápolis: Bryn Mawr Commentaries, 1986.

CUPAIUOLO, Fabio. A proposito della callida iunctura oraziana. Napoli: Arti Grafiche Torella, 1942.

DAVIS, Gregson. Polyhymnia: the rhetoric of Horatian lyric discourse. Berkeley: University of California, 1991.

DE GUBERNATIS, M. Lenchantin. Manual de prosodia y métrica griega. Tradução de Pedro C. Tapia Zúñiga. México D.F.: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, v. 1. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: 34, 1995.

DELEUZE, Gilles. Logique du sens. Paris: Minuit, 1969.

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Tradução de Maria Beatriz da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1971.

DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Trad. Míriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2008.

DERRIDA, Jacques. Limited inc. Tradução de Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus, 1991.

DESBORDES, Françoise. Concepções sobre a escrita na Roma Antiga. Tradução de Fulvia M. L. Moretto e Guacira Marcondes Machado. São Paulo: Ática, 1995.

DETTMER, Helena. Horace: a study in structure. Hildesheim; New York: Olm; Weidemann, 1983.

DEVINE, A. M.; STEPHENS, Laurence D. Latin word order: Structured meaning and information. Oxford: Oxford University, 2006.

DRAHEIM, Joachin; WILLE, Günther. Horaz-Vertonungen von Mittelalter bis zur Gegenwart: eine Anthologie. Amsterdam: Grüner, 1985.

DUCKWORTH, George. Animae dimidium meae: two poets. In: Transactions of the American Philological Association, n. 87, 1956. pp. 281-316.

DUNBABIN, Katherine M. D. Mosaics of the Greek and Roman world. Cambridge: Cambridge University, 1999.

DUPONT, Florence. Aristote ou le vampire du théâtre occidental. Paris: Aubier, 2007.

270 | COLEÇÃO CLÁSSICA

ECO, Umberto. A estrutura ausente: introdução à pesquisa semiológica. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2012b.

ECO, Umberto. As formas do conteúdo. Tradução de Pérola de Carvalho. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010b.

ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução de MF. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

ECO, Umberto. Lector in fabula: a cooperação interpretativa nos textos narrativos . Tradução de Attílio Cancian. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.

ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. Tradução de Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2010a.

ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Tradução de Pérola de Carvalho. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2012a.

ECO, Umberto. Quase a mesma coisa: experiências de tradução. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2007.

ECO, Umberto. Tratado geral de semiótica. Tradução de Antônio de Pádua Danesi e Gilson Cesar Cardoso de Souza. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014.

EISENBERGER, Friedrich. Bilden die horazischen Oden 2, 1-12 eiden Zyklus? In: Gymnasium, n. 87, 1980. pp. 262-274.

EINSTEIN, Carl. Negerplastik [Escultura negra]. Org. Liliane Meffre. Tradução de Fernando Scheibe e Inês de Araújo. Florianópolis: UFSC, 2001.

FANTHAM, Elaine. Roman literary culture: from Cicero to Apuleius. Baltimore: The Johns Hopkins University, 1996.

FANTUZZI, Marco; Hunter, Richard. Tradition and Innovation in Hellenistic Poetry. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

FEDELI, Paolo. As interseções dos gêneros e dos modelos. In: CAVALLO, Guglielmo, FEDELI, Paolo; GIARDINA, Andrea (orgs.). Espaço literário da Roma Antiga, v. I. Tradução de Daniel Peluci Carrara e Fernanda Messeder Moura. Belo Horizonte: Tessitura, 2010. pp. 393-416.

FEDELI, Paolo (ed.). Properzio, elegie libro II. Introduzione, testo e commento di Paolo Fedeli. Cambridge: Francis Cairns Publications, 2005.

FINNEGAN, Ruth H. Oral poetry: its nature, significance and social context. Cambridge: Cambridge University, 1977.

FINNEGAN, Ruth H (ed.). The Penguin book of oral poetry. London: Penguin, 1982.

FISKE, George Converse. Lucilius, the Ars poetica of Horace, and Persius. In: Harvard Studies in Classical Philology, v. 24. Harvard: Harvard University, 1913. pp. 1-36.

FLORES, Enrico. Livi Andronici Odusia. Introduzione, edizione critica e versione italiana. Napoli: Liguori, 2011.

FLORES, Guilherme Gontijo. A diversão tradutória: uma tradução das Elegias de Sexto Propércio. 2008. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – UFMG, Belo Horizonte, 2008.

BIBLIOGRAFIA | 271

FLORES, Guilherme Gontijo. Baquílides, Ode 18. Teseu chega a Atenas. In: Letras Clássicas, v. 10, 2006. pp. 169-174.

FLORES, Guilherme Gontijo. Bertran de Born e o amor à guerra. In: IPIRANGA JÚNIOR, Pedro, GARRAFFONI, Renata Senna; BURMESTER, Ana Maria (orgs.). Do amor e da guerra: um itinerário de narrativas. Prefácio de Anamaria Filizola. São Paulo: Annablume, 2014. pp. 199-225.

FLORES, Guilherme Gontijo. Épica, lirica e tragédia nas Argonáuticas de Apolônio de Rodes. In: Organon, n. 49, v. 24. Porto Alegre: UFRGS, 2010.

FLORES, Guilherme Gontijo. Tradutibilidades em Tibulo. In: Scientia traductionis, n. 10, 2011. Disponível em: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/scientia/article/ view/1980-4237.2011n10p141/19994. Acesso em: 1 maio 2013.

FOUCAULT, Michel. L’Ordre du Discours. Paris: Gallimard, 1970.

FOUCAULT, Michel. Qu’est-ce qu’un auteur? In: Philosophie: anthologie. Paris: Gallimard, 2004. pp. 290-318.

FOWLER, Barbara Hughes. The Hellenistic aesthetic. Madison: University of Wisconsin Press, 1989.

FRAENKEL, Eduard. Horace. Oxford: Oxford University, 1957.

FURLAN, Mauri. Ars traductoris: questões de leitura-tradução da Ars poetica de Horácio 1998. Dissertação (Mestrado em Literatura) – UFSC, Florianópolis, 1998.

FURLAN, Mauri. Tradução romana: suplantação do modelo. In: Nuntius Antiquus, n. 6, 2010. pp. 83-92.

GANTAR, Kajetan. Die Archytas-Ode und ihre Stelung im dichterinschen Werk des Horaz. In: Grazer Beiträge. n. 11, 1984. pp. 121-139.

GATTI, Ícaro Francesconi. A Crestomatia de Proclo: tradução integral, notas e estudo da composição do códice 239 da Biblioteca de Fócio. 2012. Dissertação (Mestrado em Letras Clássicas) – USP, São Paulo, 2012.

GEDEA ARTE: Enciclopedia Universale dell’Arte. 18 v. Novara: Istituto Geografico de Agostini, 1999.

