

TRADUÇÃO : Julia da Rosa Simões
Copyright © 2023 Virginie Grimaldi
Copyright desta edição © 2025 Editora Gutenberg
Título original: Une belle vie
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editora responsável
Flavia Lago
editoras assistentes
Natália Chagas Máximo
Samira Vilela
preparação de texto
Carla Betelli
revisão
Cláudia Cantarin
Natália Chagas Máximo
ilustração de capa
Paula de Aguiar
diagramação
Guilherme Fagundes
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil
Grimaldi, Virginie
Uma vida bela / Virginie Grimaldi ; tradução Julia da Rosa Simões. -- 2. ed. -- São Paulo : Gutenberg, 2025.
Título original: Une belle vie
ISBN 978-85-8235-784-2
1. Romance francês I. Título.
25-247562
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances : Literatura francesa 843
Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427
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É como se uma corrente tivesse unido
Invisivelmente nossos pulsos
No dia em que nascemos
Então, se você afundar, eu também afundarei
Mas valorizo demais a vida
Para permitir que isso aconteça.*
Clara Luciani, “Ma sœur”
* C’est comme si une chaîne avait relié / Invisiblement nos poignets / Le jour où nous sommes nées / Alors si tu coules, je coule aussi / Et je tiens bien trop à la vie / Pour que ce puisse être permis. (N. T.)
ontem abril de 1985
Minha irmã nasceu hoje de manhã. Que feia. Toda vermelha e amassada.
Papai perguntou se fiquei feliz, eu disse que não. Não fiquei feliz. Não quero uma irmã. Espero que deixem ela no hospital. Jamais vou emprestar meus brinquedos pra ela.
Mas gostei do bichinho de pelúcia que ela ganhou.
hoje 5 de agosto
14h32
O portão não está trancado. Ele range quando o empurro, como se me repreendesse por ter passado tanto tempo sem abri-lo. A tinta branca descascou em alguns lugares, revelando a cor preta original. Depois do roubo, insisti para que Mima instalasse um alarme, além de um cadeado e vários refletores com sensor de movimento ao redor da casa. Ela deu todas as desculpas possíveis: “O gato vai acionar o alarme”, “Não vou poder abrir as janelas”, “O sr. Malois foi roubado e o alarme não tocou”, “É muito caro”, “Mas eu não tenho nada para ser roubado”, “Me deixe em paz, Emma, você é tão teimosa quanto seu pai”.
Sou a primeira a chegar. As venezianas estão fechadas, as ervas daninhas se insinuam por entre as lajes do terraço, os pés de tomate se dobram sob o peso dos frutos. Mima os plantou no dia do meu aniversário. Ela me ligou logo depois, reclamando da terra que ficara incrustada sob suas unhas e resistia à limpeza. “Plantei tomates-coração-de-boi, sei que você gosta”, ela me disse. “Vou fazer uma bela salada quando vier me visitar.”
Bem ao lado dos coração-de-boi há um pé de tomatescereja, os preferidos de Agathe. Colho um, limpo-o na blusa e dou uma mordida. A pele se rompe, a polpa explode e suja
meus lábios, o suco ácido derrama suas sementes sobre minha língua e a infância bate à porta de minhas lembranças.
– Você já chegou?
A voz de Agathe me dá um susto. Não a ouvi se aproximar. Ela me envolve com seus braços enquanto os meus permanecem caídos. Na família, não somos muito de demonstrar afeto. Menos minha irmã. Ela é pródiga em manifestações de carinho e demonstra seus sentimentos abertamente.
– Que alegria ver você! – ela diz, soltando o abraço. –Depois de todo esse tempo...
Ela se cala e olha para mim. A emoção me invade quando seu olhar encontra o meu.
– Fiquei surpresa quando recebi sua mensagem – ela continua. – Que ótima ideia você teve. Fico triste que a casa de Mima esteja à venda, mas isso não me surpreende, vindo de nosso querido tio. Ele ainda me cobra aqueles vinte centavos que me emprestou quando eu tinha 8 anos, tenho certeza de que em outra vida foi um parquímetro.
– Isso explicaria a cara quadrada dele.
– Com certeza. Se apertarmos o nariz dele, é bem capaz de vomitar um tíquete de estacionamento. Bom, vamos abrir a casa?
Eu a sigo até a porta. O sol ilumina seus cabelos, e longos fios brancos brilham em meio a sua cabeleira loira. Essas marcas do tempo apertam meu coração. Sob meu olhar cotidiano, minha irmãzinha nunca envelhecia. Envelhecemos cinco anos desde a última vez, e de repente Agathe se tornou uma adulta.
– Não sei onde coloquei a chave.
Ela esvazia a bolsa sobre o capacho. A comprida chave de bronze aparece entre uma cartela de chiclete e um maço de cigarros.
– Aqui!
Eu teria preferido que ela não a tivesse achado. Que fôssemos embora sem poder entrar, que tivéssemos de desistir. Eu teria preferido nunca ter proposto à minha irmã que passássemos nossas últimas férias ali, como quando éramos pequenas, antes que a casa pertencesse a outras pessoas. Eu teria preferido nunca saber como seria a sensação de ver a porta se abrir e não ouvir a voz de nossa avó pedindo que tirássemos os sapatos.