GOLDBERG, Simon M. Constructing literature in the Roman Republic. Cambridge: Cambridge University, 2005.

GOLDEN, Leon. Commentary to the Ars poetica. In: HARDISON, O. B.; GOLDEN, L. (eds.). Horace for students of literature: the “Ars poetica” and its tradition. Gainesville: University of Florida, 1995. pp. 23-41.

GOLDHILL, Simon. Who’s afraid of literary theory. In: BRAUND, Susanna Morton. Latin literature. London: Routledge, 2002. pp. 277-287.

GOMES, João Alexandre Straub. A representação da melancolia nas Ayres de John Dowland. 2015. Dissertação (Mestrado em Música) – UFPR, Curitiba, 2015.

GONÇALVES, José Miguel Tomé. Callida iunctura. In: Ágora: Estudos Clássicos em debate, n. 9. Aveiro: Universidade de Aveiro, 2007. pp. 75-97.

272 | COLEÇÃO CLÁSSICA

GONÇALVES, Rodrigo Tadeu. Comédia Latina: a tradução como reescrita do gênero. In: Phaοs – Revista de Estudos Clássicos, n. 9, 2009. pp. 117-142. Disponível em: http://www.iel.unicamp.br/revista/index.php/phaos/article/view/1404/980. Acesso em: 1 set. 2013.

GONÇALVES, Rodrigo Tadeu. L’hexametre en portugais. In: Anabases. Paris, 2014. pp. 151-164.

GONÇALVES, Rodrigo Tadeu. Traduções polimétricas de Plauto: em busca da polimetria plautina em português. In: Scientia traductionis, n. 10, 2011. pp. 214229. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/scientia/article/view/ 1980-4237.2011n10p214/20016. Acesso em: 1 set. 2013.

GOW, A. S. F.; PAGE, D. L. The Greek Anthology: Hellenistic epigrams. 2 v. Cambridge: Cambridge University Press, 1965.

GRIFFITHS, Alan. The Odes: just where you draw the line? In: WOODMAN, T.; FEENEY, D. (eds.). Traditions and contexts in the poetry of Horace. Cambridge: Cambridge University, 2002.

GRIMAL, Pierre. Essai sur l’Art Poétique d’Horace. Paris: PUF, 1968.

GUITE, Harold. Cicero’s attitude to the Greeks. In: Greece & Rome, v. 9, n. 2. Cambridge: Cambridge University, 1962.

GULLAR, Ferreira. Toda poesia. 5. ed. revista e aumentada. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.

GÜNTHER, Hans-Christian (ed.). Brill’s Companion to Horace. Leiden; Boston: Brill, 2013.

HALL, Edith; WYLES, Rosie (eds.). New directions in Ancient pantomime. Oxford: Oxford University, 2008.

HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. Campinas: Unicamp, 2004.

HARDISON, O. B.; GOLDEN, Leon (eds.) Horace for students of literature: the “Ars poetica” and its tradition. Gainesville: University of Florida, 1995.

HARDWICK, Lorna. Translating words, translating cultures. London: Duckworth, 2000.

HARRISON, Stephen. A tragic Europa? Horace Odes 3. 27. In: Hermes, n. 116, 1988. pp. 427-434.

HARRISON , Stephen (ed.). The Cambridge companion to Horace. Cambridge: Cambridge University, 2007a.

HARRISON, Stephen. Style and poetic texture. In: HARRISON, Stephen (ed.). The Cambridge companion to Horace. Cambridge: Cambridge University, 2007b.

HARRISON, Stephen. The reception of Horace in the nineteenth and twentieth centuries. In: HARRISON, Stephen (ed.). The Cambridge companion to Horace. Cambridge: Cambridge University, 2007c.

BIBLIOGRAFIA | 273

HASEGAWA, Alexandre. Dispositio e distinção de gêneros nos Epodos de Horácio: estudo acompanhado de tradução em verso. 2010. Tese (Doutorado em Letras Clássicas) – USP, São Paulo, 2010.

HASEGAWA, Alexandre. Duas traduções portuguesas do livro dos Epodos de Horácio no século XVIII. In: CORRÊA et alii Hyperboreans: Essays in Greek and Latin Poetry, Philosophy, Rhetoric and Linguistics. São Paulo: Humanitas; Capes, 2012a.

HASEGAWA, Alexandre. Biografia e história na lírica horaciana. In: SILVA, Gilvan Ventura da; LEITE, Leni Ribeiro. As múltiplas faces do discurso em Roma: textos inscrições, imagens. Vitória: Edufes, 2013. pp. 57-68.

HASEGAWA, Alexandre. Deuses e ordo no livro IV das Odes. In: LEITE, Leni Ribeiro et alii (orgs.). Gênero, religião e poder na Antiguidade: contribuições interdisciplinares. Vitória: GM, 2012b. pp. 89-110.

HAVELOCK, Eric. A revolução da escrita na Grécia e suas consequências culturais. São Paulo: Editora da UNESP; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

HEGEL, G. W. F. Estética. Tradução de Álvaro Ribeiro e Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães, 1993.

HEINZE, Richard. Die horazische Ode. In: Jahrbb. klass. Altertum. n. 51, 1923. pp. 153-170.

HEYWORTH, S. J. Cynthia: a companion to the text of Propertius. Oxford: Oxford University, 2009.

HINDS, Stephen. Allusion and Intertext: Dynamics of Appropriation in Roman Poetry. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Elaborado no Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C Ltda. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

HUBBARD, Margaret. The Odes. In: COSTA, C. D. N. (ed.) Horace. London; Boston: Routledge & Kegan Paul, 1973. pp. 1-28.

HUTCHINSON, G. O. The publication and individuality of Horace’s Odes Books 1-3. In: Classical Quartely, 52.2, 2002. pp. 517-537.

INGLEHEART, Jennifer. Et mea sunt populo saltata poemata saepe (Tristia 2.519): Ovid and the pantomime. In: HALL, Edith; WYLES, Rosie (eds.). New directions in Ancient pantomime. Oxford: Oxford University, 2008. pp. 198-217.

JAKOBSON, Roman. A geração que esbanjou seus poetas. Tradução e posfácio de Sonia Regina Martins Gonçalves. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. 8. ed. Prefácio de Izidoro Blikstein e tradução de Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1975.

JAKOBSON, Roman. On linguistic aspects of translation. In: Brower, Reuben A. (org.). On translation. New York: Oxford, 1966.

JANAN, Micaela. The politics of desire: Propertius IV. Los Angeles: University of California, 2001.

274 | COLEÇÃO CLÁSSICA

JANKO , Richard. Philodemus on poems: Book One . Oxford: Oxford University, 2000.

JAUSS, Hans Robert. O texto poético na mudança de horizonte de leitura. Tradução de Marion S. Hirschmann e Rosane V. Lopes. In: COSTA LIMA, Luiz. Teorias da literatura em suas fontes. v. 2. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. pp. 305-358.

JOHNSON, Timothy. A symposion of praise: Horace returns to Lyric in Odes IV. Madison: University of Wisconsin, 2004.

JONES, Elizabeth. Horace: early master of montage. In: Arion, third series, v. 16, n. 3. Boston: Boston University, 2009. pp. 51-62.

JOYCE, James. Finnegans Wake / Finnícius Revém. Tradução de Donaldo Schüler. v. 3. Cotia: Ateliê, 2001.

KENNEDY, Duncan F. Five studies in the discourse of Roman love elegy. Cambridge: Cambridge University, 1993.

KIESSLING, Adolf; Heinze, Ricahrd. Quintus Horatius Flaccus, Briefe. Zürich: Weidmann, 1970.

KING, Sonia. Mosaic, techniques & traditions: projects and designs from around the world. New York: Sterling, 2002.

KLINGNER, Friedrich. Horazens Römeroden. In: Varia variorum: Festgabe für Karl Reinhardt. Münster: Böhlau, 1952. pp. 118-136.

KNORR, Ortwin. Horace’s ship ode (1.14) in context: a metaphorical love-triangle. In: Transactions of the American Philological Association, n. 136. 2006. pp. 149-169.

KNOX, Peter E. Language, Style, and Meter in Horace. In: GÜNTHER, HansChristien (ed.). Brill’s Companion to Horace. Leiden; Boston: Brill, 2013. pp. 527-546.

LA COMBE, Pierre Judet de; WISMANN, Heinz. L’avenir des langues: repenser les Humanités. Paris: Cerf, 2004.

LA PENNA, Antonio. Orazio e la morale mondana europea. In: CETRANGOLO, Enzio. Orazio: tutte le opere. Firenze: Sansoni, 1989. pp. ix-clxxxviii.

LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2002.

LAIRD, Andrew. The Ars Poetica. In: HARRISON, Stephen (ed.). The Cambridge companion to Horace. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. pp. 132-143.

LANDELS, John G. Music in ancient Greece and Rome. London: Routledge, 1999.

LASCOUX, Emmanuel. Rêves et réalités de l’hexamètre, Anabases. Paris, 2014. pp. 165-172.

LEFEVERE, André. Tradução, reescrita e manipulação da fama literária. Tradução de Claudia Matos Seligmann. Bauru: Edusc, 2007.

LEITE, Leni Ribeiro; SILVA, Gilvan Ventura da; CARVALHO, Raimundo Nonato Barbosa de (orgs.). Gênero, religião e poder na Antiguidade: contribuições interdisciplinares. Vitória: GM, 2012.

BIBLIOGRAFIA | 275

LEROY, Maurice. Encore la Callida iuntura. In: Latomus T. 7, fasc. ¾. Bruxelles: Societé d’Études latines de Bruxelles, 1948. pp. 193-195.

LEVETT, Brad. Platonic parody in the Gorgias. In: Phoenix. v. 59, n. ¾, 2005. pp. 210-227.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido. Mitológicas 1. Tradução de Beatriz PerroneMoisés. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

LIMA, Edilson de. As modinhas do Brasil. São Paulo: Edusp, 2001.

LOWRIE, Michèle. A parade of lyric predecessors: Horace C. 1.12-1.18. In: Phoenix, n. 49. 1995. pp. 33-48.

LOURENÇO, Frederico. Horácio: poesia completa. Lisboa: Quetzal, 2023.

LYNE, R. O. A. M. Words and the poet: characteristic techniques of style in Vergil’s Aeneid. Oxford: Oxford University, 1989.

LYONS, Stuart. Music in the Odes of Horace. Oxford: Aris & Phillips, 2010.

MACKAY, E. Anne (ed.). Orality, literacy, memory in the Ancient Greek and Roman world. Leiden/Boston: Brill, 2008.

MAGALHÃES DE AZEREDO, Carlos. Odes e elegias. Roma: Tipographia Centenari, 1904.

MALLARMÉ, Stéphane. Mallarmé. Traduções de Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari. São Paulo: Perspectiva, 2002.

MARIOTTI, Scevola. Livio Andronico e la traduzione artistica: saggio critico ed edizione dei frammenti dell’Odyssea. Urbino: Università degli studi di Urbino, 1986.

MARKOWICZ, André. La malédiction de l’oreille. Pour Philippe Brunet. Anabases. n. 20, 2014. pp. 79-84.

MARKOWICZ, André. Le livre de Catulle. L’âge d’homme: s/l, 1985.

MARQUES, Juliana Bastos; CAVICCHIOLI, Marina Regis. Uma releitura dos frisos de Odisseu no Esquilino. In: Revista de História da Arte e Arqueologia, n. 11, 2009. Disponível em: http://www.unicamp.br/chaa/rhaa/downloads/Revista%2011%20 -%20artigo%201.pdf. Acesso em: 1 out. 2013.

MARTINDALE, Charles. Redeeming the text: Latin poetry and the hermeneutics of reception. Cambridge: Cambridge University, 1993.

MARTINS, Cláudia Santana. Vilém Flusser: a tradução na sociedade pós-histórica. São Paulo: Humanitas; Fapesp, 2011.

MARTINS, Paulo. Imagem e poder: considerações sobre a representação de Otávio Augusto. São Paulo: Edusp, 2011.

MATTOSO, Glauco. Tratado de versificação. Prefácio e intro. de Manuel Cavalcanti Proença. São Paulo: Annablume, 2010.

MAURY, Paul. Horace et le secret de Virgile. Paris: s/e, 1945.

McDERMOTT, E. Greek and roman elements in Horace’s lyric program. In: Aufstieg und Niedergang der Römischen Welt. II, 31.3. Walter de Gruyter: New York, 1981.

276 | COLEÇÃO CLÁSSICA

McELDUFF, Siobhán. Roman theories of translation: surpassing the source. New York; London: Routledge, 2013.

McLUHAN, Marshall. A galáxia de Gutenberg: a formação do homem tipográfico. Tradução de Leônidas Gontijo de Carvalho e Anísio Teixeira. 2. ed. São Paulo: Nacional, 1977.

McLUHAN, Marshall; FIORE, Quentin. O meio são as massa-gens: um inventário de efeitos. São Paulo: Record, 1969.

MELLO NÓBREGA, Lúcia de. O soneto de Arvers. 3. ed. revista e aumentada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

MENDES, João Pedro. Construção e arte das Bucólicas de Virgílio. Brasília: UnB, 1985.

MESCHONNIC, Henri. Critique du rythme: anthropologie historique du langage. Lagrasse: Verdier, 1982.

MESCHONNIC, Henri. Ethics and politics of translating. Translated and edited by Pier-Pascale Boulanger. Amsterdam: John Benjamins Publishing Company, 2011.