Agathe fez cocô na banheira de novo. As bolinhas flutuam ao meu redor. Mamãe a tira da água gritando. Ela tem gritado bastante desde que Agathe nasceu.
Quando papai volta do trabalho, mamãe conta o que aconteceu. Ele ri, então ela ri também. Dou um abraço neles.
Amanhã, começo o primeiro ano. Espero ficar na mesma turma de Cécile, mas não na de Margaux. Ela se acha muito com seus cabelos compridos e ainda por cima me chamou de burra porque não sei andar de bicicleta sem rodinhas.
Eu também quero ter cabelos compridos, mas mamãe não deixa. Ela diz que é difícil de lavar, porque tenho cachos. Ela corta meus cabelos bem curtinhos com a grande tesoura laranja. Quando eu crescer, vou ter cabelos compridos como Margaux.
5 de agosto
14h35
Mal entro na casa e o alarme dispara. Ele tem o mérito de secar minhas lágrimas. Emma pula como uma pipoca e enfia os dedos nos ouvidos. Nota mental: se um dia eu planejar um assalto, não vou convidar minha irmã para me acompanhar.
Digito o código no teclado. Mima me passou o número quando estava hospitalizada, para que eu pudesse alimentar o gato.
8085.
O ano do nascimento das duas netas. Abro as venezianas do andar térreo, Emma se encarrega das do andar de cima. Encontro-a no quarto de Mima, parada na frente da cômoda. O porta-joias está aberto, vazio. Ela balança a cabeça:
– O parquímetro obviamente lembrou que tinha uma mãe.
– Eu pagaria uma fortuna para ver a cara dele ao descobrir que a maioria das joias é falsa.
– Ele sabe que estamos aqui?
– Não. Não falo com ele desde o enterro.
Silêncio total. Pronunciei a palavra proibida. Emma não foi ao funeral de Mima, impedida por uma suposta viagem escolar que não podia ser cancelada. Não consigo entender que destino poderia ser mais importante do que a despedida de nossa avó, mas eu não era a pessoa mais indicada para questioná-la.
Descemos de volta à sala. Na toalha de plástico da pequena mesa de madeira, a revista de programação da televisão está
aberta na sexta-feira, 27 de maio. Na fruteira, as maçãs estão murchas.
“Leve o queijo e as frutas para a sua casa”, Mima me disse quando a visitei no hospital. “Corro o risco de ficar aqui por um tempo, vão acabar estragando.”
Recusei por superstição. Ela melhorava um pouco a cada dia, os médicos estavam confiantes.
“Você acha que eu vou comer aquele seu queijo nojento?”, perguntei. “Daria para dizimar uma cidade inteira só abrindo sua geladeira. Não sei por que nos damos o trabalho de fabricar bombas nucleares se temos o camembert.”
Ela riu, então continuei: “Por que você acha que perdeu todos os dentes? Não é a idade, Mima, é o cheiro”.
A auxiliar de enfermagem trouxe o jantar, Mima sorriu ao ver a fatia de queijo insípido embalado em celofane e eu a beijei na testa, prometendo voltar no dia seguinte. Às 4h56 da manhã, um AVC mais forte que o anterior levou embora todos os nossos amanhãs.
Emma abre a geladeira:
– Precisamos fazer compras.
– Podemos ir amanhã? Prefiro ir à praia. O tempo está lindo, vamos aproveitar, nunca dura muito aqui.
Seu olhar me diz tudo, ela não precisa insistir. Ela se senta à mesa e começa a escrever uma lista. A lua de mel durou apenas alguns minutos, a rotina está de volta, como se mal tivéssemos nos despedido.
– O que você toma no café da manhã?
– Café – respondo, tentando disfarçar minha decepção.
Ela anota. Seus cabelos estão bem curtos, de perfil ela parece nossa mãe. Eu nunca tinha notado como as duas são parecidas. Dizem que sou a cara do nosso pai, especialmente
no nariz. Não tenho certeza se gosto disso, até considerei fazer uma cirurgia para alterá-lo, mas acabei ficando com ele, poderia ser útil. Se um dia eu estiver em um barco e o leme parar de funcionar, por exemplo.
– Que tal vitela esta noite? – sugere Emma.
– Sou vegetariana.
– Desde quando?
– Faz uns dois ou três anos.
– Ah. Mas você ainda come frango?
– Não, mas pode comprar pra você.
– Ah, não, esquece. Vamos comer peixe.
– Também não como peixe.
– Mas do que você se alimenta? Sementes?
– Exclusivamente de sementes, sim. Preciso tomar cuidado, aliás, porque percebi uma coisa estranha. Veja.
Me aproximo dela e levanto a manga da camiseta.
– Não vejo nada – ela diz.
– Aqui, olhe melhor. Não está vendo?
– Não.
– Estou criando penas. Outro dia, botei um ovo.
Ela olha para cima e volta para a lista, porém, apesar de todos os seus esforços, consigo vê-la lutando para não rir.
Não.
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