MESCHONNIC, Henri. Éthique et politique du traduire Lagrasse: Verdier, 2007.

MESCHONNIC, Henri. Gloires: traduction des psaumes. Paris: Desclée de Brouwer, 2001.

MESCHONNIC, Henri. Jona et le signifiant errant. Paris: Gallimard, 1981.

MESCHONNIC, Henri. Les cinq rouleaux. Paris: Gallimard, 1970.

MESCHONNIC, Henri. Poética do traduzir. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Perspectiva, 2010.

MESCHONNIC, Henri. Politique du rythme: Politique du sujet. Lagrasse: Verdier, 1995.

MESCHONNIC, Henri. Pour la poétique II: Épistémologie de l’écriture; poétique de la traduction. Paris: Gallimard, 1973.

MILTON, John. Tradução: teoria e prática. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

MINARELLI, Enzo. Polipoesia: entre as poéticas da voz no século XX. Tradução, comentários e posfácio de Frederico Fernandes. Londrina: Eduel, 2010.

MINARINI, Alessandra. Lucidus ordo. L’architectura della lirica oraziana (libri I-III). Bologna: Pàtron, 1989.

MOLES, Abraham. Teoria da informação e percepção estética. Tradução de Helena Parente Cunha. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969.

MOORE, Timothy J. Music in Roman comedy. Oxford: Oxford University, 2012.

MOTTA, Leda Tenório da (org). Céu acima: para um ‘tombeau’ de Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2005.

MOUNIN, Georges. Les problèmes théoriques de la traduction. Préface de Dominique Aury. Paris: Gallimard, 1986.

MUTSCHLER, Fritz-Heiner. Beobachtungen zur Gedichtanordnung in den ersten Odensammlung des Horaz. In: Rheinisches Museum, n. 17, 1974. pp. 109-133.

BIBLIOGRAFIA | 277

NAGY, Gregory. Poetry as performance: Homer and beyond. Cambridge: Cambridge University, 1996.

NAVA, Mariano. Callida iunctura: tradición e innovación semántica en Horacio (ad Pisones vv. 46-53). In: Actual, n. 35, 1997. pp. 62-81.

NEGREIROS, Eliete Eça. Ensaiando a canção: Paulinho da Viola e outros escritos. São Paulo: Ateliê, 2001.

NETZ, Reviel. Ludic proof: Greek mathematics and the Alexandrian aesthetics. Cambridge: Cambridge University, 2009.

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos, ou Como se filosofa com o martelo. Tradução, posfácio e notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 [1888].

NÓBREGA, Thelma Médici. Entrevista com Haroldo de Campos. In: MOTTA, Leda Tenório da (org). Céu acima: para um ‘tombeau’ de Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2005.

NOGUEIRA, Érico. O esmeril de Horácio: ritmo e técnica do verso em português. São Paulo: Filocalia, 2020.

NOGUEIRA, Érico. Verdade, contenda e poesia nos Idílios de Teócrito. São Paulo: Humanitas, 2012.

NUMBERGER, Karl. Inhalt und Metrum in der Lyrik des Horaz. Dissertação. München, 1959.

OBERHELMAN, Steven; ARMSTRONG, David. Satire as poetry and the impossibility of metathesis in Horace’s Satires. In: OBBINK, Dirk (ed.). Philodemus and poetry: poetic theory and practice in Lucretius, Philodemus and Horace. Oxford: Oxford University, 1995. pp. 233-254.

OBBINK, Dirk (ed.) Philodemus and poetry: poetic theory and practice in Lucretius, Philodemus and Horace. Oxford: Oxford University, 1995.

OBBINK, Dirk. Provenance, Authenticity, and Text of the New Sappho Papiry. Paper read at the Society for Classical Studies. Panel ‘New Fragments of Sappho’, New Orleans, 9 de janeiro de 2015. Disponível em: www.papyrology.ox.ac.uk/Fragments/ SCS.Sappho.2015.Obbink.paper.pdf.

OBBINK, Dirk. Two new poems by Sappho. Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik, n. 189, 2014. pp. 32-49. Disponível em: https://newsappho.files.wordpress.com/2015/01/ zpe-189-obbink.pdf.

O’HARA, James J. Inconsistency in Roman epic: studies in Catullus, Lucretius, Vergil, Ovid and Lucan. Cambridge: Cambridge University, 2007.

OLIVA NETO, João Angelo. Dos gêneros da poesia antiga e sua tradução em português. 2013. Tese (Livre-Docência) – USP, São Paulo, 2013.

OLIVA NETO, João Angelo. Falo no jardim: Priapéia grega, Priapéia latina. Cotia; Campinas: Ateliê; Unicamp, 2006.

OLIVA NETO, João Angelo. O livro de Catulo. São Paulo: Edusp, 1996.

278 | COLEÇÃO CLÁSSICA

OLIVA NETO, João Angelo. O livro de Catulo. 2. ed. São Paulo: Edusp, no prelo.

OLIVA NETO, João Angelo; NOGUEIRA, Érico. O hexâmetro dactílico vernáculo antes de Carlos Alberto Nunes. In: Scientia traductionis, n. 13, 2013. pp. 295-311. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/scientia/article/view/30277/25173. Acesso em: 1 set. 2013.

ONIANS, John. Art and thought in the Hellenistic Age: The Greek world view 350-50 B.C. London, 1979.

OPPERMANN, Heinrich. Zum Aufbau der Römeroden. In: Gymnasium. n. 66, 1959. pp. 204-217.

OSEKI-DÉPRÉ, Inês. Make it new. In: MOTTA, Leda Tenório da (org). Céu acima: para um ‘tombeau’ de Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2005. pp. 213-220.

PADEN JR., William D.; SANKOVITCH, Tilde; STÄBLEIN, Patricia H. The poems of the Troubadour Bertran de Born. Los Angeles: University of California, 1986.

PAES, José Paulo. Tradução, a ponte necessária: aspectos e problemas da arte de traduzir. São Paulo: Ática, 1990.

PANAYOTAKIS, Costas. Virgil on the popular stage. In: HALL, Edith; WYLES, Rosie (eds.). New directions in Ancient pantomime. Oxford: Oxford University, 2008. pp. 185-197.

PAPPALARDO , Umberto; CIARDIELLO , Rosaria. Greek and Roman mosaics Translated from the Italian by Ceil Friedman. New York; London: Abeville, 2012.

PASCOLI, Giovanni. Tutte le opera di Giovanni Pascoli, v. 1.: Poesie. Verona: Mondadori, 1948.

PENNA, Heloísa Maria Moraes Moreira. Implicações da métrica nas Odes de Horácio. 2007. Tese (Doutorado em Letras) – USP, São Paulo, 2007.

PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de história da cultura clássica. II volume – Cultura Romana. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002.

PERRET, Jaques. Horace. Paris: Hatier, 1959.

PETRÔNIO. Satyricon. Ed. bilíngue. Tradução de Sandra Maria Gualberto Braga Bianchet. Belo Horizonte: Crisálida, 2004.

PIGHI, Giovanni Battista. I ritmi e i metri della poesia latina: con particolare riguardo all’uso di Catullo e D’Orazio. Brescia: La Scuola, 1958.

PIVA, Luiz. Literatura e música. Brasília: MusiMed, 1990.

PORT, Wilhelm. Die Anordnung in Gedichtbüchern augusteischer Zeit. In: Philologus, n. 81, 1926. pp. 279-308.

PORTER, David H. Horace’s poetic journey. A reading of Odes 1-3. Princeton: Princeton University, 1987.

PÖSCHL, Viktor. Bemerkungen zu den Horazoden III 7-12. In: Letterature Comparate: Studi Paratore II. Bologna: s/e, 1981. pp. 505-509.

POUND, Ezra. ABC of reading. London: Faber and Faber, 1961.

BIBLIOGRAFIA | 279

POUND, Ezra. Poems and translations. New York: Library of America, 2003.

POUND, Ezra. The translations of Ezra Pound. New York: Faber & Faber, 1963.

PRADO, João Batista Toledo. Canto e encanto, o charme da poesia latina: Contribuição para uma poética da expressividade em língua latina. 1997. Tese (Doutorado em Letras) – USP, São Paulo, 1997.

PROPP, Vladimir I. Morfologia do conto maravilhoso. Tradução de Jasna Paravich Sarhan. Organização e prefácio de Boris Schnaiderman. Rio de Janeiro: Forense, 1984.

QUINTILIANO, Marco Fábio. Instituições oratórias. Seleção e tradução de Jerônimo Soares Barbosa. São Paulo: Cultura, 1944. 2 v.

RAHN, Helmut. Zufall oder Absicht? Eine Vermutung zum Sinn der Gedichtzahl des ersten horazischen Odenbuches. In: Gymnasium, n. 77, 1970. pp. 478-479.

RAMORINO, Felice. Q. Horatii Flacci Opera. Florentiae: G. Barbera, 1920.

REINACH, Théodore. A música grega. Tradução de Newton Cunha. São Paulo: Perspectiva, 2011.

RENNÓ, Carlos. Cole Porter – Canções e versões. São Paulo: Paulicéia, 1991.

RENNÓ, Carlos. Poesia literária e poesia de música: convergências. In: OLIVEIRA, Solange Ribeiro de et alii Literatura e música. São Paulo: Senac; Itaú Cultural, 2003.

REZENDE, Antônio Martinez de. Rompendo o silêncio: a construção do discurso oratório em Quintiliano. Belo Horizonte: Crisálida, 2010.

RIBEIRO, Larissa Pinho Alves (org.). Carlos Drummond de Andrade São Paulo: Azougue, 2011.

RIESE, Horatiana. In: Jahrbb. für klassische Philologie, n. 12, 1866. pp. 474-476.

ROBERT, Michael. The jeweled style: poetry and poetics in Late Antiquity Ithaca; London: Cornell University, 1989.

RÓNAI, Paulo. Escola de tradutores. Os cadernos de cultura. Ministério da Educação e Saúde, 1952.

ROSSI, L. E. I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche. In: Bulletin of the Institute of Classical Studies, n. 18, 1971. pp. 69-94.

ROSSI, L. E. La letteratura alessandrina e il rinnovamento dei generi letterari della tradizione. In: Pretagostini, Roberto (org.). La letteratura ellenistica: problemi e prospettive di ricerca. s/l: 2000. pp. 149-159.

RUDD, Nial. The Satires of Horace. London: Bristol, 2010.

SALAT, Paul. Remarques sur la structure des Odes Romaines. In: Annales Latini Montium Avernorum, n. 3, 1976. pp. 51-57.

SALOMÃO, Waly. O mel do melhor. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

SANTAELLA, Lucia. Transcriar, transluzir, transluciferar: a teoria da tradução de Haroldo de Campos. In: MOTTA, Leda Tenório da (org). Céu acima: para um ‘tombeau’ de Haroldo de Campos São Paulo: Perspectiva, 2005. pp. 221-232.

280 | COLEÇÃO CLÁSSICA

SANTIROCCO, Matthew S. Unity and design in Horace’s Odes. Chapel Hill & London: The University of North Carolina Press, 1986.

SANTOS, Rafael Trindade dos. Transposição de metros clássicos em língua portuguesa: histórico e estudo do caso das Odes e elegias, de Magalhães de Azeredo. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Faculdade de Ciências e Letras, Unesp. Araraquara, 2014.

SARAIVA, F. R. dos Santos. Novissimo diccionario latino-portuguez. 8. ed. Rio de Janeiro: Garnier, 1924.

SARGENT, Jeanette L. The novelty of Ovid’s Heroides: libretti for pantomime. PhD Dissertation, Bryn Mawr, 1996.

SCATOLIN , Adriano. A invenção no De oratore de Cícero: um estudo à luz de Ad Familiares I, 9, 23. Tese (Doutorado em Letras Clássicas) – USP, São Paulo, 2009.

SCHMIDT, Magdalena. Die Anordnung der Oden des Horaz. In: Wissenschaftliche Zeitschrift der Karl Marx Universität Leipzig, n. 4, 1955. pp. 207-216.

SCHULZE, K. P. Besass Horaz eine Villa in Tibur? In: Neue Jahrbb. für das klassische Altertum Geschichte und Deutsche Literatur, n. 19, 1916.

SCOTT, Gary Alan; WELTON, William A. Eros as messenger in Diotima’s teaching. In: Press, Gerald A. Who speaks fo Plato: studies in Platonic anonimity. Lanham: Rowman and Littlefield, 2000. pp. 147-159.

SEABRA, Antonio Luiz. Satyras e epistolas de Quinto Horacio Flacco. Porto: Casa de Cruz Coutinho, 1846.

SÉNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. Tradução de J. A. Segurado e Campos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1991.

SILVA, Gilvan Ventura da. Imagens ‘bordadas’ na pedra: os mosaicos como fonte para o estudo da sociedade romana. In: SILVA, Gilvan Ventura da; LEITE, Leni Ribeiro (orgs.) As múltiplas faces do discurso em Roma: textos inscrições, imagens . Vitória: Edufes, 2013. pp. 153-177.

SILVA, Gilvan Ventura da; LEITE, Leni Ribeiro (orgs.) As múltiplas faces do discurso em Roma: textos, inscrições, imagens. Vitória: Edufes, 2013.

SILVA, Luiz Carlos Mangia. O masculino e o feminino no epigrama grego: estudo dos livros 5 e 12 da Antologia Palatina. São Paulo: Unesp, 2011.

SKINNER, Marilyn B. Authorial arrangement of the collection: Debate past and Present. In: SKINNER, Marilyn B. (ed.). A Companion to Catullus. Oxford: Blackwell Publishing, 2007. pp. 36-53.

SKINNER, Marilyn B. Catullus in Verona: A Reading of the Elegiac Libellus, Poems 65-116. Columbus: The Ohio State University, 2003.

SMALL, Jocelyn Penny. Visual copies and memory. In: MACKAY, E. Anne (ed.). Orality, literacy, memory in the Ancient Greek and Roman world. Leiden; Boston: Brill, 2008. pp. 227-252.

BIBLIOGRAFIA | 281

SOUZA, Luiza dos Santos. Uma visão estrutural do livro primeiro dos Amores de Ovídio: estudo, tradução, comentários e notas. Monografia de fim de curso. Curitiba, UFPR, 2012.

SOUZA, Ricardo Pinto de. Um abismo do mesmo: sobre a autotradução de Samuel Beckett. In: Alea – Estudos Neolatinos, v. 14, n. 1, 2012. Disponível em: http://www. scielo.br/scielo.php?pid=S1517-106X2012000100006&script=sci_arttext. Acesso em: 11 set. 2013.

STAMPINI, Ettore. La metrica di Orazio comparata con la greca e illustrata su liriche scelte del poeta. Con una appendice di Carmi de Catullo studiata nei loro diversi metri. Torino: Giovanni Chiantore, 1933.

STEINER, George. After Babel: Aspects of language and translation. Oxford: Oxford University, 1975.

STORM, Theodor. A assombrosa história do homem do cavalo branco / O Centauro Bronco. Tradução de Mauricio Mendonça Cardozo. 2 v. Curitiba: Ed. UFPR, 2006.

STRICKHAUSEN, Harry J. The Horatian Odd/Even Ratios in the “Odes”. The Classical World, v. 78, n. 6, jul.-aug., p. 582-584, 1985.

SULLIVAN, J. P. Propertius: a critical introduction Cambridge: Cambridge University, 1976.

TÁPIA, Marcelo. Apresentação. In: CAMPOS, Haroldo de. Haroldo de Campos –Transcriação. Marcelo Tápia; Thelma Médici Nóbrega (orgs.). São Paulo: Perspectiva, 2013.

TÁPIA, Marcelo. Diferentes percursos de tradução da épica homérica como paradigmas metodológicos de recriação poética: um estudo propositivo sobre linguagem, poesia e tradução. 2012. Tese (Doutorado em Teoria Literária) – USP, São Paulo, 2012.

TARRANT, Harold. Where Plato speaks: reflections on an Ancient debate. In: PRESS, Gerald A. Who speaks fo Plato: studies in Platonic anonimity. Lanham: Rowman and Littlefield, 2000. pp. 67-80.

TARRANT, Richard. Ancient receptions of Horace. In: HARRISON, Stephen (ed.). The Cambridge companion to Horace. Cambridge: Cambridge University, 2007.

TATIT, Luiz. O cancionista. Composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996.

TATIT, Luiz. Musicando a semiótica: ensaios. São Paulo: Annablume; Fapesp, 1997.

TATIT, Luiz. Semiótica da canção. 3. ed. São Paulo: Escuta, 2007.

TEIXEIRA, Francisco Diniz. Na senda tradutória da ode: Horácio e Filinto Elísio. 2018. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Unesp, Araraquara, 2018.

THOMAS, Richard. Horace and Hellenistic poetry. In: HARRISON, Stephen (ed.). The Cambridge companion to Horace. Cambridge: Cambridge University, 2007.

THOMAS, Rosalind. Literacy and orality in Ancient Greece. Cambridge: Cambridge University, 1992.

THOMSON, Douglas F. S. (ed.). Catullus. Toronto: University of Toronto Press, 1998.

282 | COLEÇÃO CLÁSSICA

VALÉRY, Paul. Œuvres. v. 1. Édition établie et annotée par Jean Hytier. Paris: Gallimard, 1957. (v. 127 de la Bibliothèque de la Pléiade).

VALETTE-CAGNAC, Emmanuelle. La lecture à Rome: rites et pratiques. Courtry: Belin, 1997.

VERRUSIO, Maria. Livio Andronico e la sua traduzione dell’Odissea omerica. Edizione anastatica. Roma: Giorgio Schneider, 1977.

VIDAL-NAQUET, Pierre. Os gregos, os historiadores, a democracia: o grande desvio. Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.

VIEIRA, Brunno V. G. Horácio, Arte poética 1-100. In: Letras Clássicas, n. 15. São Paulo: Edusp, 2015. pp. 88-90. Disponível em http://www.revistas.usp.br/letrasclassicas/ article/view/104952/103741.

VIEIRA, Brunno V. G. Um tradutor de latim sob D. Pedro II: perspectivas para a História da Tradução da literatura greco-romana. In: Revista Letras, n. 80 Curitiba: UFPR, 2010. pp. 71-87.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Métaphysiques cannibales. Lignes d’anthropologie post-structurale. Paris: PUF, 2009.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectival anthropology and the method of controlled equivocation. In: Tipití: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland Southamerica, n. 1, v. 2, 2004. pp. 3-22. Disponível em: http://digitalcommons.trinity. edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1010&context=tipiti

WEISSBORT, Daniel; EYSTEINSSON, Astradur. Translation – theory and practice: a historical reader. Oxford: Oxford University Press, 2006.

WEST, David. Horace’s poetic technique in the Odes. In: COSTA, C. D. N. (ed.) Horace. London; Boston: Routledge & Kegan Paul, 1973. pp. 29-58.

WEST, David. Reading Horace. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1967.

WILI, Walter. Horaz und die augusteische Kultur. Basel: Benno Schwabe & Co., 1948.

WILKINSON, L. P. Horace and his lyric poetry. Cambridge: Cambridge University, 1968.

WILLIAMS, Gordon. Figures of thought in Roman poetry. Hanover: Yale University, 1980.

WIMSATT, W. K.; BEARDSLEY, M. C. A falácia intencional. Tradução de Luiza Lobo. In: COSTA LIMA, Luiz. Teorias da literatura em suas fontes. v. 2. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. pp. 86-102.

WISEMAN, Peter. Catullus and his world: A reappraisal. Cambridge: Cambridge University, 1985.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tagebücher 1914-1916: Philosophische Untersuchungen. Frankfur: Suhrkamp, 1990.

BIBLIOGRAFIA | 283

WOODMAN, Tony; FEENEY, Denis (eds.). Traditions and contexts in the poetry of Horace. Cambridge: Cambridge University, 2002.

WRAY, David. Catullus and the poetics of Roman manhood. Cambridge: Cambridge University, 2001.

ZANKER, Graham. Modes of viewing in Hellenistic poetry and art. Madison: University of Wisconsin, 2004.

ZANKER, Paul. The power of images in the Age of Augustus. Translated by Alan Shapiro. Ann Harbor: Michigan University, 1990.

ZIMMERMANN, Philippe. Rythme métrique et rythme rhétorique dans la poésie lyrique d’Horace: recherches sur une poétique du sens 2009. Thèse (Doctorat en Littérature Ancienne) – Université Lille III. Lille, 2009.

ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. Tradução de Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2008.

ŽIŽEK, Slavoj. Órgão sem corpos: Deleuze e consequências. Tradução de Manuella Assad Gómez. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2008.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. Tradução de Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.

ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo: entrevistas e ensaios. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Sonia Queiroz. São Paulo: Ateliê, 2005.

ZUMTHOR, Paul. Essai de poétique médiévale. Paris: Seuil, 1972.

ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Tradução de Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat e Maria Inês de Almeida. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

3. Gravações de áudio

ANTEQUERA; ZOMER, Johanette. Cantigas de Santa Maria: Eno nome de Maria. Paris: Alpha, 2003 (1 CD).

THE DAVE BRUBECK QUARTET. Take Five. Estados Unidos: The Fat Cat, 2011 [1959] (1 CD).

BUARQUE, Chico. Construção. Brasil: Phonogram; Philips, 1971 (1 LP).

BUARQUE, Chico. Não vai passar – vol. 4. Brasil: RGE, 1993 (1 LP).

CARLOS, Roberto. Roberto Carlos. Brasil: CBS,1974 (1 LP).

CAMERATA MEDITERRANA; COHEN, Joel. Bernatz de Ventador: Le fou sur le pont – Chansons de Troubadours/Troubadour Songs. s/l: Erato, 1994 (1 CD).

CLEMENCI CONSORT; CLEMENCIC, René. Carmina Burana. França: Harmonia Mundi, 1990 (3 CDS).

DJAVAN. Djavan. Brasil: EMI, 1978 (1 LP).

284 | COLEÇÃO CLÁSSICA

ENSEMBLE UNICORN; POSCH, Michael. The black Madonna: pilgrim songs from the Monastery of Montserrat (1400-1420). Alemanha: Naxos, 1998 (1 CD).

JAMES, Skip. Today! Estados Unidos: Vanguard, 1967 (1 LP).

LENO; LILIAN. Leno e Lilian. Brasil: CBS, 1969.

LOBO, Edu. Camaleão Brasil: Philips, 1978 (1 LP).

NEWBERRY CONSORT, The. Wanderer’s voices: Medieval cantigas & Minnesang. EEUU: Harmonia Mundi, 1991 (1 CD).

PERCORSO ENSEMBLE; IMBERT, Céline. Berio +: Eduardo Guimarães Álvares, Arrigo Barnabé. São Paulo: Sesc-SP, s/d (1 CD).

PURCELL, Henry. Music for a while & other songs. By Alfred Deller, Wieland Kuijken & William Christie. Itália: Harmonia Mundi, 2008 (1 CD).

RADIOHEAD In rainbows. Inglaterra: Beggars, 2007 (1 CD).

RIBEIRO, Pery. Pery é todo bossa. Brasil: Odeon, 1963 (1 LP).

THEATRE OF VOICES; HILLIER, Paul. Cantigas from the Court of Dom Dinis. França: Harmonia Mundi, 1995 (1 CD).

VELOSO, Caetano. Caetano Veloso. Brasil: Philips, 1969 (1 LP).

BIBLIOGRAFIA | 285

Apêndice: Tradutores das Odes

Análise métrica das Paradeoden, da abertura do livro 2 e de 3.30 em tradução

(A) VERSÕES COMPLETAS

1– Joaquim José de Macedo (1806)

1.1 Decassílabos heroicos ou sáficos

1.2 Hexassílabos (2) e decassílabos (4)

No original, é o mesmo metro (sáfico) de 1.10 e 1.12

1.3 Decassílabos (5), hexassílabos (1) e decassílabos (2)

1.4 Decassílabos (3), hexassílabos (1) e decassílabos (3)

1.5 Hexassílabos (1) e decassílabos (2) – 2x

1.6 Hexassílabos (1) e decassílabos (5)

1.7 Decassílabos (2), hexassílabos (1) e decassílabos (1) – 2x

1.8 Decassílabos (1), hexassílabos (2) e decassílabos (1)

1.9 Decassílabos (2), hexassílabos (1) e decassílabos (1) – igual a 1.7

1.10 Decassílabos (2), hexassílabos (1) e decassílabos (2)

No original, é o mesmo metro (sáfico) de 1.2 e 1.12

1.11 Decassílabos (2), hexassílabos (1) – 2x

1.12 Decassílabos (2), hexassílabos (1)

No original, é o mesmo metro (sáfico) de 1.2 e 1.10

Os poemas estão todos presentes, pouco moralizados (em geral num vocabulário mais elevado).

2.1-10 No original, o livro começa com poemas alcaicos em números pares, e sáficos em números ímpares – na tradução

287

temos uma variedade muito similar ao que vimos em 1.1-12, sempre com uso de decassílabos e hexassílabos.

3.30 Decassílabos (2), hexassílabos (1) e decassílabos (4)

No original, é o mesmo metro (asclepiadeu) de 1.1.

2– Elpino Duriense (1807)

1.1 Decassílabos

1.2 Não foi traduzida

1.3 Decassílabos (3), hexassílabos (1)

1.4 Decassílabos (3), hexassílabos (1) – igual a 1.3

1.5 Decassílabos (3), hexassílabos (1) – igual a 1.3 e 1.4

1.6 Decassílabos – igual a 1.1

1.7 Decassílabos (3), hexassílabos (1) – igual a 1.3, 1.4 e 1.5

1.8 Decassílabos (2), hexassílabos (1)

1.9 Decassílabos (3), hexassílabos (1) – igual a 1.3, 1.4, 1.5 e 1.7

1.10 Decassílabos (3), hexassílabos (1) – igual a 1.3, 1.4, 1.5, 1.7 e 1.9

No original, é o mesmo metro (sáfico) de 1.2 e 1.12

1.11 Decassílabos – igual a 1.1 e 1.6

1.12 Decassílabos (3), hexassílabos (1) – igual a 1.3, 1.4, 1.5, 1.7, 1.9 e 1.10

No original, é o mesmo metro (sáfico) de 1.2 e 1.10

O livro I tem 4 poemas expurgados; o II tem 3; o III tem 5; o IV tem 1.

2.1-10 No original, o livro começa com poemas alcaicos em números pares, e sáficos em números ímpares – na tradução temos a exclusividade do uso de decassílabos (3) e hexassílabos (1), além de 3 poemas expurgados.

3.30 Decassílabos – igual a 1.1 e 1.6.

No original, é o mesmo metro (asclepiadeu) de 1.1.

3– José Augusto Cabral de Mello (1853)

1.1 Decassílabos

1.2 Decassílabos (3) e hexassílabos (1)

1.3 Decassílabos (3), hexassílabos (1) e decassílabos (2)

288 | COLEÇÃO CLÁSSICA

1.4 Decassílabos (2) e hexassílabos (2) – 2x

1.5 Decassílabos (2) e hexassílabos (2) – quase igual a 1.4

1.6 Decassílabos (4) e hexassílabos (2)

1.7 Decassílabos (5) e hexassílabos (2)

1.8 Decassílabos (1) e hexassílabos (1)

1.9 Decassílabos (1) e hexassílabos (1) – igual a 1.8

1.10 Hexassílabos (1) e decassílabos (1)

No original, é o mesmo metro (sáfico) de 1.2 e 1.12

1.11 Decassílabos – igual a 1.1

1.12 Decassílabos (4), hexassílabos (3)

No original, é o mesmo metro (sáfico) de 1.2 e 1.10

Os poemas estão todos presentes, embora moralizados em tópica e vocabulário (como ele mesmo afirma na Observação do Tradutor) com trechos expurgados. Ex.: 4.1, dedicada a Ligurino, aparece como dedicada a Vênus, e o nome do jovem amado desaparece, dando ao poema traduzido um modo heterossexual.

2.1-10 No original, o livro começa com poemas alcaicos em números pares, e sáficos em números ímpares – na tradução temos uma variedade muito similar ao que vimos em 1.1-12, sempre com uso de decassílabos e hexassílabos; com decassílabos (3) e tetrassílabos (1) em 2.8.

3.30 Decassílabos (1), hexassílabos (2), decassílabos (3) e hexassílabos (1) No original, é o mesmo metro (asclepiadeu) de 1.1.

(B) 3 TRADUÇÕES INCOMPLETAS MAIS RECENTES

4– Bento Prado de Almeida Ferraz (2003, Póstuma)

Trata-se de uma antologia, mas é possível notar que os poemas menos “pudicos” não entraram na seleção, mesmo no caso dos Epodos.

1.1 Decassílabos

1.2 Decassílabos (3) e tetrassílabos (1)

1.3 Decassílabos e hexassílabos, sem estrutura

1.4 Decassílabos – igual a 1.1

1.5 Não traduziu

APÊNDICE: TRADUTORES DAS ODE S | 289

1.6 Decassílabos – igual a 1.1 e 1.4

1.7 Não traduziu

1.8 Decassílabos (1) e hexassílabos (1), com encerramento em 2 decassílabos

1.9 Não traduziu

1.10 Decassílabos (3) e tetrassílabos (1) – igual a 1.2

No original, é o mesmo metro (sáfico) de 1.2 e 1.12

1.11 Decassílabos (3) e hexassílabos (1)

1.12 Não traduziu

3.30 Decassílabos – igual a 1.1, 1.4 e 1.6 e aos poemas alcaicos.

No original, é o mesmo metro (asclepiadeu) de 1.1.

5– Ariovaldo Augusto Peterlini (3a. Ed. 2003, Em Antologia)

Insere metros diferentes, como dodecassílabos, undecassílabos, heptassílabos e octossílabos, mas tende para estrofes uniformes. O jogo total parece irregular, mas é difícil a avaliação, sem o grupo integral das odes, já que temos somente 15 odes traduzidas.

1.3 Dodecassílabos

1.5 Decassílabos (3) e hexassílabos (1)

1.11 Dodecassílabos – igual a 1.3

2.3 Dodecassílabos (3) e hexassílabos (1)

2.10 Dodecassílabos – igual a 1.3 e 1.11

3.30 Dodecassílabos – igual a 1.3, 1.11 e 2.10.

6– Décio Pignatari (1996, 2a Ed. 2007)

Trata-se de uma antologia de diversos poetas, mas Horácio é o segundo a receber mais atenção (atrás apenas de Marcial), com 10 odes e 2 epodos. Apesar de Pignatari usar na maior parte do tempo versos decassílabos e hexassílabos, ele também utiliza undecassílabos, dodecassílabos, heptassílabos, octossílabos e em construções estróficas diferentes. No entanto, não há qualquer pretensão de coerência métrica entre os poemas traduzidos.

1.9 Decassílabos (2) e hexassílabos (2) seguidos de Decassílabos (3) e hexassílabos (1)

290 | COLEÇÃO CLÁSSICA

7– Érico Nogueira (2020)

O trabalho de Nogueira, que teve início mais ou menos na época em que eu concluía a minha tese de doutorado (portanto 2014-2015), embora só tenha sido publicado em 2020, é fundamental, porque se propõe a criar um ritmo análogo ao dos metros latinos. E mais, Nogueira emula todos os vinte e um metros praticados em toda a obra de Horácio. Com isso, no caso das Odes, oferece uma tradução de 1.4, 1.7, 1.8, 2.18, 3.12, 4.2, 4.3, 4.5, 4.7, 4.8, 4.9, 4.10 e 4.13; além de Epodos 10, 11, 12, 13, 15, 16 e 17; e Sátiras 1.8, Nas Odes, como é facilmente depreensível, ele deu preferência ao Quarto Livro, e com isso apenas os poemas 1.4, 1.7 e 1.8 das Paradeoden foram contemplados. Mesmo assim, caso um dia ele se aventura a uma tradução integral da obra, é possível pressupor que a variedade e o diálogo métrico saltarão aos olhos. No corpo do ensaio eu comento minhas discordâncias sobre os fins de versos segundo a métrica lusitana, sem radicalizar a empreitada iniciada.

8– Pedro Braga Falcão (2008, Ed. Brasileira 2021)

9– Frederico Lourenço (2023)

Junto as duas traduções lusitanas mais recentes para marcar aqui a diferença geral de projetos tradutórios entre o que faço e analisei nas traduções poéticas anteriores e o que os dois portugueses fizeram, já no século XXI. Trata-se, em ambos os casos, de uma tradução sem atenção à métrica nas Odes, como nas outras obras horacianas; e eu ousaria dizer que também sem maiores pretensões poéticas na língua de chegada, sendo que o objetivo principal é passar a semântica do texto latino com notas explicativas. O trabalho de Lourenço, recentíssimo, é provavelmente o primeiro volume com todo Horácio traduzido por uma só pessoa em língua portuguesa, e por isso só já tem seus méritos. Braga Falcão certamente fez uma tradução completa, porém ainda não está publicada por inteiro, que eu saiba.

APÊNDICE: TRADUTORES DAS ODE S | 291

www.autenticaeditora.com.br www.twitter.com/autentica_ed www.facebook.com/editora.autentica

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.